Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
1668/17.4T8PVZ.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: MIGUEL BALDAIA DE MORAIS
Descritores: ARRENDAMENTO HABITACIONAL
RESOLUÇÃO DO CONTRATO
RENDAS
NÃO PAGAMENTO
Nº do Documento: RP201902181668/17.4T8PVZ.P1
Data do Acordão: 02/18/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Indicações Eventuais: 5ªSECÇÃO, (LIVRO DE REGISTOS N.º 690, FLS.199-206)
Área Temática: .
Sumário: I - Perante uma situação de incumprimento parcial de pagamento da renda, o arrendatário, para fazer extinguir o direito de resolução do senhorio nos termos definidos no nº 1 do artigo 1048º do Código Civil, tem de pagar, para além do remanescente da renda ainda não satisfeita, a indemnização correspondente a 50% de todas as rendas desde o início da mora.
II - A previsão contida no nº 2 do artigo 802º do Código Civil é aplicável ao contrato de arrendamento, posto se trata de um princípio geral da resolução dos contratos que as normas específicas da locação não afastam, fundando-se no princípio geral expresso no nº 2 do artigo 762º do mesmo diploma legal.
III - Trata-se de uma válvula de segurança que obsta à resolução do contrato de arrendamento - ficando, por isso, excluída a aplicação dos normativos que fundamentam tal resolução - sempre que, mesmo que em termos técnicos a situação provada constitua fundamento legal de resolução, a parcela não cumprida da prestação traduza um prejuízo de “escassa importância” para o senhorio.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo nº 1668/17.4T8PVZ.P1
Origem: Tribunal Judicial da Comarca do Porto, Póvoa de Varzim – Juízo Central Cível, Juiz 3
Relator: Miguel Baldaia Morais
1º Adjunto Des. Jorge Miguel Seabra
2ª Adjunta Desª. Maria de Fátima Andrade
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Sumário
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Acordam no Tribunal da Relação do Porto:
I - RELATÓRIO
B…, S.A. instaurou contra C… – Unipessoal, Lda., D… e E… a presente acção declarativa com processo comum, pedindo a declaração de resolução do contrato de arrendamento que celebrou com os réus, por falta de pagamento de rendas, e a condenação da 1ª ré a entregar-lhe o imóvel objecto desse contrato.
Impetra ainda a condenação solidária dos RR. a pagar-lhe a quantia de 77.415,80€, correspondente às rendas não pagas, bem como as rendas vencidas e vincendas desde a data da propositura da acção até ao trânsito em julgado da sentença que decrete a resolução do contrato de arrendamento.
Para substanciar tais pretensões alegou ter celebrado com a 1.ª R., enquanto arrendatária, e com os 2.ºs RR., enquanto fiadores, um contrato de arrendamento de um imóvel de que é proprietária cujas prestações da renda relativas aos meses de Dezembro de 2016 a Novembro de 2017 não foram pagas em virtude de a 1.ª R apenas ter procedido ao depósito mensal de 7.000,00€, cuja não aceitação entretanto comunicou à R., e não de 7.037,80€ que resultaram da respectiva actualização conforme a havia informado.
Citados os RR., admitiram o não pagamento do valor correspondente à actualização da renda para o ano de 2017 nos alegados meses de Dezembro de 2016 a Dezembro de 2017, afirmando que, apesar da comunicação da A. de não aceitação de valor inferior ao resultante da actualização para o ano de 2017, sempre a 1ª R. procedeu ao pagamento da quantia mensal de 7.000,00€, e, como tal, o pedido da totalidade das prestações relativas aos apontados meses é infundado, sendo antes o valor em dívida de apenas €427,70.
Acrescentam que em virtude de a 1ª R. ter, no ínterim, procedido ao depósito de 855,40€ - correspondente, na sua perspectiva, à soma dos valores da renda em dívida com a indemnização devida -, verifica-se a caducidade do direito à resolução do contrato que a autora pretende fazer valer nesta ação.
Pugnam ainda pela improcedência da ação invocando a escassa importância da lesão do interesse da A..
A A. respondeu dizendo que apenas o pagamento integral das rendas e da indemnização faz caducar o direito de resolução do senhorio e que sendo o número de prestações em falta superior a 4 meses não há lugar à possibilidade de o arrendatário impedir a resolução contratual por via da cessação da mora que, em todo o caso, teria de ocorrer até 22 de Janeiro de 2018.
Realizada audiência prévia, veio a ser proferida decisão que, afirmando a caducidade do direito de resolução na sequência de depósito liberatório realizado pela 1ª ré, «julgo[u] extinta a instância por inutilidade superveniente da lide no que respeita ao pedido de resolução do contrato de arrendamento celebrado entre as partes e consequente desocupação e entrega do arrendado e ao pedido de condenação na quantia de 427,70€, e no mais julgo[u] a acção improcedente e absolv[eu] os RR. do pedido».
Não se conformando com o assim decidido, veio a autora interpor o presente recurso, que foi admitido como apelação, a subir nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo.
Com o requerimento de interposição do recurso apresentou alegações, formulando, a final, as seguintes
CONCLUSÕES:
A) A renda vencida em Dezembro de 2016 e meses subsequentes está fixada em €7.037,80 mensais - vide números 12 e 15 da Douta Sentença.
B) A renda vencida em Dezembro de 2017 e meses subsequentes é de €7.116,62 - vide números 19 e 20 da Douta Sentença.
C) Porém, a recorrida sempre pagou de renda €7.000,00 por mês - vide número 16 da Douta Sentença.
D) A Recorrida foi avisada por escrito e pela recorrente de que a renda paga não era a totalidade e como tal não a podia aceitar. - vide 17 da Douta Sentença.
E) A renda teria de ser paga no primeiro dia útil do terceiro mês anterior ao que disser respeito, na sede da primeira ou por transferência bancária. – vide 7 da Douta sentença.
F) Estamos perante um contrato de locação e pela qual uma das partes se obriga a proporcionar à outra o gozo temporário de certo imóvel contra o pagamento de uma renda.
G) Se tal não ocorre o arrendatário constitui-se em mora (neste aspeto a Sentença é suficientemente clara).
H) Constituindo-se o arrendatário em mora tem a senhoria o direito a exigir as rendas em mora, acrescido do direito à resolução.
I) A única forma de evitar a resolução é: o arrendatário depositar as rendas em divida, acrescido de 50 % sobre a totalidade das rendas.
J) O direito a depositar a parte em divida acrescido de 50 % sobre este valor é regime excecional e não é seguramente o caso destes autos, pois que: a recorrida “repete” o não pagamento da totalidade da renda durante um ano, mesmo advertida por escrito de tal e da não aceitação da renda (que era paga por transferência bancária).
K) Retenha-se o seguinte “a recorrida só não pagou a renda fixada” por lapso de organização”,- vide artigo 4 da contestação - e mesmo avisada por escrito para o efeito, nem sequer faz o pagamento da renda vencida em Dezembro de 2017, que com a atualização passou a ser de €7.116,62. - vide 20 da Douta Sentença.
L) O incumprimento da recorrida é continuo, voluntário e querido.
M) O recurso ao conceito de abuso do direito, só em casos muito específicos e que de per si são uma ofensa aos princípios orientadores dos valores em que relação entre as pessoas se deva pautar.
N) Não é seguramente o caso dos autos e pelas razões supra alegadas.
O) Os recorridos nem sequer podem fazer uso do que dispõe o art.º 1048º do C. C., ou seja, depositar as rendas em dívida acrescidas de 50 %, dado o não pagamento das rendas durante quatro vezes num ano.
P) Acresce que, as rendas vencem-se no primeiro dia útil do terceiro mês anterior ao que disser respeito, - vide 7 da Douta Sentença.
Q) Então, os RR. deveriam ter efetuado a prova das rendas que se venceram no mês de Dezembro de 2016 a Fevereiro de 2018 (esta relativa a Abril de 2018), sempre acrescido de 50 %.
R) Mesmo na tese da R. (recorrida) que apenas estava obrigada a fazer a prova do pagamento do em falta acrescido de 50 %, tal não ocorreu.
S) Pois na sua contestação faz um depósito de €855,00; - vide doc. 1 verso junto com a contestação, faz um depósito de renda no valor de €5.337,50 e aos 09.01.2018;
T) Mas esquece as rendas vencidas em Dezembro de 2017, Janeiro e Fevereiro do 2018.
U) Ora, os RR. não fizeram essa prova, muito menos dos 50% pela mora atento o alegado.
V) Também com este fundamento deve ser declarada a imediata resolução do arrendamento e consequente despejo;
W) Sobre a lesão de escassa importância: havendo normas específicas, sobretudo com a alteração legal de 2012, não se aplica o que consta do artigo 802º- 2 do C. C., mas sim e tão só o que consta dos artigos 1038º, 1040º, nºs 3 e 4, 1048º e 1083º, todos do C.C..
X) O atual artigo 1083º tem a redação dada pela Lei nº 31/2012, diferente da anterior e hoje é categórico e imperativo (só há incumprimento total e não parcial).
Y) Deve, pois ser alterada a Douta Sentença em recurso, dado que os recorridos apenas podiam evitar a resolução desde que depositassem a parte das rendas em divida acrescido de 50 % sobre a totalidade das rendas.
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Os réus apresentaram contra-alegações, pugnando pela improcedência do recurso.
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Após os vistos legais, cumpre decidir.
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II- DELIMITAÇÃO DO OBJETO DO RECURSO
O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente, não podendo este tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso – cfr. arts. 635º, nº 4, 637º, nº 2, 1ª parte e 639º, nºs 1 e 2, todos do Código de Processo Civil.
Porque assim, atendendo às conclusões das alegações apresentadas pela apelante, são as seguintes as questões solvendas:
Do não pagamento pontual do montante das rendas vencidas (com a respectiva actualização) e suas consequências, e bem assim se a indemnização prevista no art. 1041º, nº 1 do Cód. Civil deve incidir sobre o valor integral da renda ou apenas sobre o valor da actualização não pago;
Se o depósito feito pela 1ª ré (dos diferenciais das actualizações das rendas acrescido de 50% desses valores) tem a virtualidade de fazer caducar o direito à resolução do contrato por falta de pagamento da renda;
Se existe válido fundamento para ser decretada a resolução do contrato de arrendamento.
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III- FUNDAMENTOS DE FACTO
O tribunal de 1ª instância considerou provada a seguinte matéria de facto:
1. A. e R. celebraram entre si, aos 14 de Outubro de 2011, Contrato de Arrendamento para Fins Não Habitacionais.
2. Nesse contrato intervieram: a A. como senhoria e a Ré sociedade como arrendatária, e os 2.ºs Réus como fiadores.
3. Tendo estes declarado no contrato o seguinte: “12.1. Pelos terceiros foi dito que prestam a sua fiança ao bom e total cumprimento deste contrato e em consequência assumem a obrigação de procederem ao pagamento das rendas bem como a indemnizar a primeira em consequência da violação de qualquer cláusula deste contrato.” “Assumem tal obrigação como devedores principais, pelo período de vigência do contrato, renunciando desde já ao benefício da excussão prévia.”.
4. O Objecto do arrendamento é o prédio urbano composto por edifício de rés-do-chão, sito no lugar de …, da freguesia…, concelho de Santo Tirso, descrito na Conservatória do Registo Predial de Santo Tirso sob o n.º 02476 e inscrito na matriz sob o artigo 2529 com licença de utilização n.º 277 emitida pela Câmara Municipal de Santo Tirso aos 04.09.1973.
5. O arrendado destinava-se ao exercício do comércio.
6. O prazo é de 10 (dez) anos, tendo o seu início em 15.10.2011 e o seu termo em 14.10.2021.
7. A renda anual foi fixada em €84.000,00 (oitenta e quatro mil euros) a pagar em duodécimos de 7.000,00€ (sete mil euros) no primeiro dia útil do terceiro mês anterior ao que disser respeito, na sede da primeira ou por transferência bancária.
8. Mais ficou acordado que “Caso a segunda cumpra pontualmente o pagamento das rendas durante três anos consecutivos, findo este período, a primeira, desde já declara e aceita receber até ao décimo ano de vigência do contrato, onze meses de renda em cada ano”.
9. O que efectivamente sucedeu.
10. Desde 15.10.2014 que a R. arrendatária apenas pagou onze rendas por ano.
11. Mais acordaram que “A renda será actualizada anualmente e de acordo com os factores de actualização aplicáveis aos arrendamentos para fins não habitacionais, sem necessidade de interpelação”.
12. No ano de 2017 a renda foi actualizada para o montante de € 7.037,80 (sete mil trinta e sete euros e oitenta cêntimos).
13. Tendo sido aplicado à renda vigente o coeficiente de 1.0054 para o ano de 2017.
14. A actualização foi comunicada à Ré arrendatária em 13.10.2016, por carta registada com aviso de recepção.
15. Tendo a R. sido informada que as rendas vencidas em Dezembro de 2016 e as subsequentes vencidas nos meses de 2017 passariam a ser no valor de 7.037,80€.
16. Não obstante ter sido informada da actualização em causa, a R. arrendatária sempre procedeu apenas ao depósito da renda ilíquida de €7.000,00 nos meses de Dezembro de 2016 a Novembro de 2017.
17. Por carta registada com aviso de recepção a R. foi informada que a A. não aceitaria mais o pagamento de renda inferior ao que resultava da actualização realizada para ao ano de 2017.
18. Mesmo assim a R. nada fez.
19. Aos 11 de Outubro de 2017 foi enviada à R. arrendatária carta para actualização da renda relativa ao ano de 2018 e de acordo com os coeficientes aí previstos, designadamente, 1.0112.
20. Passando, as rendas vencidas em Dezembro de 2017 e meses seguintes e relativas a Fevereiro de 2018 e daí em diante no valor de €7.116,62 mensais.
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Em consonância com os elementos constantes dos autos (cfr. documento nº 3 junto com a contestação), resultou igualmente demonstrado que, em 9 de janeiro de 2018, a 1ª ré efectuou depósito na F… no montante de €855,40, indicando como motivo para a sua realização “ação judicial relativa a acerto de rendas Dez./16 a Dez./17”.
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3. FUNDAMENTOS DE DIREITO
Por via da presente acção, pretende a autora que seja decretada a resolução do contrato de arrendamento que celebrou com os réus, com fundamento na falta de pagamento da renda (nos montantes efetivamente devidos).
Como é sabido, com a entrada em vigor do NRAU – contrariamente ao que sucedia no regime pretérito - a resolução do contrato de locação “pode ser feita judicial ou extrajudicialmente” (art. 1047º do Código Civil[1]), sendo que a resolução extrajudicial, a operar por simples comunicação ao arrendatário (art. 1084º, nº 2) apenas pode ter lugar nos limitados casos do art. 1083º, nºs 3 e 4.
No caso vertente, a autora recorreu ao mecanismo judicial de resolução do contrato, invocando como fundamento resolutivo (cfr. art. 35º da petição inicial) a falta de pagamento (integral) das rendas vencidas em dezembro de 2016 a novembro de 2017[2].
Para tanto alegou ter comunicado à ré (através de carta datada de 13.10.2016, a que se alude no facto provado nº 14) a actualização da renda [que se cifrava então no valor mensal de €7.000,00] por aplicação do coeficiente fixado no aviso nº 11562/2016, de 22.09[3], pelo que as rendas vencidas em dezembro de 2016 e as subsequentes vencidas no ano de 2017 passariam a ser no valor mensal de €7.037,80.
Facto é que, apesar de a 1ª ré não ter posto em crise a regularidade dessa actualização, continuou esta a pagar as rendas que se venceram a partir de dezembro de 2016 no mesmo montante mensal de €7.000,00 (sem a devida actualização, portanto).
A ré arrendatária incorreu, assim, em mora ao não proceder ao pagamento integral das rendas que se venceram a partir da mencionada data em conformidade com a actualização que lhe fora comunicada, não tendo, ainda, feito cessar essa situação de incumprimento temporário “no prazo de oito dias a contar do seu começo” nos termos definidos no nº 2 do art. 1041º.
Por isso, legitimada estava a autora a recorrer à acção judicial para, com base na falta de pagamento da renda, lograr obter a resolução do contrato de arrendamento à luz do disposto no art. 1083º, nº 3.
E instaurada que foi a acção, apenas por qualquer dos meios previstos no art. 1048º, nº 1 podia a 1ª ré fazer “caducar” o direito à resolução do contrato, o que procurou fazer através do depósito da importância de €855,40 (documentado nos autos – cfr. documento nº 3 junto com a contestação), correspondente, na sua perspectiva, à soma dos valores da renda em dívida acrescido da indemnização devida.
Perante a realização desse depósito, o tribunal a quo, depois de afirmar que “sendo o valor depositado pela ré arrendatária, dentro do prazo da contestação, superior ao valor dos montantes de renda não pagos, acrescido da indemnização de 50% desse valor”, conclui “pela extinção do direito de resolução que a autora pretendia exercer através da presente ação, assim como do pedido de pagamento das rendas em falta, no valor de €427,70, com a consequente extinção da lide por inutilidade superveniente”.
A apelante rebela-se contra o referido sentido decisório, sufragando o entendimento de que o depósito efectuada pela ré arrendatária não pode considerar-se liberatório para os efeitos do disposto no nº 1 do citado art. 1048º.
Portanto, o que se questiona neste recurso é saber se, malgrado o aludido depósito das actualizações em dívida acrescido de 50% sobre esse valor, teve o mesmo a virtualidade de fazer “caducar” o aludido direito potestativo.
Para efeito de resolução desta questão haverá, desde logo, que convocar o regime vertido nos arts. 1041º e 1048º.
O primeiro dos referidos normativos, sob a epígrafe Mora do locatário, dispõe no seu nº 1 que “[C]onstituindo-se o locatário em mora, o locador tem o direito de exigir, além das rendas ou alugueres em atraso, uma indemnização igual a 50% do que for devido, salvo se o contrato for resolvido com base na falta de pagamento”.
Da exegese do transcrito inciso decorre que, registando-se mora juridicamente relevante do arrendatário (cfr. art. 1041º, nº 2 a contrario[4]), o senhorio dispõe de dois caminhos que pode exercer alternativamente. Assim, pode exigir as rendas em atraso cumulativamente com uma indemnização igual a 50% do que for devido, ou, então, pode exigir as rendas em atraso cumulativamente com a resolução do contrato com base na falta de pagamento de rendas.
No caso sub judicio, como se referiu, a autora senhoria optou pela segunda alternativa, pelo que o direito potestativo que pretende exercitar através da propositura da presente demanda somente poderia ser neutralizado através do mecanismo previsto no nº 1 do citado art. 1048º, no qual se preceitua que “[O] direito à resolução do contrato por falta de pagamento da renda ou aluguer, quando for exercido judicialmente, caduca logo que o locatário, até ao termo do prazo para a contestação da ação declarativa, pague, deposite ou consigne em depósito as somas devidas e a indemnização referida no nº 1 do artigo 1041º”.
Portanto, para fazer cessar o direito de resolução, o arrendatário tem que pagar as “somas devidas” e “uma indemnização igual a 50% do que for devido”.
Sendo assim, o problema interpretativo que é trazido à apreciação deste Tribunal de recurso traduz-se em apurar se perante uma situação de incumprimento parcial da renda (como é o caso), o arrendatário, para fazer extinguir o direito de resolução do senhorio, tem de pagar, para além do remanescente da renda ainda não paga, a indemnização de 50% sobre o valor total da renda ou se apenas deve pagar a indemnização legal sobre o valor em falta.
É precisamente neste ponto que se situa a divergência recursiva da apelante que, ao invés do entendimento sufragado pelo decisor de 1ª instância, considera que o depósito efectuado pela ré arrendatária somente seria liberatório se, para além do pagamento do remanescente das rendas ainda não pagas (no montante de €427,70), contemplasse 50% sobre a totalidade das rendas e não apenas sobre o valor em falta.
Ora, neste conspecto, afigura-se-nos que lhe assiste razão.
É facto que a ré arrendatária depositou o valor do remanescente das rendas em atraso desde dezembro de 2016, isto é, depositou quantia correspondente aos diferenciais (no valor total de €427,70) relativos à actualização da renda devida desde essa data. E depositou igualmente 50% desses diferenciais. Mas não depositou os 50% do que era “devido”, sendo certo que, para este efeito, enquanto se mantivesse a mora da ré era sempre devido o pagamento de 50% de todas as rendas desde o início da mora (dezembro de 2016). Dito de outro modo, o depósito de rendas para ser liberatório tinha de incluir, além das diferenças de renda respeitantes à sua actualização, também 50% de tudo o que era devido: 50% sobre a totalidade das rendas actualizadas.
Dir-se-á: mas parte da renda já estava liquidada, o que significa que a arrendatária apenas estaria em mora na parte restante.
Não é esse, contudo, a solução que emerge da lei.
Efectivamente, ou há mora ou não há. E se o há, é relativamente ao pagamento da prestação em causa - “do que for devido” (cfr. art. 1041º, nº 1) como contrapartida da outorga do contrato de arrendamento, que é precisamente a renda. Isso mesmo resulta da regra estabelecida no art. 763º (na qual se consagra o princípio da integralidade do cumprimento), pelo que a mora não se verifica relativamente ao pagamento de parte da renda, mas antes em relação à liquidação da renda propriamente dita, toda ela, a qual, portanto, continua em falta. E estando em falta o pagamento da renda, é por referência ao seu valor (total) que a lei fixou a indemnização de 50%[5].
Registe-se que no caso presente a apelante não reconheceu, sequer, ter havido cumprimento parcial das rendas e manifestou a sua oposição quanto ao pagamento de renda inferior à que resultava da actualização comunicada em outubro de 2016 (como indelevelmente resulta da missiva a que se alude no facto provado nº 17), sendo certo que, neste ponto, contrariamente ao sustentado pelos apelados, a razão daquela não se altera pelo facto de ter procedido ao recebimento de parte das rendas.
Trata-se de situação idêntica à decidida no acórdão da Relação de Lisboa de 3.10.1996[6] em que estava em causa, também, o não pagamento pelo arrendatário da actualização da renda que lhe havia sido oportunamente comunicada, onde se decidiu que “conforme resulta do disposto nos nºs 3 e 4 do artº 1041º do C.C., o facto de o [senhorio] conhecer do cumprimento parcial da prestação de renda e de não se opor ao seu recebimento não significa que haja renunciado ao direito que, nos termos do nº 1 daquele artigo lhe advinha da situação de mora imputável ao recorrente”. Ou seja, esse reconhecimento de que a prestação foi parcialmente satisfeita não afasta o funcionamento das consequências que a lei prevê para o caso de mora imputável ao devedor (arrendatário) por incumprimento da (toda) a prestação. E essas consequências são o pagamento da parcela da(s) renda(s) (as “prestações”) em falta, acrescida de 50% do valor total das rendas em mora.
Consequentemente, não tendo a ré arrendatária efectuado depósito que contemplasse quantia calculada da forma descrita, o depósito que realizou não assume natureza liberatória, não podendo, assim, operar a “caducidade” do direito da apelante/senhoria à pretendida resolução do contrato de arrendamento por falta de pagamento de renda[7].
Na decorrência dessa afirmação, importa, pois, dilucidar se, apesar da ineficácia do depósito em termos liberatórios, estão preenchidos os requisitos ou pressupostos que a lei prevê para a procedência da resolução pretendida pela apelante.
Como é consabido, o legislador da Lei nº 6/2006 pôs de lado a taxatividade das causas de resolução que vigorava no regime pretérito, introduzindo, porém, no proémio do nº 2 do art. 1083º um alargamento dos fundamentos de resolução legal, inserindo uma cláusula geral resolutiva que se funda na justa causa, a qual se encontra exemplificada nas suas várias alíneas.
Portanto, face ao NRAU não basta alegar e provar o fundamento (tipificado, ou não na nova lei) da resolução do contrato, impondo-se, ainda, alegar e provar que tal situação preenche a aludida cláusula geral (indeterminada) resolutiva, ou seja, que a conduta do arrendatário é de tal forma grave que “pela sua gravidade ou consequências torne inexigível à outra parte a manutenção do arrendamento”.
Haverá, no entanto, que atentar que, à data da propositura da presente ação, a situação moratória da ré arrendatária se arrastava por mais de três meses, o que preenche a previsão do nº 3 do art. 1083º, sendo que, nessas circunstâncias, o legislador considera que tal constitui um comportamento que compromete de forma irremediável o sinalagma contratual tornando inexigível a manutenção do contrato.
Perante tal constatação importa, todavia, questionar (tal como os apelados o fizeram no seu articulado de defesa e recuperam agora em sede de contra-alegações) se, mesmo que se entenda estarem preenchidos os requisitos (técnicos) que integram o fundamento de resolução em apreciação (falta de pagamento de rendas), a dimensão do incumprimento da ré arrendatária (duma pequena parte das rendas devidas), será obstáculo a que se decrete a resolução do ajuizado contrato de arrendamento, por aplicação da regra enunciada no nº 2 do art. 802º.
Neste conspecto, contrariamente à posição sustentada pela apelante, não se antolha razão válida que obstaculize o recurso ao aludido normativo em matéria arrendatícia, pois o mesmo encerra um princípio geral do direito das obrigações, rectius, um princípio geral da resolução dos contratos.
Dispõe o referido normativo que “[O] credor não pode, todavia, resolver o negócio, se o não cumprimento parcial, atendendo ao seu interesse, tiver escassa importância”.
Assim, de acordo com tal comando normativo, se aquilo que o contraente deixou de satisfazer apresentar para o outro escassa importância, a faculdade de resolução deve considerar-se excluída, sendo que, a este propósito, a doutrina pátria[8] tem enfatizado que esta disposição se funda no princípio geral, expresso no nº 2 do art. 762º, de que as partes, no cumprimento da obrigação, assim como no exercício do direito correspondente, devem proceder de boa-fé.
Daí que, em concretização desse princípio, se venha entendendo[9] que o nº 2 do art. 802º constitui uma válvula de segurança que obsta à resolução do contrato sempre que, sem embargo da verificação técnica de um fundamento legal de resolução, a parcela não cumprida da prestação tiver um carácter insignificante, na perspectiva do senhorio, sendo que a afirmação dessa “escassa importância” deve ser aferida por um critério objectivo: a gravidade do incumprimento resultará da projecção do concreto inadimplemento (da sua natureza e da sua extensão) no interesse actual do credor, ou seja, deverá ser aferido pelas utilidades concretas que a prestação lhe proporciona ou proporcionaria.
Será esta a situação que os autos patenteiam?
Vejamos.
Como emerge do tecido fáctico apurado, em causa está o não pagamento pontual pela arrendatária dum diferencial de renda mensal que importa tão-somente na quantia de €37,80 (o que corresponde a pouco mais de 0,5% da respectiva renda mensal). E se é facto que tal situação perdurou cerca de um ano, certo é, também, que a ré passou a liquidar a renda já em conformidade com a actualização legal, sendo que o montante total em dívida desses meses de mora se cifrou na quantia global de €472,70, quantia essa que desde janeiro de 2018 se encontra depositada e acrescida da “penalização” de 50%.
Nesse contexto, afigura-se-nos, pois, que o inadimplemento da arrendatária deve ser qualificado de “escassa importância”, nada se indiciando nos autos - a autora não o alegou, sequer - que permita afirmar que aquela, por qualquer forma, tivesse em mente qualquer propósito de fraude ou intenção provocatória da senhoria (justificando, antes o seu ato, por “lapso de organização”), do mesmo modo que não vem alegada factualidade capaz de demonstrar que o não recebimento do valor da parte das prestações incumpridas a tenha prejudicado de forma minimamente relevante.
Destarte, a impetrada resolução do ajuizado contrato de arrendamento, com fundamento num incumprimento que reputamos de “escassa importância”, seria totalmente injustificada, de acordo com os ditames da boa-fé, surgindo assim tal sanção como manifestamente desproporcionada face ao incumprimento temporário registado.
A presente apelação terá, pois, de improceder.
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V- DISPOSITIVO
Pelos fundamentos acima expostos, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação em julgar a apelação improcedente, confirmando-se a decisão recorrida, ainda que com fundamentação não inteiramente coincidente.
Custas a cargo da apelante (art. 527º, nºs 1 e 2).
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Porto,21.01.2019
Miguel Baldaia de Morais
Jorge Seabra
Fátima Andrade
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[1] Diploma a atender sempre que se citar disposição legal sem menção de origem.
[2] Pelo que, atentas as implicações do princípio da imutabilidade da causa de resolução que rege nesta matéria, apenas essa materialidade pode ser considerada para efeito de apreciação da justeza do invocado fundamento resolutivo – cfr., sobre a questão, JOANA FERRAJOTA, in A resolução do contrato sem fundamento, 2015, págs. 37 e seguintes e FERREIRA PINTO, in Contratos de Distribuição, 2013, págs. 407 e seguintes.
[3] Publicado no Diário da República, II série de 22.09.2016.
[4] Em conformidade com este preceito legal, a mora no pagamento da renda somente será juridicamente relevante após o decurso do “prazo de oito dias a contar do seu começo”, sendo entendimento pacífico que o atraso, por oito dias, nesse pagamento não importa consequências indemnizatórias ou resolutivas – cfr., por todos, MENEZES LEITÃO, Arrendamento Urbano, 3ª ed., pág. 57.
[5] Neste mesmo sentido, cfr., inter alia, na doutrina, SOARES MACHADO/REGINA PEREIRA, in Arrendamento Urbano – Novo regime do arrendamento urbano comentado e anotado, 2008, págs. 55 e seguinte, BATISTA DE OLIVEIRA, in A resolução do contrato no novo regime do arrendamento urbano – Causas de resolução e questões conexas, 2007, págs. 89 e seguintes e GRAVATO MORAIS, in Falta de pagamento da renda no arrendamento urbano, 2009, págs. 182 e seguintes; na jurisprudência, acórdãos desta Relação de 20.11.97 (processo nº 9730956) e de 17.04.2008 (processo nº 0831655), acessíveis em www.dgsi.pt.
[6] Publicado na CJ, ano XXI, tomo 4º, pág. 114.
[7] Em resultado deste posicionamento mostra-se, por isso, prejudicado o conhecimento da questão que a apelante igualmente suscita nas conclusões recursivas a respeito na inaplicabilidade da faculdade de o arrendatário fazer caducar o direito de resolução quando o fundamento resolutivo invocado se integre na fattispecie do nº 4 do art. 1083º, questão jurídica essa que não tem obtido uma resposta unívoca, como nos é dado nota por ALBERTINA PEDROSO, in A resolução do contrato de arrendamento no novo e novíssimo regime do arrendamento urbano, na revista JULGAR, nº 19 (2013).
[8] Cfr., inter alia, PIRES DE LIMA e ANTUNES VARELA, in Código Civil Anotado, vol. II, 3ª ed. revista e actualizada, pág. 61 e BRANDÃO PROENÇA, in Lições de cumprimento e não cumprimento das obrigações, 2011, pág. 292.
[9] Assim, na jurisprudência, entre outros, acórdãos desta Relação de 13.10.2009 (processo nº 2721/06.TJPRT.P1), de 23.04.2007 (processo nº 0751620) e de 19.12.2006 (processo nº 0622668), acessíveis em www.dgsi.pt; na doutrina, GRAVATO MORAIS, ob. citada, pág. 216, onde justifica o recurso a essa regra, entre outros argumentos, pelo facto de a consequência da resolução para o arrendatário – o despejo do locado – ser desequilibrada perante o pouco relevante incumprimento.