Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
2246/11.7JAPRT.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: ELSA PAIXÃO
Descritores: CRIME DE ABUSO SEXUAL DE CRIANÇA
DECLARAÇÕES PARA MEMÓRIA FUTURA
DECLARAÇÕES EM AUDIÊNCIA
PRESUNÇÕES NATURAIS
PRINCÍPIO IN DUBIO PRO REO
CRIME DE TRATO SUCESSIVO
SUSPENSÃO DA PENA DE PRISÃO
Nº do Documento: RP201502112246/11.7JAPRT.P1
Data do Acordão: 02/11/2015
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC PENAL
Decisão: PROVIMENTO PARCIAL
Indicações Eventuais: 4ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - Sendo vitima, de um crime de natureza sexual, uma pessoa menor a lei impõe como obrigatório que a mesma preste declarações para memória futura (artº 271º2 CPP).
II - A prestação desse depoimento visa acautelar a genuinidade do depoimento em tempo útil e salvaguardar os interesses decorrentes da especial vulnerabilidade da vítima.
III – A prestação de novo depoimento em audiência da menor só é possível se não puser em causa a saúde física ou psíquica da menor em face do seu reviver dos acontecimentos e se tal se revelar absolutamente necessário para a descoberta da verdade.
IV – As presunções naturais não violam o princípio in dúbio pro reo, pois cedem perante a simples dúvida.
V – Se a conduta do arguido é fruto de uma unidade resolutiva que abarcou ab initio as circunstância de tempo, modo e lugar em que viriam a ter lugar os vários actos sexuais que praticou, comandados por uma única resolução e lesando o mesmo bem jurídico, constitui um único crime de trato sucessivo.
VI - O alargamento de 3 para 5 anos de prisão do pressuposto formal que permite a suspensão da pena de prisão faz realçar a necessidade de uma ponderação mais criteriosa dos pressupostos materiais que regulam a sua aplicação.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Proc. nº 2246/11.7JAPRT.P1
2º Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Santa Maria da Feira (Círculo Judicial de Santa Maria da Feira)

Acordam, em Conferência, os Juízes desta 2ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto:

I – RELATÓRIO
No 2º Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Santa Maria da Feira (Círculo Judicial de Santa Maria da Feira), no processo comum colectivo nº 2246/11.7JAPRT, foi submetido a julgamento o arguido B…, tendo sido proferida decisão com o seguinte dispositivo:
Nestes termos julga-se procedente por provada a douta pronúncia, com a convolação jurídica operada e, os Juízes que constituem o Tribunal Colectivo decidem:
A) Condenar o arguido B…, pela prática, em autoria material e em concurso real, de dois crimes de abuso sexual de crianças, p. e p. pelos arts. 14°, nº 1, 26° e 171º, nº 1 e um crime de abuso sexual de crianças p. e p. pelos art. 14°, nº 1, 26° e 171º, nº 2, todos do Código Penal/07, respectivamente, nas penas concretas de 1 (um) ano e 4 (quatro) meses; 2 (dois) anos; e 3 (três) anos e 6 (seis) meses de prisão.
B) Em cúmulo jurídico, condena-se o arguido na pena única de 4 (quatro) anos e 6 (seis) meses de prisão efectiva.
C) Condena-se, ainda, o arguido no pagamento das custas processuais, fixando-se em 4 UC a taxa de justiça devida.
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Outrossim, julga-se procedente, por provado, o pedido de indemnização civil deduzido pela mãe da menor, C…, na qualidade de representante legal da sua filha menor, D…, contra o demandado B… e, em consequência, condena-se este a pagar àquela, em representação da sua filha menor, a título de compensação por danos não patrimoniais, a quantia de € 10.000,00 (dez mil euros), a que acrescem os correspondentes juros de mora legais, vencidos e vincendos, desde a notificação do pedido, até integral pagamento.
Custas pelo demandado.
Após trânsito em julgado:
- ordena-se a remessa de boletins à D.S.I.C.;
- cópia de decisão à D.G.R.S.
Notifique e deposite o presente acórdão (arts. 372°, nºs. 4 e 5 e 373°, nº 2, do C.P.P.).
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Inconformado com a sentença condenatória, o arguido B… veio interpor recurso, terminando a motivação com as seguintes conclusões (transcrição):
I. O Recorrente foi condenado pela prática em autoria material, como autor material e em concurso real na prática de dois crimes de abuso sexual de crianças, p. e p. pelos arts 14º., nº. 126 e 171 nº. 1 e um crime de abuso sexual de crianças p. e p pelos art.14 nº. 126 e 171 nº. 2 todos do Código Penal/07, respetivamente, nas penas concretas de 1 (ano) e 4 (quatro) meses; 2 (dois) anos e 3 (três) anos e 6 (seis) meses de prisão.
Efetuado o cúmulo jurídico foi o arguido condenado na pena única de 4 (quatro) anos e 6 (seis) meses de prisão efetiva.
II. O Tribunal “a quo” deu como provados todos os factos constantes da acusação.
III. Formando a sua convicção nas declarações para memória futura, prestadas pela menor D…, às quais foi atribuída total credibilidade,
IV. Salvo o devido respeito, o Tribunal “a quo” julgou incorrectamente os referidos factos, porquanto em relação aos mesmos a prova foi, manifestamente, insuficiente e contraditória.
V. Com efeito, da prova produzida não ficou minimamente demonstrado que:
- O arguido decidiu aproveitar-se da presença da menor em sua casa para satisfazer a sua libido.
- Para o efeito, muito contribuiu o facto de a menor gostar de brincar com o gato daquele, de nome E…, gato esse que, não raras vezes, se refugiava nos quartos, indo a menor no seu encalço.
- Assim, em data não concretamente apurada, mas por volta de Setembro de 2011, numa tarde em que D… se encontrava na residência de B… e esposa, e aproveitando-se do facto de a menor ter ido atrás do gato E…, até um dos quartos da residência, o arguido foi no seu encalço.
- Quando a menor se encontrava agachada, a procurar o dito animal por baixo da cama de um dos quartos, o arguido abaixou-se também e, de seguida, colocou a sua mão por dentro das cuecas que a menor envergava, tocando-lhe na vagina e nádegas.
- Perante tal atitude, com que não contava e que, à data, não percebeu, D… sorriu.
- Tais factos repetiram-se, em modo em tudo similar, entre Setembro e 3 de Dezembro de 2011, por um número de vezes concretamente não apurado. Ocorriam sempre ao fim-de-semana, única altura em que a menor ali ia.
- Na verdade, por diversas vezes em que a menor se deslocou a sua casa e procurou o gato E…, o arguido foi no seu encalço e, assim que a menor se abaixou junto de uma cama para ir buscar o referido animal, B… passou-lhe a mão pela vagina e nádegas.
- Não satisfeito, e sempre para satisfação da sua libido, uma vez, em data concretamente não apurada, mas naquele mesmo período de tempo, em que a menor se deslocou a sua casa, B… pegou na menor e friccionou o seu pénis contra a zona genital daquela. Manteve-se assim durante alguns segundos. O arguido aproveitou-se sempre do facto de a menor correr atras do seu gato, na direção dos quartos da residência, indo aquele também no seu encalço.
- De uma outra vez, também na sua residência e no referido período, num dia de fim-de-semana, em inícios de Dezembro de 2011, aproveitando-se do facto de a menor D… se encontrar deitada em cima da cama de um dos quartos, a fazer festas ao gato E…, o arguido aproximou-se da menor, subiu a saia que a mesma envergava, despiu-lhe as cuecas e afastou-lhe as pernas. Não sem que antes lhe dissesse: "Posso lamber a tua pombinha?"
- Acto contínuo, B… passou a sua língua, em movimentos ascendentes e descendentes, pela vagina da menor, assim se mantendo durante algum tempo. D… pediu-lhe, então, que parasse, pois que a estava a magoar.
- B… acabou por aceder a tal pedido, ao fim de algum tempo.
- D… apenas contou a sua mãe quando esta reparou que a menor apresentava a vagina ruborizada. Na verdade, o arguido havia-lhe pedido para que não contasse a ninguém nada do sucedido.
- B… actuou com o propósito, conseguido, de praticar com a menor D… actos de cariz sexual como sejam os actos supra descritos, inclusive de coito oral, na consumação do plano que delineara de satisfazer a sua libido com aquela.
VI. A prova produzida impunha decisão diversa da obtida pelo Tribunal “a quo”, pelas seguintes razões:
1. Do depoimento do arguido não foi valorada qualquer afirmação contrária aos factos da acusação;
2. O Tribunal “a quo” não atendeu, desvalorizando completa e injustificadamente, o depoimento das testemunhas apresentadas pelo arguido, incorrendo em erro notório na apreciação da prova;
3. O Tribunal “a quo” não atendeu, desvalorizando completa e injustificadamente, as afirmações das testemunhas de acusação e do pedido de indemnização civil, quando estas se contrariam entre si e contrariaram o sentido da decisão de condenação, incorrendo também aqui em erro notório na apreciação da prova.
VII. Pelo que, se o Tribunal “a quo” conjugasse toda a prova, como se esperava, resultaria uma decisão oposta, considerando, no mínimo, a dúvida sobre a prática dos alegados comportamentos ilícitos.
VIII. O Tribunal “a quo” decidiu com base em factos que deu como provados, sem atender às declarações do arguido e a toda a prova testemunhal apresentada pelo Recorrente, tornando-se evidente a insuficiência para a decisão da matéria de facto, violando, ainda, o princípio do “in dubio pro reo”, os artigos. 32º, nº 2 da C.R.P. e os artºs. 127º, 340º, nº 1, do 374º, todos do C.P.P;
IX. Ao não admitir a prova requerida pelo arguido, o Tribunal “a quo” coartou ao arguido os mais elementares direitos que constitucionalmente lhe são consagrados.
Não sendo assegurado o princípio elementar do contraditório ao arguido, por falta da notificação nos termos e para os efeitos do artº 271 nº 3 foram desrespeitados portanto todos os direitos de defesa do mesmo, impossibilitando no decurso de todo o processo judicial a descoberta da verdade material dos factos, primordial no processo penal, impedindo assim que a justiça se faça de uma forma igual justa e equitativa para todos os interessados na causa.
Ao não ser respeitado o contraditório de todas as provas apresentadas foi assim violado o artº 32º nº 5 da CRP.
Também e de igual modo e ao não ser deferida a audição da menor em sede de audiência de julgamento, não foi respeitado o princípio do contraditório e o princípio da verdade material, sendo assim violado o disposto no artº 340, nº 1 do C.P.P.
In casu estando em causa uma decisão que afetará de forma irreparável o futuro do arguido e considerando a evidente contradição relativamente aos factos constantes da acusação, contestação e depoimento das testemunhas, verificava-se necessária a audição da menor a fim da mesma vir esclarecer o Tribunal.
X. O arguido/recorrente não pode concordar também, mesmo que se entenda pela sua condenação, pela alteração da qualificação jurídica dos factos constantes da acusação pública ao abrigo do disposto no artº 358º nº 3 do C.P.P.
Cada um dos vários actos do arguido (segundo entendimento do tribunal) ocorreu no mesmo contexto situacional no referido período na sua residência e tendo como motivo o gato, comandado por uma única resolução e traduziu-se numa única lesão do bem jurídico protegido.
Cada um desses actos constituiu um momento ou parcela de um todo projectado
Assim, mesmo sendo praticados vários atos subsumíveis à previsão do tipo legal de crime, se se inserirem na conduta global do agente e estiverem abrangidos pela resolução criminosa inicial, nada impede que se qualifique como tratando-se de um único crime de trato sucessivo”
Andou mal, salvo o devido respeito, o Tribunal a quo, ao ter alterado a qualificação jurídica, aumentando o número de crimes imputados ao ora arguido contra o entendimento da Digna Procuradora (vide alegações da mesma) e da Mma Juiz de Instrução.
Devendo assim (a considerar-se o arguido culpado dos factos de que vem acusado) ser o mesmo condenado por um único crime de abuso sexual de crianças p. e p. nos termos do art.º 171º n.º 1 e 2 do C. Penal, decidindo-se em consequência pela alteração da pena do arguido.
XI. Na determinação da medida da pena (a considerar-se o arguido culpado dos factos de que vem acusado) o Tribunal “a quo” além da sua injustificável severidade, visto ser o mesmo primário, não levou em conta as condições pessoais do Recorrente nem a sua conduta anterior ao facto e posterior a este (Art. 71 ° nº 2 al. c), d) e e) e artº 72º nº 2 d) do CP).
XII. Ainda que viesse a ser aplicada uma pena de prisão ao Recorrente, impunha-se que esta tivesse sido suspensa na sua execução, conforme Art. 50° n° 1 do CP, aplicável ao Recorrente, visto militarem a seu favor todos os pressupostos de facto de que depende a suspensão da pena.
O Tribunal a quo fundamentou a sua decisão em princípios teóricos, que não se baseiam em nada que conste dos autos, que não se referem diretamente ao Recorrente, e que só lhe poderiam eventualmente ser aplicados por um médico especialista após um exame rigoroso, o que um Magistrado, por mais insigne jurista que seja, e salvo o devido respeito, não tem habilitações técnicas para o fazer.
De facto e ao contrário do vertido no acórdão em crise que referindo-se ao arguido afirma: “Há pedófilos de todas as condições sociais. Os mais perigosos são, certamente, aqueles em quem a criança/jovem confia por natureza ou admira - um professor, um médico, um artista conhecido, um familiar, maxime um pai (…).” O arguido nem sequer tentava granjear a confiança da menor, ralhando-lhe constantemente ao ponto da menor não gostar dele e até a chamar-lhe “crocodilo”
Foram violadas as normas jurídicas supra-indicadas, que, só por si, invalidariam as razões apresentadas para a efetividade da pena da prisão (Art. 412° nº 2 do CPP).
XIII. A sentença não foi justa, adequada e proporcional, tendo o Tribunal negado o direito ao arguido a ser julgado com equidade
XIV. O Recorrente deve ser absolvido dos crimes de que vem acusado, e, mesmo que assim não se entenda, e ainda que se mantenha uma penalização em pena de prisão, deve, a mesma, ser suspensa da sua execução.
XV. Em consequência da sua absolvição deve o arguido ser também absolvido do pedido de indemnização civil e, mesmo que assim não se entenda, deverá sempre ser o arguido absolvido deste pedido, porquanto não se comprovaram os danos não patrimoniais reclamados.
Termos em que e nos mais de Direito, deve ser dado provimento ao Recurso, fazendo-se a habitual e necessária JUSTIÇA.
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O recurso foi admitido (cfr. despacho de fls. 575).
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Em resposta ao recurso o Ministério Público pugnou que lhe seja negado provimento e confirmada a sentença recorrida. Formulou as seguintes conclusões:
1. A decisão recorrida não padece de nenhum dos vícios elencados pelo arguido, designadamente os de insuficiência para a decisão da matéria de facto dada como provada e erro notório na apreciação da prova.
2. Tais vícios têm que resultar da própria decisão recorrida, o que, de forma evidente, não sucede no caso concreto.
3. Da argumentação tecida pelo arguido depreende-se que o que ele verdadeiramente pretende é que seja levada a cabo uma reapreciação da matéria de facto dada como assente pelo Tribunal a quo.
4. A reapreciação da matéria de facto não é um novo julgamento que incida sobre a totalidade da decisão, mas uma reavaliação dos pontos concretos da matéria de facto que sejam indicados, pelo que o recorrente tem o ónus de os especificar com clareza e de mencionar quais as provas que impõem decisão diversa da recorrida, por referência aos suportes técnicos.
5. Por este motivo, para impugnação da decisão proferida sobre matéria de facto, e para que a decisão recorrida seja nessa matéria modificável nos termos do disposto na alínea b) do artigo 431.º do Código de Processo Penal, os n.ºs 3 e 4 do artigo 412.º do mesmo diploma impõem ao recorrente um ónus de especificação dos concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados e das concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida (ou aquelas que devem ser renovadas).
6. Este dever legal não tem natureza puramente formal, nele se concretizando a finalidade de permitir ao recorrente apontar ao Tribunal ad quem o que na sua perspectiva foi mal julgado e oferecer uma proposta de correcção para que o órgão judiciário a possa avaliar;
7. Pelo que o seu incumprimento tem a importante consequência jurídica de impossibilitar o conhecimento da matéria de facto por parte do tribunal superior e acarretar a rejeição do recurso por manifesta improcedência.
8. Ora, o recorrente, na sua manifestação de discordância quanto ao entendimento alcançado pelo Tribunal a quo quanto à substância fáctica do acórdão recorrido, não indica as provas concretas que impunham decisão diversa da recorrida nem as que devem ser renovadas/ optando sempre por uma formulação vaga que culmina numa discordância genérica quanto à decisão tomada.
9. Consequentemente deverão V.ªs Ex.ss ter tal impugnação como manifestamente improcedente, sem haver lugar a qualquer "convite ao aperfeiçoamento", como tem sido entendimento dominante da jurisprudência/ inclusivamente constitucional.
10. Não obstante, mesmo que assim não se entenda/ não assiste ainda razão ao recorrente na sua pretensão, uma vez que o princípio da livre apreciação da prova (art. 127º do C.P.P.) e o dever de fundamentação estão intimamente conexionados, na medida em que a circunstância de/ em regra/ valer a convicção íntima do julgador na valoração da prova não o libera, antes o obriga/ a justificar-se.
11. Não se trata, pois/ de plasmar a arbitrariedade ou a pura subjectividade na valoração da prova, aliás objecto de motivação lógica e objectiva, mas de tornar sindicável a livre convicção formada pelo julgador/ alicerçada nas regras de experiência comum/ quando respeitadora das normas de prova vinculada.
12. O recurso não serve/ ou não deve servir, por isso, para fazer vencer as teses nascidas de convicções interiores do Recorrente, não coincidentes com o que foi a convicção do Tribunal a quo, ou para afirmar apreciações genéricas sobre a apreciação da prova, sem lograr por objectivamente em crise a decisão recorrida, apontando-lhe a violação dos passos objectivos que levaram à decisão sobre a matéria de facto, seja porque tais dados não existem, resultaram de violação das regras de aquisição dos mesmos, ou porque não houve liberdade na formação da convicção.
13. No caso em apreço, o Tribunal a quo iniciou a fundamentação fáctica enunciando os meios de prova determinantes para a formação da convicção do Tribunal/ percorrendo-os, de acordo com os factos que no seu entender permitiam dar como assentes. 14. E serviu-se/ na sua análise da prova, de factos instrumentais/ e das regras da experiência comum/ o que explanou de modo convincente.
15. O que o recorrente tenta fazer é, aproveitando-se de partes dos testemunhos das pessoas por si apresentadas - todas elas suas amigas e/ou familiares, centrar-se em determinados pormenores quase irrelevantes para a percepção da sua conduta concreta (ex. o gato ter receio das pessoas)
16. As declarações da menor vítima foram claras, espontâneas, simples e naturais, criando no julgador a certeza de que correspondiam á verdade e que não tinham induzida.
17. E, utilizado esse processo, dúvidas não restam (como não restaram ao Tribunal a quo) que o arguido praticou efectivamente os factos que lhe são imputados, não oferecendo qualquer credibilidade os argumentos em contrário por ele invocados.
18. Em suma, afigura-se-nos que a matéria de facto dada como provada e não provada na decisão recorrida resulta de uma correcta e ponderada análise de todos os elementos de prova produzidos e não merece qualquer censura.
19. O princípio in dubio pro reo só pode ser aplicado quando o Tribunal tiver uma dúvida séria e insusceptível de ser resolvida com recurso a outros meios de prova.
20. No caso concreto, o Tribunal não teve qualquer dúvida sobre a forma como ocorreram os factos e, analisados os elementos de prova produzidos, afigura-se-nos que a decisão proferida é totalmente coerente e compatível com os mesmos, pelo que nenhuma violação existe do princípio em causa.
21. Também não assiste razão ao recorrente quando invoca a violação do princípio do contraditório e da verdade material por não ter sido devidamente notificado da data designada para a tomada de declarações para memória futura pela menor.
22.Desde logo porque o arguido esteve devidamente representado na tomada de declarações para memória futura pela sua defensora.
23. Além disso precludiu o prazo para a arguição de tal irregularidade. A falta de notificação do arguido da data designada para a tomada de declarações para memória futura não constituiu nenhuma nulidade, nem insanável nem sanável, por não se estar prevista no elenco taxativo do art. 119º, do C.Processo penal, nem se enquadrar em nenhuma das alíneas do nº. 2, do art. 120º, do mesmo normativo.
22. A defensora do arguido esteve presente na referida diligência e não invocou qualquer irregularidade nem nulidade. O arguido requereu a abertura de instrução, e nem nesse requerimento nem no decorrer da instrução invocou qualquer irregularidade e/ou nulidade, pelo que precludiu o direito de o fazer.
23. Bem andou igualmente o Tribunal ao não suspender a pena de prisão aplicada ao arguido, uma vez que não se verificam os necessários requisitos, nomeadamente o material, uma vez que não se vislumbra que a mera ameaça de prisão seja suficiente para assegurar as finalidades da punição.
24. As circunstâncias que rodearam a prática dos factos (o arguido era amigo e familiar por afinidade da menor e dos pais, convivendo com eles regularmente), e a sua personalidade (nunca confessou os factos e sempre alegou tratar-se de uma vingança por parte da menor), não permitem concluir que a mera ameaça de prisão irá cumprir as finalidades visadas com punição.
25. O arguido baseia o seu pedido de suspensão no facto de ter uma vida familiar e social estável, mas tal não impediu que praticasse os factos, sendo certo que até favoreceu a prática dos mesmos (uma vez que nunca ninguém suspeitou que fosse capaz de os praticar).
26. Em suma, conjugados todos estes elementos, afigura-se-nos que nenhuma censura merece a sentença recorrida, nem a pena aplicada, que se afigura justa e adequada aos factos provados.
Pelo exposto, entendemos que a douta sentença recorrida não merece qualquer censura, devendo manter-se nos seus precisos termos, assim se fazendo a acostumada JUSTIÇA.
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Nesta Relação, a Ex.ma Senhora Procuradora-Geral Adjunta, subscrevendo na íntegra a resposta apresentada pelo Ministério Público em 1ª instância, emitiu parecer no sentido de que o recurso deverá improceder.
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Cumpriu-se o disposto no artigo 417º, nº 2 do Código de Processo Penal, não tendo sido apresentada resposta.
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Efectuado exame preliminar e colhidos os vistos legais, foram os autos submetidos à conferência.
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II – FUNDAMENTAÇÃO
Passemos agora ao conhecimento das questões alegadas no recurso interposto da decisão final proferida pelo tribunal colectivo.
Para tanto, vejamos, antes de mais, o conteúdo da decisão recorrida.
Segue-se a enumeração dos factos provados, não provados e respectiva motivação, constantes do acórdão recorrido (transcrição):
2 - Fundamentação
2.1. Os factos provados
Discutida a causa, resultaram provados, com interesse para a decisão, os seguintes factos:
1) D…, ofendida, nasceu a 22 de Março de 2003, encontrando-se registada como sendo filha de F… e de C….
2) Por seu turno, B…, arguido, é casado com uma prima de C…, mãe da menor. B… e esposa residem na Rua …, em …, área desta comarca.
3) Como ambas as famílias se davam bem, era costume, durante todo o ano de 2011, a menor ofendida, juntamente com os seus pais e irmão, ir almoçar e/ou jantar a casa do arguido e família.
4) O arguido decidiu aproveitar-se da presença da menor em sua casa para satisfazer a sua líbido.
5) Para o efeito, muito contribuiu o facto de a menor gostar de brincar com o gato daquele, de nome E…, gato esse que, não raras vezes, se refugiava nos quartos, indo a menor no seu encalço.
6) Assim, em data não concretamente apurada, mas por volta de Setembro de 2011, numa tarde em que D… se encontrava na residência de B… e esposa, e aproveitando-se do facto de a menor ter ido atrás do gato E…, até um dos quartos da residência, o arguido foi no seu encalço.
7) Quando a menor se encontrava agachada, a procurar o dito animal por baixo da cama de um dos quartos, o arguido abaixou-se também e, de seguida, colocou a sua mão por dentro das cuecas que a menor envergava, tocando-lhe na vagina e nádegas.
8) Perante tal atitude, com que não contava e que, à data, não percebeu, D… sorriu.
9) Tais factos repetiram-se, em modo em tudo similar, entre Setembro e 3 de Dezembro de 2011, por um número de vezes concretamente não apurado. Ocorriam sempre ao fim-de-semana, única altura em que a menor ali ia.
10) Na verdade, por diversas vezes em que a menor se deslocou a sua casa e procurou o gato E…, o arguido foi no seu encalço e, assim que a menor se abaixou junto de uma cama para ir buscar o referido animal, B… passou-lhe a mão pela vagina e nádegas.
11) Não satisfeito, e sempre para satisfação da sua líbido, uma vez, em data concretamente não apurada, mas naquele mesmo período de tempo, em que a menor se deslocou a sua casa, B… pegou na menor e friccionou o seu pénis contra a zona genital daquela. Manteve-se assim durante alguns segundos. O arguido aproveitou-se sempre do facto de a menor correr atrás do seu gato, na direcção dos quartos da residência, indo aquele também no seu encalço.
12) De uma outra vez, também na sua residência e no referido período, num dia de fim-de-semana, em inícios de Dezembro de 2011, aproveitando-se do facto de a menor D… se encontrar deitada em cima da cama de um quartos, a fazer festas ao gato E…, o arguido aproximou-se da menor, subiu a saia que a mesma envergava, despiu-lhe as cuecas e afastou-lhe as pernas. Não sem que antes lhe dissesse: "Posso lamber a tua pombinha?"
13) Acto contínuo, B… passou a sua língua, em movimentos ascendentes e descendentes, pela vagina da menor, assim se mantendo durante algum tempo. D… pediu-lhe, então, que parasse, pois que a estava a magoar.
B… acabou por aceder a tal pedido, ao fim de algum tempo.
D… apenas contou à sua mãe quando esta reparou que a menor apresentava a vagina ruborizada. Na verdade, o arguido havia-lhe pedido para que não contasse a ninguém nada do sucedido.
16) B… actuou com o propósito, conseguido, de praticar com a menor D… actos de cariz sexual como sejam os actos supra descritos, inclusive de coito oral, na consumação do plano que delineara de satisfazer a sua líbido com aquela.
17) O arguido sabia que a D… tinha apenas 8 anos de idade, à data. 18) B… actuou de modo deliberado, livre e consciente, sabendo ainda que a sua conduta era proibida e punida por lei.
19) Devido a estes actos sexuais praticados pelo arguido, a D… demonstrou dificuldades em adormecer e mudou os seus comportamentos, mostrando-se medrosa, receosa, não querendo dormir sozinha, assim como algum afastamento relativamente ao pai.
Mais se provou, quanto às condições de vida do arguido:
20) Que B… é oriundo de Gaia, de uma família de nível sócio cultural modesto. Beneficiou durante o seu processo de desenvolvimento de condições de vida satisfatórias, assentes no desempenho profissional do progenitor, motorista de profissão.
A dinâmica e relacionamento entre os elementos do seu agregado familiar pais e três descendentes -, são referidos como isentos de problemas significativos, tendo sido o seu pai uma figura muito presente na vida familiar, até ao seu falecimento, quando o arguido tinha 18 anos de idade.
Em termos escolares B… concluiu apenas o 6° ano de escolaridade, abandonando a escola por vontade própria, mostrando interesse por atividades mais práticas, de cariz profissional.
O início da vida laboral foi aos 16 anos de idade, passando a comparticipar financeiramente na economia doméstica. Começou por trabalhar numa fábrica de móveis metálicos em …, mantendo a atividade de "montador de móveis metálicos" ao longo de toda a sua vida profissional, ao longo dos últimos 25 anos, em que passou por alguns períodos difíceis devido a mudanças na sua empresa - incluindo na designação e localização -, passando a mesma a sediar-se em … há cerca de um ano e meio.
Casou aos trinta anos de idade e após quatro anos de namoro, com G…, fixou residência em apartamento pertencente aos seus sogros (emigrantes). A sua esposa tem mantido, até à atualidade, o emprego numa loja de ferragens em ….
O relacionamento conjugal é harmonioso e estável, mantendo convivência com alguns elementos das respetivas famílias, designadamente, a mãe, a irmã do arguido e respetivo cônjuge e filhos, residentes em …, bem como com o núcleo familiar de uma prima da sua esposa, residente em ….
À data dos factos, B… registava a mesma situação familiar e profissional atual.
Trabalha como montador de estruturas metálicas na empresa H…, de fabrico e comercialização de mobiliário metálico para escritório, na Zona Industrial …, auferindo um salário de 680 euros líquidos. A esposa – G…, de 35 anos de idade, trabalha numa empresa de ferragens, obtendo salário próximo do mínimo nacional.
Residem num edifício de construção modesta no centro da localidade de …, habitando um apartamento pertencente aos sogros do arguido, pelo qual pagam 350 euros mensais, correspondentes à prestação de compra do apartamento. Para além da renda de casa, as despesas fixas envolvem os consumos domésticos (120 euros em média) e o transporte para o local de trabalho (100 euros mensais), partilhando viatura com dois colegas. Regista uma situação económica equilibrada.
B… e cônjuge não estabelecem relações de convívio no meio de vizinhança, sendo o arguido desconhecido ou identificado vagamente naquele contexto, dada a postura de distanciamento que aí mantém. Quando se encontra no espaço doméstico gosta de realizar atividades de bricolagem. No entanto, ocupa grande parte do seu tempo livre a praticar BTT sendo praticante amador, há cerca de oito anos, inscrito na Federação Portuguesa de Ciclismo. Faz parte de um grupo de amadores de BTT designado I…, de …, realizando treinos diários e participando em diversas provas e convívios, em várias localidades.
O casal continuou a manter visitas regulares a … e a manter relacionamento e convívio com o núcleo familiar da irmã arguido, esta última, com quem B… tem estabelecido uma relação de grande proximidade e afeto ao longo da sua trajetória de vida.
Por outro lado, o relacionamento de B… com a sua esposa parece traduzir globalmente, bom entendimento, afeição e solidariedade. O arguido é pessoa contida nas suas atitudes e emoções, assumindo habitualmente uma postura ponderada e pacificadora. O casal não tem filhos mas deseja-o, vindo a efetuar exames clínicos e tratamentos de fertilidade, até ao momento sem sucesso e sem explicação concreta para tal. Deste modo, pretendem prosseguir com este tipo de tratamento, apesar de oneroso, com vista a serem pais biológicos, enquanto tal for possível.
Dispõe de total apoio familiar.
Em conclusão, B… evidencia recursos favoráveis do ponto de vista das competências pessoais e sociais, vindo a consolidar um percurso profissional de estabilidade, bem como afetividade nas relações familiares.
Presentemente conta com apoio da sua família, designadamente da esposa.
21) O arguido não tem antecedentes criminais, conhecidos em juízo.
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2.2. Os factos não provados
Com interesse para a boa decisão da causa, não se provaram quaisquer outros factos que não estejam já em oposição ou prejudicados pelos que foram dados como provados e não provados, mormente os descritos em sede de contestação escrita, que aqui não se especificam porque se tratam globalmente de mera negação da factualidade acusatória. No mais, a contestação do arguido consubstancia-se numa mera interpretação subjectiva da prova produzida em inquérito.
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2.3. Motivação dos factos provados
Como dispõe o art.127° do C.P.P., a prova é apreciada "segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente".
Significa este princípio que o julgador tem a liberdade de formar a sua convicção sobre os factos submetidos a julgamento com base no juízo que se fundamenta no mérito objectivamente concreto do caso, na sua individualidade histórica, tal como ele foi exposto e adquirido representativamente no processo.
Cumpre, pois, proceder a um exame crítico das provas, nos termos do art, 374.°, n.º 2, do Código de Processo Penal.
Tal exame reconduz-se, num primeiro momento, ao compulsar das provas produzidas, o seu acervo global e, num segundo momento, a uma tomada de consciência sobre o seu valor, equacionando-o com o thema decidendum, finalizando com a emissão de um juízo de valor, conducente à opção, ante o acervo probatório que se nos apresenta, por certas provas em detrimento de outras.
Vejamos.
No caso dos autos, o arguido negou a prática dos factos pelos quais vem pronunciado.
Apenas aceita como verdade o que se descreve na acusação pública quanto às relações familiares. Afirmou que as duas famílias, dele e da menor, se davam muito bem e que, em 2011, os pais da menor iam a casa dele almoçar ou jantar, com os filhos, com muita frequência, especialmente aos fins de semana, aos sábados e mais frequentemente a partir de Agosto. Isto aconteceu quase todos os fins de semana, a partir de Agosto até Dezembro de 2011.
Questionado, referiu que nunca ocorreu qualquer discussão entre ele ou a esposa e os pais da menor, estando todos de boas relações.
Afirmou que tem um gato e que os miúdos (referindo-se à menor e ao seu irmão) gostavam do gato, embora tivessem medo dele. Assim, quando os miúdos chegavam à sua casa, pediam logo para ir ver o gato. Porém, as crianças não iam sozinhas ver o gato, tendo que ir um adulto com elas, para lhes levar ao gato ou para o ir buscar, sendo que eles só lhe faziam festas se estivesse no colo de um adulto.
Questionado sobre a razão porque isto pudesse ter sido inventado pela menor, o arguido referiu que talvez ela tenha inventado isto tudo por ele ralhar com eles, referindo que os pais "não faziam farinha deles" '(sic), tendo o arguido de ralhar com eles porque a vizinha de baixo reclamava do barulho.
Quando a menor ia a casa dele, era sempre acompanhada por ambos os pais, nunca lá foi sozinha.
Na data dos factos, ela tinha 8 anos e ele sabia.
Referiu que quando estavam em sua casa, as crianças (a menor e o irmão) andavam a correr, gritavam, atiravam-se para o chão e a mãe dizia-lhes que o primo B… ia ralhar.
Afirmou que o seu gato fugia para debaixo das camas, no andar de cima, quando a campainha tocava. Era o refúgio dele e nunca aparecia enquanto lá estava gente.
As crianças nunca subiam sozinhas. Eles subiam com ele ou com a mulher e o gato estava sempre debaixo da cama. Depois, o arguido baixava-se para pegar no gato e mostrava-lhes.
Referiu ser impossível que o gato estivesse em cima da cama, parado ali para ela lhe fazer festas.
Afirmou que nunca mandou o irmão da menor para o andar de baixo, até porque ele era pequenino e não descia sozinho.
Referiu que a menor é mal educada, birrenta e os pais não conseguem impor-se, razão porque ele tinha que ralhar com a criança, para ela se acalmar e os pais aceitavam isso. Ele era visto como autoridade para a menor.
Insistindo-se na questão do eventual motivo para a menor ter inventado tudo isto, o arguido referiu não conseguir encontrar justificação para esta mentira, a não ser o facto de ele ralhar com ela.
De seguida, o tribunal passou à produção de prova acusatória.
A menor D… prestou o deu depoimento através de prestação de declarações para memória futura, nos termos e ao abrigo do disposto no artigo 271°, nºs 1 e 2, do C.P.P., constante do CD junto aos autos, à contra-capa e já devidamente transcrito, em anexo apensado por linha.
Ouviu-se, assim, desde logo, o depoimento de C…, mãe da menor D….
Referiu que é prima da esposa do arguido e que as duas famílias davam-se muito bem, à data dos factos.
Afirmou que o arguido e a esposa adquiriram um apartamento e o marido dela prontificou-se a ajudar o arguido aos sábados. A partir daqui, as relações entre os casais estreitaram-se. Iam lá quase todos os sábados, até como forma de retribuir a ajuda do marido.
O seu filho mais novo tem 6 anos, neste momento.
O andar do arguido é duplex e, depois do jantar, os filhos iam atrás do gato, para o andar de cima.
As crianças subiam e o arguido ia atrás deles, para apanhar o gato e permitir que eles fizessem festinhas.
Isto acontecia a maioria das vezes. O gato fugia muitas vezes da sala, por isso os miúdos iam atrás dele.
O filho mais novo era sempre o primeiro a descer as escadas e a filha vinha depois, mas nunca pensou nada de mal, agora é que percebe porquê.
Referiu que, no dia 3 de Dezembro de 2011, que foi o único dia que foram lá jantar, chegados a casa deles, vestiu o pijama aos filhos e deitou-os. Porém, a filha, a D…, a meio da noite, foi acordá-la, a dizer que tinha muita comichão na zona genital. A mãe pensou que tinha sido alguma coisa que a menina tinha comido e disse-lhe para ir para a cama, para não se preocupar. No dia seguinte, viu que realmente a menina estava muito ruborizada, com muita vermelhidão na zona genital.
Acabou por lhe perguntar se se passava alguma coisa.
Referiu que começou a achar aquilo tudo muito estranho porque já há cerca de 15 dias que a menor andava com um corrimento estranho na cuequinha e, ao mesmo tempo, a menina andava a rejeitar o pai e a mudar o seu comportamento, mostrando-se revoltada e com medo, dizendo-lhe que não queria ir a casa da prima G….
Por tudo isto, a testemunha insistiu com a sua filha, que acabou por começar a chorar, contando-lhe o que se passava.
A sua filha contou-lhe, então, que o arguido passava-lhe a mão nas cuecas e passou-lhe a língua na zona genital, o que aconteceu várias vezes, mas ela não concretizou as vezes ... "a menina só diz que foram várias vezes" (sic).
A filha disse-lhe que, quando andava à procura do gato, debaixo da cama, o arguido também se punha de gatas e passava-lhe as mãos nas nádegas e vagina. Uma das vezes, ele passou-lhe a língua no pipi, isto é que diz que foi só uma vez.
Questionada, a testemunha referiu que, quando o arguido descia, do andar de cima, tinha uma reacção perfeitamente normal.
Afirmou que a sua filha começou, naquela altura, a negar os carinhos do pai, deixou de dormir na casa da avó e tomou-se agressiva com quem mais gostava dela. Estes comportamentos levaram-na instintivamente, como mãe, a perceber que algo se passava de mal.
Questionada, referiu que os seus filhos eram irrequietos, mas que a D… acatava as ordens se alguém lhes falasse mais alto.
Nunca viu o arguido bater na sua filha.
Diz que nunca pediu ao arguido para ralhar com eles.
Acrescentou que o arguido e a esposa não têm filhos, pelo que acha que eles sentem mais o desassossego das crianças.
No dia 5 de Dezembro de 2011, foi à médica de família, depois de a filha lhe ter contado e lhe ter pedido segredo. A médica disse que queria ver a menina, mas como a menina lhe tinha pedido segredo, ela como não queria quebrar essa confiança da filha, não a levou lá.
Só levou a filha ao hospital, quando fez queixa. A médica de família disse-lhe que havia no centro de saúde especialistas que os ajudariam a resolver essa situação. Foi a uma reunião com eles e aí é que foi aconselhada a apresentar queixa e como havia de proceder. Depois disto, na sequência da queixa, a menor foi vista na medicina legal, no dia 13 ou 14 de Dezembro.
Referiu que ambos os seus filhos subiam e desciam sozinhos as escadas, mesmo o mais pequenino.
Acrescentou que a sua filha lhe disse que o arguido chegou a pegar nela e deitou-a em cima da cama.
Perguntada, afirmou que a sua filha tinha imaginação, mas do que a conhece, nunca inventaria isto. Das conversas com a sua filha, percebeu que "a menina não sabia o que lhe estava a acontecer".
A menor teve necessidade de acompanhamento de uma psicóloga. Agora está melhor, tendo já boas notas e dorme bem, mas ainda rejeita estar perto de homens. Já está a aceitar melhor o pai. Na casa da avó não consegue ainda dormir, porque isso implica dormir sozinha. Na altura dos factos, baixou as notas, rejeitou o pai e tinha muitas dificuldades em adormecer.
Mais se ouviu o depoimento da testemunha do pedido de indemnização civil J…, casada, reformada, avó da menor.
Referiu que ela, como avó, ficava muitas vezes com a menor, sua neta, na sua casa e, a dada altura, por volta dos seus 8 anos, sentiu uma alteração no comportamento dela, passando a ser muito agressiva e a ter medo de tudo.
"A menina era muito meiguinha" e a dada altura, aos 8 anos, virou-se a ela, a querer dar-lhe pontapés. Agora, já não é tão agressiva outra vez. Já está melhor.
Naquela altura da agressividade, a neta queria que a avó fechasse as portas todas, estores e tudo, sendo que, antes, ela já lá tinha dormido imensas vezes e nunca lhe tinha pedido isto.
Mais se ouviu o depoimento testemunhal de K…, casada, operadora de caixa de supermercado, tia da menor, irmã do seu pai.
Referiu que conhece a menor desde que nasceu, sendo muito próxima da sua sobrinha. Muitas vezes a menor dormia em casa da mãe dela, com a testemunha, assim foi até esta casar, em 2011. Até casar, a menina estava quase todos os dias com a testemunha.
Agora, depois de casar, convive com ela aos fins de semana e uma vez ou outra, de vez em quando, durante a semana.
Perguntada, referiu que a menor D… tem um temperamento forte, sendo uma criança alegre, com muita criatividade, amável, meiga.
Assegurou, no entanto, que a criatividade da D… não era ao ponto de mentir, possibilidade que a testemunha rejeitou totalmente. Afirmou que a sua sobrinha não era mentirosa, referindo que podia atestar isso, pois tinha muito contacto com ela, falava muito com ela.
Afirmou que, a partir de Setembro de 2011, notou alterações no comportamento da D…, que começou a ficar uma menina revoltada, agressiva, chegou a querer bater à avó e nunca tinha feito isso! Até passou a ir com menos frequência à casa da avó.
Perguntada, afirmou que a menor não falou com ela sobre isto, estando a testemunha convencida que ela tinha medo que a testemunha pensasse mal dela.
Mais se ouviu o depoimento testemunhal de F…, casado, carpinteiro, pai da menor.
Referiu que o arguido é casado com uma prima da sua esposa e que, na altura dos factos referidos na acusação pública, ele, a esposa e os seus filhos, costumavam ir a casa daqueles, encontrando-se todos aos fins de semana. A testemunha ajudava nas obras da casa do arguido.
Afirmou que nunca se apercebeu de nada.
Em Setembro de 2011, começou a sentir diferenças muito grandes no comportamento da sua filha, que, antes, era muito meiga e gostava que o pai lhe desse beijinhos. Depois, começou a sentir agressividade, por parte dela, que até deixou de lhe dar beijinhos, mas não sabiam o que se passava ... A sua esposa, como mãe, chegou a perguntar à filha o que se passava, mas primeiro a menina não disse nada, disse que não era nada. Um dia, a mulher, numa altura em que estava sozinha com a filha, "apertou um pouco mais com ela" e foi quando a menina contou tudo.
Perguntado, referiu que a D… era uma menina muito mexida, mas, depois disto, tiveram "uma fase que é para esquecer" (sic), em que ela passou a ser muito agressiva, "virava-se a toda a gente".
Hoje, porque têm andado com ela numa psicóloga, a D… está melhor, embora ainda não totalmente bem.
Acrescentou que a filha não fala por iniciativa dela, desta situação, tendo até pedido à mãe para não dizer ao pai. Por isso, optaram por não falar do assunto com ela. Estão "a ver se ela esquece o episódio" (sic).
Perguntado, assegurou que a sua filha era uma criança normal, sendo às vezes temperamental e que nunca inventaria uma história destas. Não é mentirosa!!!
Em sede de produção de prova testemunhal de defesa, o tribunal ouviu, desde logo, o depoimento de L…, casada, empresária, irmã do arguido.
Referiu que esteve uma ou duas vezes com o casal, pais da menor, em casa do irmão, uma vez na Páscoa e outra vez num jantar, num sábado.
Durante o seu depoimento, esta testemunha insistiu na afirmação de que a menor D… era uma "menina muito irrequieta".
Referiu que o irmão adora crianças, sendo muito calmo. A testemunha tem dois meninos de 3 e 10 anos e o irmão convive com eles, nada tendo que se lhe possa apontar.
Também convive com outras crianças e nunca houve qualquer história destas.
Afirmou que o arguido ralha às crianças e elas obedecem.
O irmão tem um gato que é agressivo e foge para o andar de cima. Nunca viu o gato.
A menor D… tinha medo do gato. Nunca a viu a subir para o andar de cima, nas duas vezes que lá esteve.
Esta testemunha revelou-se muito tendenciosa, parcial e particularmente acicatada contra a menor.
Mais ouviu o tribunal o depoimento testemunhal de M…, casada, empregada doméstica.
Referiu que o arguido é marido da prima e padrinho da sua filha mais nova, agora com 8 anos.
Frequentava a casa do arguido, mas não são visita assídua.
Referiu que, quando vão a casa do arguido, ninguém vê o gato, que é arisco. A filha quer vê-lo sempre e o arguido e esposa vão atrás dela, para o mostrar.
Afirmou que a menor ofendida tinha medo do gato. As crianças queriam ir atrás do gato.
Numa festa de anos da esposa do arguido, estavam lá várias crianças e todas andavam atrás do gato. Porém, a D… não quis ir, com medo do gato. Foi a única que não quis ir, mas depois lá acabou por ir. Perguntada, referiu que os anos da esposa do arguido são em Novembro.
Esta testemunha também se mostrou muito tendenciosa e parcial, procurando marcadamente denegrir a imagem da menor.
Referiu que o arguido é uma excelente pessoa, que confia nele.
Mais se ouviu o depoimento testemunhal de N…, casada, empregada doméstica.
Referiu ser prima da esposa do arguido, da G….
Conhece a menor por conhecer a mãe desde pequenina, moravam na mesma rua.
Às vezes frequentava a casa do arguido. Afirmou que o gato foge de tudo e de todos.
Tal como as anteriores testemunhas de defesa, também esta feriu o seu depoimento de manifesta falta de objectividade, mostrando-se também facciosa.
Mais se ouviu o depoimento testemunhal prestado por G…, esposa do arguido.
Referiu expressamente que pretendia falar, não pretendendo exercer a prerrogativa prevista no art. 134º do C.P.P., que o tribunal lhe comunicou.
Afirmou que estes factos passaram-se com a filha da prima dela, C…, com quem tem muito contacto desde a infância.
Referiu que a menor é uma menina desassossegada, o que levava a que o irmão também não ficasse quieto; que os dois irmãos não brincavam com o gato, pois este foge logo, para debaixo da cama, no andar de cima e que a D… tem muito medo dos gatos.
Referiu ser "extremamente impossível" o gato estar em cima da cama, sendo que, se estivesse, mal alguém chegasse, ele ia logo para debaixo da cama.
Afirmou que a D… queria muitas vezes ir ver o gato, mas que as crianças nunca foram lá acima sozinhas, iam sempre acompanhados. Eles subiam sempre ora com ela, ora com o marido, admitindo que provavelmente mais com o marido.
Preocupada em dizer ao tribunal que a menor era muito birrenta e que respondia à sua mãe, mesmo quando esta lhe batia, a testemunha acabou por entrar em contradição com as declarações do arguido, que afirmou que a mãe das crianças não lhes batia, aliás, não tinha "mão nelas", o que o obrigava a ter que ralhar muito com elas.
Todo o depoimento desta testemunha foi ferido de manifesta falta de objectividade, sendo patente a sua atitude de rancor contra a menor D…, insistindo em denegrir a imagem desta em julgamento.
Procurou também denegrir a imagem da família nuclear da menor, mais concretamente da mãe desta, a sua prima C…, procurando abalar a sua credibilidade.
Conjugadamente com a prova testemunhal acusatória, o tribunal considerou, ainda, a prova pericial junta aos autos: exame de natureza sexual de fls. 27 a 30, exame de psicologia de fls. 44 a 48, exame de natureza sexual de fls. 211 a 214.
Atendeu-se, ainda, à prova documental dos autos, designadamente, informação de serviço de fls. 2 a 3, auto de denúncia de fls. 15, documento de fls., 37 a 40, elementos clínicos de fls. 61 a 63. Informação de fls. 135.
Façamos, ora, então, uma análise valorativa da prova produzida em audiência de julgamento, explicando, assim, o processo de formação da convicção do tribunal.
Sublinha-se, antes de mais, que o arguido, em declarações, não logrou convencer o tribunal da veracidade das suas afirmações, maxime porque as mesmas acabaram por ser desmontadas ou contrariadas pela prova acusatória produzida, que nos mereceu total credibilidade, nos moldes que a seguir explanaremos.
O tribunal, na formação da sua convicção, considerou, maxime, as declarações para memória futura, prestadas pela menor D…, que à data dos factos tinha apenas 8 anos, tendo 9 anos à data da prestações de declarações, às quais entendemos atribuir total credibilidade, por si e pela conjugação da restante prova produzida.
Note-se que os depoimentos para memória futura são uma prova escrita pré­constituída, um incidente probatório sujeito a oralidade, imediação e contraditório (271.° e 294.°), que o tribunal, pode e deve, portanto, livremente considerar, na análise da prova produzida nos autos, dentro do princípio da livre convicção do art. 127° do C.P.P..
No caso sub judice, numa apreciação valorativa, entendemos que a menor D…, no seu discurso, mostrou-se muito credível. Regista-se que a enorme dificuldade que a mesma demonstrou, no início das suas declarações, em falar dos factos, em nosso entender, abona muito no sentido da sua credibilidade, ressaltando à evidência que a menor nem vinha "instruída" para falar desta ou daquela forma, nem tão pouco, precisamente por não querer falar, demonstrou qualquer atitude persecutória, de ressentimento ou de vingança pessoal contra o arguido.
Durante a sua prestação de declarações para memória futura, a menor D… mostrou-se mais confortável para comunicar por desenhos (vd. fls. 170), acabando, na tentativa de descrição dos mesmos, por conseguir falar dos factos, acabando por confirmar, pela conjugação destas duas formas de comunicar, os factos descritos na acusação. Toda a postura pueril da menor, adoptada no âmbito da sua tomada de declarações, abona de forma inequívoca no sentido da sua total credibilidade, sendo manifesta a profunda vergonha que a mesma sentiu ao descrever os factos, que claramente preferia não contar ...
Não vemos qualquer móbil de ressentimento ou vontade de vingança pessoal contra o arguido, aliás, a menor revelou-se tão "pura" e "inocente" a comunicar, que não se descortina qualquer "habilidade" por parte da mesma, para o fazer - com toda a certeza dada a sua tão tenra idade.
A menor usou de linguagem ajustada ao seu desenvolvimento. Sublinha-se que a D… optou, a dada altura, de forma totalmente espontânea, por apelidar o arguido de "crocodilo", o que não foi certamente por acaso, sendo consabida a conotação negativa que as crianças atribuem a este animal (que ligam a algo de mau ou de perigoso ...).
Conclui-se, portanto, com facilidade, que, ouvindo-se as declarações para memória futura, da menor D…, esta as prestou de forma esclarecedora, espontânea e à vontade, com um discurso muito simples e básico, por vezes monossilábicos, que se mostra adequado à sua idade.
Note-se que a D… apenas não conseguiu ser clara quanto ao número de vezes em que os actos ocorreram, o que é absolutamente natural na sua idade, acabando por ter o tribunal de concluir, da descrição que a mesma fez deles, no sentido carreado aos factos provados.
Acresce que a credibilidade atribuída à menor foi claramente reforçada ou sustentada, quer pelo depoimento dos seus pais, em audiência, quer da avó e da tia da menor, os quais, de forma que consideramos objectiva, serena e sem discursos "apaixonados" ou com ressentimentos exacerbados, conducentes a posturas vingativas (ao contrário da prova testemunhal que a defesa apresentou), acabaram, unanimemente por atestar que a menor, antes dos factos, era uma criança meiga, que, depois, começou a apresentar fortes sinais de mudança de comportamento, tomando-se agressiva e medrosa, começando a negar os carinhos do pai, recusando-se a dar-lhe beijinhos e tendo mesmo deixado de querer dormir na casa da avó, com medo de tudo.
Note-se que a mãe da menor, a testemunha C…, no seu depoimento, referiu, é certo, que a D…, por vezes, ressentia-se, na área vaginal, de certas coisas que comia. No entanto, na situação referida na acusação pública, a mãe ligou a vermelhidão que a sua filha apresentava na área vaginal, com outras circunstâncias: há cerca de 15 dias que a filha andava com um corrimento estranho na cuequinha e, ao mesmo tempo, a menina andava a rejeitar o pai e a mudar o seu comportamento, mostrando-se revoltada e com medo, dizendo-lhe que não queria ir a casa da prima G…. Foi tudo isto conjugado que a levou a achar que algo de muito estranho se estava a passar e que a levou a insistir com a filha, até que esta lhe contou o que realmente se tinha passado.
Decorre da prova produzida em audiência - a que nos mereceu credibilidade, que a menor D…, na data dos factos, apresentou uma forte alteração comportamental. Ora, tal mudança espelha, naturalmente, que algo de muito errado se estava a passar com a menor, sendo aquele cenário comportamental relatado pelos familiares mais próximos dela, consabidamente denunciador de uma situação de abusos sexuais.
A defesa procurou demonstrar que a menor D… era uma criança irrequieta, birrenta, mal-educada, que a mesma teria inventado tudo contra o arguido com um móbil de ressentimento, porque este lhe ralhava muito.
Ocorre que tal versão, além de inverosímil e demasiado rebuscada, acabou por ser manifestamente contrariada pela prova acusatória. Com efeito, resultou da própria boca dos familiares mais próximos da menor, que esta era, realmente, uma menina muito activa, até irrequieta e criativa. Porém, sublinhamos nós, tais características são próprias das crianças com tão tenra idade, de tal forma que o que seria de estranhar era se a D… fosse uma menina estática ou introvertida.
Ocorre que todos os familiares próximos da menor D… e que com ela diariamente convivem, asseguraram que, apesar daquelas características da D… - de ser muito activa, até irrequieta e criativa (que, aliás, ressaltam na sua tomada de declarações para memória futura - dizemos nós), tal não se podia confundir com o facto de a menina ser mentirosa. Todos asseguraram que a D… não é uma menina mentirosa, que nunca inventaria tal coisa, até porque ela sofreu muito com tudo isto.
Por outro lado, sublinhamos as conclusões da perícia psicológica realizada à menor D…, cujo relatório consta de fls.85 e ss ..
Com efeito, ali conclui-se por um "(...) parecer positivo quanto à credibilidade do relato da menor, uma vez que o seu testemunho apresenta um conjunto significativo de indicadores compatíveis com uma experiência efectivamente vivida.(...)"
Ali também se refere que "(...) foram perceptíveis sentimentos de culpa, vergonha e incompreensão face aos episódios abusivos e que são comuns em relatos verídicos.
Acresce, ainda, que o arguido e a sua mulher tinham, à data dos factos, uma muito boa relação com os pais da menor, tendo mesmo a mãe desta e aquela uma relação familiar (primas) e conviviam com muita frequência, não se registando quaisquer tensões ou problemas que pudessem recear um qualquer móbil vingativo, por parte da família da menor. Nem tão pouco desta, como o alegou a defesa, sendo a menor D…, demasiado pequena (9 anos à data da tomada de declarações para memória futura), pueril, imatura, para se poder sequer considerar tal engenho ou capacidade.
Por tudo quanto foi dito, o tribunal conclui, de forma inequívoca e sem qualquer margem de dúvida, que o arguido praticou os factos carreados à factualidade apurada, contra a menor D….
Relativamente aos factos que o tribunal considerou provados e que são estritamente subjectivos (intenções, motivações), estes, porque são apenas percepcionáveis pelo próprio sujeito e, por isso mesmo, designados "subjectivos", resultam da análise dos factos objectivos.
Com efeito, porque as intenções ou motivações do agente, não são, por natureza, susceptíveis de prova directa, é possível inferi-las dos aspectos objectivos em que se materializa a acção, através do significado que tais actos têm na respectiva comunidade social.
Ora, in casu, os factos que consubstanciam o elemento subjectivo dos crimes imputados ao arguido, resultam de forma clara, evidente e manifesta, dos factos que integram os elementos objectivos típicos dos mesmos.
***
Enunciação das questões a decidir no recurso em apreciação.
O âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respectiva motivação, sendo apenas as questões aí sumariadas as que o tribunal de recurso tem de apreciar, sem prejuízo das de conhecimento oficioso, designadamente os vícios indicados no artigo 410º, nº 2 do Código de Processo Penal [Cfr. Prof. Germano Marques da Silva, “Curso de Processo Penal” III, 3ª ed., pág. 347 e jurisprudência uniforme do STJ (cfr. Ac. STJ de 28.04.99, CJ/STJ, ano de 1999, p. 196 e jurisprudência ali citada]. [Ac. STJ para fixação de jurisprudência nº 7/95, de 19/10/95, publicado no DR, série I-A de 28/12/95].
Assim, face às conclusões apresentadas pelo recorrente, importa decidir as seguintes questões:
- Violação do princípio do contraditório plasmado no artº 32º nº 5 da CRP:
a) Por falta da notificação nos termos e para os efeitos do artº 271º, nº 3 do Código de Processo Penal;
b) Por ter sido indeferida a audição da menor em sede de audiência de julgamento;
- Impugnação da decisão proferida sobre matéria de facto provada;
- Violação dos princípios da presunção de inocência e in dubio pro reo;
- Subsunção jurídica da conduta do arguido: um único crime de trato sucessivo e não três crimes;
- Dosimetria e suspensão da execução da pena;
- Absolvição do pedido de indemnização cível.
Passemos à análise da primeira questão elencada e que contende com a violação do princípio do contraditório.
O recorrente argumenta que não foi assegurado o princípio elementar do contraditório, por falta da notificação nos termos e para os efeitos do artº 271º, nº 3 do Código de Processo Penal, tendo sido desrespeitados todos os seus direitos de defesa, impossibilitando no decurso de todo o processo judicial a descoberta da verdade material dos factos, violando-se assim o artº 32º nº 5 da Constituição da República Portuguesa.
Vejamos.
Dispõe o artigo 271º do Código de Processo Penal que:
“1 - Em caso de doença grave ou de deslocação para o estrangeiro de uma testemunha, que previsivelmente a impeça de ser ouvida em julgamento, bem como nos casos de vítima de crime de tráfico de pessoas ou contra a liberdade e autodeterminação sexual, o juiz de instrução, a requerimento do Ministério Público, do arguido, do assistente ou das partes civis, pode proceder à sua inquirição no decurso do inquérito, a fim de que o depoimento possa, se necessário, ser tomado em conta no julgamento.
2 - No caso de processo por crime contra a liberdade e autodeterminação sexual de menor, procede-se sempre à inquirição do ofendido no decurso do inquérito, desde que a vítima não seja ainda maior.
3 - Ao Ministério Público, ao arguido, ao defensor e aos advogados do assistente e das partes civis são comunicados o dia, a hora e o local da prestação do depoimento para que possam estar presentes, sendo obrigatória a comparência do Ministério Público e do defensor.
(…)”
Do que resulta que, na redação vigente do art. 271º do Código de Processo Penal e aplicável ao caso em apreço, a tomada de declarações não pode ser levada a efeito sem a comparência do defensor, o qual pode formular perguntas adicionais, após a inquirição feita pelo juiz. O que equivale dizer que a comparência do defensor é obrigatória (ao contrário do que defende o recorrente). Por isso, deve (agora) entender-se que em caso de falta de defensor do arguido, a falta de comunicação a que alude o n.º 3 do artigo 271.º configura uma nulidade insanável prevista na alínea c) do artigo 119.º do Código de Processo Penal.
Quanto ao arguido, à semelhança do que sucede com o advogado do assistente e das partes civis, o assistente e as partes civis, a sua presença continua a ser meramente facultativa.
Relativamente ao arguido, uma vez que a sua ausência só é cominada por lei como nulidade insanável quando a sua presença é obrigatória – artigo 119.º, alínea c) - o incumprimento do disposto no artigo 271.º, n.º 3 do Código de Processo Penal, decorrente da falta de notificação do arguido da data da realização da diligência de declarações para memória futura, constitui mera irregularidade, que deve ser arguida nos termos do artigo 123º do Código de Processo Penal (neste sentido mas relativamente à falta do defensor, na anterior redacção do artigo 271º do Código de Processo Penal vide os acórdãos proferidos nos Proc.º 049721, rel. Henriques Gaspar e os Acs. da Rel. do Porto de 17-11-2004, proc.º n.º 0414002, rel. Élia São Pedro e de 22-3-2006, proc.º n.º 0544312, rel. António Gama, todos disponíveis in www,dgsi.pt.).
Atentemos no caso em apreço.
Conforme se verifica de fls. 143 foi expedida notificação para notificação/comunicação do arguido da data designada para a tomada de declarações para memória futura da menor ofendida. Efetivamente, o número de rua que consta do referido ofício (28) não corresponde ao número de rua que consta do TIR prestado pelo arguido (26).
A fls. 180, com data de 26/06/2012, consta uma informação da GNR que refere que o arguido não foi notificado, notificação enviada para o nº. 28, e não como deveria, para o nº. 26.
Do que decorre, que o arguido não foi notificado da data da realização da diligência de declarações para memória futura.
Contudo, conforme resulta da acta de fls. 171 e seguintes, a defensora do arguido, devidamente notificada para tal, esteve presente aquando da prestação das declarações em causa, no dia 27.06.2012.
Pelo que não colhe o argumento avançado pelo recorrente no sentido de que “essa contraditoriedade apenas seria alcançada com a sua notificação para o efeito e com possibilidade do arguido solicitar ao Juiz de instrução a formulação de perguntas adicionais”.
Nessa diligência a defensora não invocou qualquer nulidade nem irregularidade. Os autos correram seus termos, foi deduzida acusação, tendo o arguido requerido a abertura de instrução. Nem no requerimento de abertura de instrução, nem no decorrer da mesma, o arguido veio invocar a falta de notificação em causa. Apenas na contestação que apresentou e, para fundamentar o pedido de “novo depoimento” da menor ofendida, referiu não ter sido notificado nos termos e para os efeitos do art. 271º, nº 3 do Código de Processo Penal.
Ora, como já se referiu, a tomada de declarações da menor em causa não podia ser levada a efeito, nem foi, sem a comparência do defensor, mas podia ocorrer sem a comparência do arguido, esta meramente facultativa, sendo que a falta de notificação deste último da data da realização da diligência de declarações para memória futura não constitui nenhuma nulidade dependente de arguição, não se enquadrando em nenhuma das alíneas do nº 2 do artigo 120º do Código de Processo Penal, mas sim mera irregularidade que devia ter sido arguida nos termos do artigo 123º do Código de Processo Penal, e não foi.
Assim, decorrido o prazo fixado no artº123º, nº 1, do Código de Processo Penal, ocorreu a sanação do vício, estando precludido o direito de o arguido invocar tal falta de notificação.
Veio ainda o arguido alegar que “…ao não ser deferida a audição da menor em sede de audiência de julgamento, não foi respeitado o princípio do contraditório e o princípio da verdade material, sendo assim violado o disposto no artº 340, nº 1 do C.P.P.”.
As declarações para memória futura, verificados os pressupostos em que a produção é processualmente admitida (artigo 271º, nº 1 do Código de Processo Penal), constituem um modo de produção de prova pessoal, submetido a regras específicas para acautelar o respeito por princípios estruturantes do processo.
Nomeadamente, no que vem invocado, o respeito pelo princípio do contraditório.
O princípio do contraditório tem no moderno processo penal o sentido e o conteúdo das máximas audiatur et altera pars e nemo potest inauditu damnari (cfr. Figueiredo Dias, “Direito Processual Penal”, 1974, p. 149 e segs). O princípio, que deve ter conteúdo e sentido autónomos, impõe que seja dada a oportunidade a todo o participante processual de ser ouvido e de expressar as suas razões antes de ser tomada qualquer decisão que o afecte, nomeadamente que seja dada ao acusado a efectiva possibilidade de contrariar e contestar as posições da acusação.
A construção da verdadeira autonomia substancial do princípio do contraditório impõe que seja concebido e integrado como princípio ou direito de audiência, dando «oportunidade a todo o participante processual de influir através da sua audição pelo tribunal no decurso do processo» (cfr. idem, pág. 153).
O princípio tem assento constitucional – artigo 32º, nº 5, da Constituição, e na Convenção Europeia dos Direitos do Homem - artigo 6º, par. 1º, que tem considerado o contraditório um elemento integrante do princípio do processo equitativo.
Tal princípio tem sido interpretado como exigência de equidade, no sentido em que ao acusado deve ser proporcionada a possibilidade de expor a sua posição e de apresentar e produzir as provas em condições que lhe não coloquem dificuldades ou desvantagens em relação à acusação.
No que respeita especificamente à produção das provas, o princípio exige que toda a prova deva ser, por regra, produzida em audiência pública e segundo um procedimento adversarial; as excepções a esta regra não poderão, no entanto, afectar os direitos de defesa, exigindo o artigo 6º, § 3º, alínea b), da Convenção, que seja dada ao acusado uma efectiva possibilidade de confrontar e questionar directamente as testemunhas de acusação, quando estas prestem declarações em audiência ou em momento anterior do processo (cfr., v. g., entre muitas referências, o acórdão VISSIER c. Países Baixos, de 14 de Fevereiro de 2002).
Os elementos de prova devem, pois, em princípio, ser produzidos perante o arguido em audiência pública, em vista de um debate contraditório. Todavia, este princípio, comportando excepções, aceita-as sob reserva da protecção dos direitos de defesa, que impõem que ao arguido seja concedida uma oportunidade adequada e suficiente para contraditar uma testemunha de acusação posteriormente ao depoimento; sendo apenas os direitos da defesa limitados de maneira incompatível com o respeito do princípio sempre que uma condenação se baseie, unicamente ou de maneira determinante, nas declarações de uma pessoa que o arguido não teve oportunidade de interrogar ou fazer interrogar, seja na fase anterior, seja durante a audiência. São estes os princípios elaborados pela jurisprudência de Tribunal Europeu dos Direitos do Homem a respeito do artigo 6º, §§ 1 e 2, alínea d), da Convenção Europeia dos Direitos do Homem (cfr., v. g., acórdãos CRAXI c. Itália, de 5 de Dezembro de 2002, e S. N. c. Suécia, de 2 de Julho de 2002).
Estando em causa um crime de natureza sexual e tendo como vítima uma menor, como é o caso, a lei impõe que a mesma preste declarações para memória futura, conforme estipula o artigo 271º, nº 2 do Código de Processo Penal.
No entanto, se o arguido tiver oportunidade, adequada e suficiente, de contraditar tais declarações posteriormente, a sua utilização não afecta, apenas por si mesma o contraditório, cujo respeito não exige, em termos absolutos, o interrogatório directo em cross-examination. Como já referimos, a tomada de declarações não pode ser levada a efeito sem a comparência do defensor, o qual pode formular perguntas adicionais, após a inquirição feita pelo juiz.
As declarações para memória futura constituem uma exceção ao princípio da imediação e, são diligências de prova realizadas pelo juiz de instrução na fase do inquérito, sujeitas ao princípio do contraditório, e que visam a sua valoração em fases mais adiantadas do processo como a instrução e o julgamento, mesmo na ausência das pessoas que as produziram.
Pode não ser o contraditório pleno, dada a fase processual em que se encontra o processo e as limitações à consulta integral do mesmo, mas é o contraditório possível e suficiente para assegurar os direitos de defesa do arguido.
Também não é necessária para o exercício do contraditório, nem a validade da prova para memória futura depende da leitura das declarações em audiência. A prova está validamente produzida e pode ser administrada independentemente da leitura em audiência.
Por outro lado, nos termos do nº 8 do artigo 271º do Código de Processo Penal “A tomada de declarações nos termos dos números anteriores não prejudica a prestação de depoimento em audiência de julgamento, sempre que ela for possível e não puser em causa a saúde física ou psíquica de pessoa que o deva prestar”.
No caso sub judice, a Sra. Juiz a quo, na sessão de julgamento realizada no dia 15.05.2014, por entender que não foram comunicados os pontos concretos sobre que devia ser prestados os esclarecimentos adicionais e, considerar que a audição poderia pôr em risco o equilíbrio psicológico da menor, decidiu ser desaconselhável e inútil a sua audição.
Quid juris?
Comecemos por dizer que o recorrente não reagiu contra tal decisão, da qual, em devido tempo, não interpôs recurso. E só agora, no recurso que interpôs, veio insurgir-se contra a mesma.
No entanto, sempre se dirá que a prestação de depoimento em audiência de julgamento é possível desde que realizada com as cautelas previstas na lei, ou seja, não pôr em causa a saúde psíquica da vítima.
Nos casos como o dos autos, já o dissemos, em que está em causa um crime sexual em que a vítima é menor, é obrigatória a prestação de declarações para memória futura. Tal decorre tendo presente a especial vulnerabilidade da vítima, em razão da sua idade e da natureza dos actos de que foi alvo, fortemente perturbadores da sua intimidade e integridade sexual. Visando a realização de tal diligência acautelar a genuinidade do depoimento, em tempo útil e salvaguardando também os interesses decorrentes da especial vulnerabilidade da vítima em favor da qual se encontra pendente processo de promoção e protecção.
Ora, a prestação de depoimento em audiência de julgamento, que equivale a “nova” (no sentido de mais uma) prestação de declarações só deverá ser possível se não puser em causa a saúde física ou psíquica da pessoa que o deva prestar.
Tal imposição visa salvaguardar a saúde mental da menor vítima de abuso sexual, evitar que a mesma tenha que reviver todos os factos, visando-se, assim, que a mesma possa iniciar o processo de cura e tratamento com vista a ultrapassar as memórias e os traumas psicológicos causados pelo abuso sexual.
Quer dizer, apenas circunstâncias excepcionais poderão justificar que a menor seja sujeita a novo depoimento em audiência de julgamento.
Diga-se também que a repetição do depoimento em causa só deverá ocorrer nos casos em que tal se revele absolutamente necessário para a descoberta da verdade material (cfr. artigo 340º do Código de Processo Penal).
Ora, no caso sub judice, estando em causa uma menor vítima de abuso sexual, com oito anos à data dos factos, actualmente com onze anos, é notório que a sua audição poderia pôr em risco o seu equilíbrio psicológico, colocando em causa a sua saúde física e psicológica.
Pelo que, bem andou o tribunal a quo ao indeferir a requerida re-audição da menor, o que fez sem violar qualquer princípio legal/constitucional, nem dispositivo legal, mormente os invocados artigos 340º e 374º do Código de Processo Penal e 32º, nº 5 da Constituição da República Portuguesa.
Improcede, pois, este fundamento do recurso.
Aqui chegados, passamos a analisar a questão atinente à impugnação da decisão proferida sobre matéria de facto provada.
É sabido que a matéria de facto pode ser sindicada por duas vias: no âmbito, mais restrito, dos vícios previstos no artigo 410.º, n.º2, do Código de Processo Penal, no que se convencionou chamar de “revista alargada”; ou através da impugnação ampla da matéria de facto, a que se refere o artigo 412.º, n.º3, 4 e 6, do mesmo diploma.
No primeiro caso, estamos perante a arguição dos vícios decisórios previstos nas diversas alíneas do n.º 2 do referido artigo 410.º, de conhecimento oficioso, cuja indagação, como resulta do preceito, tem que resultar da decisão recorrida, por si mesma ou conjugada com as regras da experiência comum, não sendo por isso admissível o recurso a elementos àquela estranhos, para a fundamentar, como, por exemplo, quaisquer dados existentes nos autos, mesmo que provenientes do próprio julgamento (Cfr. Maia Gonçalves, Código de Processo Penal Anotado, 10.ª ed., 729, Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, Vol. III, Verbo, 2ª ed., 339 e Simas Santos e Leal Henriques, Recursos em Processo Penal, 6.ª ed., 77 e ss.).
No segundo caso, da impugnação ampla da matéria de facto, a que se refere o artigo 412.º, n.º3, 4 e 6, do Código de Processo Penal, a apreciação não se restringe ao texto da decisão, alargando-se à análise do que se contém e pode extrair da prova (documentada) produzida em audiência, mas sempre dentro dos limites fornecidos pelo recorrente no estrito cumprimento do ónus de especificação imposto pelos n.º 3 e 4 do art. 412.º do Código de Processo Penal, como sejam o de especificar os pontos de facto que considera incorrectamente julgados e o de especificar as concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida, além da indicação das provas a renovar, se for caso disso.
Nos casos de impugnação ampla, o recurso da matéria de facto não visa a realização de um segundo julgamento sobre aquela matéria, agora com base na audição de gravações, antes constituindo um mero remédio para obviar a eventuais erros ou incorrecções da decisão recorrida na forma como apreciou a prova, na perspectiva dos concretos pontos de facto identificados pelo recorrente. O recurso que impugne (amplamente) a decisão sobre a matéria de facto não pressupõe, por conseguinte, a reapreciação total do acervo dos elementos de prova produzidos e que serviram de fundamento à decisão recorrida, mas antes uma reapreciação autónoma sobre a razoabilidade da decisão do tribunal a quo quanto aos «concretos pontos de facto» que o recorrente especifique como incorrectamente julgados. Para esse efeito, deve o tribunal de recurso verificar se os pontos de facto questionados têm suporte na fundamentação da decisão recorrida, avaliando e comparando especificadamente os meios de prova indicados nessa decisão e os meios de prova indicados pelo recorrente e que este considera imporem decisão diversa (Sobre estas questões, v. os Acórdãos do S.T.J., de 14 de Março de 2007, Processo 07P21, e de 23 de Maio de 2007, Processo 07P1498, disponíveis em www.dgsi.pt.).
Temos, pois, que o recurso em matéria de facto não implica uma reapreciação, pelo tribunal de recurso, da globalidade dos elementos de prova produzidos e que serviram de fundamento à decisão recorrida.
Duplo grau de jurisdição em matéria de facto não significa direito a novo (a segundo) julgamento no tribunal de recurso.
Mas se o recurso que incide sobre matéria de facto implica a reponderação, pelo Tribunal da Relação, de factos pontuais incorrectamente julgados, essa reponderação não é realizada se este tribunal se limitar a ratificar ou “homologar” o julgado (por exemplo, com a simples constatação, a partir do acolhimento da fundamentação, da correcção do factualmente decidido), em vez de fazer um verdadeiro exercício de julgamento, embora de amplitude menor.
Como faz notar o Supremo Tribunal de Justiça no seu acórdão de 30.11.2006 (www.dgsi.pt/jstj), “em sede de conhecimento do recurso da matéria de facto, impõe-se que a Relação se posicione como tribunal efectivamente interveniente no processo de formação da convicção, assumindo um reclamado «exercício crítico substitutivo», que implica a sobreposição, ou mesmo, se for caso disso, a substituição, com assento nas provas indicadas pelos recorrentes, da convicção adquirida em 1.ª instância pela do tribunal de recurso, sobre todos e cada um daqueles factos impugnados, individualmente considerados, em vez de se ficar por uma mera atitude de observação aparentemente externa ao julgamento” [No mesmo sentido, o acórdão do STJ de 15.10.2008 (www.dgsi.pt/jstj; Relator: Cons. Henriques Gaspar) em que se escreveu que “a reapreciação da matéria de facto, se não impõe uma avaliação global e muito menos um novo julgamento da causa, também se não poderá bastar com declarações e afirmações gerais quanto à razoabilidade do julgamento da decisão recorrida, requerendo sempre, nos limites traçados pelo objecto do recurso, a reponderação especificada (ou, melhor, uma nova ponderação), em juízo autónomo, da força e da compatibilidade probatória das provas que serviram de suporte à convicção em relação aos factos impugnados, para, por esse modo, confirmar ou divergir da decisão recorrida (cf. Ac. n.º 116/07 do TC, de 16-02-2007, DR, II série, de 23-04-2007, que julgou inconstitucional a norma do art. 428.º, n.º, 1 do CPP «quando interpretada no sentido de que, tendo o tribunal de 1.ª instância apreciado livremente a prova perante ele produzida, basta para julgar o recurso interposto da decisão de facto que o tribunal de 2.ª instância se limite a afirmar que os dados objectivos indicados na fundamentação da sentença objecto de recurso foram colhidos da prova produzida.]
É esse exercício que procuraremos fazer de seguida, mas não pode olvidar-se que uma das grandes limitações do tribunal de recurso quando é chamado a pronunciar-se sobre uma impugnação de decisão relativa a matéria de facto, sobretudo quando tem que se debruçar sobre a valoração, efectuada na primeira instância, da prova testemunhal, decorre da falta do contacto directo com essa prova, da ausência de oralidade e, particularmente, de imediação.
Também não se pode esquecer que o julgador pode recorrer a presunções naturais ou hominis no processo de formação da sua convicção, uma vez que se trata de um meio de prova admitido na lei (cf. art. 125º do Código de Processo Penal), sendo que de acordo com o disposto no art. 349º Código Civil, presunções são as ilações que a lei ou julgador extrai de um facto conhecido para afirmar um facto desconhecido. Consistem, pois, em raciocínios lógico-dedutivos, ou demonstrativos, que o julgador elabora, a partir da prova indiciária, para alcançar a verificação dos “factos juridicamente relevantes”.
Está consolidado o entendimento de que, para a prova dos factos em processo penal, é perfeitamente legítimo o recurso à prova indirecta (Cfr., entre muitos outros, os acórdãos do TRP, de 28.01.2009, do TRC, de 30.03.2010 e do STJ, de 11.07.2007 (todos disponíveis em www.dgsi.pt), também chamada prova indiciária, por presunções ou circunstancial.
Como, a propósito desta matéria, salienta o Supremo Tribunal de Justiça «Importam, neste âmbito, as chamadas presunções naturais ou hominis, que permitem ao juiz retirar de um facto conhecido ilações para adquirir um facto desconhecido. As presunções naturais são, afinal, o produto das regras de experiência; o juiz, valendo-se de um certo facto e das regras da experiência, conclui que esse facto denuncia a existência de outro facto. (…) A presunção permite, deste modo, que perante os factos (ou um facto preciso) conhecidos, se adquira ou se admita a realidade de um facto não demonstrado, na convicção, determinada pelas regras da experiência, de que normal e tipicamente (id quod plerumque accidit) certos factos são a consequência de outros.» (vd. Acórdão do STJ de 6/10/2010, proc. 936/08JAPRT, disponível em www.dgsi.pt).
Quer a prova directa, quer a prova indirecta são modos, igualmente legítimos, de chegar ao conhecimento da realidade (ou verdade) do factum probandum: pela primeira via ou método, “a percepção dá imediatamente um juízo sobre um facto principal”, ao passo que na segunda “a percepção é racionalizada numa proposição, prosseguindo silogisticamente para outra proposição, à base de regras gerais que servem de premissas maiores do silogismo, e que podem ser regras jurídicas ou máximas da experiência. A esta sequência de proposição em proposição chama-se presunção” (Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, II, 1993, 79).
As presunções naturais são, afinal, o produto das regras de experiência; o juiz, valendo-se de um certo facto e das regras da experiência, conclui que esse facto denuncia a existência de outro facto. «Ao procurar formar a sua convicção acerca dos factos relevantes para a decisão, pode o juiz utilizar a experiência da vida, da qual resulta que um facto é a consequência típica de outro; procede então mediante uma presunção ou regra da experiência [ou de uma prova de primeira aparência». (cfr. v. g., Vaz Serra, "Direito Probatório Material", BMJ, n° 112 pág, 190).” cfr. Ac. STJ 07-01-2004, proc. 03P3213.
Em suma, “as presunções simples ou naturais são meios lógicos de apreciação das provas; são meios de convicção. Cedem perante a simples dúvida sobre a sua exactidão no caso concreto” [cfr. Cavaleiro de Ferreira, Curso de Direito Penal, vol. II, pág. 315]. “O que vale por dizer que as presunções naturais não violam o princípio in dubio pro reo. Este princípio é que constitui o limite daquelas.” [cfr., entre outros os Acs. STJ de 11/11/04, proc. nº 04P3182, e de 5/7/07, acima cit.].
A condenação pode dispensar a prova directa, basear-se em indícios, eventualmente só num, mas estes devem revelar a possibilidade de uma convicção indubitável. É necessária a existência de um indício “para além da presunção da inocência” – cfr. Pinto de Albuquerque, Comentário do CPP, em anotação ao art. 127. Não se trata de uma derrogação do princípio da livre apreciação da prova, mas da formulação do juízo pela relação de que os elementos de prova considerados na decisão não permitem as conclusões a que o tribunal chegou.
Para avaliar da racionalidade e da não arbitrariedade da convicção sobre os factos, há que apreciar, de um lado, a fundamentação da decisão quanto à matéria de facto (os fundamentos da convicção), e de outro, a natureza das provas produzidas e dos meios, modos ou processos intelectuais, utilizados e inferidos das regras da experiência comum para a obtenção de determinada conclusão.
O duplo grau de jurisdição na apreciação da decisão da matéria de facto não tem, portanto, a virtualidade de abalar o princípio da livre apreciação da prova que está conferido ao julgador de primeira instância.
É que se afigura indubitável que há casos em que, face à prova produzida, as regras da experiência permitem ou não colidem com mais do que uma solução. Se a decisão do julgador, devidamente fundamentada, for uma das soluções plausíveis segundo as regras da experiência, ela será inatacável, já que foi proferida em obediência à lei que impõe que ele julgue de acordo com a sua livre convicção.
Note-se, aliás, que o legislador, consciente das limitações que o recurso da matéria de facto necessariamente tem envolver, teve o cuidado de dizer que as provas a atender pelo Tribunal ad quem são aquelas que “impõem”e não as que “permitiriam” decisão diversa (cfr. artigo 412º, nº 3, al. b) do Código de Processo Penal).
O nosso poder de cognição está confinado aos pontos de facto que o recorrente considere incorrectamente julgados, com as especificações estatuídas no art. 412º n.º 3 e 4 do Código Processo Penal.
E diga-se que o recorrente cumpriu o ónus de especificação imposto pelos n.º 3 e 4 do art. 412.º do Código de Processo Penal.
Atentemos no que se fez constar na Motivação da Matéria de Facto da sentença recorrida. E atentemos também nos argumentos invocados pelo recorrente, que considera que foram incorrectamente julgados os factos constantes dos pontos 4 a 16, 18 e 19 dos “Factos Provados”, os quais entende que devem ser dados como não provados.
O Tribunal da Relação procedeu à análise da totalidade da prova produzida, nomeadamente da prova testemunhal, documental e pericial, sendo que os segmentos dos depoimentos transcritos na motivação do recurso, correspondem apenas a parte do que por elas foi dito na audiência de julgamento.
E diga-se, desde já, que tais transcrições não são susceptíveis de abalar a credibilidade que as declarações da menor ofendida e os depoimentos das testemunhas de acusação mereceram ao tribunal recorrido, conforme pretende o recorrente.
Sucede que a argumentação avançada pelo recorrente mais não traduz do que a sua discordância relativamente à avaliação que o tribunal a quo fez da prova produzida, valoração esta porém devidamente fundamentada, e olvidando que a convicção do tribunal é a do julgador e não a das partes.
Por outro lado, não existe qualquer obstáculo processual a que, no confronto entre as declarações prestadas pelo arguido e depoimentos das testemunhas de defesa e declarações da menor vítima e depoimentos das testemunhas de acusação, o tribunal atribua maior credibilidade aos últimos em detrimento dos primeiros, na medida em que se encontram ambas sujeitas à livre apreciação do julgador.
Sabemos que as provas não podem ser apreciadas uma a uma, isoladamente, de forma segmentada, devendo ser analisadas e valoradas concatenadamente, conjugando-as e estabelecendo correlações internas entre elas, confrontando-as de forma a que, ainda que de sinal contrário, daí resulte uma decisão linear, fazendo inferências ou deduções de factos conhecidos desde que tal se justifique e tendo sempre presentes as regras da lógica e as máximas da experiência.
Efetivamente, impõe-se que o tribunal proceda a uma análise conjugada dos meios de prova, tendo presentes as regras da experiência comum e da normalidade. Além disso, ao tribunal é permitido socorrer-se de presunções naturais para a formação da convicção sobre a factualidade provada.
Assim, o julgador pode justificar a verificação de um facto, mesmo que não directa e imediatamente percepcionado pela prova testemunhal ou directamente evidenciado por outros meios de prova, desde que a convicção se apoie em raciocínio lógico, objectivo e motivado, sem atropelo daquelas normas da vivência comum e resulte perfeitamente explicado na decisão.
No caso sub judice a motivação de facto revela uma avaliação objectiva, racional e ajuizada do conjunto da prova produzida. Mostra-se estruturada a partir da análise das declarações para memória futura da menor ofendida D…, conjugadas com os depoimentos das testemunhas de acusação C… e F…, pais da menor, J…, avó da menor, K…, tia paterna da menor e também concatenadas com o relatório da perícia psicológica realizada à mesma menor, relacionando uns e outros elementos de prova. E explicou por que motivo não atendeu às declarações do arguido e aos depoimentos das testemunhas arroladas pela defesa.
Por conseguinte, o tribunal ponderou todas as provas, segundo critérios de objectividade e à luz das regras da experiência comum e da normalidade, no pleno uso do princípio da livre apreciação da prova, consagrado no artigo 127.º do Código Processo Penal.
Ora, tendo em conta o alegado pelo recorrente B… na motivação e conclusões do recurso, no que respeita à impugnação da decisão proferida sobre matéria de facto provada, constata-se, desde logo, que o mesmo ignora, em absoluto, a explicitação do raciocínio lógico do tribunal a quo contida na motivação do acórdão recorrido, sendo que a alegação do recorrente traduz a sua pessoal e subjectiva valoração da prova produzida.
Na verdade, o recorrente desconsiderou que no acórdão recorrido praticamente se transcreveu tudo o que foi dito pelo arguido, menor (em declarações para memória futura) e por todas as testemunhas ouvidas em audiência de julgamento.
Tal como desconsiderou que no acórdão recorrido se refere que:
“…o arguido, em declarações, não logrou convencer o tribunal da veracidade das suas afirmações, maxime porque as mesmas acabaram por ser desmontadas ou contrariadas pela prova acusatória produzida, que nos mereceu total credibilidade, nos moldes que a seguir explanaremos.
O tribunal, na formação da sua convicção, considerou, maxime, as declarações para memória futura, prestadas pela menor D…, que à data dos factos tinha apenas 8 anos, tendo 9 anos à data da prestações de declarações, às quais entendemos atribuir total credibilidade, por si e pela conjugação da restante prova produzida.
No caso sub judice, numa apreciação valorativa, entendemos que a menor D…, no seu discurso, mostrou-se muito credível. Regista-se que a enorme dificuldade que a mesma demonstrou, no início das suas declarações, em falar dos factos, em nosso entender, abona muito no sentido da sua credibilidade, ressaltando à evidência que a menor nem vinha "instruída" para falar desta ou daquela forma, nem tão pouco, precisamente por não querer falar, demonstrou qualquer atitude persecutória, de ressentimento ou de vingança pessoal contra o arguido.
Durante a sua prestação de declarações para memória futura, a menor D… mostrou-se mais confortável para comunicar por desenhos (vd. fls. 170), acabando, na tentativa de descrição dos mesmos, por conseguir falar dos factos, acabando por confirmar, pela conjugação destas duas formas de comunicar, os factos descritos na acusação. Toda a postura pueril da menor, adoptada no âmbito da sua tomada de declarações, abona de forma inequívoca no sentido da sua total credibilidade, sendo manifesta a profunda vergonha que a mesma sentiu ao descrever os factos, que claramente preferia não contar ...
Não vemos qualquer móbil de ressentimento ou vontade de vingança pessoal contra o arguido, aliás, a menor revelou-se tão "pura" e "inocente" a comunicar, que não se descortina qualquer "habilidade" por parte da mesma, para o fazer - com toda a certeza dada a sua tão tenra idade.
A menor usou de linguagem ajustada ao seu desenvolvimento. Sublinha-se que a D… optou, a dada altura, de forma totalmente espontânea, por apelidar o arguido de "crocodilo", o que não foi certamente por acaso, sendo consabida a conotação negativa que as crianças atribuem a este animal (que ligam a algo de mau ou de perigoso ...).
Conclui-se, portanto, com facilidade, que, ouvindo-se as declarações para memória futura, da menor D…, esta as prestou de forma esclarecedora, espontânea e à vontade, com um discurso muito simples e básico, por vezes monossilábicos, que se mostra adequado à sua idade.
Note-se que a D… apenas não conseguiu ser clara quanto ao número de vezes em que os actos ocorreram, o que é absolutamente natural na sua idade, acabando por ter o tribunal de concluir, da descrição que a mesma fez deles, no sentido carreado aos factos provados.
Acresce que a credibilidade atribuída à menor foi claramente reforçada ou sustentada, quer pelo depoimento dos seus pais, em audiência, quer da avó e da tia da menor, os quais, de forma que consideramos objectiva, serena e sem discursos "apaixonados" ou com ressentimentos exacerbados, conducentes a posturas vingativas (ao contrário da prova testemunhal que a defesa apresentou), acabaram, unanimemente por atestar que a menor, antes dos factos, era uma criança meiga, que, depois, começou a apresentar fortes sinais de mudança de comportamento, tomando-se agressiva e medrosa, começando a negar os carinhos do pai, recusando-se a dar-lhe beijinhos e tendo mesmo deixado de querer dormir na casa da avó, com medo de tudo.
Note-se que a mãe da menor, a testemunha C…, no seu depoimento, referiu, é certo, que a D…, por vezes, ressentia-se, na área vaginal, de certas coisas que comia. No entanto, na situação referida na acusação pública, a mãe ligou a vermelhidão que a sua filha apresentava na área vaginal, com outras circunstâncias: há cerca de 15 dias que a filha andava com um corrimento estranho na cuequinha e, ao mesmo tempo, a menina andava a rejeitar o pai e a mudar o seu comportamento, mostrando-se revoltada e com medo, dizendo-lhe que não queria ir a casa da prima G…. Foi tudo isto conjugado que a levou a achar que algo de muito estranho se estava a passar e que a levou a insistir com a filha, até que esta lhe contou o que realmente se tinha passado.
Decorre da prova produzida em audiência - a que nos mereceu credibilidade, que a menor D…, na data dos factos, apresentou uma forte alteração comportamental. Ora, tal mudança espelha, naturalmente, que algo de muito errado se estava a passar com a menor, sendo aquele cenário comportamental relatado pelos familiares mais próximos dela, consabidamente denunciador de uma situação de abusos sexuais.
A defesa procurou demonstrar que a menor D… era uma criança irrequieta, birrenta, mal-educada, que a mesma teria inventado tudo contra o arguido com um móbil de ressentimento, porque este lhe ralhava muito.
Ocorre que tal versão, além de inverosímil e demasiado rebuscada, acabou por ser manifestamente contrariada pela prova acusatória. Com efeito, resultou da própria boca dos familiares mais próximos da menor, que esta era, realmente, uma menina muito activa, até irrequieta e criativa. Porém, sublinhamos nós, tais características são próprias das crianças com tão tenra idade, de tal forma que o que seria de estranhar era se a D… fosse uma menina estática ou introvertida.
Ocorre que todos os familiares próximos da menor D… e que com ela diariamente convivem, asseguraram que, apesar daquelas características da D… - de ser muito activa, até irrequieta e criativa (que, aliás, ressaltam na sua tomada de declarações para memória futura - dizemos nós), tal não se podia confundir com o facto de a menina ser mentirosa. Todos asseguraram que a D… não é uma menina mentirosa, que nunca inventaria tal coisa, até porque ela sofreu muito com tudo isto.
Por outro lado, sublinhamos as conclusões da perícia psicológica realizada à menor D…, cujo relatório consta de fls.85 e ss..
Com efeito, ali conclui-se por um "(...) parecer positivo quanto à credibilidade do relato da menor, uma vez que o seu testemunho apresenta um conjunto significativo de indicadores compatíveis com uma experiência efectivamente vivida.(...)"
Ali também se refere que "(...) foram perceptíveis sentimentos de culpa, vergonha e incompreensão face aos episódios abusivos e que são comuns em relatos verídicos.
Acresce, ainda, que o arguido e a sua mulher tinham, à data dos factos, uma muito boa relação com os pais da menor, tendo mesmo a mãe desta e aquela uma relação familiar (primas) e conviviam com muita frequência, não se registando quaisquer tensões ou problemas que pudessem recear um qualquer móbil vingativo, por parte da família da menor. Nem tão pouco desta, como o alegou a defesa, sendo a menor D…, demasiado pequena (9 anos à data da tomada de declarações para memória futura), pueril, imatura, para se poder sequer considerar tal engenho ou capacidade”.
E no que se refere às testemunhas de defesa o tribunal considerou que a testemunha L…, irmã do arguido, se revelou “muito tendenciosa, parcial e particularmente acicatada contra a menor”; considerou que a testemunha M… “também se mostrou muito tendenciosa e parcial, procurando marcadamente denegrir a imagem da menor”; considerou que a testemunha N…, “tal como as anteriores testemunhas de defesa, também esta feriu o seu depoimento de manifesta falta de objectividade, mostrando-se também facciosa”; e considerou que todo o depoimento da testemunha G…, esposa do arguido, “foi ferido de manifesta falta de objectividade, sendo patente a sua atitude de rancor contra a menor D…, insistindo em denegrir a imagem desta em julgamento. Procurou também denegrir a imagem da família nuclear da menor, mais concretamente da mãe desta, a sua prima C…, procurando abalar a sua credibilidade”
De facto, já o dissemos, lendo as transcrições da prova gravada, nomeadamente nos concretos segmentos que são convocados pelo recorrente, não se vislumbra que, de essencial, algo resulte que permita infirmar aquela que foi a convicção formada pelo julgador em 1ª instância.
Com efeito, as apontadas contradições foram desde logo apontadas pelo tribunal a quo, o invocado comportamento da menor (irrequieta, birrenta e mal educada) foi considerado e contrariado, sendo que o tribunal apenas poderia ter em conta, e teve, os depoimentos prestados na audiência de julgamento (com a excepção já assinalada das declarações para memória futura da menor D…), já que anteriores declarações/depoimentos de testemunhas apenas poderiam ser considerados nos casos previstos no artigo 356º do Código de Processo Penal (o que acontece relativamente à testemunha C…, mãe da menor, pois o arguido defende que devem ser tidas em conta as declarações anteriores por ela prestadas e constantes de fls. 19 e 20 dos autos).
Ainda uma palavra quanto ao argumento adiantado pelo arguido no que se refere aos alegados sacos de edredons que estavam debaixo da cama. É perfeitamente compreensível que uma menor de oito anos de idade, que se encontra numa casa que não é a dela, a espreitar para debaixo da cama, num local com fraca visibilidade, diga que viu “caixas debaixo da cama”. Ainda que fossem sacos com edredons. O que é relevante é que efetivamente algo (volume) estava debaixo da cama e a menor o assinalou, para ela caixas e, para o arguido sacos.
Quanto aos danos não patrimoniais sofridos pela filha, a testemunha C… foi peremptória em afirmar que a menor teve necessidade de acompanhamento de uma psicóloga. Agora está melhor, tendo já boas notas e dorme bem, mas ainda rejeita estar perto de homens. Já está a aceitar melhor o pai. Na casa da avó não consegue ainda dormir, porque isso implica dormir sozinha. Na altura dos factos, baixou as notas, rejeitou o pai e tinha muitas dificuldades em adormecer.
O pai da menor referiu que em Setembro de 2011, começou a sentir diferenças muito grandes no comportamento da sua filha, que, antes, era muito meiga e gostava que o pai lhe desse beijinhos. Depois, começou a sentir agressividade, por parte dela, que até deixou de lhe dar beijinhos, mas não sabiam o que se passava. Afirmou que “depois disto, tiveram "uma fase que é para esquecer", em que ela passou a ser muito agressiva, "virava-se a toda a gente". Hoje, porque têm andado com ela numa psicóloga, a D… está melhor, embora ainda não totalmente bem.
A testemunha J…, avó da menor, confirmou que por volta dos 8 anos, sentiu uma alteração no comportamento da neta, passando a ser muito agressiva e a ter medo de tudo. "A menina era muito meiguinha" e a dada altura, aos 8 anos, virou-se a ela, a querer dar-lhe pontapés. Agora, já não é tão agressiva outra vez. Já está melhor.
Por sua vez, a testemunha K…, tia da menor, confirmou que, a partir de Setembro de 2011, notou alterações no comportamento da D…, que começou a ficar uma menina revoltada, agressiva, chegou a querer bater à avó e nunca tinha feito isso! Até passou a ir com menos frequência à casa da avó.
Pelo que, cumpre analisar e valorar concatenadamente todas as provas (testemunhal, documental e pericial), conjugando-as e estabelecendo correlações internas entre elas, confrontando-as de forma a que, ainda que de sinal contrário, daí resulte uma decisão linear, fazendo deduções dos factos conhecidos, por justificadas e, tendo sempre presentes as regras da lógica e as máximas da experiência.
Assim, escalpelizando as declarações para memória futura da menor D… e os depoimentos das referidas testemunhas de acusação, desenvolvidamente analisados no acórdão recorrido, não podemos deixar de considerar que são coerentes e uniformes, nos seus traços gerais e essenciais, limitando-se a afirmar apenas o que sabiam, sem efabulações, não se vislumbrando qualquer razão para não conferir credibilidade aos respectivos depoimentos. E diga-se que a existência de algumas contradições é normal, natural e até salutar, sendo fruto do decurso do tempo, da selecção da própria memória, para além de indiciar que as pessoas em causa não construíram/combinaram uma história comum, demonstrando a sua isenção. Além de que essas contradições não afectam o núcleo essencial e coerente dos depoimentos em causa.
É de assinalar que todas as pessoas ouvidas foram unânimes em assinalar que o gato se escondia no 1º andar, debaixo da cama, e que as crianças gostavam de andar atrás do gato, subindo ao 1º andar, sendo que o arguido (ou a mulher, mais frequentemente o arguido) as acompanhava ao 1º andar.
Há ainda a considerar a prova documental dos autos, designadamente, informação de serviço de fls. 2 a 3, auto de denúncia de fls. 15, documento de fls., 37 a 40 e elementos clínicos de fls. 61 a 63.
Tudo conjugado com o relatório da perícia médico-legal (psicologia) constante de fls. 85 a 89 e realizado à menor D… no qual se conclui por um "(...) parecer positivo quanto à credibilidade do relato da menor, uma vez que o seu testemunho apresenta um conjunto significativo de indicadores compatíveis com uma experiência efectivamente vivida.(...)" e que "(...) foram perceptíveis sentimentos de culpa, vergonha e incompreensão face aos episódios abusivos e que são comuns em relatos verídicos”.
Ora, conjugando os meios de prova referidos no acórdão recorrido com as regras da experiência comum, tendo em conta o que já se disse sobre as declarações do arguido, da menor ofendida e os depoimentos das testemunhas ouvidas em tribunal e respectiva credibilidade, entendeu, e bem, o tribunal a quo dar como provada a factualidade referida, actuando de acordo com a sua livre convicção, nos termos do artigo 127º do Código de Processo Penal e em absoluto respeito dos dispositivos legais aplicáveis.
No caso em análise, o Tribunal a quo cindiu as declarações e depoimentos, valorando positivamente, no âmbito da imediação e da oralidade, partes delas nos termos que constam da fundamentação da matéria de facto. A convicção do Tribunal recorrido expressa no acórdão, adquirida na base da imediação, da oralidade e da livre apreciação da prova, no sentido de que o arguido praticou os factos dados como provados, não é irracional, nem viola as regras da experiência comum, como atrás se deixou já consignado, escapando a qualquer censura.
Aqui chegados e, reportando-nos aos factos atinentes ao elemento subjectivo do tipo, considerando o descrito comportamento do arguido B…, partindo da constatação dos factos objectivos, apreciada com a livre convicção do julgador e conjugada com as regras da experiência comum, face a todo o exposto, não podemos deixar de considerar que o recorrente “B… actuou com o propósito, conseguido, de praticar com a menor D… actos de cariz sexual como sejam os actos supra descritos, inclusive de coito oral, na consumação do plano que delineara de satisfazer a sua líbido com aquela, sabendo que a D… tinha apenas 8 anos de idade, à data, agindo de modo deliberado, livre e consciente, sabendo ainda que a sua conduta era proibida e punida por lei.”
Pelo que, decorre de todo o exposto, que não demonstra o recorrente que a decisão tenha incorrido em ilógico ou arbitrário juízo na valoração da prova, ou se tenha afastado das regras da normalidade do acontecer ou da experiência comum, não existindo razões para afastar o raciocínio lógico do tribunal a quo, tampouco o recorrente indicou prova que imponha decisão diversa da tomada no acórdão recorrido.
Diga-se ainda que da mera leitura do acórdão recorrido não resulta efectivamente por demais evidente a “conclusão contrária” àquela a que chegou o Tribunal; pelo contrário é assertiva a fundamentação que dele se surpreende, permitindo compreender o raciocínio lógico que presidiu à sua prolação, não resultando do seu texto que tivesse que ser outra a decisão do Tribunal a quo, mesmo quando os factos ali assentes são conjugados com as regras da experiência. Não padecendo, pois, o acórdão recorrido do vício de erro notório na apreciação da prova (vício da sentença previsto na alínea c) do nº 2 do art. 410.º do Código de Processo Penal que não se confunde com o problema da livre convicção do tribunal na apreciação das provas a tal sujeitas ou com o da errada ou insuficiente apreciação do valor delas).
Assim, analisada e avaliada em conjunto toda a prova produzida, na ponderação lógica e racional de todos os elementos probatórios, face às regras da experiência comum, não pode senão concluir-se que a argumentação e prova indicadas pelo recorrente não impõem decisão diversa, nos termos da al. b) do nº 3 do artigo 412º do Código de Processo Penal, apenas sendo exemplificativas de outra interpretação da prova, não havendo, pois, qualquer razão para alterar a matéria de facto provada decidida pelo Tribunal a quo.
Improcede, pois, também, este fundamento do recurso.
Aqui chegados, e definitivamente fixada a matéria de facto provada nos termos decididos, é por demais evidente a falta de razão do recorrente, no que se refere à invocada violação dos princípios da presunção de inocência e do in dubio pro reo, ínsitos no artigo 32º da Constituição da República Portuguesa.
Vejamos porquê.
O princípio da presunção de inocência é um princípio fundamental num Estado de Direito democrático, cuja função é, sobretudo (mas não só), a de reger a valoração da prova pela autoridade judiciária, ou seja, o processo de formação da convicção com base nos meios de prova. Nas palavras de Gomes Canotilho e Vital Moreira (“Constituição da República Portuguesa Anotada”, 4.ª edição revista, 519), “o princípio da presunção de inocência surge articulado com o tradicional princípio in dubio pro reo. Além de ser uma garantia subjectiva, o princípio é também uma imposição dirigida ao juiz no sentido de este se pronunciar de forma favorável ao réu, quando não tiver certeza sobre os factos decisivos para a solução da causa”.
Ensina o Prof. Figueiredo Dias, sobre o princípio in dúbio pro reo: «À luz do princípio da investigação bem se compreende, efectivamente, que todos os factos relevantes para a decisão (quer respeitem ao facto criminoso, quer à pena) que, apesar de toda a prova recolhida, não possam ser subtraídos à “dúvida razoável” do tribunal, também não possam considerar-se como provados. E se, por outro lado, aquele mesmo princípio obriga em último termo o tribunal a reunir as provas necessárias à decisão, logo se compreende que a falta delas não possa, de modo algum, desfavorecer a posição do arguido: um non liquet na questão da prova — não permitindo nunca ao juiz, como se sabe, que omita a decisão (...) — tem de ser sempre valorado a favor do arguido. É com este sentido e conteúdo que se afirma o princípio in dúbio pro reo» (Direito Processual Penal, reimpressão, 1984 p. 213).
Como se tem dito repetidas vezes, a violação do princípio in dubio pro reo ocorre quando, após a produção e a apreciação dos meios de prova relevantes, o julgador se defronte com a existência de uma dúvida razoável sobre a verificação dos factos e, perante ela, decide “contra” o arguido. Não se trata, pois, de uma dúvida hipotética, abstracta ou de uma mera hipótese sugerida pela apreciação da prova feita pelo recorrente, mas de uma dúvida assumida pelo próprio julgador.
Temos, pois, que a dúvida que fundamenta o apelo ao princípio in dúbio pro reo não é qualquer dúvida, devendo ser insanável, razoável e objectivável.
Em primeiro lugar, deverá ser insanável, pressupondo, por conseguinte, que houve todo o empenho no esclarecimento dos factos, sem que tenha sido possível ultrapassar o estado de incerteza.
Deverá ser razoável, ou seja, impõe-se que se trate de uma dúvida racional e argumentada.
Finalmente, deverá ser objectivável, ou seja, é necessário que possa ser justificada perante terceiros, o que exclui dúvidas arbitrárias ou fundadas em meras conjecturas e suposições.
Não se trata aqui de “dúvidas” que o recorrente entende que o tribunal recorrido não teve e devia ter tido, pois o “in dubio” não se aplica quando o tribunal não tem dúvidas. Ou seja, o princípio “in dubio pro reo” não serve para controlar as dúvidas do recorrente sobre a matéria de facto, mas antes o procedimento do tribunal quando teve dúvidas sobre a matéria de facto.
Haverá violação do princípio in dubio pro reo se for manifesto que o julgador, perante essa dúvida relevante, decidiu contra o arguido, acolhendo a versão que o desfavorece [Ac. STJ de 27.5.2010 e de 15-07-2008; e Ac. RP de 22.6.2011, 17.11.2010, 2.12.2009, 9.9.2009 e de 11.1.2006, todos disponíveis em www.dgsi.pt].
Inexistindo dúvida razoável na formulação do juízo factual que conduziu à decisão condenatória, e resultando esse juízo do exame e discussão livre das provas produzidas e examinadas em audiência, como impõe o artigo 355.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, subordinadas ao princípio do contraditório (art.º 32.º, n.º 1, da Constituição da República), fica afastado o princípio do in dubio pro reo e da presunção de inocência (acórdão do STJ de 27.05.2010, in www.dgsi.pt/jstj).
Por último, tal como acontece com os vícios da sentença a que alude o n.º 2 do art.º 410.º do Código de Processo Penal, a eventual violação do princípio em causa deve resultar, claramente, do texto da decisão recorrida, ou seja, quando se puder constatar que o tribunal decidiu contra o arguido apesar de tal decisão não ter suporte probatório bastante, o que há-de decorrer, inequivocamente, da motivação da convicção do tribunal explanada naquele texto (Neste sentido, o acórdão do STJ de 29.05.2008 (Relator: Cons. Rodrigues da Costa), www.dgsi.pt/jstj).
E, como já anteriormente tivemos oportunidade de esclarecer, a prova foi apreciada segundo as regras do artigo 127º do Código de Processo Penal, com respeito pelos limites ali impostos à livre convicção, não só de motivação objectiva segundo as regras da vida e da experiência, e sem que se vislumbre que na apreciação da prova o tribunal tenha incorrido em qualquer erro lógico, grosseiro ou ostensivo.
Atentas as considerações expostas, cumpre reverter para o caso sub judice.
Parece-nos claro, em face do que o tribunal deixou extravasado na sentença, que logrou convencer-se e convencer-nos da verdade dos factos, que deu como provados “para além de toda a dúvida razoável”.
A decisão em apreço baseia-se num juízo de certeza (independentemente do sentido da mesma), não em qualquer juízo dubitativo. É o que dela resulta com clareza.
Ou seja, em momento algum a decisão impugnada revela que o tribunal recorrido tenha experimentado uma hesitação ou indecisão em relação a qualquer facto e da sua autoria. Ao invés, o tribunal recorrido afirma convictamente a matéria dada como provada. E do conhecimento que sobre tal decisão tomámos, igualmente concluímos que a mesma é linear e objectiva, cumpre os pressupostos decorrentes do princípio da livre apreciação da prova [artigo 127.º, do Código de Processo Penal] e não acolhe espaço para dúvidas ou incertezas relevantes.
Nada há, pois, a censurar no processo lógico e racional que subjaz à formação da convicção do tribunal, sendo patente a inexistência de quaisquer motivos para se falar em violação dos princípios da presunção de inocência e do in dubio pro reo, muito menos dos invocados artigos 32º da Constituição da República Portuguesa, 127º, 340º, 374º, 379º e 410º, nº2, alínea c) todos do Código de Processo Penal.
Improcede, pois, este fundamento do recurso.
Aqui chegados, passamos a conhecer outra das questões suscitadas e que se relaciona com o enquadramento jurídico da conduta do arguido.
Alega o recorrente que não concorda com a alteração da qualificação jurídica dos factos constantes da acusação pública ao abrigo do disposto no artº 358º nº 3 do C.P.P., já que cada um dos vários actos do arguido (segundo entendimento do tribunal) ocorreu no mesmo contexto situacional no referido período na sua residência e tendo como motivo o gato, comandado por uma única resolução e traduziu-se numa única lesão do bem jurídico protegido, cada um desses actos constituiu um momento ou parcela de um todo projectado.
Defende, pois que de trata de um único crime de trato sucessivo”, devendo assim (a considerar-se o arguido culpado dos factos de que vem acusado) ser o mesmo condenado por um único crime de abuso sexual de crianças p. e p. nos termos do art.º 171º n.º 1 e 2 do C. Penal, decidindo-se em consequência pela alteração da pena do arguido.
Vejamos.
Considerando-se definitivamente assente a matéria de facto dada, cumpre enquadrar juridicamente a conduta do recorrente.
Revertendo, uma vez mais, para o acórdão recorrido que se pronunciou nos seguintes termos:
Resta, pois, analisar a questão do número de crimes praticado pelo arguido. A acusação pública imputa-lhe a prática de um crime de abuso sexual.
Importa saber, mais concretamente, se a matéria de facto provada comporta a integração na figura do crime único de trato sucessivo, ou antes na pluralidade de crimes, em concurso real.
Importa, desde logo, atentar no disposto no art. 30º do Código Penal, sob a epígrafe "Concurso de crimes e crime continuado", que estabelece, no seu nº 1, o princípio geral de que "O número de crimes determina-se pelo número de tipos de crime efectivamente cometidos, ou pelo número de vezes que o mesmo tipo de crime for preenchido pela conduta do agente."
Por sua vez, nos termos do disposto no nº 2, do preceito legal citado, são pressupostos cumulativos da continuação criminosa, a realização plúrima do mesmo tipo legal, a homogeneidade na forma de execução, e a lesão do mesmo bem jurídico, no quadro de uma situação exterior ao agente do crime que diminua de forma considerável a sua culpa.
A continuação criminosa só tem lugar, pois, quando a ocasião favorável à prática do crime se repete sem que o agente tenha contribuído para essa repetição; isto é, quando a ocasião se proporciona ao agente e não quando ele activamente a provoca.
Diga-se ainda que são circunstâncias exteriores (cf. Eduardo Correia, in Unidade e Pluralidade de Infracções, págs. 246-250) que apontam para aquela redução de culpa: a circunstância de se ter criado através da primeira acção criminosa uma certa relação de acordo entre os sujeitos; o facto de voltar a registar-se uma oportunidade favorável ao cometimento do crime, que foi aproveitada pelo agente ou o arrastou a ele; a perduração do meio apto para execução do delito, que se criou ou adquiriu com vista a executar a primeira acção criminosa; e o facto de o agente, depois da mesma resolução criminosa, verificar a possibilidade de alargar o âmbito da acção delituosa.
Por isso, ou a culpa foi das circunstâncias ou do agente. Se é deste último, desaparece a razão decisiva, a continuação.
No crime continuado há uma diminuição de culpa à medida que se reitera a conduta.
Ora, tal diminuição de culpa não existe no caso do abuso sexual de criança, por actos que se sucedem no tempo, bem pelo contrário, a gravidade da culpa parece aumentar à medida que os actos se repetem; o sucesso da primeira actuação e das seguintes não pode integrar a diminuição da culpa do arguido, agindo este determinado pela vontade de satisfazer os seus instintos libidinosos, para o que se aproveitou das situações mais favoráveis para esse efeito, nomeadamente da confiança da própria vítima, que com a repetição daqueles actos, vai sendo toda a vez, atacada psicologicamente, com as repercussões nefastas que a vida nos vai mostrando.
Por isso, nestes casos, maioritariamente, a jurisprudência aponta para a pluralidade de crimes, nas situações em que esteja em causa o mesmo ilícito e a mesma vítima sexualmente abusada, quando haja a reformulação do desígnio criminoso, surgindo este de modo autónomo em relação ao propósito criminoso anterior.
Repare-se que os crimes sexuais são muitas vezes atos isolados, fruto de circunstâncias irrepetíveis.
Mas, outras vezes seguem um percurso que se prolonga no tempo, isto é, em vez de um ato ou de vários atos ilícitos, há uma atividade sexual ilícita.
É próprio da natureza humana a junção dos mesmos parceiros sexuais por períodos prolongados no tempo. O mesmo se passa, muitas vezes, nos crimes sexuais, sempre que as circunstâncias o proporcionam e a diferença entre estes e as uniões sexuais mais correntes entre as pessoas, é a circunstância de nos casos criminosos existir uma vítima, alguém a quem o agente retira [ou condiciona] a liberdade ou a autodeterminação sexual.
Na atividade sexual criminosa o agente aproveita-se sexualmente de outra pessoa que é acessível ao seu contato, por ser da família, ou do seu círculo de amizades, ou do seu local de trabalho, ou por outra circunstância similar, fazendo-o pela força, ou pela intimidação, ou pela incapacidade da vítima em se defender, por exemplo, por ser menor. Nesses casos, os crimes sexuais tendem a ter uma frequência por um período prolongado no tempo e a juntar os mesmos «parceiros», um deles vitimizado sucessivamente.
Ora, quando os crimes sexuais são atos isolados, não é difícil saber qual o seu número. Mas, quando os crimes sexuais envolvem uma repetitiva atividade prolongada no tempo, toma-se difícil e quase arbitrária qualquer contagem.
A doutrina e a jurisprudência têm resolvido este problema, de contagem do número de crimes, que de outro modo seria quase insolúvel, falando em crimes prolongados, protelados, protraídos, exauridos ou de trato sucessivo, em que se convenciona que há só um crime - apesar de se desdobrar em várias condutas que, se isoladas, constituiriam um crime - tanto mais grave [no quadro da sua moldura penal] quanto mais repetido.
Ao contrário do crime continuado [cuja inserção doutrinária também nasceu, entre outras razões, da dificuldade em contar o número de crimes individualmente cometidos ao longo de um certo período de tempo], nos crimes prolongados não há uma diminuição considerável da culpa, mas, antes em regra, um seu progressivo agravamento à medida que se reitera a conduta [ou, em caso de eventual «diminuição da culpa pelo facto». um aumento da culpa enquanto negligência na formação da personalidade ou de perigosidade censurável»]. Na verdade, não se vê que diminuição possa existir no caso, por exemplo, do abuso sexual de criança, por atos que se sucederam no tempo, em que, pelo contrário, a gravidade da ilicitude e da culpa se acentua [ou, pelo menos, se mantém estável] à medida que os atos se repetem.
O que, eventualmente, se exigirá para existir um crime prolongado será como que uma «unidade resolutiva», realidade que se não deve confundir com «uma única resolução», pois que, «para afirmar a existência de uma unidade resolutiva é necessária uma conexão temporal que, em regra e de harmonia com os dados da experiência psicológica, leva a aceitar que o agente executou toda a sua atividade sem ter de renovar o respetivo processo de motivação».
Para além disso, deverá haver uma homogeneidade na conduta do agente que se prolonga no tempo, em que os tipos de ilícito, individualmente considerados são os mesmos, ou, se diferentes, protegem essencialmente um bem jurídico semelhante, sendo que, no caso dos crimes contra as pessoas, a vítima tem de ser a mesma.
Baixemos ao caso sub judice.
Resulta do acervo fáctico apurado que o arguido praticou actos sexuais de relevo consubstanciados na colocação da sua mão por dentro das cuecas que a menor envergava, tocando-lhe na vagina e nádegas, entre Setembro e 3 de Dezembro de 2011, por diversas vezes, mas por um número de vezes concretamente não apurado.
Ora, desde logo, no que respeita a este primeiro tipo de actos sexuais de relevo, tendo-se apenas apurado que este tipo de actos ocorreu por diversas vezes, mas por um número de vezes concretamente não apurado, entre Setembro e 3 de Dezembro de 2011, impõe-se resolver a questão do número de crimes, lançando mão da teoria jurídica do denominado "crime de trato sucessivo", nos moldes acima explanados.
Assim, quanto a este primeiro tipo de actos, porque apenas se apurou que ocorreu uma pluralidade de actos, mas não se tendo apurado concretamente quantos, o tribunal irá ficcionar a ocorrência de um crime (sendo a pluralidade considerada em sede de determinação da medida concreta da pena, em sede de ilicitude).
Vai, pois, por estes factos, o arguido condenado pela prática de um crime de abuso sexual de menores, p. e p. pelo art. 171º, nº 1, do Código Penal.
Mais se apurou que, numa outra vez, em data concretamente não apurada, mas naquele mesmo período de tempo, o arguido pegou na menor e friccionou o seu pénis contra a zona genital daquela, mantendo-se assim durante alguns segundos.
Assim, nesta parte, tendo-se concretamente apurado a ocorrência deste acto sexual de relevo, naquele mesmo período de tempo, pode o tribunal autonomizar o mesmo, integrando-o na prática de um outro crime de abuso sexual de menores, p. e p. pelo art. 171º, nº 1, do Código Penal.
Mais se apurou que, de uma outra vez, já em inícios de Dezembro de 2011, aproveitando-se do facto de a menor D… se encontrar deitada em cima da cama de um quartos, a fazer festas ao gato E…, o arguido aproximou-se da menor, subiu a saia que a mesma envergava, despiu-lhe as cuecas e afastou-lhe as pernas. Não sem que antes lhe dissesse: "Posso lamber a tua pombinha?"
Acto contínuo, o arguido passou a sua língua, em movimentos ascendentes e descendentes, pela vagina da menor, assim se mantendo durante algum tempo, até que a menor D… pediu-lhe, então, que parasse, pois que a estava a magoar.
Ora, esta factualidade integra, nos moldes já atrás expendidos, dado constituir um acto de coito oral, a prática de um crime de abuso sexual de menores, p. e p. pelo art, 171°, nº 2, do Código Penal.
Por todo o exposto, vai o arguido condenado pela prática de dois crimes de abuso sexual de menores, p. e p. pelo art. 171°, nº 1, do Código Penal e de um crime de abuso sexual de menores, p. e p. pelo art. 171°, n° 2, do mesmo diploma legal.
Procede, pois, a acusação pública, mas com a convolação jurídica operada, nos termos sobreditos, tendo sido cumprida a formalidade legal da alteração da qualificação jurídica, como da respectiva acta de audiência de julgamento se infere.

O que, eventualmente, se exigirá para existir um crime prolongado ou de trato sucessivo será como que «uma unidade resolutiva», realidade que não deve confundir-se com uma «única resolução», pois que «para afirmar a existência de uma unidade resolutiva é necessária uma conexão temporal que, em regra e de harmonia com os dados da experiência psicológica, leva a aceitar que o agente executou toda a sua actividade sem ter de renovar o respectivo processo de motivação» (Eduardo Correia, 1968: 201 e 202, citado no “Código Penal anotado”, de P.P Albuquerque).
Para além disso, deverá haver uma homogeneidade na conduta do agente que se prolonga no tempo, em que os tipos de ilícito, individualmente considerados são os mesmos, ou, se diferentes, protegem essencialmente um bem jurídico semelhante, sendo que, no caso de crimes contra as pessoas, a vítima tem de ser a mesma.
E a propósito de um caso de crime de abuso sexual de crianças, vejamos o Ac. do STJ de 23-1-2008, proc. n.º 4830/07-3.ª, disponível em www.dgsi.pt, que se pronuncia do seguinte modo:
«I – O fundamento da unificação criminosa consiste na diminuição da culpa do agente, resultante da “cedência” a uma solicitação exterior, e não na unidade de resolução criminosa ou na homogeneidade da atuação delitiva. Esta última, assim como a proximidade temporal das condutas, é um elemento meramente indiciário da continuação criminosa, que deverá ser confirmado pela verificação de uma solicitação exterior mitigadora da culpa. Por sua vez, a unidade de resolução criminosa nem sequer existe no crime continuado, pois o que caracteriza esta figura é precisamente a renovação de tal resolução perante as solicitações externas exercidas sobre o agente. Por isso, sempre que a repetição da conduta criminosa seja devida a uma tendência da personalidade do agente, a quaisquer razões de natureza endógena, que ocorra independentemente de qualquer solicitação externa, ou que decorra de oportunidade provocada ou procurada pelo próprio agente, haverá pluralidade de crimes e não crime continuado.
II – Estando em causa crime de abuso sexual de crianças agravado, não pode aceitar-se que o «êxito» da primeira «operação» e das seguintes possa determinar a diminuição da culpa do arguido: este agiu determinado pela vontade de satisfazer os instintos libidinosos, como se diz no acórdão recorrido, e, para tanto, aproveitou as situações mais favoráveis para esse efeito, nomeadamente a ausência da sua mulher e mãe da ofendida. O aproveitamento calculado de situações em que a reiteração é mais propícia exclui, porque não diminui a culpa, o crime continuado. É, de resto, notório, que o arguido agiu determinado por uma única resolução, por ela levado a aproveitar todas as situações que facilitassem a prática dos atos ilícitos, e não formando sucessivamente novas resoluções perante circunstâncias favoráveis entretanto surgidas.
III – Da mesma forma, a não resistência da ofendida, embora certamente tenha facilitado a repetição do comportamento do arguido, também não pode atenuar a culpa, pois a atitude da ofendida terá normalmente resultado do ascendente que, como pai, o arguido tinha sobre ela, e não de um «acordo» entre ela e o arguido, que não se provou.
IV – Nem sequer se podem considerar homogéneas todas as condutas imputadas ao arguido, uma vez que uma delas, a descrita inicialmente na matéria de facto, assume claramente uma gravidade maior do que as restantes. Quando muito, poderia admitir-se a unificação num crime continuado das três condutas que consistiram em o arguido acariciar e chupar os seios da ofendida, condutas inteiramente homogéneas. Contudo, a homogeneidade não é condição suficiente da continuação criminosa, sendo essencial, como já se disse, que haja uma efetiva diminuição da culpa do agente, o que não sucede, pois que a repetição criminosa ficou a dever-se à persistente vontade do arguido em satisfazer os seus desejos, vontade essa que superou as normais inibições que estão ligadas às relações entre pais e filhos.
V – Em todo o caso, essas três condutas, se não podem ser unificadas em termos de continuação criminosa, podem sê-lo como crime de trato sucessivo, que se caracteriza pela repetição de condutas essencialmente homogéneas unificadas por uma mesma resolução criminosa, sendo que qualquer das condutas é suficiente para preencher o tipo legal de crime. Contrariamente ao que acontece no crime continuado, não há aqui qualquer diminuição de culpa, antes a reiteração criminosa, revelando uma persistência da resolução criminosa, encerra uma culpa agravada, que será medida de acordo com o número de condutas e respetiva ilicitude».
Uma outra tese – a que defende que os crimes de abuso sexual crianças não se enquadram na figura do crime de trato sucessivo – está, também, explanada, no Acórdão em análise, através do voto de vencido do Exmº Senhor Conselheiro Manuel Braz que contra-argumenta como segue:
«A categoria de crime de trato sucessivo, a que a posição maioritária faz apelo, não vem, com essa designação, contemplada na lei, que prevê o crime permanente (artigo 119.º, n.º 2, al. a)), o crime continuado (artigos 119.º, n.º 2, al. b), 30.º, nºs 2 e 3, e 79.º) e o crime habitual (artigo 119.º, n.º 2, al. b)), bem como o crime que se consuma por atos sucessivos ou reiterados (artigo 19.º, n.º 2 do Código de Processo Penal).
O crime de trato sucessivo será reconduzível à figura do crime habitual, como refere Lobo Moutinho (Da unidade à pluralidade dos crimes no direito penal português, página 620, nota 1854).
Este autor, depois de definir o crime contínuo como o «crime cuja consumação se protrai mediante a prática de uma pluralidade de atos sucessivos (no sentido de praticados em imediata sequência temporal)», correspondendo «basicamente àquilo que Eduardo Correia chamou o crime único com pluralidade de atos», caracteriza assim o crime habitual:
«O crime habitual, no sentido que à expressão confere a atual legislação, é um crime em que a consumação se protrai no tempo (dura) por força da prática de uma multiplicidade de atos “reiterados”
Que a persistência temporal na consumação se não dá mediante a prática de um só ato, mas de uma multiplicidade deles - eis o que distingue o crime habitual do crime permanente; que os atos que vão consumando o crime são, não sucessivos, mas reiterados - eis o que distingue o crime habitual do crime contínuo.
O ponto central da definição do crime habitual é, por isso, o que deve entender-se por “atos reiterados”.
É seguro que, por “atos reiterados”, se deve entender, pelo menos, a pluralidade de atos homogéneos. Atos diversos não são reiterados.
(…) apenas se pode admitir a “consumação por atos reiterados” (um crime habitual) em casos especiais - o mesmo é dizer, nos casos e termos em que isso é expressamente possibilitado pelo tipo de crime.
Na verdade, embora a caracterização legal não se esgote nisso, os “atos reiterados” são opostos, pela própria lei, aos “atos sucessivos” no sentido de praticados em ato seguido. Isso indica um certo distanciamento temporal - pelo menos suficiente para se não admitir a existência de um crime contínuo - o que faz o crime perder o cariz episódico, para passar a estruturar-se numa atividade que se vai verificando, multi-episodicamente, ao longo do tempo.
Mas se em relação a todos os crimes fosse de admitir esta forma habitual de perpetração, as restantes figuras a que nos referimos ficariam em crise, se é que lhes sobraria qualquer espaço de aplicação.
Assim se compreende que, como a doutrina indica, os crimes “habituais” (seja qual for o entendimento a dar à “habitualidade” do crime, o mesmo é dizer, à “reiteração” dos atos de que se compõe) correspondem a casos especiais em que a estrutura do facto criminoso se apresenta ou, pelo menos, pode apresentar mais complexa do que habitualmente sucede e se desdobra numa multiplicidade de atos semelhantes que se vão praticando ao longo do tempo, mediante intervalos entre eles. Exemplos apontados são o crime de maus-tratos e infração às regras de segurança (artigo 152.º [atual 152.º-B]), o crime de lenocínio (artigo 170.º)».

Quanto a nós e ponderada a factualidade apurada, dela se extrai uma «unidade resolutiva», existindo uma conexão temporal entre as várias condutas, tendo o agente executado toda a sua atividade sem ter de renovar o respetivo processo de motivação. Há homogeneidade na sua conduta que se prolonga no tempo, em que os tipos de ilícito, individualmente considerados são os mesmos, protegem o mesmo bem jurídico, sendo a vítima a mesma.
A matéria de facto provada permite inferir que a conduta do arguido, em Setembro de 2011, tomou uma unidade resolutiva que abarcou, ab initio, as circunstâncias de tempo, modo e lugar em que viriam a ter lugar os vários actos sexuais de relevo que praticou com a menor vítima, contra a vontade desta. Cada um dos vários actos do arguido ocorreu no mesmo contexto situacional no período entre Setembro e inícios de Dezembro de 2011, na sua residência, e tendo como motivo o gato, comandado por uma única resolução, traduzindo-se na lesão do mesmo bem jurídico protegido.
Cada uma das condutas do Recorrente – cada acto sexual de relevo – não é autónoma em relação às outras, sujeita a um juízo único, a uma única resolução, constituindo, assim, um único crime, de trato sucessivo, previsto e punível pelo artigo 171º, nº 1 e 2 do Código Penal.
Procede, pois, nesta parte o recurso.
Aqui chegados, importa atentar na questão atinente à dosimetria da pena de prisão aplicada ao recorrente, que considera que “o Tribunal “a quo” além da sua injustificável severidade, visto ser o mesmo primário, não levou em conta as condições pessoais do Recorrente nem a sua conduta anterior ao facto e posterior a este (Art. 71° nº 2 al. c), d) e e) e artº 72º nº 2 d) do CP)”.
Vejamos.
Dispõe o artigo 40º, nº 1, do Código Penal que “a aplicação de penas e de medidas de segurança visa a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade”.
A medida da pena há-de ser dada pela medida da necessidade de tutela de bens jurídicos face ao caso concreto, assumindo a protecção de bens jurídicos um significado prospectivo que se traduz na tutela das expectativas da comunidade, na manutenção (ou mesmo no reforço) da validade das normas infringidas (prevenção geral positiva ou de integração que decorre do princípio político criminal básico da necessidade da pena – art. 18.°, n.° 2 da Constituição da Republica Portuguesa).
É a prevenção geral positiva ou de integração que fornece um “espaço de liberdade ou de indeterminação”, mais precisamente “uma moldura de prevenção”, (Prof. Figueiredo Dias, in “Consequências Jurídicas do crime”, Direito Penal 2, Parte Geral, pág. 283).
Na referida “moldura de prevenção” a função da culpa é a de estabelecer o limite máximo da pena concreto e como tal a pena nunca a pode ultrapassar, uma vez que a culpa constitui o pressuposto e limite da pena. O limite mínimo resulta do quantum de pena imprescindível, no caso concreto, e ainda comunitariamente suportável de medida da tutela de bens jurídicos e de estabilização das expectativas comunitárias da validade das normas violadas.
Na determinação da pena deve ter-se em conta, nos termos do art. 71º do Código Penal, todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, deponham a favor ou contra o arguido, fixando-se o limite máximo daquela de acordo com a culpa do mesmo; o limite mínimo, de acordo com as exigências de prevenção geral; e a pena a aplicar, dentro da moldura penal assim conseguida, de acordo com as exigências de prevenção especial que ao caso convenham.
Assim, a determinação da pena concreta far-se-á em função da culpa do agente, atendendo às necessidades de prevenção de futuros crimes e a todos os elementos exteriores ao tipo legal que deponham a favor ou contra a arguida, nos termos do disposto art.º. 71º do Código Penal.
Desta norma se retira o critério norteador da tarefa de que nos ocupamos, e que se pode sintetizar da seguinte forma: a medida concreta da pena deverá ser encontrada, entre o ponto óptimo de tutela dos bens jurídicos da comunidade e o limiar mínimo em que essa tutela ainda é eficaz (“moldura de prevenção”), através do recurso a considerações de prevenção especial de socialização, não podendo a pena, em caso algum, ultrapassar a medida da culpa do arguido. Aquela “moldura de prevenção” é fornecida pela prevenção geral positiva ou de integração, que, tal como já foi aflorado, se traduz na tutela das expectativas da comunidade na manutenção (ou mesmo no reforço) da validade e vigência da norma infringida.
Os fins das penas encontram-se estabelecidos no já citado artigo 40.º do Código Penal.
O requisito da culpa traduz a vertente pessoal do crime entendido como um juízo de censura pela personalidade manifestada no facto, fixando-se através dela o limite máximo da pena, sendo pressuposto da mesma, limitando de forma inultrapassável as exigências da prevenção (Neste sentido, Figueiredo Dias, “Direito Penal, Consequências Jurídicas do Crime”, pág. 255 e ss).
Como já se disse, complementarmente à medida da culpa - dentro da margem de variação por esta consentida - intervêm as necessidades de prevenção.
Assim mesmo se têm pronunciado a doutrina, maxime: Figueiredo Dias in “Direito Penal Português”, pag. 227/228; Robalo Cordeiro In “Jornadas de Direito Criminal”, CEJ, vol. I, pag. 265/270; Maia Gonçalves in “Código Penal Português” em anotação ao art.º. 71º e Leal Henriques e Simas Santos in “Código Penal”, vol. I, pag. 550/558) e a jurisprudência do STJ (maxime Ac. de 21/9/94, proc. 46290/3ªsec e de 20/5/95, proc. 47386/3ªsec).
A individualização da pena concreta aplicada pelo tribunal em cada caso não depende de uma qualquer opção discricionária por um qualquer número. Tem, pois, o tribunal de fixar o quantum da pena dentro das regras postuladas pelo legislador, impondo-se-lhe que objective os critérios que utilizou e que fundamente a quantificação que decidiu -vd. artigo 71º n.º 3 do Código Penal.
Certamente que não se pode pensar em critérios de quantificação matemática. O direito não é uma ciência exacta. No entanto, os critérios legais, funcionando comparativamente, podem permitir estabelecer relações quantitativas de grandeza (maior/menor).
Assim, na graduação da pena atender-se-á aos critérios fornecidos pelos artigos 40° e 71° do Código Penal.
Analisemos o caso concreto.
A moldura penal aplicável ao crime de abuso sexual de crianças, previsto no art.º 171°, n.º 2, do Código Penal é a de prisão de 3 a 10 anos.
Revertendo, mais uma vez, para o acórdão recorrido, dele consta:
“A ilicitude dos factos, in casu, revela-se acentuada.
Considera o tribunal, nesta sede, desde logo, a circunstância de o arguido não ter praticado o tipo de abuso em análise uma vez isolada. Pelo contrário, o arguido actuou uma pluralidade de vezes, durante um período que se estendeu entre Setembro e 3 de Dezembro de 2011.
Por outro lado, o arguido era uma pessoa muito próxima da menor e dos seus pais, à data dos factos, violando totalmente a confiança que quer a menor, quer os seus pais, tinham nele.
O arguido aproveitou-se da proximidade decorrente da boa relação familiar existente entre a sua esposa e a mãe da menor (primas) e do convívio frequente entre as duas famílias, para poder praticar os seus actos, dando satisfação à sua líbido, à custa de uma menina tão pequena, com apenas 8 anos de idade, que, naturalmente confiava nele.
O arguido demonstrou com a sua conduta, um desrespeito total por valores essenciais da pessoa humana, e em especial pelos valores morais da pequenina D…. Destruiu a confiança que esta tinha nele, com todas as consequências que consabidamente podem surgir para a menor, no seu relacionamento futuro com os outros.
Acresce que o arguido não só praticou uma pluralidade de actos de abuso, como o fez em crescendo no que concerne à gravidade dos actos - começou pela colocação da sua mão por dentro das cuecas que a menor envergava, tocando-lhe na vagina e nádegas, por diversas vezes; depois, noutra ocasião, friccionou o seu pénis contra a zona genital daquela; e, por fim, noutra ocasião, passou a língua pela vagina da menor, praticando, assim, coito oral com a menor.
Ora, tal gradação na sua actuação leva o tribunal a recear até onde poderia o arguido ter chegado, caso tudo não se tivesse descoberto, o que apenas aconteceu após aquela última situação referida de o arguido ter passado a sua língua pela vagina da menor, magoando-a. Tudo acabou por ser descoberto porque a menor acabou por contar tudo à mãe, quando esta reparou que a menor apresentava a vagina ruborizada.
Este crescendo na gravidade dos factos espelha, no nosso entender, de forma manifesta, que o arguido foi-se sentindo cada vez mais "à vontade", porque os actos anteriores não foram tendo consequências: a menor não se tinha queixado a ninguém, nem ninguém tinha desconfiado de nada. Aliás, apurou-se nos autos que o arguido havia pedido à menor para que não contasse a ninguém nada do sucedido.
Terá certamente valido à menor a circunstância de haver gente em casa (ainda que afastada deles, no momento da prática dos factos) ...
Igualmente nesta sede considera-se a circunstância de, na sequência dos actos sexuais praticados pelo arguido, a D… ter ficado com dificuldades em adormecer, tendo mudado os seus comportamentos, mostrando-se medrosa, receosa, não querendo dormir sozinha, assim como algum afastamento relativamente ao pai.
No que toca à censura ético-jurídica dirigida ao arguido, esta radica na modalidade mais intensa do dolo, o directo (art.14° nº 1 do C.P.), que presidiu a toda a sua actuação (art.71 ° nº 2 al.b) do C.P.).
Sublinha-se que o dolo assume aqui, por directo, uma manifestação muito intensa, sob o aspecto intelectual, enquanto conhecimento de tudo quanto era preciso para uma correcta orientação da consciência ética para o desvalor jurídico da acção, como volitivo, no sentido de querer realizar o facto criminoso.
Ao nível da prevenção especial, a favor do arguido depõe a sua ausência de antecedentes criminais.
O tribunal considerou, ainda, as suas condições de vida, nelas se incluindo as suas habilitações literárias, as condições sociais, familiares e económicas, etc, designadamente as existentes na data da prática dos factos, bem assim as suas condições de vida actuais. Assim, quanto a este aspecto, regista-se o considerado como provado no ponto 20), resultante do relatório social do arguido e que aqui nos abstemos de reproduzir, por brevidade, pelo que para aí se remete.
Por outro lado, conjugando o teor das declarações que o arguido entendeu prestar ao tribunal e a prova que veio a ser produzida em julgamento, que fundamentou a factualidade que veio a ser considerada provada nos autos, conclui-se que o arguido não revelou em audiência qualquer espécie de arrependimento, não revelando, inerentemente, qualquer juízo crítico ou de auto-censura - o que, não o prejudicando, certamente também não o beneficia.
Em termos de prevenção geral positiva, as necessidades são muito elevadas (art. 71º, nº2, do C.P.), pela multiplicidade de consequências que subjazem aos crimes praticados pelo arguido, sendo susceptível de gerar grande insegurança, intranquilidade pública e alarme social (art.72°, nº2, al, a), do C.P.).
As penas a aplicar ao arguido deverão defender o ordenamento jurídico, mormente porque os comportamentos desviantes daquele foram reveladores de uma atitude especialmente censurável, não tomando a sério o desvalor de condutas relevantemente ofensivas da vida comunitária, de acordo com os princípios constitucionais relevantes de um Estado de Direito Democrático.
Deverá, por conseguinte, ser convenientemente sublinhada, perante a sociedade, a validade das normas que punem tais condutas e protegem o respectivo bem jurídico fundamental.”

Do que resulta, desde logo, que o tribunal a quo levou em conta as condições pessoais do Recorrente, bem como a sua conduta anterior ao facto e posterior a este, ao contrário do que o mesmo alega.
Ora, considerando a factualidade apurada no acórdão recorrido, bem como todas as circunstâncias que depõem a favor e contra o recorrente elencadas no acórdão em crise, atendendo a todas as circunstâncias a que alude o artigo 71º do Código Penal, tudo ponderado, entende-se que a aplicação ao recorrente de uma pena de 3 anos e 8 meses de prisão se mostra ajustada e perfeitamente adequada às necessidades de prevenção geral e especial, não excedendo a culpa.
Procede, pois, o recurso nesta parte.
Aqui chegados, cumpre analisar outra das questões suscitadas no recurso e que se relaciona com a propugnada suspensão da execução da pena.
Defende o recorrente que, “atendendo-se à sua personalidade do arguido, às condições da sua vida (está familiar e socialmente bem integrado) e à conduta anterior e posterior ao crime se impunha a suspensão da execução da pena de prisão (cf. art.º 50º, nº 1, C.Penal)”.
Vejamos.
No que se reporta à suspensão da execução da pena de prisão (estando o seu regime jurídico previsto nos artigos 50.º a 57.º do Código Penal e nos artigos 492.º a 495.º do Código de Processo Penal), há que dizer o seguinte:
O artigo 50.º, n.º 1, do Código Penal dispõe:
«O tribunal suspende a execução da pena de prisão aplicada em medida não superior a 5 anos se, atendendo à personalidade do agente, às condições da sua vida, à sua conduta anterior e posterior ao crime e às circunstâncias deste, concluir que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição».
Pressuposto formal de aplicação do instituto da suspensão da execução da pena é que a pena seja de prisão em medida não superior cinco anos (artigo 50º do Código Penal), pressuposto que, indiscutivelmente, se mostra preenchido.
Pressuposto material de aplicação do mesmo instituto é que o tribunal conclua que “a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição” – cfr. art. 50°, n° l do Código Penal.
É uma medida de conteúdo reeducativo e pedagógico, de forte exigência no plano individual e verificado o pressuposto formal, há que averiguar se o pressuposto material também se encontra preenchido, ou seja, que o Tribunal, no momento da prolação da decisão, que não o da prática do facto, tendo em conta a personalidade do agente e as circunstâncias do facto, conclua que a simples censura dos factos e a ameaça de prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.
E é em função de considerações exclusivamente preventivas – prevenção geral e especial – que o julgador tem de se orientar na opção pelo instituto da suspensão da execução da pena de prisão.
Ou seja, não estão, aqui, em causa “quaisquer considerações relativas à culpa mas exclusivamente considerações de prevenção” (cfr. Figueiredo Dias, in “As Consequências Jurídicas do Crime”, § 520).
Desde logo, considerações de prevenção geral sob a forma de exigências mínimas e irrenunciáveis de defesa do ordenamento jurídico, pois “só por estas exigências se limita mas por elas se limita sempre o valor da socialização em liberdade que ilumina o instituto ora em análise” (cfr. Figueiredo Dias, ibidem § 521 e 523).
Por outro lado, com a socialização do arguido em liberdade, que entronca num critério de exigências de prevenção especial, logra-se alcançar a finalidade reeducativa e pedagógica, pela ameaça da pena.
É, portanto, a prevenção especial que perante um prognóstico favorável nos termos do art. 50°, n° l do Código Penal, determina a socialização em liberdade do condenado por ser adequada e suficiente às finalidades da punição.
A formulação de um juízo de prognose assenta, obviamente, no pressuposto de que, por um lado, o que está em causa não é qualquer «certeza», mas, tão-só, a «esperança fundada de que a socialização em liberdade possa ser lograda» e de que, por outro, «o tribunal deve encontrar-se disposto a correr um certo risco – digamos: fundado e calculado - sobre a manutenção do agente em liberdade» (cfr. Figueiredo Dias, ibidem).
A jurisprudência tem assim vindo a acentuar, que a suspensão da pena é uma medida penal de conteúdo pedagógico e reeducativo que pressupõe uma relação de confiança entre o tribunal e o arguido, estando na sua base um juízo de prognose social favorável ao condenado [Ac. do STJ de 2002/Jan./09 (Recurso n.º 3026/01-3.ª) e 2007/Out./18 (Recurso n.º 3185/07) divulgados, respectivamente, em http://www.stj.pt e www.colectaneadejurisprudência.com)].
Tal juízo deverá assentar num risco de prudência entre a reinserção e a protecção dos bens jurídicos violados, reflectindo-se sobre a personalidade do agente, as suas condições de vida, a sua conduta “ante et post crimen” e sobre todo o circunstancialismo envolvente da infracção.
Para o efeito, será de atender que a pena de prisão suspensa, sujeita ou não a certas condições ou obrigações, é a reacção penal por excelência que exprime um juízo de desvalor ético-social e que não só antevê, como propicia ao condenado, a sua reintegração na sociedade, que é um dos vectores dos fins das penas (função de prevenção especial de reinserção ou positiva).
Porém, outros dos seus vectores é a protecção dos bens jurídicos violados e, naturalmente, a protecção da própria vítima e da sociedade em relação aos agentes do crime, de modo que, responsabilizando suficientemente estes últimos, se possa esperar que os mesmos não venham a adoptar novas condutas desviantes (função de prevenção especial defensiva ou negativa).
Na protecção dos bens jurídicos, será igualmente de destacar que a reacção penal a aplicar deve, tanto quanto possível, neutralizar o efeito do delito, passando este a surgir, sem sombra de dúvidas, como um exemplo negativo para a comunidade e contribuindo, ao mesmo tempo, para fortalecer a consciência jurídica da mesma (função de prevenção geral).
Pretende-se, assim, dar satisfação ao sentimento de justiça do mundo circundante que rodeia o arguido, através do mínimo de prevenção geral de defesa da ordem jurídica [Ac. STJ de 2007/Set./26, (Recurso n.º 2579/07), acessível em www.colectaneadejurisprudência.com]. Daí que, muitas vezes, e sobrepondo-se à ressocialização, seja necessária a execução de uma pena de prisão para defesa do ordenamento jurídico, designadamente quando o comportamento desviante for revelador de uma atitude generalizada e consequente de não se tomar a sério o desvalor de certas condutas relevantemente ofensivas da vida comunitária, de acordo com os princípios constitucionais relevantes de um Estado de Direito Democrático [DIAS, Jorge de Figueiredo, “Direito Penal Português – As consequências jurídicas do crime” (2005), p. 344.].
Por outro lado, e muito embora o regime de suspensão da pena de prisão não seja graduado e condicionado materialmente em função do respectivo número de anos, não poderemos deixar de atender que o alargamento de 3 para 5 anos de prisão do pressuposto formal que possibilita essa suspensão, faz realçar, nesse excedente, a necessidade de uma ponderação mais criteriosa dos pressupostos materiais que regulam a sua aplicação, mormente quanto às circunstâncias em que ocorreram a conduta criminosa e a protecção adequada dos bens jurídicos violados [Ac. do STJ de 2008/Abr./03) (Recurso n.º 4827/07-5)].
E isto porque a suspensão generalizada e tida como “normal” ou “corrente” das penas de prisão de amplitude elevada, prejudica grandemente, por motivos óbvios de afrouxamento da reacção penal executiva, a eficácia preventiva do direito penal [JESCHECK, H.-H., “Tratado de Derecho Penal”, Vol. II (1981), p. 1158].
Face a todas as considerações acima expostas cumpre analisar o caso concreto.
No acórdão em crise a questão da suspensão da execução da pena foi tratada da seguinte forma:
“Ora, a suspensão de execução da pena de prisão só pode e deve ser aplicada se, atendendo à personalidade do agente, às condições da sua vida, à sua conduta anterior e posterior ao crime e às circunstâncias deste, o tribunal concluir que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizem de forma adequada e suficiente as finalidades da punição - artigo 50°, n.° 1, do Código Penal.
Consabido que as finalidades da punição se circunscrevem à protecção dos bens jurídicos e à reintegração do agente na sociedade - artigo 40°, n.º 1, do Código Penal-, é em função de considerações exclusivamente preventivas, prevenção geral e especial, que o julgador tem de se orientar na opção pela pena de suspensão de execução da prisão.
Assim, para aplicação daquela pena de substituição é necessário, em primeiro lugar, que a pena de suspensão da execução da prisão não coloque irremediavelmente em causa a necessária tutela dos bens jurídicos e a estabilização contrafáctica das expectativas comunitárias, ou seja, o sentimento de reprovação social do crime ou sentimento jurídico da comunidade. Em segundo lugar, é necessário que o tribunal se convença, face à personalidade do arguido, comportamento global, natureza do crime e sua adequação a essa personalidade, que o facto cometido não está de acordo com essa personalidade e foi simples acidente de percurso, esporádico, e que a ameaça da pena, como medida de reflexos sobre o seu comportamento futuro evitará a repetição de comportamentos delituosos.
Ora, tal conclusão não pode retirar-se, no que concerne ao arguido, razão porque não poderá suspender-se a pena de prisão que lhe vai aplicada.
Isto porque, no caso sub judice, desde logo, são as razões de prevenção geral que sempre criariam um obstáculo a uma solução que envolvesse a suspensão da pena aplicada ao arguido.
Como foi já supra referido, estamos perante um crime com forte repercussão negativa na sociedade, causador de um grande alarme e reprovação social.
Espera a sociedade do sistema judiciário uma resposta firme, peremptória e severa, em prol do combate a tal flagelo.
Por outro lado, atenta a natureza do crime - abuso sexual de crianças -, estamos perante uma situação de pedofilia, por parte do arguido, a qual tem uma natureza predominante de comportamento compulsivo, o que leva a recear que o arguido em liberdade prossiga na sua actividade criminosa.
Segundo o "Dicionário de Sexologia", Hugo G.Beigel, in Publicações D. Quixote, a pedofilia não é uma doença, mas antes, uma "... Anomalia sexual na qual o objecto preferido é uma criança. Esta perversão baseia-se. na maioria das vezes, em sentimentos de inadequação sexual, desejos incestuosos transferidos ou em fixações numa experiência sexual dos primeiros anos de vida."
Há pedófilos de todas as condições sociais. Os mais perigosos são, certamente, aqueles em quem a criança/jovem confia por natureza ou admira - um professor, um médico, um artista conhecido, um familiar, maxime um pai (...).
Por outro lado, e do ponto de vista moral o pedófilo não é um doente mental isento de responsabilidades, nem um delinquente à margem das leis da vida social e familiar (podendo até ser um bom profissional e um bom pai de família), mas um homem ou uma mulher, diferentes na maneira de viverem a sexualidade, condicionados na liberdade pela estrutura da sua personalidade, ainda que responsáveis pelo mal que introduzem no mundo, quando actuam pedofilicamente. A luta contra a violência sexual com crianças passa necessariamente, por dois aspectos: o lugar da criança na sociedade e a atitude dos adultos em relação às crianças, mas que convergem para o mesmo foco, qual seja, o direito da criança e sua violação - "A Pedofilia" - Gelson Francisco Alves da Costa, Cadernos jurídicos.
A pedofilia é um comportamento compulsivo, determinando esta circunstância até a existência de um perigo concreto de continuação da actividade criminosa.
No caso vertente, é certo que o arguido não tem antecedentes criminais e encontra-se inserido no mercado de trabalho, bem como social e familiarmente.
No entanto, estas circunstâncias não lhe serviram para o desmotivar relativamente ao cometimento dos crimes em causa nos autos.
Acresce que, como é consabido, esta é uma característica comum às situações de pedofilia que acabam por chegar aos tribunais: os pedófilos são habitualmente pessoas integradas e sem história criminal, o que os toma até potencialmente mais perigosos.
Pelo que ficou dito, entendemos que não se revela adequada uma suspensão da execução da pena única de prisão em que o arguido vai condenado.
Razão porque se impõe a efectividade da pena única de prisão em que vai condenado o arguido.”
Reiteramos que as exigências de prevenção geral no que respeita aos crimes de abuso sexual são muito acentuadas, obrigando a que a pena, tendo sempre como limite a culpa do arguido, seja fixada de forma a não defraudar as expectativas da comunidade, fazendo-a continuar a acreditar na eficácia do ordenamento jurídico.
Menos elevadas são as exigências de prevenção especial, tendo em conta a ausência de antecedentes criminais do arguido, sendo que o mesmo se encontra inserido no mercado de trabalho, bem como inserido social e familiarmente, aliás, o que é comum nos autores de crimes sexuais, que normalmente estão bem integrados social e familiarmente, trabalham e nunca tiveram contacto com a justiça. Tais características contribuem para que mais facilmente consigam atingir os seus objectivos sem serem detectados, pois são à partida pessoas confiáveis e, quando o são (detectados) valem-se precisamente desse “status”.
Quer dizer, o arguido tinha todas as condições para adoptar uma conduta normativa e nem mesmo assim deixou de cometer o crime em causa, actuando por várias vezes e de modo “crescente”, praticando actos cada vez mais graves e censuráveis: o arguido não só praticou uma pluralidade de actos de abuso, como o fez em crescendo no que concerne à gravidade dos actos que cometeu - começou pela colocação da sua mão por dentro das cuecas que a menor envergava, tocando-lhe na vagina e nádegas, por diversas vezes; depois, noutra ocasião, friccionou o seu pénis contra a zona genital daquela; e, por fim, noutra ocasião, passou a língua pela vagina da menor.
E como se refere no acórdão em crise “… até onde poderia o arguido ter chegado, caso tudo não se tivesse descoberto…?
Por outro lado, o arguido não revelou qualquer espécie de arrependimento, nem denotou até hoje qualquer juízo crítico ou de auto-censura.
Ora, perante todo o circunstancialismo referido, respeitante à personalidade do arguido, que adopta total ausência de sentido crítico, de arrependimento, à natureza e à gravidade do crime, ao modo, circunstâncias e número de vezes praticado, a idade da vítima, à conduta posterior do arguido e à sua culpa e, atendendo à exigências de prevenção geral, não é possível formular um juízo de prognose favorável no sentido de suspender a execução da pena aplicada ao arguido.
Pelo que, aqui chegados, e atento o exposto, afigura-se que a censura do facto praticado e a ameaça da prisão não são suficientes para advertir o arguido contra a prática de novos crimes: existem razões de relevo alicerçantes da conclusão de que a simples censura do facto e a ameaça da pena não se afiguram suficientes para afastar o arguido da criminalidade e satisfazer as necessidades de prevenção. Afigura-se-nos, por isso, que a reprovação pública inerente à pena suspensa e o castigo que ela envolve, não satisfazem o sentimento jurídico da comunidade e, consequentemente, também não satisfazem as exigências de prevenção geral de defesa da ordem jurídica.
Em conformidade com tudo o acabado de expender, consideramos não estarem verificados os pressupostos de que depende a suspensão da execução da pena, por não se revelar um juízo de prognose favorável ao afastamento do arguido da prática de outros crimes pela mera censura do facto e ameaça da execução da pena de prisão, concluindo-se ser necessário para realizar as finalidades da punição que o mesmo cumpra efectivamente a pena de prisão aplicada.
Pelo que, bem andou o tribunal a quo ao decidir não suspender a execução da pena de prisão aplicada ao arguido B….
Improcede, desta forma, este fundamento do recurso.
Aqui chegados resta dizer a questão atinente à propugnada absolvição do pedido de indemnização cível.
Argumenta o recorrente que “Em consequência da sua absolvição deve o arguido ser também absolvido do pedido de indemnização civil e, mesmo que assim não se entenda, deverá sempre ser o arguido absolvido deste pedido, porquanto não se comprovaram os danos não patrimoniais reclamados”.
Ora, em face de todo o exposto, improcede, necessariamente, a primeira parte da pretensão do recorrente que se refere à absolvição do pedido cível, formulada na suposição da absolvição do crime de que vem condenado, o que não se concebe, como vimos.
No que se refere à segunda parte da sua pretensão e, considerando-se definitivamente assente a matéria de facto dada como provada, é evidente que também a absolvição pretendida pelo recorrente não pode proceder.
Vejamos porquê.
Estabelece o artigo 71.º do Código de Processo Penal que o pedido de indemnização civil fundado na prática de um crime é deduzido no processo penal respectivo, só o podendo ser em separado, perante o tribunal civil, nos casos previstos na lei.
No que concerne aos critérios substantivos de determinação do montante indemnizatório de perdas e danos, estes regem-se pela lei civil, designadamente o disposto nos artigos 483.º e seguintes do Código Civil.
Conforme é consabido são cinco os elementos constitutivos da responsabilidade extra-contratual: facto voluntário do agente; a ilicitude; a imputação do facto ao lesante; o dano; o nexo de causalidade entre o facto e o dano – cfr. artigo 483.º, n.º 1, do Código Civil.
Assim, é necessário que haja um facto voluntário do agente e não de um mero facto natural causador de danos; a ilicitude desse facto; que se verifique um nexo de imputação do facto ao lesante; que da violação do direito subjectivo ou da lei derive um dano e que haja um nexo de causalidade entre o facto praticado pelo agente e o dano sofrido pela vítima, de modo a poder concluir-se que este resulta daquele (ver neste sentido, Almeida Costa, Direito das Obrigações, 3ª ed., Almedina Editora, pág. 465).
Ora, considerando a factualidade assente, conclui-se pela violação culposa, por parte do arguido, da liberdade e integridade física e moral da menor, verificando-se um nexo causal entre a sua conduta ilícita e o prejuízo da demandante, razão porque se encontra o mesmo incurso em responsabilidade civil extra-contratual ou aquiliana, com a correlativa obrigação de indemnizar os danos sofridos, nos precisos termos do art.483° nº 1 do Código Civil.
O princípio geral vigente nesta matéria é o prescrito no art. 562º do Código Civil, nos termos do qual «Quem estiver obrigado a reparar um dano deve reconstituir a situação que existiria, se não se tivesse verificado o evento que obriga à reparação», devendo dar-se preferência, sempre que possível, à restituição natural (art.566º, n.º 1, Código Civil). Quando «não seja possível, não reparar integralmente os danos ou seja excessivamente oneroso para o devedor», deve fixar-se uma indemnização em dinheiro.
Por outro lado, estabelece o art. 563º do Código Civil que “A obrigação de indemnização só existe em relação aos danos que o lesado provavelmente não teria sofrido se não fosse a lesão.”
Quanto aos danos não patrimoniais, manda a lei (art.496° nº 1 do Código Civil) ressarcir apenas aqueles que, pela sua gravidade, mereçam a tutela do direito.
Como se refere no acórdão em crise “A gravidade do dano «há-de medir-se por um padrão objectivo (conquanto a apreciação deva ter em linha de conta as circunstâncias de cada caso), e não à luz de factores subjectivos (...)». «Por outro lado, a gravidade apreciar-se-á em função da tutela do direito: o dano deve ser de tal modo grave que justifique a concessão de uma satisfação de ordem pecuniária ao lesado» (cfr. Antunes Varela, "Das Obrigações em Geral, 93 ed., pág. 628).
E no nº 3 do citado art. 496° acrescenta-se que, «o montante da indemnização será fixado equitativamente pelo tribunal, tendo em atenção, em qualquer caso, as circunstâncias referidas no artigo 494°».
O quantitativo da indemnização correspondente aos danos não patrimoniais terá de ser apurado, sempre, «segundo critérios de equidade, atendendo ao grau de culpabilidade do responsável, à sua situação económica e às do lesado e do titular da indemnização (art. 496°, nº 3), aos padrões da indemnização geralmente adoptados na jurisprudência, às flutuações do valor da moeda, etc.».
Ora, in concreto, foram invocados apenas danos não patrimoniais.
Revertendo para a situação em causa, sem esquecer a idade da vítima, resultou provado nos autos que, em consequência da actuação do arguido, a menor D… demonstrou dificuldades em adormecer e mudou os seus comportamentos, mostrando-se medrosa, receosa, não querendo dormir sozinha, assim como algum afastamento relativamente ao pai (vd. ponto 19) dos factos provados).
E diga-se que o facto de a menor se encontrar actualmente (decorridos mais de três anos) mais “equilibrada” não apaga o sofrimento físico e psicológico que o arguido lhe infligiu (e que ela padeceu) com a sua actuação.
Assim, reputamos justa e equilibrada a indemnização fixada pelo tribunal a quo, no quantitativo de € 10.000,00 (dez mil euros), acrescida dos juros de mora legais, vencidos e vincendos, desde a notificação do pedido, até integral pagamento.
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III – DECISÃO
Pelo exposto, acordam os juízes da 2ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto em conceder parcial provimento ao recurso interposto pelo arguido B… e, em consequência condenar o mesmo pela prática de um único crime de abuso sexual de crianças, previsto e punível pelo artigo 171º, nº 1 e 2 do Código Penal, na pena de 3 (três) anos e 8 (oito) meses de prisão.
Confirmar, no demais, a decisão recorrida.
Sem tributação.
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Porto, 11 de Fevereiro de 2015
Elsa Paixão
Maria dos Prazeres Silva