Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
2337/13.0TBVNG.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: RUI MOREIRA
Descritores: CASA DA MORADA DE FAMÍLIA
CONSTITUIÇÃO DE ARRENDAMENTO A FAVOR DE EX-CÔNJUGE
NULIDADE DE SENTENÇA
Nº do Documento: RP201404292337/13.0TBVNG.P1
Data do Acordão: 04/29/2014
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - A questão da constituição de arrendamento da casa de morada de família, regulada como processo de jurisdição voluntária no art. 1413.º do anterior CPC (art. 990º do NCPC) e prevista, como efeito do divórcio, no art 1793.º do CC., constitui um incidente autónomo, a tramitar como processo de jurisdição voluntária, por apenso ao processo de divórcio.
II - Inexiste como necessária uma relação de prejudicialidade entre a regulação do exercício das responsabilidades parentais relativas a um menor e a decisão sobre a atribuição da casa de morada da família, por efeito do divórcio, a um dos seus progenitores.
III - Esta decisão, procedente de um processo de jurisdição voluntária, pode ser alterada no caso de alteração relevante das circunstâncias que foram o seu pressuposto, como seja a da residência de um filho com um ou com o outro dos membros do casal dissolvido. É o que resulta do disposto no art. 1793º, nº 3 do C. Civil, bem como do disposto no art. 988º, nº 1 do N.C.P.C.
IV - A nulidade da sentença prevista na al. c) do nº 1 do art. 608º do CPC, resultante de contradição entre os fundamentos e a decisão, não se basta com uma qualquer divergência entre os factos provados e a solução jurídica, pois tal divergência pode consubstanciar um mero erro de julgamento (error in judicando) sem a gravidade de uma nulidade da sentença. Antes exige uma completa distorção no silogismo judiciário.
V - Não se pode impor ao R. a constituição de um arrendamento sobre um imóvel que lhe pertence, em favor do seu ex-cônjuge, se isso implicar a manutenção de um crédito bancário angariado para a respectiva aquisição, que ele deixou de conseguir suportar, por estar desempregado e sem proventos que permitam pagar as correspondentes prestações.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: PROC. N.º 2337/13.0TBVNG.P1
Tribunal Judicial de Vila Nova de Gaia – J. de Família e Menores
REL. N.º 150
Relator: Rui Moreira
Adjuntos: Henrique Araújo
Fernando Samões
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ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DO PORTO:
1 - RELATÓRIO

B… intentou acção de divórcio contra C…, pedindo aí simultaneamente que lhe fosse atribuído o direito ao arrendamento da casa de morada de família, além de, durante a própria pendência do processo de divórcio, lhe dever ser atribuído o direito á respectiva utilização.
Veio a verificar-se acordo quanto ao divórcio, que foi decretado por mútuo consentimento, bem como quanto à regulação das responsabilidades parentais relativas ao filho de ambos, este estabelecido em data ulterior à da decisão recorrida, que versou sobre a atribuição da casa de morada da família.
Com efeito, o litígio não foi resolvido por idêntico consenso quanto à atribuição da casa de morada de família, pretendida para si pela autora, por arrendamento, dado dela necessitar para a sua habitação e do filho de ambos, apesar de o correspondente imóvel constituir bem próprio do requerido. Este, por sua vez, assinalou a incapacidade para continuar a pagar o empréstimo contraído para a respectiva aquisição, a par dos custos de habitação noutro local, referindo até a sua intenção de vender essa casa para poder satisfazer a sua responsabilidade de pagamento de alimentos ao filho.
Tramitada como incidente nos próprios autos do processo de divórcio, após discussão e julgamento, a questão foi decidida por sentença de 7/1/2014, tendo sido atribuído ao requerido o direito a utilizar a casa de morada de família, essencialmente em razão de esta constituir um bem próprio seu e dela necessitar para a sua residência e de não se ter provado que essa necessidade fosse inferior à necessidade habitacional da própria autora.
É esta decisão que a autora vem impugnar através do presente recurso, no qual, além de arguir a respectiva nulidade, também impugna a decisão sobre a matéria de facto e sua subsequente qualificação jurídica,
São as seguintes as asserções que formulou extensamente, sem rigor apto a salientar os elementos essenciais da sua argumentação e desaproveitando uma tal oportunidade, designando-as como conclusões:
1. A ora Recorrente intentou acção de divórcio sem consentimento do outro cônjuge contra C…, Réu, aqui Recorrido, pedindo que fosse decretado o divórcio entre ambos, que lhe fosse atribuída a guarda do menor, filho do casal, D…, fixando-se a regulação das responsabilidades parentais, e que lhe fosse atribuído o direito ao arrendamento da casa de morada de família, nos termos dos artigos 1773.º, n.º 3, 1781.º, alínea d), 1793.º, 1905.º e 1906.º, todos do CC.
2. Realizada tentativa de conciliação, o divórcio foi convertido em mútuo consentimento, por ser conforme à vontade de ambos os cônjuges obter a dissolução do vínculo conjugal, ficando, todavia, o seu decretamento na pendência de decisão relativa à regulação das responsabilidades parentais e ao destino da casa de morada de família, questões quanto às quais não foi possível lograr acordo, tendo dado origem a dois incidentes, a correr por apenso aos autos principais.
3. Notificada no presente apenso para se pronunciar relativamente à atribuição da casa de morada de família, a ora Recorrente apresentou as suas alegações, concluindo pelo pedido de que lhe seja atribuído o direito ao arrendamento da casa de morada de família, nos termos do artigo 1793.º do CC.
4. Sucede que, muito embora entenda a Recorrente ter demonstrado a bondade da sua tese, porque a provou, o Douto Tribunal a quo decidiu de forma que lhe é desfavorável, considerando improcedente o pedido da Recorrente e determinando a atribuição ao Recorrido do direito a utilizar a casa de morada de família.
5. Discutida a causa, ficou provada a matéria de facto constante da Douta Sentença recorrida, para cujo conteúdo se remete, dando-se aqui por integralmente transcrito, por economia processual.
6. Considerando a matéria de facto provada, conclui a Douta Sentença recorrida que “em conformidade com o exposto, a decisão só pode ser a de entregar a casa ao dono, ou seja, o Réu” e que “decidindo-se pelo provimento da pretensão do R., atribui-se ao mesmo o direito de utilizar a casa de morada de família”.
7. Ora, em primeiro lugar, entende a Recorrente que uma tal decisão padece de nulidade, nos termos do artigo 615.º, n.º 1, alínea d), do CPC, na medida em que o juiz conhece de questões de que não podia tomar conhecimento, como, aliás, é expressamente afirmado na Douta Sentença de que se recorre.
8. De facto, começa o Douto Tribunal a quo por referir que “no caso não sobrelevam os interesses do filho menor do casal, pois que, em termos definitivos ainda não está definida a situação da sua residência/guarda”, porque “se por um lado, o filho menor do ainda casal se encontra a residir com a mãe, aqui Autora, ao abrigo de uma decisão judicial que provisoriamente assim determinou (em conformidade com o estabelecido no artigo 175.º da OTM), a verdade é que também o Réu pretende ver fixada junto de si a residência do filho, encontrando-se pendente incidente no sentido deste Tribunal dirimir as divergências das partes e proferir sentença de regulação do exercício das responsabilidades parentais”.
9. Ora, o artigo 608.º, n.º 2, do CPC determina que “o juiz deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, exceptuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras”.
10. Assim, constata-se que o Douto Tribunal a quo incumpriu uma obrigação legal que lhe era imposta: a de não se pronunciar quanto a questões cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras.
11. Na verdade, como é expressamente afirmado na Douta Sentença recorrida, encontra-se ainda pendente o incidente referente à regulação das responsabilidades parentais relativas ao filho menor da Recorrente e do Recorrido, pelo que, em abono da justiça e da verdade material não podia o Douto Tribunal a quo concluir, como fez, que “no caso não sobrelevam os interesses do filho menor do casal”, questão que se encontra prejudicada pela solução de tal incidente.
12. Nesta medida, a Douta Sentença recorrida violou o disposto no artigo 608.º, n.º 2, do CPC, incorrendo na nulidade prevista no artigo 615.º, n.º 1, alínea d), também do CPC, e devendo, nessa medida ser revogada, para todos os efeitos e com todas as consequências legalmente previstas.
13. Com efeito, e salvo melhor entendimento, numa situação como esta, em que está em causa um menor, impõe-se, acima de tudo, salvaguardar o seu superior interesse, afigurando-se imprescindível preservar a sua estabilidade habitacional, sem mais mudanças, de modo a que o menor não se veja sujeito a mais traumas, para além daquele decorrente do divórcio dos pais.
14. Assim entendeu o Douto Tribunal da Relação de Lisboa, que se pronunciou no sentido de que “o interesse relevante dos filhos prende-se com a situação de os filhos menores não ficarem sujeitos a outro trauma, para além do que resulta do divórcio dos pais, por forma a poderem continuar a viver com estabilidade na habitação a que estavam habituados, sem mais mudanças” (cfr. acórdão de 25/03/2010, elaborado no processo n.º 2042/03.5TMLSB-D.L1-6).
15. Face ao exposto, deverá a decisão recorrida ser considerada nula e revogada, descendo os autos ao tribunal a quo e aí ficando a aguardar decisão quanto à regulação das responsabilidades parentais, só então podendo o Douto Juiz a quo pronunciar-se legitimamente quanto ao superior interesse do menor in casu, o qual se afigura como um requisito de suma importância, que não se concebe que possa ser ignorado ou menosprezado.
16. A Douta Sentença recorrida padece da nulidade prevista no artigo 615.º, n.º 1, alínea c), do CPC, na medida em que os seus fundamentos estão em oposição com a decisão, além de conter ambiguidades que tornam a decisão ininteligível.
17. O Douto Tribunal a quo entrou em contradição na apreciação dos factos dados como provados, e na interpretação e aplicação das normas jurídicas que constituem fundamento da decisão, incorrendo nessa medida em error in judicando, de tal forma que seria outra a decisão que se impunha no presente caso.
18. Na verdade, decorre do artigo 1793.º do CC, que “pode o tribunal dar de arrendamento a qualquer dos cônjuges, a seu pedido, a casa de morada de família, quer esta seja comum quer própria do outro, considerando, nomeadamente, as necessidades de cada um dos cônjuges e o interesse dos filhos do casal”.
19. Quanto a este preceito, refere a Douta Sentença recorrida que está em causa um processo de jurisdição voluntária, concluindo, nessa medida, “que a regulação dos interesses em confronto não tem que ser necessariamente feita com recurso a critérios de legalidade estrita, podendo o tribunal adoptar a solução mais conveniente, em resultado da ponderação de todos os elementos que decorrem da matéria de facto provada”.
20. Acrescenta ainda a Douta Sentença de que se recorre que “a atribuição do referido direito a um ou outro dos ex-cônjuges não constitui um resultado que invariável e necessariamente deva ser declarado”, que “o tribunal deve ponderar todas as circunstâncias envolventes, não tendo que ficar circunscrito à ponderação das necessidades e das correspectivas possibilidades de cada um dos cônjuges”, e que “na atribuição do direito de utilização da casa de morada de família o tribunal goza de uma grande maleabilidade”, devendo “atentar nos interesses dos filhos menores e ponderar a necessidade de cada um dos ex-cônjuges”, mas “podendo ser considerados outros factores”, dado que aqueles “não têm carácter taxativo ou exaustivo” (sublinhado nosso).
21. Sucede que, embora o Douto Tribunal a quo seja peremptório ao afirmar que “a regulação dos interesses em confronto não tem que ser necessariamente feita com recurso a critérios de legalidade estrita, podendo o tribunal adoptar a solução mais conveniente, em resultado da ponderação de todos os elementos que decorrem da matéria de facto provada”, a verdade é que não seguiu o seu próprio conselho, ignorando factos que deu como provados e não os considerado na ponderação dos interesses em conflito, acabando por formar conclusões que se afiguram incorrectas.
22. Com efeito, tendo em atenção a matéria de facto dada como provada nos autos do incidente de atribuição da casa de morada de família, e apesar de uma tal questão se encontrar prejudicada pela solução que venha a decorrer do apenso relativo à regulação das responsabilidades parentais, pode razoavelmente intuir-se que a atribuição à Recorrente do direito ao arrendamento da casa de morada de família é a solução que melhor salvaguarda o superior interesse do menor, uma vez que o Recorrido se encontra separado da Recorrente (cfr. facto provado n.º 12), tendo o menor ficado a habitar com a mãe na casa de morada de família até à presente data (cfr. facto provado n.º 3), e uma vez que a Recorrente aufere um vencimento mensal líquido de aproximadamente €…600,00 (cfr. facto provado n.º 8), enquanto o Recorrido se encontra profissionalmente inactivo, não auferindo quaisquer rendimentos (cfr. facto provado n.º 9).
23. Ora, perante este enquadramento fáctico, verifica-se que o menor tem vindo a morar na casa de morada de família desde que nasceu, sendo esse, por isso, o local que lhe oferece maior estabilidade habitacional.
24. Para além disso, constata-se que a mãe, aqui Recorrente, é aquela que revela melhores condições para assegurar o superior interesse do menor, quer em atenção aos rendimentos auferidos, que lhe permitem garantir mais satisfatoriamente o sustento e o bem-estar do menor, quer em atenção ao facto de ser com ela que o menor mantém um relacionamento mais próximo, uma vez que, desde que o pai abandonou a casa de morada de família, o menor tem vindo a habitar junto da mãe.
25. Assim, se por um lado o Douto Tribunal a quo conclui “que, no caso não sobrelevam os interesses do filho menor do casal”, por outro dá como provados factos de onde se retira de forma expressa que o superior interesse do menor estará mais bem salvaguardado se a sua guarda for confiada à mãe e a sua residência for fixada junto desta, mal se compreendendo que, ainda assim, o Douto Tribunal a quo manifeste dúvidas de que a atribuição da casa de morada de família à Recorrente seja a solução que melhor acautela o superior interesse do menor filho do ainda casal.
26. Verifica-se também que a Douta Sentença recorrida conclui que o Recorrido, “proprietário do imóvel, se encontra desempregado e pretende usar a sua casa para satisfazer as suas necessidades de habitação ou vender esse imóvel para obter meios económicos para providenciar por outra casa alternativa. O Réu não pode suprir, por meios próprios, a necessidade de habitação, não lhe sendo exigível que viva em casa dos pais ou de outro familiar ou amigo para que a Autora viva naquela que foi a casa de morada de família”.
27. Ora, com o devido respeito, uma tal conclusão não deixa de se afigurar curiosa face à matéria de facto dada como provada, porquanto, se é verdade que o Recorrido foi viver com os pais após a separação do casal (cfr. facto provado n.º 12), certo é que, presentemente, ele já não vive com os pais (cfr. facto provado n.º 13), não tendo ficado provado onde é que o Recorrido mora, se partilha a casa com mais alguém e muito menos em que circunstâncias é que partilha a aludida habitação.
28. Além disso, ficou também provado que “o Réu contactou uma imobiliária com a intenção de colocar à venda o imóvel que constituiu a casa de morada de família” (cfr. facto provado n.º 16).
29. Portanto, face à matéria de facto provada, não se pode concluir, como erradamente o faz o Douto Tribunal a quo, que o Réu Recorrido não possa suprir a sua necessidade de habitação por meios próprios.
30. Na verdade, uma tal necessidade já se encontra satisfeita, tanto que o Recorrido deixou de sentir necessidade em viver com os pais (cfr. facto provado n.º 13), apesar de inicialmente o ter feito (cfr. facto provado n.º 12), e até ponderou desfazer-se da casa de morada de família (cfr. facto provado n.º 16).
31. De igual forma, não se pode concluir, com base nos factos provados, que a atribuição à Recorrente da casa de morada de família implica para o Réu a exigência de viver em casa dos pais ou de outro familiar ou amigo, porquanto ficou provado que o Recorrido deixou de sentir necessidade em viver com os pais (cfr. facto provado n.º 13) e não se provou, em momento algum, que ele esteja presentemente a morar com alguém nem que, a fazê-lo, tal decorra de necessidade e muito menos que esteja a viver de favor ou circunstâncias semelhantes.
32. Aliás, se o Recorrido tivesse necessidade de habitar na casa de morada de família, certamente não ponderaria aliená-la, como fez (cfr. facto provado n.º 16).
33. Como refere a Douta Sentença Recorrida, citando um Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 07/12/2011, “o arrendamento potestativo previsto no artigo 1793.º do CC é instituto jurídico de aplicação muito limitada quando é instituído em benefício de um cônjuge ou ex-cônjuge, a incidir sobre casa de habitação que é bem próprio do outro, nunca podendo ser instrumento de efectiva privação da casa que satisfaça as necessidades de habitação que sejam próprias deste proprietário”, nada havendo a opor a um tal entendimento, que se afigura correcto e justo.
34. Porém, certo é que tal entendimento não é in casu aplicável, uma vez que, tendo ficado provado que o Recorrido deixou de sentir necessidade em viver com os pais (cfr. facto provado n.º 13) e queria inclusivamente desfazer-se da casa de morada de família (cfr. facto provado n.º 16), então não pode outra coisa concluir-se senão que se encontra satisfeita a sua necessidade de habitação, o mesmo não podendo dizer-se quanto à Recorrente, como infra se exporá.
35. Afirma ainda a Douta Sentença Recorrida, citando um acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 15/12/1998, que “a casa de morada de família própria de um dos ex-cônjuges só pode ser atribuída em arrendamento ao outro, a seu pedido, caso o dono da mesma não fique em situação económica de não lhe permitir habitação”, não tendo porém resultado provado que tal suceda no presente caso.
36. Também o Tribunal da Relação de Guimarães, num seu acórdão de 02/03/2005 (processo n.º 332/05-2), citado pela Recorrente na sua PI, afirma que “deve ainda o Tribunal dar especial relevo à propriedade da casa, pois, se ela pertencer a um ex-cônjuge, só no caso de este não ficar em situação económica de não lhe permitir encontrar habitação, é que será de estabelecer a relação de arrendamento a favor do outro ex-cônjuge”, mas, como já foi várias vezes mencionado, tendo ficado provado que o Recorrido deixou de sentir necessidade em viver com os pais (cfr. facto provado n.º 13) e queria inclusivamente desfazer-se da casa de morada de família (cfr. facto provado n.º 16), pode concluir-se que não se encontra em situação económica de não lhe permitir encontrar habitação, reiterando-se que o mesmo já não pode afirmar-se em relação à Recorrente.
37. Assim, se por um lado o Douto Tribunal a quo conclui que o “o Réu, proprietário do imóvel, se encontra desempregado e pretende usar a sua casa para satisfazer as suas necessidades de habitação ou vender esse imóvel para obter meios económicos para providenciar por outra casa alternativa” e que “o Réu não pode suprir, por meios próprios, a necessidade de habitação, não lhe sendo exigível que viva em casa dos pais ou de outro familiar ou amigo para que a Autora viva naquela que foi a casa de morada de família”, por outro lado dá como provados factos que demonstram de forma conclusiva que a necessidade de habitação do Réu se encontra satisfeita, de tal forma que ele deixou de viver com os seus pais, como fez nos primeiros tempos após a separação, e queria inclusivamente desfazer-se da casa de morada de família.
38. Também se constata que a Douta Sentença recorrida conclui “não se ter provado que a Autora precisa mais da casa de morada de família do que o Réu, seu proprietário”, até porque, “dispondo de rendimentos mensais superiores aos do Réu”, pode “canalizar parte deles para providenciar uma alternativa habitacional adequada”, “não podendo dizer-se que fica desprotegida”.
39. Antes de mais considerações, remete-se para o exposto supra das presentes conclusões, nos quais se concluiu que a necessidade de habitação do Réu Recorrido se encontra satisfeita, tendo sido dado como provado que ele deixou de sentir necessidade em habitar com os seus pais (cfr. facto provado n.º 13) e queria inclusivamente desfazer-se da casa de morada de família (cfr. facto provado n.º 16), de tal forma que a atribuição desta à Autora Recorrente não põe de modo algum em causa a necessidade de habitação do Recorrido.
40. Na verdade, a atribuição à Autora do direito ao arrendamento da casa de morada de família até parece ir de encontro às pretensões do Réu, uma vez que ele até queria desfazer-se do imóvel (cfr. facto provado n.º 16)!
41. Diferentemente, a Recorrente não dispõe de outro local onde habitar, pelo que, a ver-se despojada da casa onde reside há cerca de cinco anos, será forçada a procurar uma nova habitação, o que, com os parcos rendimentos que aufere, não é, notoriamente, uma tarefa fácil.
42. Até porque, precisa assegurar não só a sua residência, mas também a do seu filho menor, no superior interesse deste, quanto a isto se remetendo integralmente para o exposto supra nos pontos 8 a 25 das presentes conclusões, que por economia processual se dão aqui por reproduzidos.
43. Ora, como refere o Douto Tribunal a quo, a atribuição da casa de morada de família à Autora impõe “a fixação de uma renda que tem de ser justa e adequada ao objecto do arrendamento”, renda esta que, tratando-se de um processo de jurisdição voluntária, como ressalta a Douta Sentença recorrida, pode ser fixada de acordo com critérios de equidade, determinando o artigo 1793.º, n.º 2, do CC, que o arrendamento fique sujeito às regras do arrendamento para habitação, podendo o tribunal definir as condições do contrato, ouvidos os cônjuges.
44. Assim, não se percebe as considerações tecidas pela Douta Sentença recorrida, quando afirma que “atento o facto do Réu estar a pagar a amortização do empréstimo contraído para aquisição do imóvel, cujo valor ascende aproximadamente a €…250,00, mas atendendo às características e localização do imóvel, em função dos valores do mercado, mas também à situação patrimonial da Autora, a renda que se fixaria nunca seria inferior a €…350,00 / €…400,00 e cujo pagamento a Autora não teria condições económicas de satisfazer”.
45. Na verdade, se a renda pode ser fixada em atenção a critérios de equidade, não estando sujeita aos valores de mercado, o seu montante deveria ser bastante para não causar prejuízo ao Réu Recorrido e adequado para que a Autora tivesse condições económicas de o satisfazer, sendo de todo irrelevante para o caso qual o valor de mercado do imóvel, o qual parece, na verdade, ter sido o único critério levado em conta pelo Douto Tribunal a quo na hora de indicar hipotéticos valores para a renda.
46. Efectivamente, levando em conta todas as circunstâncias dadas como provadas, a renda poderia ser equitativamente fixada em valor inferior ao indicado na Douta Sentença Recorrida.
47. Com efeito, o Recorrido encontra-se a pagar as prestações do empréstimo contraído para aquisição da casa de morada de família no valor de cerca de €…250,00 (cfr. facto provado n.º 4);
48. A Autora Recorrente aufere um vencimento de cerca de €…600,00 (cfr. facto provado n.º 8);
49. O valor de mercado das rendas do imóvel in casu rondariam os €…450,00 a €…500,00 por mês (cfr. facto provado n.º 18).
50. Pelo que a renda a pagar pela Recorrente poderia razoavelmente situar-se entre o valor das prestações pagas pelo Recorrido e um máximo de €…300,00, por mês, indo dessa forma ao encontro dos interesses de todos os envolvidos, como é pressuposto da “equidade”.
51. Assim, tem-se que a Recorrente precisa da casa de morada de família para viver, não tendo condições para procurar uma nova casa e suportar uma renda fixada à luz dos valores de mercado (cfr. factos provados n.º 8 e n.º 18), pelo que lhe é de sua necessidade e interesse ser-lhe atribuído o direito ao arrendamento da casa de morada de família, fixando-se a renda segundo critérios de equidade.
52. Tem-se também que o Réu Recorrido não precisa da casa de morada de família para habitação, uma vez que tem um sítio onde morar, de tal forma que até deixou de precisar de morar com os pais e chegou a ponderar desfazer-se da casa de morada de família (cfr. factos provados n.º 12, n.º 13 e n.º 16), não podendo deixar de se ressaltar que ao atribuir à Recorrente o direito ao arrendamento da casa de morada de família se estará, de certa forma, a satisfazer o interesse do Recorrido em desfazer-se da casa de morada de família, sendo certo que ficará a auferir um rendimento como contrapartida – a renda que vier a ser fixada. Estando o Recorrido desempregado e sem outros rendimentos (cfr. facto provado n.º 9), não parece ser-lhe desfavorável esta situação, antes pelo contrário.
53. Assim, se por um lado o Douto Tribunal a quo conclui “não se ter provado que a Autora precisa mais da casa de morada de família do que o Réu, seu proprietário”, por outro dá como provado que o Réu tem um local onde habitar, tendo deixado de necessitar de morar com os seus pais e tendo chegado a ponderar desfazer-se da casa de morada de família.
54. Além disso, se por um lado o Douto Tribunal a quo refere que a fixação da renda devida pela utilização da casa de morada de família deve atender ao “facto do Réu estar a pagar a amortização do empréstimo contraído para aquisição do imóvel, cujo valor ascende aproximadamente a €…250,00”, “às características e localização do imóvel, em função dos valores do mercado” e “à situação patrimonial da Autora”, por outro conclui que “a renda que se fixaria nunca seria inferior a €…350,00 / €…400,00 e cujo pagamento a Autora não teria condições económicas de satisfazer”, revelando não ter seguido os próprios critérios que enumerou, designadamente a “situação patrimonial da Autora”.
55. Desta forma, e face a tudo o exposto, a Douta Sentença recorrida incorre em nulidade, nos termos do artigo 615.º, n.º 1, alínea c), do CPC, por os seus fundamentos se mostrarem em contradição com a decisão, pelo que deve ser revogada, para todos os efeitos e consequências legalmente previstos.
56. Ademais, a Sentença recorrida padece de error in judicando, devendo, nessa medida, ser revogada, para todos os efeitos e com todas as consequências legalmente previstos.
57. Foi dado por provado para o Tribunal a quo que a casa de morada de família que foi adquirida pelo R. por via de um mútuo bancário com hipoteca estaria, neste momento, a ser paga pelos pais do Recorrido e que sobre essa mesma habitação existiria uma dívida relativa ao condomínio.
58. Compulsados os autos e tendo em atenção que estamos aqui perante factos respeitante a pagamento e cumprimento de obrigações que só podem ser validamente demonstradas por via documental, verificamos que em momento algum foi junto aos autos qualquer documento que comprove qualquer um destes factos dados por assentes pelo tribunal a quo, designadamente que os pais estão a pagar qualquer obrigação ao banco, seja a que título for, e que estão em dívida prestações do condomínio.
59. Em momento algum se demonstrou sequer que existe no presente momento qualquer dívida ou prestação em atraso para com esta ou qualquer outra entidade bancária ou entidade privada, seja a que título for.
60. Os factos não podem ser apenas alegados, têm necessariamente de ser demonstrados, e essa demonstração incumbe e aproveita a quem os alega a seu favor.
61. Os documentos juntos aos autos não permitem concluir nem concedem qualquer resposta positiva à alegação do Recorrido, como também, em momento algum, foi junto qualquer documento que demonstre que existe uma dívida para com a entidade bancária mutuante, que demonstre que essa dívida tem, ou não, pagamentos prestacionais em atraso por parte do Recorrido e em momento algum se demonstrou que esse pagamento está a ser suportado por terceiros, muito menos pelos seus pais.
62. Bem como, no que respeita ao condomínio, em momento algum se demonstrou a existência de qualquer dívida nas quotas do condomínio e se alguém estaria, ou não, a efectuar tais pagamentos.
63. O Tribunal a quo, também aqui errou quando deu como provado que as prestações mensais deste empréstimo estão a ser pagas pelos progenitores do R e que existem prestações do condomínio em atraso.
64. Não estando estes factos provados, a verdade é que se verificou na sentença ora recorrida todo um raciocínio de julgamento que se demonstrou toldado pelo Tribunal sobre uma situação de necessidade por parte do Recorrido que em momento algum ficou demonstrada.
65. Nunca poderia o Tribunal a quo concluir o que erradamente concluiu porquanto, se é verdade que o Recorrido foi viver com os pais após a separação do casal (cfr. facto provado n.º 12), certo é que, presentemente, ele já não vive com os pais (cfr. facto provado n.º 13), não tendo ficado provado onde é que o Recorrido reside, não ficou provado ou consta dos autos qualquer elemento que diga se o Recorrido partilha a casa com mais alguém nem sequer com quem ele vive.
66. Ora, não tendo ficado provada a existência de qualquer dívida com prestações em atraso e não tendo ficado provado e demonstrado que os pais do Réu é que estão a suportar o empréstimo da casa e que o Réu já não vive com os pais como pode aqui o Tribunal concluir que o Réu pretende a casa de morada de família para satisfazer as suas necessidades de habitação? Que necessidade de habitação se o Réu nunca alegou qualquer necessidade de habitação?
67. Resulta de todos os factos que o Réu já supriu essa necessidade pois já não reside com os seus pais e das testemunhas apresentadas ninguém referiu ou sabe onde o mesmo vive e com quem, sendo certo que também ninguém referiu que o mesmo estivesse a viver de favor ou com necessidade de outra habitação.
68. Ficou também provado que o Réu contactou uma imobiliária com a intenção de colocar à venda o imóvel que constituiu a casa de morada de família (cfr. facto provado n.º 16) pelo que, resulta bem claro, que não será com a casa de morada de família que o Réu pretende satisfazer as suas necessidades de habitação.
69. A testemunha arrolada pelo Réu inquirida em audiência de julgamento e que estava incumbida para tratar da venda do imóvel, em momento algum mencionou, ou sequer referiu, que a venda pretendida pelo Réu visava obter meios económicos para providenciar por outra casa alternativa.
70. Na elaboração da sentença, analisando criticamente as provas, articulando todos os factos instrumentais e com os fundamentos já aqui extensivamente expressos, nunca a decisão a proferir poderia ser no sentido daquela que foi proferida pelo Tribunal a quo e da qual se recorre.
71. O interesse superior do menor sucumbiu porque o tribunal entendeu que este interesse não era para aqui relevante dado que ainda não estavam definidas, em definitivo as responsabilidades parentais mas sim e somente uma atribuição provisória do menor à mãe.
72. O tribunal a quo entende que a estabilidade da habitação do menor não tem qualquer relevância para a sua estabilidade emocional nem condicionará o seu futuro.
73. O Tribunal a quo deveria ter suspendido a decisão dos presentes autos até à decisão em definitivo da questão relativa à guarda da criança.
74. Por força da lei, os superiores interesses do filho menor são sempre relevantes nesta matéria de atribuição da casa de morada de família.
75. Entendeu o Tribunal recorrido, tendo em atenção que a Autora, ora recorrente, trabalha auferindo por isso rendimento, ao contrário do Réu, deverá aquela e o menor desde já procurar outra habitação adequada para ambos, com uma dimensão mais modesta pois aquela que foi a sua casa de morada de família vai muito para além das suas necessidades!
76. O tribunal prescindiu de analisar qualquer questão afecta ao conforto, estabilidade emocional e habitacional do menor porque, na verdade, o que aqui foi efectivamente relevante foi a importância patrimonial do bem para o Réu e não tudo o que efectivamente seria relevante para o seu filho e para a sua estabilidade emocional já por si afectada pelo simples facto de estar a suportar no presente momento a separação dos seus pais.
77. Seguindo a linha de pensamento do Tribunal a quo, este menor que tem agora de mudar de casa com a sua mãe, a quem foi atribuída a guarda provisória, corre o risco assumido por este mesmo tribunal de seguidamente ter de mudar da guarda da mãe para a guarda do pai porque, como refere a própria decisão, essa é uma questão incidental que ainda está para ser discutida e apreciada pelo tribunal a quo.
78. Este menor cujo seus interesses em nada sobrelevam no presente caso, poderá em pouco tempo não só ser obrigado a mudar de casa, em detrimento do seu conforto e ambiente em que sempre cresceu e viveu, como poderá mudar de progenitor detentor da sua guarda e isto tudo porque nesta fase, para efeitos de decisão de atribuição da casa de morada de família, para o tribunal a quo os interesses do menor não sobrelevam!
79. Esteve mal o Tribunal porque na verdade o menor foi aqui a entidade que mais do que todos os bens e interesses deveria ter sido a prioridade e merecer toda a protecção e toda a atenção e, como tal, deveria este mesmo tribunal ter colocado como prioritária a questão das responsabilidades parentais e só posteriormente tratar da casa de morada de família.
80. As responsabilidades parentais são para todos os efeitos uma verdadeira questão prejudicial para a matéria da atribuição da casa de morada de família e por conseguinte, deveria este tribunal, no adequado respeito pelo que dispõe o artigo 1793.º do Código Civil e 608.º, n.º 2 do CPC, ter suspendido a decisão a dar à questão da atribuição da casa de morada de família e aguardar pela decisão a proferir quanto às responsabilidades parentais e aí, já dotado deste elemento tão importante, proferir a decisão final sobre a atribuição da casa de morada de família.
81. Essa decisão estaria então alicerçada não apenas e somente nas necessidades de cada um dos cônjuges, onde aqui na presente decisão o tribunal não fundamentou nem ponderou adequadamente conforme aqui já se demonstrou, mas também e essencialmente nos interesses do menor onde aqui o Tribunal a quo simplesmente prescindiu de ponderar por entender que os interesses do menor simplesmente não sobrelevam no presente caso.
82. Estamos assim perante uma sentença que violou o disposto no artigo 608.º, n.º 2 do CPC, incorrendo na nulidade prevista no artigo 615.º, n.º 1, alíneas c) e d), também do CPC devendo, nessa medida, ser a decisão revogada para todos os efeitos e com todas as consequências legalmente previstas porquanto o direito e as normas jurídicas que regulam esta matéria foram indevidamente interpretadas e aplicadas ao presente caso.
face ao exposto,
1. deverá a decisão recorrida ser considerada nula e revogada, quer nos termos do artigo 615.º, n.º 1, alínea c), do cpc, quer nos termos da alínea d) do mesmo preceito, com todos os efeitos e para todas as consequências legalmente previstos.
2. deverá ser reconhecido e valorado, para todos os efeitos legais, o error in judicando de que padece a douta sentença recorrida e, em consequência, ser esta revogada, para todos os efeitos e com todas as consequências legalmente previstos.
sem prescindir,
3. as responsabilidades parentais são para todos os efeitos uma verdadeira questão prejudicial para a matéria da atribuição da casa de morada de família e por conseguinte, deverá esta decisão descer à 1.ª instância e, no adequado respeito pelo que dispõe o artigo 1793.º do código civil e 608.º, n.º 2 do cpc, o tribunal a quo só proferir a decisão final na questão da atribuição da casa de morada de família, sustentando a sua decisão nos devidos fundamentos legais e ponderados todos os interesses relevantes para o feito, depois de estarem estabelecidas as responsabilidades parentais.
assim se fazendo a costumada justiça!
Foi junta resposta ao recurso, pelo requerido, na qual se pronunciou pelo acerto da decisão recorrida, contestando quer a arguição de nulidades efectuada pela apelante, quer a impugnação que dirigiu à decisão sobre a matéria de facto.
O recurso foi admitido, como de apelação, com subida nos próprios autos e com efeito suspensivo.
Foi depois recebido nesta Relação, considerando-se o mesmo devidamente admitido, no efeito legalmente previsto.
Cumpre decidir.

2- FUNDAMENTAÇÃO

O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente, não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso - arts. 635º, nº 4 e 639º, nºs 1 e 3 do novo CPC.
Assim, as questões a resolver, extraídas de tais conclusões, são:
- nulidade da sentença, por conhecimento de questões insusceptíveis de apreciação, nos termos do art. 615º, nº1, al. d) do CPC, designadamente a de não ter ponderado a guarda do menor pela mãe, quando essa questão estava “prejudicada” pela pendência da decisão a proferir sobre essa matéria;
- nulidade da sentença, por contradição entre os fundamentos e a decisão, nos termos do art. 615º, nº1, al. d) do CPC, designadamente deverem alguns conjuntos dos factos provados conduzir a decisão diversa;
- alteração da decisão sobre a matéria de facto, por não ter sido produzida prova sobre as prestações do crédito habitacional do réu estarem a ser feitas pelos seus pais e estar em atraso qualquer pagamento ao condomínio;
- alteração da decisão sobre a matéria de facto quanto à necessidade da casa para a habitação do próprio requerido;
- alteração da decisão do incidente, por ponderação diferente dos factos apurados.
*
Cumpre ter presente que, sobre a matéria de facto controvertida, o tribunal deu por provados os factos seguintes:
1. Autora e Réu contraíram matrimónio no dia 1 de Maio de 2009, sem convenção antenupcial.
2. São pais do menor D…, nascido em 15 de Outubro de 2009.
3. A. e R. estão separados de facto desde data não apurada do ano de 2012, tendo aquela, juntamente com o filho, mantido residência na casa de morada de família, sita na Rua …, …, habitação ., …, em Vila Nova de Gaia.
4. O imóvel onde se situava a casa de morada de família foi adquirido pelo R., em data anterior ao seu matrimónio com a A, em Fevereiro de 2008, com recurso a empréstimo bancário, com a duração de 40 anos, cuja prestação mensal actual é de 252.70 Euros.
5. Trata-se um andar moradia, de tipologia T3, duplex.
6. A favor da entidade bancária mutuante encontra-se registada uma hipoteca sobre o imóvel identificado em 3.
7. As prestações mensais deste empréstimo estão a ser pagas pelos progenitores do R.
8. A Autora aufere o vencimento mensal líquido de aproximadamente € 600.00, não dispondo de quaisquer outros rendimentos para fazer face às suas despesas e às do filho menor.
9. O Réu encontra-se profissionalmente inactivo, não auferindo rendimentos.
10. No âmbito do presente processo de divórcio, na tentativa de conciliação realizada, A. e R. não acordaram em matéria de regulação do exercício das responsabilidades parentais referentes ao filho menor, tendo ambos declarado que era intenção de cada um deles que a residência do menor seja fixada junto de si, encontrando-se a correr termos o respectivo incidente.
11. Na tentativa de conciliação realizada no âmbito dos presentes autos foi proferido despacho ao abrigo do estabelecido no art. 157º, da Organização Tutelar de Menores, fixando-se provisoriamente a residência do filho menor do casal junto da progenitora, foi estabelecido um regime de visitas ao Réu, não tendo sido fixada pensão de alimentos.
12. O Réu após a separação do casal integrou o agregado dos respectivos progenitores.
13. O Réu não reside já com os seus pais.
14. A. e R. já viviam juntos à data do seu matrimónio no imóvel identificado em 3.
15. Encontram-se em dívida as quotas de condomínio referentes ao imóvel identificado em 3.
16. O Réu contactou uma imobiliária com a intenção de colocar à venda o imóvel que constituiu a casa de morada de família.
17. A cadela que era do casal e que estava aos cuidados da Autora passou a estar com o irmão do Réu.
18. A renda da casa de morada de família caso fosse colocada no mercado de arrendamento, tendo presentes os actuais valores de mercado, importaria quantia entre € 450.00 e € 500.00/mês.
Além disso, o tribunal pronunciou-se da forma seguinte quanto á matéria não provada:
2.2. Factos não provados
Os restantes alegados para além dos provados ou que estejam em contradição com estes, nomeadamente:
a). A casa de morada de família fica relativamente próxima do local de trabalho da Autora e dos locais que habitualmente frequenta.
b). A Autora aceitou abandonar a casa de morada de família logo que houvesse um comprador interessado na respectiva aquisição.
c). A Autora faltou ao prometido quando foi encontrado comprador para o imóvel.
d). O Réu vive com a namorada.
e). A Autora não faz uso da casa de morada de família.
f). A autoridade policial já foi chamada por vizinhos da casa de morada de família devido ao ruído que a cadela fazia durante a noite, não tendo conseguido contactar a Autora pois ninguém abriu a porta.
g). A Autora reside em casa da irmã e da mãe, sita em ….
*
Como é sucessivamente assinalado pela jurisprudência (ex. Ac. do STJ de 26-04-2012, Proc. 33/08.9TMBRG.G1.S1, em dgsi.pt), são autónomas as questões constituídas pela pretensão de atribuição provisória da casa de morada de família durante o período da pendência do processo de divórcio (art. 1407.º, nºs 2 e 7 do CPC, em vigor ao tempo da dedução da pretensão em juízo); e pela constituição de arrendamento da casa de morada de família, regulada, como processo de jurisdição voluntária, no art. 1413.º do mesmo CPC (actual art. 990º), e prevista, como efeito do divórcio, no art 1793.º do CC.
A primeira traduz-se numa questão incidental, de natureza provisória, embora sem algumas das notas próprias das decisões cautelares, v.g. a referente ao periculum in mora. A segunda constitui um incidente autónomo, constituído em processo de jurisdição voluntária e a tramitar por apenso ao processo de divórcio – art. 1413º, nºs 1 e 4 do CPC (actual art. 990º).
No caso, a autora formulou, em simultâneo, nos próprios articulados da acção de divórcio, as duas pretensões, isto é, a referente à utilização da casa durante a acção de divórcio e a relativa à atribuição futura do direito à utilização dessa casa, mediante arrendamento.
No que respeita ao primeiro desses pedidos, não se constata que tenha chegado a ser proferida a pedida decisão cautelar, mas a manutenção do status quo (permanência da ocupação da casa pela autora, a quem foi confiada a guarda do filho do casal) terá – admite-se – satisfeito a vontade das partes, já que nem essa omissão foi alvo de qualquer requerimento ou impugnação, nem tal questão vem agora colocada neste recurso.
Já quanto ao segundo recurso, apesar de não ter providenciado pela sua autonomização num processo apenso[1], o tribunal a quo não deixou de lhe assegurar uma tramitação autónoma, quer no respeitante à alegação factual por requerente e requerido, quer no respeitante à respectiva instrução e julgamento. Acresce que, entretanto, foi decretado o divórcio entre ambos, bem como regulado o exercício das responsabilidades parentais respeitantes ao seu filho. Assim, o vício processual assinalado, apesar de compreender um elemento passível de qualificação como uma modalidade de erro na forma de processo, susceptível de conhecimento oficioso e correcção (cfr. art. 199º e 202º do CPC em vigor ao tempo), não deve, só por si, determinar a anulação de qualquer acto, já que nenhum deles haveria de decorrer por forma diferente da que foi observada, o que assume igualmente que nenhum deles redundou em diminuição das garantias de qualquer das partes, em especial do réu.
Por isso, sem prejuízo de, oportunamente - designadamente após descida do processo à primeira instância - se nisso houver interesse, poder ser organizado um apenso com todo o expediente relativo ao pedido da constituição de arrendamento da casa de morada de família, cuja decisão agora se encontra sob recurso, por ora nada se determina a esse respeito, porquanto tal constituiria um acto meramente formal, desprovido de qualquer efeito prático, mas com consequências negativas no tempo da decisão do caso. Esta solução é, ainda, propiciada pela circunstância de a correspondente matéria ser já a única que permanece controvertida, inexistindo qualquer perigo de perturbação do seu tratamento autónomo em razão da sua inserção nos autos principais.

Passaremos, pois, à apreciação da primeira das questões colocadas, que supra se identificaram.
Traduz-se ela na circunstância de o tribunal ter ponderado, na sua decisão, que se encontrava pendente o incidente de regulação das responsabilidades parentais do filho de A. e R., pelo que não deveria levar em conta o interesse desse filho na decisão a proferir, quando, pelo contrário, não deveria deixar de levar em conta esse interesse, tanto mais que a questão se mostra solucionada, com a confiança da guarda do menor à sua mãe, aqui A.
Qualifica-se, no recurso, a decisão de regulação das responsabilidades parentais como prejudicial relativamente à decisão da atribuição da habitação, pelo que, ao mencionar a falta daquela decisão na discussão da solução desta, teria o tribunal conhecido de questão que lhe estava subtraída (conclusões 7ª a 15ª, em especial a 10ª: “o Douto Tribunal a quo incumpriu uma obrigação legal que lhe era imposta: a de não se pronunciar quanto a questões cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras.”).
Parece-nos inadequada a interpretação que o apelante faz do disposto no art. 608º, nº 2, CPC para daí imputar à sentença recorrida a nulidade em questão. Com efeito, o significado daquela parte da norma do nº 2 do art. 608º do CPC é completamente outro: aí se estabelece que o tribunal tem de decidir todas as questões colocadas pelas partes; mas dispensa-se essa decisão quanto às questões que ficaram desprovidas de efeito pela solução dada a outras. Por exemplo, numa acção de responsabilidade civil, se se decide pela não verificação dos pressupostos da responsabilidade, fica prejudicada – e fica o tribunal dispensado disso – a decisão sobre a valoração dos danos. E isso dada a inutilidade do que então se decidiria.
Como é óbvio, a situação no caso em apreço nada tem a ver com isto. Por um lado, o tribunal não se “dispensou” de apreciar os factos que considerou relevantes e não relevantes para a decisão que proferiu sobre a atribuição da morada da família; por outro, relativamente a esta decisão era autónoma a questão da regulação do exercício das responsabilidades parentais, que veio a ser resolvida em sede própria. Nenhuma das questões e das soluções que lhe fossem definidas poderia prejudicar a decisão da outra, impedindo o tribunal de a decidir, como parece defender a apelante.
Ainda noutra perspectiva, podemos afirmar que, pelo facto de o tribunal ter ponderado a pendência da questão da regulação do exercício das responsabilidades parentais e a irrelevância dos interesses correspondentes dada a sua indefinição nessa fase, nem por isso conheceu questão que não lhe tivesse sido colocada ou deixou de apreciar questão que lhe estivesse submetida. Inexiste, pois, a apontada nulidade, prescrita na al. d) do nº 1 do art. 615º do CPC.
Diferente disto é saber se, sendo a situação do menor relevante para a decisão da atribuição da casa de morada da família, o tribunal deveria ter decidido esta matéria sem ter aquele outro dado, isto é, sem saber se o menor iria ficar a residir com a mãe, informando decisivamente a dimensão da necessidade habitacional desta. É que, na sua conclusão 15ª, parece ser esse, afinal, o argumento do apelante. Cumpre afirmar, no entanto, que isso nada tem a ver com a questão regulada no nº 2 do art. 608º do CPC, que começara por invocar.
Quanto a essa questão, veja-se que o tribunal expressamente ponderou e resolveu esse problema. Referiu que os interesses do menor quanto a esta matéria nem estavam definidos, nem se poderiam vir a sobrepor aos do próprio réu, maxime os inerentes à sua propriedade sobre a habitação e à sua necessidade de habitação. Por isso, a discussão da validade dessa decisão só pode colocar-se em sede da apreciação do respectivo mérito, e nunca por referência a qualquer nulidade.
Temos, pois, que em relação à primeira questão, improcedem as razões da apelante.

A apelante invoca ainda uma segunda nulidade, como vício da sentença recorrida, designadamente a contradição entre os fundamentos factuais e a decisão, nos termos do art. 615º, nº1, al. c) do CPC, bem como conter ela ambiguidades que a tornam ininteligível.
No que respeita à arguição de tais “ambiguidades”, o que logo se constata é que a apelante não aponta nem uma única, de onde decorra, para si, a arguida ininteligibilidade da decisão recorrida. Pelo contrário, o que se verifica é um perfeita inteligibilidade da decisão recorrida para a própria apelante, a qual, por isso mesmo, vem impugnada quanto aos seus fundamentos e conclusões.
Por outro lado, quanto ao vício de contradição entre os fundamentos e a decisão, o que a nulidade prevista na al. c) do nº 1 do art. 615º do CPC pressupõe é uma contradição intrínseca no silogismo judiciário, verificada entre as premissas e a conclusão.
Como é sabido, a decisão judicial é a conclusão de um silogismo que compreende uma premissa maior, delineada na base da facti species plasmada no quadro normativo aplicável; e uma premissa menor integrada pelo conjunto fáctico dado por provado. Entre tais premissas e conclusão deve existir uma conexão lógica que permita a formulação de um juízo de conformidade ou de desconformidade. E isso não ocorre quando as premissas e a conclusão se mostram logicamente incompatíveis de tal forma que nem se torna possível ajuizar sobre o mérito da decisão (cfr. Ac. do TRL de 11-01-2007, proc. 2006/2006-2, in dgsi.pt).
Nestes termos, para que se verifique uma tal nulidade, não basta uma qualquer divergência entre os factos provados e a solução jurídica, pois tal divergência pode consubstanciar um mero erro de julgamento (error in judicando) sem a gravidade de uma nulidade da sentença. Como refere Amâncio Ferreira (Manual de Recursos em Processo Civil, 9ª edição, pg. 56) «a oposição entre os fundamentos e a decisão não se reconduz a uma errada subsunção dos factos à norma jurídica nem, tão pouco, a uma errada interpretação dela. Situações destas configuram-se como erro de julgamento». O que a nulidade em questão pressupõe é uma completa distorção no silogismo judiciário, que torna desprovida de fundamento e/ou de sentido a decisão.
No caso, não se verifica um tal vício. Aliás, logo na sua conclusão 17ª a apelante revela que considera ter ocorrido um erro de julgamento, sustentando nas conclusões seguintes essa afirmação. Com efeito, a apelante argumenta longamente no sentido de deverem ser outras as conclusões a tirar pelo tribunal, a partir da factualidade apurada (sem prejuízo de sugerir a alteração de alguma dessa factualidade, como veremos infra), sustentando sucessivamente dever ser diferente a decisão a emitir sobre a sua pretensão. Porém, tal divergência coloca-se em sede de apreciação do mérito da decisão, e não da sua afectação pela nulidade apontada, que se não verifica. Com efeito, atentos os pressupostos legais e factuais utilizados pelo tribunal para concluir que a casa de morada de família deve ficar na disponibilidade do R., constata-se que esta solução é um possível resultado lógico da conjugação daquelas premissas. O que exclui a identificação da nulidade apontada. Diferente questão é a da constituição dessas mesmas premissas, mais concretamente a da premissa menor, integrada pela factualidade a ponderar, e que haverá de ser resolvida infra, à luz da argumentação da apelante, mas fora do âmbito de uma nulidade processual como a arguida.
Por todo o exposto, improcedem também a este propósito as razões da apelante.

Seguidamente, colocou a apelante a questão da alteração da decisão sobre a matéria de facto, no respeitante a dois factos: o pagamento do crédito contraído pelo R. para aquisição da habitação estar a ser efectuado pelos seus pais e haver atrasos no pagamento do condomínio.
No que respeita à impugnação da decisão do tribunal sobre a matéria de facto, importa verificar, antes de mais, da admissibilidade do próprio recurso.
A este propósito, dispõe o artigo 662º do NCPC: “1 - A Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa.”
Por sua vez, em termos idênticos aos anteriormente prescritos no art. 685º-B do anterior CPC, dispõe actualmente o art. 640º do NCPC:
“1- Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:
a) Os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados;
b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;
c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.
2 - No caso previsto na alínea b) do número anterior, observa-se o seguinte:
a) Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respectiva parte, indicar com exactidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes; (…)”.
Nas suas conclusões 58ª e 59ª, a apelante referiu os pontos de facto que, na sua perspectiva, deveriam ter merecido um juízo de prova oposto ao proferido, que são os constantes dos pontos 7. e 15. da matéria provada.
E, sustentando um juízo de prova negativo sobre essa matéria, alegou que tal factualidade careceria de ser demonstrada por prova documental, a qual não foi feita. Não refere, no entanto, qualquer fundamento para uma tal restrição dos meios de prova admissíveis sobre essa matéria. E tal não admira, pois não existe uma tal restrição, quanto à demonstração de uma tal factualidade. Ela não decorre, para os concretos factos em questão, do estabelecido no art. 364º do C. Civil, antes se verificando, sobre a matéria, uma liberdade instrutória decorrente do disposto no art. 413º do C. P. Civil. É certo que a natureza das matérias tornaria adequada a demonstração dos factos alegados por via documental. Porém, de norma alguma resulta uma correspondente obrigatoriedade. Acresce que o tribunal expressamente sustentou o seu juízo sobre tais factos em dois depoimentos testemunhais: no depoimento do irmão do réu, E…, sobre ser o pai de ambos quem está a suportar o pagamento das prestações do empréstimo; no depoimento de F…, da administração de condomínio que a habitação do R integra, e que testemunhou a existência de “quotas de condomínio” em dívida, desde há dois anos.
Como se referiu, tais meios de prova são atendíveis para a demonstração da factualidade correspondente, não tendo a apelante sustentado em qualquer outro meio de prova a descredibilização destes depoimentos. Inexiste, pois, qualquer fundamento para pôr em crise esta decisão do tribunal sobre a matéria de facto.
Improcedem, pois, também a este respeito as conclusões da apelação.

Ainda aparentemente em sede de impugnação da decisão do tribunal sobre a matéria de facto, parece a apelante entender que o tribunal deu por provado, em sede factual, que o réu precisava da casa para suprir as suas próprias necessidades de habitação, o que deveria ser alterado – cfr. conclusões 64 a 66.
Porém, como é bom de ver, não foi em sede da decisão sobre a matéria de facto que o tribunal considerou tal necessidade, como elemento da sua decisão substantiva. Nos pontos transcritos supra, em que se desenvolve a matéria de facto dada por provada, nenhum facto há onde se afirme uma tal necessidade. A qual, de resto, sempre constituiria uma conclusão impertinente em sede de apreciação factual. Inexiste, pois, qualquer alteração a operar na decisão do tribunal sobre a matéria de facto, a este respeito. Tal matéria será, porém, apreciada infra, a propósito da verificação do mérito substantivo da decisão recorrida.

Somos, assim, devolvidos à questão fulcral do recurso: verificar da adequação da decisão recorrida à matéria de facto provada.
Para isso importa discutir, antes de mais, a dependência dessa decisão relativamente à decisão da própria regulação do exercício das responsabilidades parentais relativas ao filho de A. e R., designadamente para que se considerasse se as necessidades habitacionais de qualquer um deles se encontravam aprofundadas pela necessidade de assegurar a convivência, consigo, do filho de ambos.
Vimos já que a apelante chegou a apresentar uma tal conexão entre as duas decisões como motivo da nulidade da decisão recorrida. Concluímos, então, pela inexistência de qualquer nulidade.
Aparece agora a mesma questão apresentada sob a alegação de uma prejudicialidade necessária, em função da qual o tribunal deveria "no adequado respeito pelo que dispõe o artigo 1793.º do Código Civil e 608.º, n.º 2 do CPC, ter suspendido a decisão a dar à questão da atribuição da casa de morada de família e aguardar pela decisão a proferir quanto às responsabilidades parentais e aí, já dotado deste elemento tão importante, proferir a decisão final sobre a atribuição da casa de morada de família." (cfr. conclusão 80ª do recurso).
Não obstante a tramitação autónoma dos dois incidentes, a primeira coisa que se constata é que, tendo o incidente relativo á atribuição da casa de morada da família apresentado um curso mais rápido, veio a ser designada e realizada audiência de julgamento sem que ali tivesse sido suscitada a questão de prejudicialidade que agora é colocada. Assim, a questão agora colocada neste recurso é nova, o que sempre seria impeditivo da pronúncia sobre ela, já que a decisão recorrida não a compreende no seu dispositivo, nem o tribunal recorrido alguma vez foi chamado a decidi-la (cfr. neste sentido Ac. do TRC de 8-11-2011, proc nº 39/10.8TBMDA.C1, em dgsi. pt: "Os recursos são meios de impugnação de decisões judiciais – e não meios de julgamento de julgamento de questões novas. Face ao modelo do recurso de reponderação que o direito português consagra, o âmbito do recurso encontra-se objectivamente limitado pelas questões colocadas no tribunal recorrido pelo que, em regra, não é possível solicitar ao tribunal ad quem que se pronuncie sobre uma questão que não se integra no objecto da causa tal como foi apresentada e decidida na 1ª instância.)". Como se refere neste meso acórdão, excepção deverá ser feita às matérias de conhecimento oficioso. Mas esse não é o caso da prejudicialidade agora invocada.
A isso acresce que, em qualquer caso, nem sequer se verifica uma tal prejudicialidade necessária, que de norma alguma decorre. É certo que os interesses do filho do dissolvido casal não deixam de ser relevantes na decisão da questão que é objecto do incidente. E o tribunal considerou-os. Mas, perante a sua indefinição no que toca às suas necessidades habitacionais se agregarem às da A. ou do R. e perante a sua importância relativamente inferior quando comparada com outros interesses em presença, entendeu decidir a causa em função destes e independentemente daquela definição. Esta decisão não parece, neste quadro de circunstâncias, passível de qualquer crítica, tanto mais que, encontrando-nos num quadro de jurisdição voluntária, perante um novo quadro de interesses, sempre seria viável alterar a decisão inicial sobre a atribuição da casa. É o que resulta do disposto no art. 1793º, nº 3 do C. Civil, bem como do disposto no art. 988º, nº 1 do C.P.C.
Com efeito, se a ulterior decisão da regulação do exercício das responsabilidades parentais viesse a determinar uma quadro de circunstâncias susceptível de motivar a alteração do entretanto decidido sobre a atribuição da casa de morada de família, sempre isso poderia ser requerido nesse momento futuro. E, portanto, sem necessidade de se adiar ou suspender a decisão desta última questão, para que esta fosse informada por aquilo que naquela pudesse vir a ser decidido.
Não assiste, pois, razão à apelante na crítica que, por este motivo, dirige à decisão recorrida, a qual, por esse fundamento, não deve ser alterada por qualquer forma.

Em qualquer caso, o que acabámos de enunciar não traduz que se ignore o óbvio. É que consta dos próprios autos que se mostra entretanto regulado, na sequência de acordo dos progenitores sobre a questão, o exercício das responsabilidades parentais relativas ao menor D…, filho da A. e do R. Com efeito, tendo a decisão sobre a casa de morada de família sido proferida em 7/1/2014, veio a ser obtido um tal acordo em 27/2/2014, que foi homologado por sentença. Nos termos da regulação estabelecida quanto ao exercício de tais responsabilidades parentais, consagrou-se que o D… ficou a residir com a progenitura, bem como um regime de visitas tendente a assegurar o convívio dele com o aqui R.
Nos termos do art. 5º, nº 2, al. c) do CPC, estando esse facto documentado nos autos, sempre poderia o tribunal conhecer dele oficiosamente, independentemente de alegação das partes, se tal fosse tempestivo.
Assim não acontece, no entanto. Com efeito, a consideração de factos supervenientes só pode ocorrer desde que os mesmos sejam alegados (ou conhecidos oficiosamente, sendo caso disso) até ao termo da discussão da causa. É o que resulta do regime constante dos arts. 588º e 589º do CPC. E a razão de ser desta solução é fácil de entender e é coerente com o que já antes se referiu sobre a natureza dos recursos: tendo o recurso por objecto uma decisão proferida com determinados fundamentos, e destinando-se a apreciar o seu acerto em face dos pressupostos que existiam à data em que foi proferida, não se estaria a apreciar esse acerto se, aos factos nela considerados, se aditassem outros ulteriormente ocorridos. Neste caso, estar-se-ia a proferir, em sede de recurso, não já uma decisão sobre o mérito da decisão recorrida, mas uma nova decisão, baseada em diversos pressupostos.
Acresce que esta solução nem conduz a que redunde em definitiva uma decisão que foi alheia a factos relevantes que só se tenham verificado ulteriormente. É que, como já se referiu, no âmbito de um processo de jurisdição voluntária, como o presente, sempre poderá ser reavaliada a situação e alterada a decisão anteriormente decretada, se os factos ulteriormente ocorridos o justificarem.

Temos, pois, que haverá de ser apenas em função da factualidade descrita na sentença recorrida que se deve apreciar o mérito da solução que aí se decretou.
Vejamos, então, o que sobressai essencialmente dessa factualidade: A e R. habitavam com o filho de ambos num andar-moradia tipo T3 duplex, comprado pelo R antes do seu matrimónio com a A. e, por isso, bem próprio dele (estavam casados em comunhão de adquiridos; arts. 1721º e 1722º, nº 1, al. a) do C. Civil; a questão da propriedade do imóvel não é controversa, não justificando qualquer outro desenvolvimento); o R. está desempregado, sem rendimentos, e são os seus pais que pagam as prestações do empréstimo contraído para a respectiva aquisição e em função do qual o imóvel está hipotecado; o menor encontrava-se a viver com a mãe, à data da decisão, tendo continuado a viver na residência em questão; o R. foi viver com os pais, após a separação, mas isso já não acontece; as quotas de condomínio estão por pagar e o R, tenciona vender a casa; tal casa tem um valor locativo de 450€ ou 500€ mensais; a apelante trabalha e aufere cerca de 600€ mensais.
Em face desta factualidade, há alguns argumentos da apelante que colhem. O primeiro é o relativo a que as suas necessidades habitacionais devem levar em conta que o filho do casal está (ao tempo da decisão) a viver consigo, facto que a decisão não pode deixar de levar em conta.
O segundo é o de que se não pode concluir que o R. careça daquele T3 duplex para satisfazer as suas necessidades de habitação. Sobre essa matéria, não só nada se provou sobre quais sejam as necessidades de habitação do R., como se provaram dois factos que induziriam até conclusão diferente: se após a separação ele foi viver com os pais e, entretanto, evoluiu dessa situação, não se sabendo onde vive, tal só pode levar á conclusão sobre estarem satisfeitas essa sua necessidade básica.
O terceiro é o de que a intenção do réu quanto à venda dessa casa bem traduz que não será a carência da mesma para a sua própria habitação que deve equacionar-se em confronto com as necessidades habitacionais da própria apelante do seu filho.
A questão a decidir haverá, assim, de basear-se também nestes elementos, tal como alegado pela apelante.
Acontece, no entanto, que outros elementos se identificam que são de fundamental relevância para o mesmo efeito.
De facto, no caso em apreço, não estamos perante uma circunstância tão simples como aquela que ocorreria se se tratasse da transferência de um direito a um arrendamento, de um cônjuge para o outro, relativamente a uma casa pertencente a um terceiro; nem aquela que ocorreria se, perante um bem próprio de uma pessoa e desprovido de qualquer encargo, se lhe impusesse o sacrifício da indisponibilidade desse bem, para se satisfazer a superior necessidade básica de habitação do seu ex-cônjuge e do seu filho. Aqui o que está em causa é um imóvel adquirido com crédito bancário que, constituindo um custo só para o réu, deixou de poder ser suportado quer por ele, quer pela própria apelante. Nenhum deles está a pagá-lo, tal como não estão a ser pagos os custos de condomínio, tal como se não apura que o R. o possa sequer continuar a pagar.
Por outro lado, esse imóvel, adquirido num quadro de circunstâncias em que, presumivelmente, seria conforme ao padrão económico daquele agregado familiar (sob pena de ter sido inviável o financiamento da sua aquisição) e apto a satisfazer as respectivas necessidades habitacionais, não tem já agora por suporte financeiro os rendimentos desse mesmo agregado, pois que este se desfez. Outras, necessariamente inferiores, face à factualidade provada, são as capacidades financeiras de cada um dos anteriores membros desse agregado, como diferentes são as suas necessidades habitacionais, passíveis de satisfação, por exemplo, através da utilização de um imóvel mais pequeno, de valor venal e locativo inferiores. Isto, obviamente, por referência ao agregado da autora e do filho do casal, existente ao tempo da decisão, já que é a sua pretensão que está sob apreciação.
Ora é neste contexto que, a nosso ver, deve ser apreciada a pretensão da apelante de que se imponha ao R. a constituição de um arrendamento sobre aquele imóvel, a seu favor. Uma tal solução implicaria a continuação da situação creditícia referida, que o R. não pode suportar por não ter proventos e que está a ser suportada pelos seus pais. Apesar de não ter meios para o efeito, impor-se-ia ao R. a obrigação de continuar a pagar o empréstimo ao banco para, dessa forma, continuar a poder manter a propriedade da habitação em causa, de forma a poder disponibilizar à A o seu gozo, para que esta, por via dessa disponibilidade, visse garantidas as necessidades de habitação do agregado que constitui com o filho de ambos. Desta descrição da situação que a solução pretendida pela A. pressuporia, logo nos parece resultar a respectiva inviabilidade.
E a isso acresce que nem se pode concluir que, em tais circunstâncias, poderia a própria autora suportar, na vez do R., aqueles custos. É que isso já na actualidade não vem acontecendo.
É certo que uma situação diversa, na qual a A. deixe de ter a disponibilidade desta casa para viver com o filho de ambos, vem gerar outros problemas: serão ampliadas as necessidades do menor, já que a necessidade de habitação deste deve ser satisfeita, como qualquer outra, por ambos os progenitores, de acordo com as suas capacidades. Assim, por exemplo, a prestação de alimentos incluída nas responsabilidades parentais que competem aos progenitores poderá ter de ser diferente consoante se mostre, ou não, satisfeita pela disponibilidade de uma habitação sem custos, a necessidade de habitação do próprio menor.
Porém, no caso em apreço e face às suas condicionantes específicas, afigura-se-nos que essa questão não pode ser decisiva para a imposição, ao réu, do arrendamento daquela sua habitação à autora.
De resto, a par disso mesmo, é óbvia a razoabilidade dos argumentos expendidos pela apelante sobre a importância da estabilidade das várias dimensões em que se processo o desenvolvimento de uma criança. A estabilidade familiar e emocional do agregado em que se insere; a estabilidade económica da família, a estabilidade dos pares com que se relaciona, em relação ao estabelecimento de ensino que frequenta ou das condições de habitação. E também se concorda em que é tanto mais importante a estabilidade nalguns desses factores quanto maior for a instabilidade que se verifique noutros. Assim, tal como alegado pela apelante, tendemos a concordar que num momento de desagregação da família, a permanência de uma criança na mesma habitação que antes ocupava, tende a ser um factor positivo, a garantir, se possível.
No entanto, pelas razões antes expostas, não se identificando uma tal possibilidade - o que está na génese da pretensão de alienação da casa, cujo crédito está ser pago por outrem que não o R. - entendemos não poderem ser sobrepostos esses interesses do próprio menor, ao conjunto de circunstâncias que prejudicam que se deva impor ao R. constituir e manter o arrendamento pretendido pela apelante, sobre a casa que lhe pertence, mas cuja propriedade se encontra onerada em condições que ele não poderá sustentar.
Por outro lado, e aqui em consonância com o constante da decisão recorrida, também não se pode afirmar que a constituição de um tal arrendamento seja essencial, ou a única forma possível, para que a apelante possa satisfazer a sua necessidade básica de habitação a qual, como se referiu, já ao tempo da decisão agregava a do seu próprio filho. De nenhum facto discutido e apurado se revela uma tal essencialidade. Assim, essa necessidade de habitação deverá ser satisfeita por outra via, que não a imposição desse arrendamento, ao R. E se tal gerar um aumento das necessidades de alimentos do próprio menor, noutra sede isso deverá ser repercutido.
Assim, apreciando conjuntamente os interesses em presença e as condicionantes concretamente verificadas relativamente ao imóvel em questão e ao R, seu dono, bem como o regime constante do art. 1793º, nº 1 do C. Civil, entendemos que nem as necessidades habitacionais da A e seu filho, nem os interesses próprios deste quanto á manutenção da sua residência na habitação em questão, facultam que se possa impor àquele a constituição de um arrendamento sobre esse imóvel e, por essa via, a atribuição à A. do direito à utilização da casa de morada da família.
Por todo o exposto, e ainda que não em razão de uma total identidade de fundamentos, se entende não poder ser satisfeita a pretensão que a autora formulava neste incidente. O qual, por isso, só poderia ter sido, como foi, indeferido.
Deverá, pelo exposto, confirmar-se o dispositivo da decisão recorrida.

Sumariando (art. 663º, nº 7 do CPC):
- A questão da constituição de arrendamento da casa de morada de família, regulada como processo de jurisdição voluntária no art. 1413.º do anterior CPC (art. 990º do NCPC) e prevista, como efeito do divórcio, no art 1793.º do CC., constitui um incidente autónomo, a tramitar como processo de jurisdição voluntária, por apenso ao processo de divórcio.
- Inexiste como necessária uma relação de prejudicialidade entre a regulação do exercício das responsabilidades parentais relativas a um menor e a decisão sobre a atribuição da casa de morada da família, por efeito do divórcio, a um dos seus progenitores.
- Esta decisão, procedente de um processo de jurisdição voluntária, pode ser alterada no caso de alteração relevante das circunstâncias que foram o seu pressuposto, como seja a da residência de um filho com um ou com o outro dos membros do casal dissolvido. É o que resulta do disposto no art. 1793º, nº 3 do C. Civil, bem como do disposto no art. 988º, nº 1 do N.C.P.C.
- A nulidade da sentença prevista na al. c) do nº 1 do art. 608º do CPC, resultante de contradição entre os fundamentos e a decisão, não se basta com uma qualquer divergência entre os factos provados e a solução jurídica, pois tal divergência pode consubstanciar um mero erro de julgamento (error in judicando) sem a gravidade de uma nulidade da sentença. Antes exige uma completa distorção no silogismo judiciário.
- Não se pode impor ao R. a constituição de um arrendamento sobre um imóvel que lhe pertence, em favor do seu ex-cônjuge, se isso implicar a manutenção de um crédito bancário angariado para a respectiva aquisição, que ele deixou de conseguir suportar, por estar desempregado e sem proventos que permitam pagar as correspondentes prestações.

3 - DECISÃO
Pelo exposto, acordam os juízes que constituem este Tribunal em julgar improcedente a apelação e em confirmar, ainda que com diferente fundamento, a decisão recorrida.
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Custas pela apelante.

Porto, 29 /04/2014
Rui Moreira
Henrique Araújo
Fernando Samões
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[1] Ac. do TRL de 28-03-2013, proc. nº 963/09.0TMLSB.L1-6, em dgsi.pt: “I - O pedido de atribuição da casa de morada de família configura um processo autónomo de jurisdição voluntária, sendo deduzido por apenso à acção de divórcio ou de separação judicial se esta estiver pendente. Trata-se de uma competência por conexão. Acontece que no caso a Autora formulou na petição da acção de Divórcio Sem Consentimento do Outro Cônjuge o seu pedido de atribuição da casa de família, indicando os factos com base nos quais entende dever ser-lhe atribuído o direito. Ora estando, como está, a petição de atribuição da casa de morada de família, apta no que respeita concretização da causa de pedir e pedido, deveria o juiz ter convidado a parte a individualizar tal petitório para a autuação por apenso à acção de divórcio.”. Note-se que, nesse caso, o tribunal recorrido havia decidido por uma cumulação ilegal de pedidos e pela consequente absolvição da instância do réu, quanto ao pedido referente à habitação.