Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
108459/13.3YRPRT.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: CORREIA PINTO
Descritores: COMPRA E VENDA DE VEÍCULO
ALTERAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
PAGAMENTO
PRESCRIÇÃO PRESUNTIVA
Nº do Documento: RP20150427108459/13.3YRPRT.P1
Data do Acordão: 04/27/2015
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Indicações Eventuais: 5ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - A alteração da matéria de facto pela Relação deve ser realizada ponderadamente, só devendo ocorrer se, do confronto dos meios de prova indicados pelo recorrente com a globalidade dos elementos que integram os autos, se concluir que tais elementos probatórios, evidenciando a existência de erro de julgamento, sustentam, em concreto e de modo inequívoco, o sentido pretendido pelo recorrente.
II - A presunção de pagamento em que se funda a prescrição presuntiva pode ser ilidida por confissão do devedor, podendo a confissão judicial ser tácita, o que se verifica quando o réu, ouvido em audiência de julgamento, aí descreve factos incompatíveis com o que alegou na respectiva contestação.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo n.º 108459/13.3YIPRT.P1
5.ª Secção (Cível) do Tribunal da Relação do Porto

Sumário (artigo 663.º, n.º 7, do Código de Processo Civil):
I- A alteração da matéria de facto pela Relação deve ser realizada ponderadamente, só devendo ocorrer se, do confronto dos meios de prova indicados pelo recorrente com a globalidade dos elementos que integram os autos, se concluir que tais elementos probatórios, evidenciando a existência de erro de julgamento, sustentam, em concreto e de modo inequívoco, o sentido pretendido pelo recorrente.
II- A presunção de pagamento em que se funda a prescrição presuntiva pode ser ilidida por confissão do devedor, podendo a confissão judicial ser tácita, o que se verifica quando o réu, ouvido em audiência de julgamento, aí descreve factos incompatíveis com o que alegou na respectiva contestação.

Acordam, na Secção Cível do Tribunal da Relação do Porto:
I)
Relatório
1. B…, Lda., intentou procedimento de injunção contra C…, ambos melhor identificados nos autos.
1.1 A requerente alega que, no exercício da sua actividade de manutenção, reparação e comercialização de veículos automóveis, vendeu ao requerido um veículo automóvel, mediante o preço acordado de € 19.440,00, a pagar em 36 prestações mensais e sucessivas no valor de € 540,00 cada uma; o requerido apenas procedeu ao pagamento das primeiras vinte e duas prestações, no valor global de € 11.880,00.
Reclama o pagamento da quantia de € 7.560,00, acrescida de juros de mora vencidos no montante de € 2.744,64 e de juros vincendos, à taxa legal comercial, bem como o pagamento das despesas e encargos processuais a que a sua cobrança coerciva dê lugar.
1.2 O requerido veio deduzir oposição, começando por invocar, a título de excepção, a prescrição presuntiva a que se reporta o artigo 317.º, alínea b), do Código Civil, alegando para o efeito que o pagamento do veículo foi efectuado por meio de vários cheques e em numerário, respeitando o plano de pagamento previamente acordado com a requerente, em 36 prestações mensais, iguais e sucessivas, de 540,00€ cada, sendo o pagamento da primeira prestação em 10 de Abril de 2007 e da última em 10 de Março de 2010, tendo a requerente ficado com a obrigação de enviar ao requerido o respectivo recibo, o que até hoje nunca aconteceu e que a venda do veículo não se destinou ao seu exercício industrial ou comercial, nem ele é comerciante.
Alegou depois que nada deve à requerente e concluiu afirmando que a oposição deve ser julgada procedente, e em consequência ser julgada procedente e provada a excepção peremptória da prescrição e ser o requerido absolvido do pedido; assim não se entendendo, a acção deve ser julgada improcedente, por não provada, com a consequente absolvição do pedido.
1.3 No prosseguimento do processo e concluída a audiência de discussão e julgamento, o tribunal proferiu sentença, onde respondeu à matéria de facto e explicitou a respectiva motivação, posto o que decidiu que operava a prescrição presuntiva e, em consequência, julgou improcedente o pedido e dele absolveu o requerido.
2.1 A requerente, inconformada com a decisão proferida, veio interpor o recurso que aqui se aprecia, formulando as seguintes conclusões (transcrição integral):
«1. No que respeita à base factual da decisão, merecem censuras as respostas dadas pelo tribunal a quo aos pontos 4) e 5) da Matéria de Facto, devendo tais pontos ser reapreciados e modificados pelo Venerando Tribunal da Relação, nos termos do artigo 662.º do CPC.
2. De facto, em face da prova produzida, nomeadamente a prova testemunhal, não poderia o tribunal a quo ter dado como provado que «o Réu não é comerciante» e que «o veículo automóvel se destinou ao uso particular do Réu».
3. As respostas dadas pelo tribunal aos quesitos supra identificados não têm qualquer fundamento face aos elementos da prova trazidos ao processo, sendo que as provas recolhidas impunham uma decisão de sentido inverso, isto é, que fosse dado como provado que «O Réu é comerciante» e «O veículo automóvel se destinou à atividade comercial do Réu».
4. Por outro lado, a prova produzida em audiência impunha que dessem como provados outros factos com relevo para a apreciação da causa, a saber: «Por três vezes pelo menos, durante o ano de 2011, o Réu reuniu-se com a Autora no sentido de acordar com ela a forma de pagamento, entre outras quantias, do remanescente de € 7.500,00 (sete mil e quinhentos euros) do preço do referido automóvel (A3)», e «O Réu não pagou o remanescente do preço do identificado automóvel (A3), no valor de € 7.560,00 (sete mil quinhentos e sessenta euros)».
5. Assim, o presente recurso em matéria de facto funda-se em erro na apreciação da prova produzida e a sua procedência importa a alteração da base factual da decisão nos termos supra referidos.
6. Em relação ao ponto 5) da Matéria de Facto, note-se que as testemunhas arroladas pela recorrente, apesar de reconhecerem que o recorrido era sócio gerente de uma empresa, afirmaram perentoriamente, sem dúvidas ou hesitações, que o mesmo, paralelamente, se dedicava, com caráter de habitualidade, a negócios de compra e venda de automóveis, camiões e máquinas industriais, à margem da atividade lucrativa da dita sociedade, servindo-se para o efeito das instalações da referida sociedade.
7. As referidas afirmações das testemunhas ouvidas não assentaram em suposições ou meras convicções – como indevidamente interpretado e entendido pelo tribunal a quo –, mas antes em concretos factos dos quais tais testemunhas tinham conhecimento direto, por tal lhe ter sido comunicado diretamente pelo recorrido e/ou por terem intervindo em tais negócios.
8. Em concreto, as testemunhas declararam ter conhecimento direto dos seguintes negócios celebrados pelo Réu como comerciante de automóveis e máquinas industriais: a compra ao Autor dos veículos com a matrícula SG e do discutido nos autos (A3), a venda (ou proposta de venda) dos automóveis QM e ZE, a venda de duas máquinas escavadoras, a venda dos camiões comprados na insolvência e da sua venda posterior, o subarrendamento de parte do armazém.
9. Assim, a testemunha D… afirmou que o recorrido era um comerciante nato, procurando explorar e obter ganhos em todas as oportunidades de negócio que lhe surgiam, usando para o efeito o armazém da sua sociedade, ora vendendo máquinas – tendo-lhe inclusivamente esta própria testemunha comprado uma por € 12.500,00, assim como angariado compradores para outras máquinas do recorrido –, ora vendendo camiões e gruas, ora subarrendando parte do armazém que a sociedade dispunha, enfim, tudo que lhe aparecesse e que lhe permitisse obter ganhos à margem da sociedade de que era gerente.
10. As declarações desta testemunha foram corroboradas pelo depoimento de E…, que tinha conversas de negócios com o recorrido, tendo-lhe este por diversas vezes dado a conhecer os negócios que tinha em mãos à margem das empresas de que era gerente.
11. A testemunha F… revelou também conhecimento direto de concretos negócios, respeitantes à venda de duas máquinas, ao negócio de camiões e à compra, venda e retoma de veículos automóveis, os quais não podem ser vistos como oportunidades meramente ocasionais.
12. Para além do mais, conforme foi admitido pelo próprio recorrido em depoimento de parte, o pagamento de algumas prestações do preço do carro aqui em causa foi feito através de cheques da própria sociedade de que era sócio-gerente e outros através de cheques particulares de terceiros passados à ordem da sociedade e depois endossados, o que demonstra a existência de fluxos financeiros entre a sociedade e o sócio, indiciando que também entre eles, isto é, entre o réu e a própria sociedade de que era gerente, existiam negócios.
13. Acresce que as próprias testemunhas arroladas pelo recorrido admitiram terem visto nas instalações do Réu camiões que não pertenciam à sociedade G…, não sendo verosímil que esses camiões e máquinas de grandes dimensões se encontrassem estacionados a título de favor nessas instalações como quiseram fazer crer para iludir o tribunal!
14. Em reforço da convicção de que o Réu é comerciante, a testemunha H… declarou que ocupa um contentor nas instalações do Réu, confirmando, assim, a existência de subarrendamentos, como afirmado pela testemunha D….
15. Pelo que, perante a totalidade da prova produzida em audiência, ter-se-á que concluir que este era comerciante, que à margem da qualidade de sócio gerente da sociedade G…, e em desrespeito ao preceituado no artigo 253.º, do Código Comercial, exercia comércio em nome próprio e por sua conta.
16. Embora os gerentes, auxiliares de comércio e caixeiros em princípio não sejam comerciantes enquanto tais, nada obsta a que os mesmos «possam adquirir essa qualidade quando, em desrespeito ao preceituado no art. 253.º exerçam o comércio em nome próprio e por sua conta» (Ac. do STJ de 11/10/2007, proc. n.º 07B3336, disponível em www.dgsi.pt).
17. Assim, decidiu mal o tribunal a quo ao dar como provado que o réu não era comerciante, impondo-se antes conclusão contrária, isto é, que se desse como provado que o réu era comerciante.
18. Em relação ao ponto 4) da Matéria de Facto, incorreu também o tribunal a quo em erro na apreciação e valoração da prova produzida ao ter dado como provado que o veículo automóvel se destinou ao uso particular do recorrido.
19. Com efeito, quer a testemunha D…, quer a testemunha F…, quer mesmo a testemunha E… foram unânimes em afirmar que o recorrido se fazia circular no referido veículo diariamente na sua atividade, incluindo quando se deslocava ao armazém da Autora para tratar de negócios ou mesmo em almoços de negócios.
20. Não existindo quaisquer razões – e tanto assim é que o tribunal a quo não as indicou – para não crer na veracidade de tais afirmações, nem meios de prova que as infirmassem.
21. Por seu turno, as testemunhas indicadas pelo recorrido insistiram que a referida viatura era da filha do recorrido, sendo que essas declarações ― ainda que pudessem ser consideradas credíveis, o que não se admite ― não permitem dar como provado aquilo que o tribunal consignou no ponto 4) da Matéria de Facto, isto é, que o veículo automóvel se destinou ao uso particular do réu (e não da filha dele).
22. E isto porque uma coisa é o automóvel destinar-se ao uso (profissional ou pessoal) a filha e outra é destinar-se ao uso particular o Réu.
23. As declarações das testemunhas que afirmaram tratar-se de um veículo da filha mostram-se incongruentes com a tese apresentada pelo próprio Réu, que na sua oposição nunca alegou ter adquirido o veículo para oferecer à filha ou que o veículo pertencia à filha, mas antes que se tratava de uma viatura adquirida para si, para uso particular, destinando-a a efetuar deslocações juntamente com a sua família ― tese que não foi confirmada por nenhuma testemunha.
24. Finalmente, as referidas testemunhas confirmaram que viam o réu a circular no automóvel em causa, sendo que o viam no estaleiro e em atividades profissionais ― que era o tipo de contactos que mantinham com ele ―, e já não em férias, passeios, atividades recreativas ou outras de índole pessoal.
25. Assim, competindo ao Réu o ónus da alegação e prova de que o veículo se destinava ao seu uso particular e não tendo sido feita qualquer prova desse facto, devia o mesmo ter sido dado como não provado, concluindo-se que o automóvel se destinava à atividade comercial do Réu, atividade essa de compra e venda de automóveis e máquinas industriais, exercida com caráter de habitualidade à margem da sociedade de que ele é titular.
26. Na verdade, exclui-se do âmbito da prescrição presuntiva «tudo o que se prende com a actividade comercial do comerciante; ou seja, não só a aquisição de produtos para revenda, ou transformação e venda, no âmbito da sua actividade, mas para tudo o que com ela esteja intimamente conexo. Não se vê por que razão se há de fazer uma interpretação restritiva da lei de modo a só incluir o débito do comerciante pela aquisição de produtos que destina a revenda e não já os que destina ao suporte dessa mesma actividade e sem os quais ela não seria possível, designadamente as instalações, máquinas, material de escritório, viaturas, etc. Comprar um veículo comercial para o exercício do comércio não é o mesmo que comprar um automóvel para uso pessoal e familiar» (Acórdão do TRC de 15/02/2005, proc. n.º 3410/04, disponível em www.dgsi.pt).
27. Em face de tudo o quanto se deixa supra exposto, muito mal andou o tribunal a quo ao dar como provado o constante do ponto 4), já que as provas impunha que lhe fosse dada resposta contrária à que lhe foi dada, isto é, impunham que se desse como provado que «o veículo automóvel se destinou à atividade comercial do réu».
28. Para além do que antecede, fluiu também da prova produzida em audiência que em datas não concretamente apuradas, mas seguramente durante o ano de 2011, a Autora e o Réu procuraram chegar a um entendimento extrajudicial a respeito da parte não liquidada do preço do veículo automóvel em discussão neste autos e de um outro discutido no processo que corre termos com o n.º 108407/13.0 YIPRT, pelo 1.º Juízo Cível do Tribunal de Comarca de Vila do Conde.
29. No decurso dessas negociações, o Réu reconheceu que devia à Autora, por conta do preço do automóvel em causa nos presentes autos, a quantia de € 7.500,00 (sete mil e quinhentos euros), tendo entregado nas instalações da Autora, em três ocasiões distintas, documentos manuscritos de onde constam contas, discriminando valores em dívida pelo Réu à Autora, a saber: € 7.500,00, relativos ao A3 (discutido nestes autos); € 980,00, de uma viatura SG, e outros € 7.500,00, referentes a um automóvel QM (ambos discutidos no processo n.º 108407/13.0 YIPRT, do 1.º Juízo Cível).
30. Assim, deverá aditar-se aos factos provados o seguinte: «Por três vezes pelo menos, durante o ano de 2011, o Réu reuniu-se com a Autora no sentido de acordar com ela a forma de pagamento, entre outras quantias, do remanescente de € 7.500,00 (sete mil e quinhentos euros) do preço do referido automóvel (A3)».
31. Para prova desse facto, considerem-se os documentos constantes dos autos com os n.ºs 8, 9 e 10 (cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido) e ainda os depoimentos das testemunhas D… e F….
32. Por outro lado, ainda que pudesse ter-se como verificados os factos que integram a presunção de cumprimento, tal presunção deveria ter-se como ilidida pela prova de que o montante peticionado pela Autora ainda não foi pago pelo Réu e, consequentemente, ter-se aditado à matéria de facto um item com a seguinte redação: «O Réu não pagou o remanescente do preço do identificado automóvel (A3), no valor de € 7.560,00 (sete mil quinhentos e sessenta euros)».
33. Na verdade, a dívida abrangida por uma presunção prescritiva considera-se confessada a dívida «se o devedor (…) praticar em juízo atos incompatíveis com a presunção de cumprimento» (art. 314.º do CC).
34. Ora, no caso em apreço, a conduta processual do Réu globalmente considerada é incompatível com a presunção de pagamento, tanto mais que a tese apresentada em sede de articulados (oposição) é contraditória com as declarações por si prestadas em juízo (depoimento de parte).
35. Em sede de oposição, deduzida em 30/09/2013, o Réu alegou que «procedeu ao pagamento integral do valor pelo qual se realizou a venda do veículo» (art. 2.º), pagamento esse que terá sido efetuado «por meio de vários cheques e numerário, nas datas previamente estipuladas» (art. 3.º), ou seja, respeitando o plano de pagamento acordado e dado como provado de «36 prestações mensais e sucessivas no valor de € 540,00 (quinhentos e quarenta euros), vencendo-se a primeira no dia 10/04/2007 e as demais em igual dia dos meses subsequentes» (ponto 3) dos factos provados). E mais alegou, ainda em oposição, que o pagamento da última prestação, no referido valor de € 540,00 (quinhentos e quarenta euros), ocorreu em 10/03/2010 (art. 10.º da oposição).
36. Em contrapartida, tendo sido ouvido em declarações de parte na primeira sessão da audiência, em 02/04/2011 (escassos 7 meses depois da oposição), o Réu já afirmou que afinal o pagamento do preço não respeitou o plano de pagamento prestacional, sendo que a uma dada altura, por volta de fevereiro de 2009, liquidou de uma vez só, em numerário, o remanescente do preço ainda em dívida e que rondaria os 5 a 6 mil euros.
37. Não existe coincidência no meio de pagamento (cheques/numerário), nem no momento (último pagamento em Fevereiro de 2009 ou Março de 2010?), nem tão-pouco no modo como terá sido efetuado (em prestações ou valor global entregue de uma só vez?).
38. Ou seja: num curto período de tempo, pouco mais de meio ano, o Réu apresentou em juízo duas versões antagónicas e incompatíveis em relação à forma e ao momento temporal da liquidação do preço da viatura, sem que apresente uma razão válida ou justificativa de tão repentina alteração da versão dos factos por si apresentada.
39. A apresentação em juízo, pelo Réu, de duas versões contraditórias sobre os mesmos factos é incompatível com a presunção de pagamento, importando que a dívida se tenha por confessada.
40. Aliás, é pouco crível que se realmente tivesse oferecido o pagamento do referido valor global de 5 ou 6 mil euros em numerário não tivesse também exigido um recibo ou qualquer comprovativo de entrega de tal quantia, tanto mais que quando efetuava o pagamento das prestações mensais, de valor muito mais reduzido, o Réu nunca se esquecia de pedir tal comprovativo de pagamento.
41. A suposta confiança, resultante de se conhecerem há mais de trinta anos, não era suficiente para que o Réu dispensasse o comprovativo de pagamento das prestações mensais de € 540,00 (mesmo quando feito em cheque), mas já o era no pagamento em numerário de € 5.000,00 / € 6.000,00?!!!!
42. Em face da alteração da matéria factual que se requer, a solução jurídica para o diferendo seria manifestamente diferente, devendo concluir-se no sentido da procedência total da ação e da condenação do Réu no pedido.
43. Desde logo, havendo prova de que o Réu é comerciante e destinou o automóvel adquirido ao exercício do seu comércio, a situação deixa de poder subsumir-se à prescrição presuntiva do artigo 317.º, al. b), do CC, passando a competir ao Réu, nos termos gerais, a prova do cumprimento (art. 342.º, n.º 2, do CC) ― prova essa que o Réu nem tentou sequer fazer, limitando-se a invocar a prescrição sem sequer ter apresentado quaisquer documentos ou prova testemunhal que atestassem quaisquer pagamentos (o que não deixa de ser sintomático!!!).
44. Por outro lado, ainda que não se pudesse dar como provado que o Réu é comerciante e destinou o automóvel ao exercício do seu comércio, sempre uma correta interpretação da norma do artigo 317.º, al. b), do CC, atenta a sua teleologia, afastaria a aplicabilidade da presunção no caso em apreço.
45. Com efeito, a razão de ser da prescrição presuntiva é a necessidade de proteger o comprador de bens nos setores de atividade em que é normal o pagamento imediato ou em curto prazo, não pedindo ou não guardando o comprador recibo de quitação, por se tratar de prestações ligadas às necessidades do dia-a-dia, de serviços ou trabalhos cujo pagamento costuma ser feito sem recibo (cfr. Ac. STJ de 19.11.06, CJ/STJ, 2006, III-136, e Ac. do TRP de 20/06/2012, 575/10.6T2AND, disponível em www.dgsi.pt).
46. Por isso, «considerando o pensamento normativo subjacente ao estabelecimento das prescrições presuntivas, deve ter-se por arredada a aplicação dos normativos que as prevêem nas situações em que não estão presentes os fundamentos daquelas, seja porque não é usual pagamento imediato (ou em prazo curto), seja porque não é usual o pagamento sem quitação e é regra a conservação e guarda do recibo comprovativo do pagamento (quando, pelas mais variadas razões, o devedor ao cumprir tem o cuidado de se munir, conservando-o, o recibo de quitação) (Ac. do TRP de 23/02/2012, proc. n.º 154791/10.9YIPRT, disponível em www.dgsi.pt).
47. Ora, a compra de uma automóvel não é manifestamente um dos casos de aquisição de bens do quotidiano, que se destinam a ser pagos de imediato e sem se pedir recibo de quitação.
48. Pelo contrário, trata-se de uma compra de um bem de valor avultado (€ 19.440,00), que as partes acordaram dever ser liquidado durante três anos, sendo que em todas as prestações foi dado ao Réu pela Autora um comprovativo de pagamento.
49. Assim, mesmo sem a prova de que o Réu era comerciante e de que o automóvel se destinava ao exercício do seu comércio, deveria ter-se a situação como insuscetível de integrar a previsão do artigo 317.º, al. b), do CC (como tem sido entendimento jurisprudencial uniforme a respeito dos serviços de construção civil e empreitada de imóveis, que se entende não caberem na previsão da norma).
50. Por outro lado ainda, a sentença incorreu em violação do preceituado nos artigos 325.º e 356.º do CC, porquanto ignorou que, com o reconhecimento da dívida pelo Réu, em 2011, o prazo prescricional se interrompeu, iniciando a contagem de novo prazo.
51. Na verdade, a doutrina e a jurisprudência têm-se pronunciado pela aplicabilidade às prescrições presuntivas das regras de suspensão e interrupção da prescrição, sendo que a interrupção inutiliza para a prescrição todo o tempo decorrido anteriormente, começando a correr o novo prazo a partir do acto interruptivo (art. 326.º do CC).
52. A prescrição é interrompida, entre o mais, pelo reconhecimento do direito, efectuado perante o respectivo titular por aquele contra quem o direito pode ser exercido (art. 325.º do CC), podendo esse reconhecimento ser feito por escrito ou verbalmente (art. 219.º do CC).
53. Nos presentes autos, encontra-se provado que, em 04/04/2007, o Réu adquiriu um veículo automóvel à Autora, pelo preço de € 19.440,00 (dezanove mil quatrocentos e quarenta euros), a liquidar em 36 prestações mensais e sucessivas no valor de e 540,00 cada uma (factos provados n.ºs 2 e 3).
54. E, em virtude do depoimento das testemunhas D…, F… e E… supra transcritos na parte relevante, deve dar-se também como provado que o Réu deixou de cumprir no início do ano de 2009, sendo que durante o ano de 2011 as partes negociaram formas de pagamento do crédito da Autora, tendo o Réu feito propostas concretas de pagamento que passavam pela entrega de uma carrinha Mercedes ZE, a que pretendia fosse atribuído o valor de € 20.000,00 (vinte mil euros) ― conforme se alcança não só do depoimento das ditas testemunhas como também dos documentos juntos aos autos em sede de audiência de discussão e julgamento com os n.º 8, 9 e 10.
55. Assim sendo, o prazo prescricional há-de ter-se por interrompido no ano de 2011 e retomado só no final desse ano, com a consequência de que, aquando da entrada em juízo da PI, em 25/07/2013, o referido prazo ainda não se havia completado.
56. Em síntese, o tribunal a quo deveria ter concluído que não se aplica in casu a prescrição presuntiva invocada pelo recorrido, atenta a circunstância de o Réu ser comerciante e ter destinado o automóvel ao exercício da sua atividade, e se tratar de uma área de atividade em que é vulgar o comprador exigir recibo, inexistindo razão suficiente que justifique uma tutela especial do Réu, enquanto devedor.
57. E mesmo que se considerasse estarmos perante caso de aplicabilidade da prescrição presuntiva, sempre a presunção de cumprimento dela resultante deveria ter-se por afastada já que: em virtude do reconhecimento da dívida pelo Réu, prazo prescricional interrompeu-se em 2011, tendo-se reiniciado novo prazo no final de 2011; o Réu praticou em juízo factos incompatíveis com a presunção de cumprimento, devendo dar-se como confessada a dívida.»
Termina afirmando que o recurso deverá ser julgado totalmente procedente e, consequentemente, deverá ser revogada a sentença proferida em primeira instância e, em sua substituição, proferido acórdão que julgue a acção procedente e condene o réu nos exactos termos requeridos na petição inicial.
2.2 O requerido veio responder, concluindo nos seguintes termos:
«1ª. O recurso interposto não tem condições de procedibilidade, sendo inatacável, de facto e de Direito, a mui douta e prudente decisão proferida e todos os fundamentos em que a mesma se estriba.
2ª. Na verdade, a decisão do julgador encontra-se devidamente fundamentada e justificada quanto à opção tomada acerca do convencimento que os meios de prova criaram quanto ao sentido da decisão da matéria de facto, o que a torna inatacável, visto ter sido proferida em obediência à lei que impõe o julgamento segundo a livre convicção do julgador.
3ª. Tal será o bastante para que, inexistindo qualquer desconformidade entre os elementos de prova em que se fundou a decisão e a própria decisão, não exista qualquer fundamento para a alteração da decisão sobre a matéria de facto pela via do presente recurso.
4ª. Inexiste qualquer flagrante desconformidade entre os elementos de prova e a decisão proferida, assentando antes os fundamentos do recurso interposto na mera pretensão de fazer relevar prova testemunhal pela qual o sentido da decisão poderia ser diverso, mas que o tribunal a quo desconsiderou, fazendo-o, no entanto, justificadamente.
5ª. Não existe, pois, qualquer erro de julgamento da matéria de facto, antes a clara manifestação da livre convicção do julgador e da liberdade de julgamento, que não poderá ser sindicada em sede de recurso.
6ª. A Recorrente pretende, com o recurso interposto, obter a alteração da matéria de facto, valendo-se de esparsos excertos de depoimentos testemunhais, sem atender aos depoimentos no seu todo de todas as testemunhas, como teve oportunidade de os apreciar a Mmª Juiz a quo.
7ª. Não há qualquer justificação minimamente séria nos argumentos da Recorrente que permitam pôr em causa tal decisão, não passando o recurso interposto de uma esforçada mas inconsistente tentativa de valorar depoimentos testemunhais cirurgicamente escolhidos para a sua conveniência, que não tiveram qualquer mérito nos vários depoimentos de que o Tribunal se serviu para sustentar a convicção a que chegou.
8ª. A Recorrente, com a mera transcrição parcial de alguns dos depoimentos das testemunhas que indica, procura obter a alteração da resposta à matéria de facto, no que respeita ao art.º 4.º e 5.º da Matéria de Facto, em clara oposição com o que foi valorado pelo Tribunal, designadamente, os depoimentos das outras testemunhas, bem como das declarações prestadas pelo Réu ao abrigo do disposto no n.º 1 do artigo 466.º do Código Processo Civil.
9ª. A garantia do duplo grau de jurisdição da matéria de facto não subverte o princípio da livre apreciação da prova (consagrado no art. 655.º n.º 1, do CPC: “o juiz aprecia livremente as provas, decidindo segundo a sua prudente convicção acerca de cada facto”) que está deferido ao tribunal da primeira instância, sendo que, na formação da convicção do julgador não intervêm apenas elementos racionalmente demonstráveis, já que podem entrar também elementos que em caso algum podem ser importados para a gravação vídeo ou áudio, pois que a valoração de um depoimento é algo absolutamente imperceptível na gravação/transcrição.
10ª. A admissibilidade da alteração por parte do Tribunal da Relação, mesmo quando exista prova gravada, funcionará apenas nos casos para os quais não exista qualquer sustentabilidade face à compatibilidade da resposta com a respectiva fundamentação, o que nitidamente não é o caso.
11ª. Sempre se dirá que, não corresponde à verdade que da prova produzida em audiência de julgamento, tenha resultado que o Recorrido é comerciante e que tenha destinado o veículo objecto dos presentes autos à actividade comercial deste.
12ª. O facto de ser a filha do Recorrido quem utilizava principalmente o veículo (facto este meramente instrumental), não é contraditório com o alegado por este de que o veículo se destinava a seu uso particular e da sua família.
13ª. Nem resulta de nenhum depoimento que o veículo marca Audi A3 tenha sido comprado à Recorrente pelo Recorrido com o objectivo de o revender.
14ª. Não resulta dos autos, nem que o Recorrente seja um comerciante no sentido visado pelo art.º 13.º do Código Comercial e acolhido no art.º 317.º, b), do Código Civil, isto é, alguém que exerça a título profissional uma determinada actividade económica com fins lucrativos, nem que a venda do veículo automóvel em causa no processo se inscreva no âmbito dessa actividade.
15ª. São incorrectas, as alegações e conclusões da Recorrente, de que esta e o Recorrido, procuraram chegar a um entendimento extrajudicial a respeito da parte não liquidada do preço do veículo automóvel em discussão nestes autos e de um outro que corre seus termos sob o n.º 108407/13.0YIPRT do primeiro juízo cível da comarca de Vila do Conde.
16ª. Bem como são incorrectas as alegações e conclusões de que o Recorrido reconheceu que devia à Recorrente a quantia de 7.500,00€, e que em 3 ocasiões distintas entregou nas instalações da Autora, documentos manuscritos de onde constam discriminados valores em dívida pelo Réu à Autora, a saber 7.500,00€ relativos ao Audi A3.
17ª. Nunca o Recorrido em audiência de julgamento reconheceu a existência de tal dívida, nem reconheceu que os documentos a que a Recorrente faz referência sejam do seu punho ou da sua autoria, mais alegou desconhecer os mesmos, bem como nunca sugeriu qualquer acordo extrajudicial para pagamento de parte do preço do veículo.
18ª. Não resulta de nenhum depoimento, que o Recorrido se tenha reunido com a Recorrente durante o ano de 2011, com vista a um entendimento extrajudicial.
19ª. As testemunhas D… e F…, nunca referem que tenha sido o Recorrido a comparecer nas instalações da Recorrente, antes sim o filho daquele.
20ª. Dos documentos juntos em audiência de julgamento pela Recorrente, resultou desta mesma audiência que os documentos n.º 8, 9 e 10, que a letra constante nos mesmos não é do punho do Recorrido, e que tais documentos não são da sua autoria.
21ª. Sendo assim, os mesmos são inócuos para os efeitos pretendidos pela Recorrente, nomeadamente não tendo qualquer valor para efeito confessório.
22ª. O Recorrido não praticou em juízo qualquer acto incompatível com a presunção de cumprimento invocada e, designadamente, não impugnou a origem da dívida; afirmou, isso sim, que “…já procedeu ao pagamento integral do valor pela qual se realizou a venda do mencionado veículo” (art.º 2.º da Oposição).
23ª. O facto do Recorrido ter transmitido em audiência de julgamento que no ano de 2009 pagou tudo à Recorrente, não deve ser considerado um acto incompatível com a presunção do cumprimento, não resulta daí, nenhum acto confessório ou contraditório com a realização do pagamento integral do preço da compra do veículo.
24ª. Não existe qualquer interrupção do prazo prescricional, porquanto não existiu nem resultou provado de qualquer depoimento, que o Recorrido tenha sugerido no ano de 2011 qualquer acordo prestacional, ou que tenha comparecido em alguma reunião.
25ª. Porque era inadmissível a prova que não fosse por confissão (e o Recorrido não confessou, como resulta do depoimento de parte, nem praticou qualquer acto inconciliável com o seu pressuposto fundante), competia à Recorrente ilidir a presunção de pagamento, o que não foi feito.»
Termina afirmando que deverá ser julgado improcedente o recurso interposto, confirmando-se nos seus precisos termos a decisão recorrida.
3. Colhidos os vistos e na ausência de fundamento que obste ao conhecimento do recurso, cumpre apreciar e decidir.
As conclusões formuladas pela apelante definem a matéria que é objecto de recurso e que cabe aqui precisar; em face das concretas conclusões formuladas, impõe-se decidir, essencialmente, as seguintes questões:
● A impugnação da matéria de facto.
● A pretendida inoperância da prescrição presuntiva.
II)
Fundamentação
1. Factos relevantes.
1.1 Antes de avançar na apreciação das questões suscitadas em sede de motivação de recurso e com interesse para a decisão a proferir, importa considerar os factos que foram julgados provados e não provados na sentença que é objecto do presente recurso e que integralmente se transcrevem.
«Factos provados:
1. A autora é uma sociedade comercial por quotas que se dedica, com escopo lucrativo, à manutenção, reparação e comercialização de veículos automóveis.
2. No exercício da sua atividade comercial, em 04/04/2007, a autora vendeu ao réu, que lhe comprou, o veículo automóvel ligeiro de passageiros, de marca e modelo Audi A3 Diesel, com a matrícula ..-DD-...
3. O preço acordado para a venda foi de € 19.440,00 (dezanove mil quatrocentos e quarenta euros), a liquidar em 36 prestações mensais e sucessivas no valor de € 540,00 (quinhentos e quarenta euros), cada uma, vencendo-se a primeira no dia 10/04/2007 e as demais em igual dia dos meses subsequentes.
4. O veículo automóvel destinou-se ao uso particular do réu.
5. O réu não é comerciante.
*
De resto não se provaram quaisquer outros factos alegados, nomeadamente que o réu tenha ou não tenha pago a totalidade do preço acordado.»
1.2 A resposta à matéria de facto foi fundamentada nos termos que igualmente se transcrevem.
«O Tribunal formou a sua convicção com base no conjunto da prova produzida em audiência, sendo certo que os factos constantes dos pontos 1. a 3. estavam já assentes por acordo das partes.
No que respeita à qualidade de comerciante de depoimento de todas as testemunhas inquiridas resultou certo que o réu é ou será sócio gerente de uma sociedade comercial. As testemunhas arroladas pela autora afirmaram estarem convencidos que o réu “tinha negócios” de venda ou revenda de bens que exercia particularmente, à margem da actividade comercial da sociedade. No entanto, as testemunhas arroladas pelo réu afirmaram o contrário. Perante tal, e sendo certo que o depoimento das testemunhas da autora se basearam mais em convicções do que em factos concretos. Assim, e sendo certo que a noção de comerciante corresponderá àquele que faz da prática de actos de comércio profissão, entendo que não resultou provada essa qualidade do réu. Na verdade, de concreto e comum a toda a prova é apenas a sua actividade de sócio gerente, pelo que resultou provado não ser o réu comerciante e, até consequentemente, afectar a utilização do veículo a seu uso pessoal.
Nas declarações que prestou o réu confirmou o pagamento integral do preço à autora, pelo que, e perante a prescrição presuntiva invocada, não foi feita prova da falta de pagamento do preço.»
2. A impugnação da matéria de facto.
Impõe-se a este propósito determinar se há fundamento para a alteração da matéria de facto em conformidade – total ou parcial – com o que pretende a recorrente (estão em causa os parágrafos 4 e 5 da matéria de facto provada, cuja redacção a recorrente pretende que seja alterada).
Está igualmente em causa o aditamento de dois novos parágrafos, com o teor que a recorrente menciona.
2.1 Nos termos do artigo 662.º do Código de Processo Civil, na redacção resultante da Lei n.º 41/2013, de 26 de Junho, actualmente em vigor e já vigente nas datas em que se realizou a audiência de julgamento e naquela em que foi proferida a decisão do tribunal de 1.ª instância sobre a matéria de facto, esta deve ser alterada, em sede de recurso, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa; e pode ser alterada pela Relação se, tendo ocorrido gravação dos depoimentos prestados, tiver sido impugnada, nos termos do artigo 640.º, a decisão que com base neles foi proferida.
Importa ter presente a prevalência do princípio da liberdade de julgamento, consagrado no artigo 607.º, n.º 5, do Código de Processo Civil, nos termos do qual o juiz aprecia livremente as provas segundo a sua prudente convicção acerca de cada facto; a livre apreciação não abrange os factos para cuja prova a lei exija formalidade especial, nem aqueles que só possam ser provados por documentos ou que estejam plenamente provados, quer por documentos, quer por acordo ou confissão das partes.
Mas não invalida a convicção do tribunal o facto de não existir uma prova directa e imediata da generalidade dos factos em discussão, sendo legítimo que se extraiam conclusões em função de elementos de prova, segundo juízos de normalidade e de razoabilidade, ou que se retirem ilações a partir de factos conhecidos. Por isso, a alteração da matéria de facto pela Relação deve ser realizada ponderadamente, em casos excepcionais e pontuais; naquilo que aqui interessa, só deverá ocorrer se, do confronto dos meios de prova indicados pelo recorrente com a globalidade dos elementos que integram os autos, se concluir que tais elementos probatórios, evidenciando a existência de erro de julgamento, sustentam, em concreto e de modo inequívoco, o sentido pretendido pelo recorrente.
“A efectivação do segundo grau de jurisdição na apreciação da matéria de facto não implica a repetição do julgamento pelo tribunal de 2.ª instância – um novo julgamento, no sentido de produzir, ex novo, respostas aos quesitos da base instrutória –, mas, apenas, verificar, mediante a análise da prova produzida, nomeadamente a que foi objecto de gravação, se as respostas dadas pelo tribunal recorrido têm nas provas suporte razoável, ou se, pelo contrário, a convicção do tribunal de 1.ª instância assentou em erro tão flagrante que o mero exame das provas gravadas revela que a decisão não pode subsistir” – Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 21 de Junho de 2007 (disponível em www.dgsi.pt, processo 06S3540).
Assim, as disposições em causa não visam propriamente a concretização de um segundo julgamento que inclua a reapreciação global e genérica de toda a prova, particularmente, a globalidade da prova testemunhal, tendo antes em vista um segundo grau de apreciação da matéria de facto, de modo a colmatar eventuais erros de julgamento, nos concretos pontos de facto que o recorrente assinala, em confronto com os concretos elementos que entende sustentarem uma resposta diferente.
Impõe-se ao recorrente que, pretendendo recorrer da matéria de facto, cumpra certas exigências que, constando agora no artigo 640.º do Código de Processo Civil, na redacção da Lei n.º 41/2013, de 26 de Junho, já integravam o artigo 685.º-B do Código de Processo Civil na redacção anterior, em termos genericamente idênticos.
2.2 No caso dos autos e no que concerne à impugnação da matéria de facto provada, regista-se que a recorrente questiona o teor dos parágrafos 4 e 5, indicando os termos que entende correctos e pretende que se aditem dois novos parágrafos à matéria de facto.
Seguindo a ordem da própria recorrente, regista-se que no ponto 5 da matéria de facto provada consta que “o réu não é comerciante”, entendendo a recorrente que a prova produzida em audiência justifica que se julgue provado justamente o inverso, isto é, que “o réu é comerciante”.
O facto em questão – ser ou não ser comerciante – tem natureza manifestamente conclusiva, devendo resultar de outros concretos factos a demonstrar pelas partes intervenientes no processo.
A qualificação de pessoa singular como comerciante pressupõe, em relação à mesma, o exercício de uma actividade comercial ou a prática de actos de comércio de forma sistemática. Assim, a prática esporádica de actos comerciais não determina por si só a qualificação do seu autor como comerciante.
A caracterização que se deixa enunciada mostra-se condensada na definição do artigo 13.º, n.º 1, do Código Comercial, nos termos do qual são comerciantes as pessoas que, tendo capacidade para praticar actos de comércio, fazem deste profissão.
Importa também salientar que a qualificação de pessoa singular como comerciante não pressupõe o exercício exclusivo dos actos que a caracterizam, ou que seja essa a actividade preponderante; tem é que revestir natureza profissional, conforme decorre da qualificação antes enunciada, impondo-se o seu exercício em nome próprio. E não deixa de se verificar esta situação logo que se concretiza a abertura e a entrada em funcionamento de um estabelecimento comercial.
Na sentença recorrida, ao julgar-se provado que o réu não é comerciante, nos termos que antes se deixaram transcritos, ponderou-se que, sendo pacífico perante a generalidade dos depoimentos das testemunhas inquiridas que o mesmo é sócio gerente de uma sociedade comercial, essa caracterização não se estendia à generalidade dos depoimentos quanto à existência de negócios em nome próprio; assim, salienta-se que as testemunhas arroladas pela autora afirmaram estarem convencidos que o réu “tinha negócios” de venda ou revenda de bens que exercia particularmente, à margem da actividade comercial da sociedade; ponderou-se ainda que as testemunhas arroladas pelo réu afirmaram o contrário.
Contrariando a leitura feita pelo tribunal recorrido, a recorrente afirma que os depoimentos das testemunhas D…, F… e E…, que transcreve parcialmente, demonstram a efectiva qualidade de comerciante do réu, o que é confirmado pelo depoimento de parte do mesmo e pelo relato da testemunha H….
Relativamente à testemunha D…, a recorrente salienta que a mesma afirmou que o recorrido era um comerciante nato, procurando explorar e obter ganhos em todas as oportunidades de negócio que lhe surgiam, usando para o efeito o armazém da sua sociedade, ora vendendo máquinas – tendo-lhe inclusivamente esta própria testemunha comprado uma por € 12.500,00, assim como angariado compradores para outras máquinas do recorrido –, ora vendendo camiões e gruas, ora subarrendando parte do armazém que a sociedade dispunha. Pretende que as declarações desta testemunha foram corroboradas pelos depoimentos que foram prestados por E… – que tinha conversas de negócios com o recorrido, em que este por diversas vezes lhe deu a conhecer os negócios que tinha em mãos à margem das empresas de que era gerente – e por F… – que revelou conhecimento de concretos negócios, respeitantes à venda de duas máquinas, ao negócio de camiões e à compra, venda e retoma de veículos automóveis, os quais não podem ser vistos como oportunidades meramente ocasionais.
Importa começar por salientar que a qualificação do recorrido como um comerciante nato, procurando explorar e obter ganhos em todas as oportunidades de negócio que lhe surgiam, não determina por si só a sua qualificação como comerciante, na medida em que tais comportamentos são compatíveis com o modo de agir de um sócio gerente de sociedade comercial, que o réu é e já era à data dos factos.
A testemunha D…, que era gerente da autora à data da venda do veículo a que se reportam os autos, entretanto reformado mas continuando a deslocar-se regularmente às instalações da autora, afirma ter comprado ao réu uma máquina, pelo preço de € 12.500,00 (cf., nomeadamente, 25m:00s) – em data e circunstâncias que não se mostram esclarecidas. Não há outros elementos a confirmar esta aquisição e as concretas circunstâncias em que ocorreu. A testemunha afirma ainda a venda feita pelo réu de uma outra máquina (“que é de um Sr. que está aí, que é do Sr. I…, que ele vendeu uma máquina e quem a comprou… quem arranjou comprador é uma… uma testemunha nossa, que é o Sr. E…” – 08m:56s) e fala de clientes que arranjou ao réu (08m:22s a 10m:29s). A testemunha F… também menciona uma venda feita pelo réu a cliente que lhe foi arranjado “pelo E…” (20m:55s).
A referência a clientes não está consistentemente caracterizada, na medida em que nada acresce à mesma.
Por outro lado, não se vê que a venda relatada seja comprovada por outros depoimentos. A testemunha E…, afirmando inicialmente assistir e participar em vários negócios (00m:35s), ao ser instado se, para além de uns camiões referidos anteriormente no respectivo depoimento, tinha conhecimento de outros negócios efectuados pelo réu sem ser através das sociedades que detinha, relata que ouviu, que tenha feito, não, mas ouvia falar, às vezes, que aparecia um negócio, um carro ou um camião, ou uma máquina, coisas para vender; isso ouvia falar, agora que tivesse presenciado ou participado no negócio, não (07m:40). A testemunha I…, igualmente inquirida em audiência, não confirma a intervenção ou assistência a qualquer negócio, nomeadamente aquele que é mencionado pela testemunha D….
As testemunhas, nomeadamente E… e F…, referenciam a presença de camiões cisterna nas instalações onde se situa a sociedade de que o réu é sócio gerente, pretendendo que tais veículos estavam para venda pelo réu, que os tinha comprado para esse efeito. Não se vê que haja um relato consistente quanto às exactas condições e circunstâncias de aquisição destes veículos. É a testemunha F… que, afirmando a existência de camiões no estaleiro, visando a respectiva comercialização pelo réu, afirma igualmente que isso lhe foi “dito pelo Sr. D…”, o que fragiliza a sua razão de ciência. Esta testemunha suscita ainda alguma dúvida quanto à consistência do seu efectivo conhecimento dos factos, ao afirmar ao longo do respectivo depoimento, em diferentes trechos e em termos dubitativos, “penso que sim”, “penso que não”, “acho que sim”, “ouvi falar”.
Também a testemunha E…, afirmando saber que os camiões foram comprados em falência e pensar que tal negócio não terá nada a ver com a empresa do réu, logo afirma não saber se, de facto, terá a ver ou não com a empresa (06m:30s).
As testemunhas H… e I… refutam a concretização de negócios pelo réu, em nome próprio, nomeadamente das alegadas máquinas e camiões.
Confirmando a presença de camiões nas instalações da sociedade de que o réu é sócio gerente, afirmam que tal ocorre a pedido dos donos de tais veículos e com o consentimento do réu; esclarece a testemunha H… que trabalha em jardinagem e tem aí um contentor, para guarda de material; a testemunha I… (04m:04s) salienta que um filho do réu é ele próprio titular de uma empresa de transportes, aí recolhendo os camiões da respectiva empresa, com autorização do réu, esclarecendo o seu conhecimento no facto de conhecer o filho do réu, por este, através da respectiva empresa, lhe prestar serviços.
Os documentos que integram os autos, a fls. 46 e seguintes, não são determinantes, de modo a ultrapassar os elementos contraditórios e inconclusivos que antes se mencionaram. Especificamente em relação aos documentos 8 a 10 (folhas com valores manuscritos), não se vê que esteja adquirido, com a consistência necessária, a sua origem e autoria, de modo a poder concluir-se que foram redigidos, total ou parcialmente, pelo réu e que representam o reconhecimento feito por este dos valores em falta, relativamente ao veículo a que se reportam os autos e a outros veículos por ele adquiridos à autora.
Resulta do depoimento de parte do próprio réu que, para pagamento de algumas das prestações, o mesmo entregou à autora, além de cheques por si emitidos, outros cheques à ordem da respectiva sociedade e que eram endossados, em face do que a recorrente entende que o réu fazia negócios com a própria sociedade de que era sócio, usando como meio de pagamento do preço dos bens que adquiria cheques da sociedade e outros que eram emitidos à própria sociedade, endossando-os de seguida à autora.
Quanto a esta específica questão, o réu, no respectivo depoimento de parte, afirmou que, depositando dinheiro na G…, enquanto sócio da mesma, retirava-o depois (08m:56s do registo do depoimento), reportando-se assim a suprimentos, cujo reembolso utilizava para efectuar os aludidos pagamentos, sem que este relato se mostre contrariado.
No confronto destes elementos, não se vê que haja razão consistente para contrariar a leitura da prova feita pelo tribunal recorrido e para alterar o que consta no ponto cinco da matéria de facto provada.
No ponto 4 da matéria de facto provada consta que “O veículo automóvel destinou-se ao uso particular do réu”, entendendo a recorrente que a prova produzida em audiência justifica que se julgue provado que “o veículo automóvel se destinou à atividade comercial do réu”.
Na sentença recorrida, ponderam-se os elementos antes mencionados.
Em sentido contrário, a recorrente afirma que, quer a testemunha D…, quer a testemunha F…, quer mesmo a testemunha E… foram unânimes em afirmar que o recorrido se fazia circular no referido veículo diariamente na sua atividade, incluindo quando se deslocava ao armazém da autora para tratar de negócios ou mesmo em almoços de negócios.
Impõe-se salientar que, sem prejuízo da sua actividade enquanto sócio de sociedade comercial e não se demonstrando que o réu é comerciante em nome individual, na medida em que, tendo capacidade para praticar actos de comércio, faça disso profissão, fica prejudicado que possa afirmar-se que o veículo automóvel se destinou à atividade comercial do réu em nome individual, isto é, que se destinou à actividade que não se demonstrou que exercesse.
Como assinala a recorrente, as testemunhas D…, F… e E… relatam ter visto o réu a conduzir o veículo a que se reportam nos autos, em diferentes ocasiões e circunstâncias, nomeadamente em deslocações às instalações da autora, afirmando o primeiro que o réu, ao comprar o veículo, nunca mencionou a sua filha, que o veículo se destinasse a ela, afirmando no entanto que, posteriormente, o réu veio a comprar outro veículo para o seu filho.
O réu, em depoimento de parte, afirmando que a aquisição do veículo, apesar de estar em seu nome, foi pensado para a sua filha, admite que por vezes o conduz, sobretudo aos fins-de-semana (11m:30).
A testemunha H… relatou ter visto a filha do réu a conduzir o veículo e ter visto, algumas vezes, o próprio réu a fazê-lo, nomeadamente em deslocações para manutenção da viatura.
A testemunha I… relatou ter-lhe referido o réu que a aquisição da viatura se destinava a sua filha (02m:10s).
O facto da produção de prova em audiência de julgamento se ter prolongado por duas sessões, ocorrendo a inquirição das testemunhas indicadas pelo réu no segundo dia, à semelhança aliás de duas das três testemunhas indicadas pela autora, não determina por si só o descrédito dos respectivos depoimentos.
A ponderação dos elementos enunciados também aqui não legitima a alteração da matéria de facto nos termos suscitados pela recorrente, relativamente ao ponto quatro da matéria de facto provada.
A recorrente suscita ainda, como antes se mencionou, o aditamento de dois parágrafos à matéria de facto provada, nos seguintes termos: «Por três vezes pelo menos, durante o ano de 2011, o Réu reuniu-se com a Autora no sentido de acordar com ela a forma de pagamento, entre outras quantias, do remanescente de € 7.500,00 (sete mil e quinhentos euros) do preço do referido automóvel (A3)», e «O Réu não pagou o remanescente do preço do identificado automóvel (A3), no valor de € 7.560,00 (sete mil quinhentos e sessenta euros)».
O réu, em depoimento de parte, refutou qualquer acordo com a autora, nos termos que por esta são alegados e afirmou ter efectuado o pagamento da totalidade do preço de venda do veículo.
A ponderação dos depoimentos das testemunhas D…, F… e E…, mencionadas pela autora, não permite a afirmação de uma certeza, quanto a estes factos, importando salientar que, nomeadamente as testemunhas D… e F…, afirmam a intervenção em alegadas negociações de “J…”, não sendo este no entanto o réu, mas um filho dele.
A testemunha E…, afirmando a existência de valores em falta “aí por 2009/2010” e de negociações para a sua regularização, não caracterizou as mesmas e afirmou não saber o respectivo resultado e não saber mesmo se foi tudo pago (03m:00s).
Os documentos que integram os autos, a fls. 46 e seguintes, como antes se assinalou, não permitem ultrapassar os elementos contraditórios e inconclusivos da restante prova.
Especificamente em relação aos documentos 8 a 10 (folhas com valores manuscritos), não se vê que esteja adquirido, com a consistência necessária, a sua origem e autoria, de modo a poder concluir-se que foram redigidos, total ou parcialmente, pelo réu e que representam o reconhecimento feito por este dos valores em falta, relativamente ao veículo a que se reportam os autos e a outros veículos por ele adquiridos à autora.
Assim, conclui-se que não há elementos de prova com consistência suficiente para justificar a alteração da matéria de facto, nos termos pretendidos pela recorrente – pelo que o recurso improcede nesta parte, sem prejuízo da apreciação a fazer de seguida relativamente aos restantes pressupostos em que assenta e ainda, quanto ao alegado não pagamento do remanescente do preço do identificado automóvel (A3), no valor de € 7.560,00 (sete mil quinhentos e sessenta euros), da apreciação da confissão tácita suscitada pela recorrente.
3. A pretendida inoperância da prescrição presuntiva.
A autora/recorrente sustenta aqui a sua pretensão nos seguintes pressupostos:
Por um lado e perante a alteração da matéria de facto nos termos pretendidos, o tribunal a quo deveria ter concluído que não se aplica in casu a prescrição presuntiva invocada pelo recorrido, atenta a circunstância de o réu ser comerciante e ter destinado o automóvel ao exercício da sua atividade, e se tratar de uma área de atividade em que é vulgar o comprador exigir recibo, inexistindo razão suficiente que justifique uma tutela especial do réu, enquanto devedor.
Por outro, mesmo que se considere a matéria de facto da decisão recorrida e que estamos perante caso de aplicabilidade da prescrição presuntiva, sempre a presunção de cumprimento dela resultante deveria ter-se por afastada já que: em virtude do reconhecimento da dívida pelo réu, o prazo prescricional interrompeu-se em 2011, tendo-se reiniciado novo prazo no final de 2011; o réu praticou em juízo factos incompatíveis com a presunção de cumprimento, devendo dar-se como confessada a dívida.
3.1 No que se refere aos primeiros pressupostos mencionados, importa afirmar a sua improcedência, desde logo porque não opera a pretendida alteração da matéria de facto.
Na verdade, subsistindo no âmbito da matéria de facto provada que o veículo automóvel se destinou ao uso particular do réu e que este não é comerciante, não pode prevalecer o enquadramento jurídico que pressuponha os factos opostos.
Também não se afigura que, tratando-se de uma área de atividade em que é vulgar o comprador exigir recibo, possa afastar-se com tal fundamento a aplicação da prescrição presuntiva. Na verdade, sem prejuízo de se considerar que esta prescrição visa salvaguardar as situações apontadas, não se evidencia que haja no caso concreto dos autos uma efectiva, consistente e credível documentação dos pagamentos efectuados pelo réu, de modo a que se justifique o afastamento da presunção em causa.
Importa então verificar se ocorreu a interrupção do prazo prescricional em virtude do reconhecimento da dívida pelo réu, com reinício de novo prazo no final de 2011 ou se o réu praticou em juízo factos incompatíveis com a presunção de cumprimento, devendo dar-se como confessada a dívida.
3.2 Nos termos do artigo 317.º, alínea b), do Código Civil, prescrevem no prazo de dois anos os créditos dos comerciantes pelos objectos vendidos a quem não seja comerciante ou os não destine ao seu comércio, e bem assim os créditos daqueles que exerçam profissionalmente uma indústria, pelo fornecimento de mercadorias ou produtos, execução de trabalhos ou gestão de negócios alheios, incluindo as despesas que hajam efectuado, a menos que a prestação se destine ao exercício industrial do devedor.
O Código Civil, nos artigos 300.º e seguintes, regula a matéria relativa à prescrição. Contudo, sob esta designação genérica, a lei regula duas figuras distintas, dois tipos de prescrição, a extintiva e a presuntiva.
Nos termos do artigo 304.º do Código Civil, completada a prescrição, tem o respectivo beneficiário a faculdade de recusar o cumprimento da prestação ou de se opor, por qualquer modo, ao exercício do direito prescrito. Estamos então perante a prescrição extintiva, a qual configura excepção peremptória e determina a absolvição do pedido.
Figura diferente é, no entanto, a prescrição presuntiva, a qual, nos termos do artigo 312.º do Código Civil, se funda na presunção de cumprimento da obrigação cuja satisfação se pretendia. Visa-se deste modo proteger o devedor contra o risco de satisfazer em duplicado uma dívida em relação à qual não é usual exigir ou guardar durante muito tempo o respectivo recibo.
Nas palavras do Prof. Vaz Serra, «as prescrições presuntivas são presunções de pagamento, fundando-se em que as obrigações a que se referem costumam ser pagas em prazo bastante curto e não é costume exigir quitação do seu pagamento; decorrido o prazo legal presume, pois, a lei que a dívida está paga, dispensando assim o devedor da prova do pagamento, prova que lhe poderia ser difícil, ou até impossível, por falta de quitação» – Revista de Legislação e de Jurisprudência, ano 109, página 246.
Em consideração destas características, ocorre então uma inversão do ónus da prova, porquanto, cabendo geralmente ao devedor fazer a prova do cumprimento – artigo 342.º, n.º 2, do Código Civil – passa a caber ao credor provar que foi omitido o pagamento. Atenta, no entanto, a particular natureza das obrigações, bem como a presunção de pagamento que passa a existir, os meios de prova admissíveis para o efeito são restritos, apenas podendo provir do próprio devedor, por confissão judicial e extra judicial – artigos 313.º e 314.º do Código Civil.
Daí que, a ocorrer a referida prescrição, ela determine apenas a inversão do ónus da prova nos termos supra referidos – isto, sem prejuízo de entretanto poder ocorrer o prazo de prescrição extintiva.
Também por essa razão, a invocação da prescrição é incompatível com a discussão da própria natureza, validade ou montante da obrigação e, genericamente, com tudo o que possa pôr em causa a presunção que se invoca.
Nas palavras do artigo 314.º do Código Civil, considera-se confessada a dívida se o devedor se recusar a depor ou a prestar juramento no tribunal, ou praticar em juízo actos incompatíveis com a presunção de cumprimento.
A confissão de factos, especificamente, a confissão do não pagamento, pode ser efectuada espontânea e expressamente ou de modo tácito, a que se reporta a parte final da norma que se deixou citada.
«Ao apreender o espírito das prescrições presuntivas não podemos deixar de lado o princípio da boa-fé processual: as prescrições presuntivas não foram criadas para libertar o devedor do cumprimento da sua obrigação, mas tão só de o libertar do ónus de provar que pagou» (Acórdão da Relação de Lisboa, de 16 de Junho de 1992, publicado no tomo 3/1992 da «Colectânea de Jurisprudência», página 206).
Por isso, existe confissão tácita quando o devedor não impugna factos alegados na acção pelo credor que conduzem ao não pagamento ou quando ele próprio pratica, no âmbito do processo, actos incompatíveis com a presunção de cumprimento.
Entre os exemplos pacíficos de incompatibilidade com a presunção de cumprimento salientam-se a negação, pelo devedor, da existência da dívida, a discussão do seu montante ou a invocação de compensação.
3.3 Os elementos em presença no processo não permitem afirmar a verificação da interrupção do prazo prescricional em virtude de reconhecimento da dívida feita pelo réu no decurso de 2011 e que se tenha então operado o reinício de novo prazo, pelo que não se verifica a alegada violação do preceituado nos artigos 325.º e 356.º do Código Civil.
Importa então ver se o réu praticou em juízo, no âmbito do presente processo, factos incompatíveis com a presunção de cumprimento e em prejuízo da mesma, com a confissão tácita da dívida.
Está em causa, essencialmente, a existência de elementos divergentes, entre o que foi declarado pelo réu na respectiva oposição ao requerimento inicial e aquilo que afirmou, posteriormente, em depoimento de parte, a propósito do pagamento da quantia reclamada pela autora.
Na respectiva contestação, o réu, confirmando que a requerente lhe vendeu o veículo a que se reportam os autos, alegou no entanto que já procedeu ao pagamento integral do valor pelo qual se realizou a venda do mencionado veículo, pagamento este efectuado por meio de vários cheques e em numerário, nas datas previamente estipuladas, tendo a requerente ficado com a obrigação de enviar ao requerido o respectivo recibo, o que até hoje nunca aconteceu.
Pormenoriza nesse articulado que o pagamento da última prestação ocorreu em 10 de Março de 2010, respeitando o plano de pagamento previamente acordado com a requerente, do pagamento de 36 prestações de 540,00 € mensais, iguais e sucessivas, sendo a primeira em 10 de Abril de 2007 e a última em 10 de Março de 2010.
Já no depoimento de parte que prestou em audiência de julgamento, o réu relata uma realidade diferente. Continuando a confirmar a compra do veículo à autora, em 2007, e o acordo firmado com esta relativamente ao pagamento em prestações, o réu diverge quanto ao pagamento das aludidas prestações, afirmando agora que deu à autora, de uma vez, o dinheiro todo que faltava para o pagamento da totalidade do preço (00m:45s); situa este pagamento em Abril de 2009 e, quanto ao valor que pagou, em dinheiro, afirma que ascendeu ao montante de “seis mil e tal euros” (04m:40s). Afirmou a inexistência de qualquer documento emitido pela autora, comprovando esse pagamento, bem como o facto de não lhe ter feito qualquer exigência nesse sentido, o que justificou com o facto de serem “amigos há mais de trinta anos”.
A prescrição presuntiva invocada pelo réu opera no prazo de dois anos, estando este prazo inequivocamente ultrapassado no confronto entre a data de vencimento da última das prestações acordadas (10 de Março de 2010) e a data em que foi instaurada a presente acção (25 de Julho de 2013), verificando-se os pressupostos necessários para a consideração, por esta via, da prescrição presuntiva, nos termos enunciados no artigo 317.º, alínea b), do Código Civil.
Não se verifica confissão expressa por parte do réu, relativamente à omissão de pagamento, seja porque não há qualquer documento escrito pelo réu que possa configurar confissão extrajudicial, seja porque no respectivo depoimento não confessou expressamente a dívida cujo pagamento é reclamado pela autora (artigo 313.º do Código Civil).
O que importa então ver é se opera confissão tácita, no caso, se a divergência apontada entre o que é afirmado pelo réu no respectivo articulado de oposição ao requerimento de injunção e o que veio a afirmar, posteriormente, ao ser ouvido pelo tribunal em depoimento de parte, configura da sua parte uma confissão tácita da dívida, nos termos enunciados no artigo 314.º do Código Civil).
Perante o que se deixou mencionado, quanto à incongruência relativamente às condições em que foi efectuado o pagamento, é certo que há um facto comum (a afirmação do pagamento), mas uma divergência relevante quanto às condições em que ocorreu, com total disparidade e incompatibilidade do relato feito pelo réu em audiência de julgamento relativamente ao que ele próprio alegou em contestação, um depoimento totalmente incompatível com o que alegou na contestação relativamente ao pagamento e aos termos em que teria sido feito, na certeza de que o réu foi interveniente directo nos factos. Acresce que esta disparidade não se mostra justificada por qualquer forma, o que, pondo em causa o valor do relato, reforça a incompatibilidade com a presunção de cumprimento.
Acolhe-se por isso o entendimento da recorrente nas respectivas alegações, quando defende que opera aqui a confissão tácita prevista na parte final do artigo 314.º do Código Civil quanto ao não pagamento pelo réu da quantia reclamada no requerimento inicial, mostrando-se ilidida a presunção de pagamento.
Procedendo a apelação nesta parte, há então que considerar que se prova que o réu não pagou o remanescente do preço do identificado automóvel (A3), no valor de € 7.560,00 (sete mil quinhentos e sessenta euros).
Perante esta conclusão e na medida em que ficou provado que o réu não pagou a quantia reclamada pela autora, impõe-se a sua condenação, ao abrigo do disposto nos artigos 406.º, 762.º, 763.º, 781.º e 874.º do Código Civil.
A este montante acrescem juros de mora, à taxa legal comercial sucessivamente vigente, desde a data de vencimento – 10 de Fevereiro de 2009 – até efectivo pagamento, nos termos dos artigos 805.º, n.º 2 e 806.º do Código Civil e 102.º do Código Comercial.
Assim, a sentença recorrida deve ser revogada, substituindo-se a absolvição do réu pela sua condenação a pagar à autora a quantia reclamada, acrescida dos respectivos juros.
III)
Decisão:
Pelas razões expostas, decide-se:
a) Julgar a apelação procedente e, em consequência, revogando a sentença recorrida, condenar o réu a pagar à autora a quantia de € 7.560,00 (sete mil quinhentos e sessenta euros), acrescida de juros de mora, vencidos e vincendos, calculados à taxa legal comercial sucessivamente vigente, desde 10 de Fevereiro de 2009 até efetivo e integral pagamento da referida quantia.
b) Condenar o réu/recorrido nas custas.
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Porto, 27 de Abril de 2015.
Correia Pinto
Ana Paula Amorim
Rita Romeira