Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
0457289
Nº Convencional: JTRP00037730
Relator: PINTO FERREIRA
Descritores: COMPETÊNCIA MATERIAL
RESPONSABILIDADE CIVIL
RESPONSABILIDADE EXTRA CONTRATUAL
JULGADOS DE PAZ
Nº do Documento: RP200502210457289
Data do Acordão: 02/21/2005
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO.
Decisão: NEGADO PROVIMENTO.
Área Temática: .
Sumário: Os Julgados de Paz são competentes, em razão da matéria, para conhecer de acção declarativa, em que um Hospital reclama do responsável por acidente de viação, o pagamento dos serviços prestados ao acidentado, desde que o valor peticionado não exceda a alçada do Tribunal de 1ª Instância.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação do Porto

I – Relatório

O Hospital .........., S.A. intentou a presente acção declarativa de condenação sob a forma sumaríssima contra Companhia de Seguros X.........., com fundamento na prestação de assistência hospitalar a B.......... no montante de € 2.608,76, que acrescem juros de € 525,67, necessária em virtude de lesões por este sofridas em consequência directa de acidente de viação em que foi interveniente o veículo de passageiros ..-..-LE, conduzido por C.........., cuja responsabilidade civil estava transferida para a seguradora ré pela apólice n.º ../......, sendo que a culpa exclusiva na sua verificação ficou a dever-se ao condutor do veículo automóvel, por ter atropelado a sinistrado/assistido.
Dirigido e entrado o processo no Tribunal de Pequena Instância Cível do Porto, profere-se despacho, previamente à distribuição em que se determinou a remessa dos autos aos Julgados de Paz desta comarca, por serem os competentes em razão da hierarquia, atento o disposto nos artigos 6º n.º 1, 8º, 9º n.º 1 al. h), 12º n.º 2, 62º, 63º e 67º, todos da Lei n.º 78/2001 de 13/7 e Portaria n.º 375/2004 de 13/04.
Inconformado com tal decisão recorre o autor.
O recurso foi admitido como de agravo e apresentaram-se alegações.
Sustentou-se o despacho recorrido.
Colhidos os vistos legais, nada obsta ao conhecimento do recurso.
*

II – Fundamentos do recurso

Limitam e demarcam o âmbito dos recursos as conclusões que nele são apresentadas – artigos 684º n.º 3 e 690º n.º 1 do CPC –
Justifica-se, assim, a transcrição dessas conclusões que, no caso concreto, foram:

1 - A presente acção foi interposta no Tribunal de Pequena Instância do Porto e por despacho de 13.07.04 o Mm. Juiz remeteu os presentes autos para os Julgados de Paz do Porto, por considerar ser este o Tribunal hierarquicamente competente.
2 - Porém, salvo melhor entendimento, afigura-se ao aqui recorrente que o mesmo não tem razão.
3 - O D.L. 218/99, de 15 de Junho, estabelece um regime especial para a cobrança de dívidas referentes aos cuidados de saúde prestados pelas instituições e serviços integrados no Serviço Nacional de Saúde, como se depreende, não só do teor do preâmbulo, como do estipulado nos art.s, 1°, 2°, 3°, 4º e 5° do citado Diploma Legal.
4 - Por sua vez, a lei 78/2001 de 13 de Julho no seu art. 9° regula a competência material dos Julgados de Paz, sendo-lhes permitido, apreciar e decidir nas situações previstas no n.º 1 e 2 do art. 9° da referida Lei 78/2001.
5 - Consequentemente, todas acções, cuja competência não se encontre regulada em lei especial, que aí não se estejam previstas e cujo valor seja inferior à alçada da relação de primeira instância, serão "à contrário senso" da competência dos tribunais de Pequena Instância Cível.
6 - O mencionado normativo legal, na alínea a) do n.º 1, refere que estão excluídas do âmbito da sua competência material as acções que tenham por objecto prestação pecuniária, cujo credor originário seja uma pessoa colectiva, requisito este que impende sobre o aqui recorrente, o que em nosso entender implica, obrigatoriamente, a incompetência material dos Julgados de Paz do Porto.
7 - As acções propostas ao abrigo do D.L. 218/99 de 15/6 são acções de dívida, cuja causa de pedir é o custo da prestação de cuidados de saúde e destinam-se a efectivar o cumprimento de uma obrigação pecuniária, não podendo ser integradas na h) n.º 1 da supra mencionada lei 78/2001, uma vez que o recorrente é uma pessoa colectiva.
8 - Porquanto o D.L. 218/99 de 15 de Junho regulamenta um regime específico para as acções de cobrança de dividas das Instituições Hospitalares (e outras integradas no SNS), porém afastada a competência dos Julgados de Paz, pelo n° 1 a) da lei 78/01, para as apreciar e decidir e, não se encontrando expressamente atribuída por qualquer outra disposição da referida lei a sua competência material afigura-se-nos, estar excluída do âmbito da mesma.
9 - Não se verificando assim, em nosso entender, a excepção da incompetência em razão da hierarquia, conforme se decidiu no despacho ora em crise.
10º - Devendo tal decisão, por violação do preceituado nos artigos 6º n.º 1, 8º, 9º n.º 1 h), 12, n.º 2, 62º, 63º e 67º da Lei 78/2001 ser inteiramente substituída opor outra que considere competente, em razão da hierarquia, o Tribunal de Pequena Instância do Porto, por consequente incompetência em razão da matéria dos Julgados de Paz do Porto.
*

III – Os Factos e o Direito

Pelo teor da decisão impugnada e das conclusões formuladas, a única questão a decidir consiste em se saber se uma acção de dívida hospitalar, com o valor de € 3.134,43 será da competência material dos Tribunais de Pequena Instância Cível ou dos Julgados de Paz.
Isto porque no art. 9º do DL. n.º 78/2001 de 13 de Julho, que fixa a competência em razão da matéria dos Julgados de Paz, determina que estes são competentes para apreciar e decidir:

a) – Acções destinadas a efectivar o cumprimento de obrigações, com excepção das que tenham por objecto prestações pecuniária e de que seja ou tenha sido credor originário uma pessoa colectiva;
--------------------
--------------------
h) - Acções que respeitem à responsabilidade civil contratual e extracontratual;

Ora, para a agravante a acção por si intentada, proposta ao abrigo do DL n.º 218/99 de 15/6, que regulamenta um regime específico para as acções de cobrança de dívidas hospitalares, deve ser classificada e integrada na al. a), como fazendo parte da excepção aí prevista, ou seja, como acção cujo objecto é a prestação pecuniária, sendo o credor originário uma pessoas colectiva.
Para o tribunal recorrido e como se infere do despacho de sustentação, entende que a presente acção destina-se a exigir o pagamento de uma indemnização por serviços prestados a uma vítima de acidente de viação, ocorrido por culpa exclusiva do condutor do veículo segurado na ré, donde se estar na presença de uma acção que se destina à efectivação da responsabilidade civil por factos ilícitos, isto é, à responsabilidade civil extracontratual, donde integrável na al. h) do art. 9º do citado DL.

Vejamos como responder à questão de se saber se este tipo de acções, com valor não excede a alçada do tribunal de 1ª instância (art. 8), serão da competência dos Julgados de Paz ou do Tribunal de Pequena Instância Cível.

Para Cardona Ferreira, Julgados de Paz, Organização, Competência e Funcionamento, pág. 29, reconhecidamente o criador destes tribunais, considera o artigo 9º e a competência material que estabelece, como fundamental, dado que tipifica, em exclusividade, a competência material destes Julgados de Paz.
Quanto à al. a) do art. 9º esclarece que não significa que as pessoas colectivas possam ser partes em Julgados de Paz, atento o art. 37º do mesmo diploma.
Deste modo se responde à preocupação manifestada pela autora/agravante nas suas conclusões, quanto à sua participação como parte em Julgados de Paz.
Relativamente à al. h) considera que se pode aqui abranger as acções declarativas emergentes de danos causados por veículos.

Também Joel Timóteo Ramos Pereira, Julgados de Paz, Organização, Trâmites e Formulário, pág. 56 e segs. considera que a competência material fixada no art. 9º é exclusiva aquando da instauração da acção, sendo obrigatória a interposição nos julgados de paz, uma vez que a parte não tem a faculdade de escolher entre a instauração de Julgado de Paz ou Tribunal Judicial.
Refere e exemplifica ainda que, se porventura, uma acção descrita no art. 9º for instaurada no Tribunal Judicial de Primeira Instância, ocorrerá violação do art. 211º da Constituição e art. 66º do CPC.

Para João Miguel Galhardo Coelho, Julgados de Paz e Mediação de Conflitos, Âncora Editora, pág. 27, considera que os Julgados de Paz são competentes para apreciar e decidir as acções que tenham por objecto a responsabilidade civil contratual e extracontratual, sendo que nas matéria que são da sua competência a jurisdição é exclusiva e, como tal, obrigatória.

Os Julgados de paz podem ser considerados como uma nova categoria de tribunais destinados essencialmente a causas de menor valor e grau de dificuldade, exclusivo a acções declarativas, mas concebidos a permitir a participação cívica dos interessados, estimulando a justa composição dos litígios, sendo que os seus procedimentos estão concebidos e orientados por princípios de simplicidade, adequação, informalidade, oralidade e absoluta economia processual – artigos 1º, 2º e 6º do DL n.º 78/2001 -.

Ora, atento os ensinamentos acima expostos e da leitura tanto do preâmbulo como do conjunto dos articulados do DL n.º 218/99 de 15/6, como por exemplo «... neste diploma é, de novo, e como regra geral, consagrada a acção declarativa ....», art. 5º «nas acções para cobrança das dívidas incumbe ao credor a alegação e prova do facto gerador da responsabilidade pelos encargos ....», Secção III, Dívidas resultantes de acidentes de viação, art. 9 «......................................................., poderão exigir das seguradoras o pagamento dos encargos decorrentes dos cuidados prestados a vitimas de acidentes de viação ..................................», somos levados a concluir que se está perante uma acção que respeita à responsabilidade civil extracontratual e como tal, integrável na al. h) do art. 9º do DL n.º 78/2001.
E sendo-o, então, serão competentes, materialmente e de forma exclusiva, para apreciar e decidir este tipo de acções, os Julgados de Paz, desde que verificada a condição do art. 8º (valor a não exceder a alçada do tribunal de 1ª instância).
Portanto, os artigos 8º e 9º fixam os limites de valor e materiais a serem tratados e decididos pelos Julgados de Paz, fixando, em exclusividade, as acções declarativas a serem por estes julgadas.
Assim, as dívidas hospitalares, como acções declarativas que respeitam à responsabilidade civil extracontratual, desde que de valor que não exceda a alçada do tribunal de 1ª instância, serão da competência material dos Julgados de Paz.
Daí que, se a parte, pretende que seja resolvida e decidida uma situação integrável em tais normativos (8º e 9º), terá de instaurar a acção, forçosamente, nos Julgados de Paz.
Se instaurado noutro tribunal deverão ser usados os artigos 494º al. a) e 102º n.º 1 do CPC.
Como no caso presente o processo foi remetido, antes da distribuição, para o Julgado de Paz, materialmente competente para o apreciar e decidir, e foi por este aceite tal competência, deverá aí prosseguir a sua normal tramitação.
A remessa foi, então, correctamente ordenada, dado que estas acções não se podem integrar na excepção da al. a) do art. 9º, por não serem acções de dívida, cuja causa de pedir é o custo da prestação de cuidados de saúde e destinadas a efectivar o cumprimento de uma obrigação pecuniária mas antes perante acção que se destina à efectivação da responsabilidade civil por factos ilícitos, ou seja, à responsabilidade civil extracontratual.

A decisão agravada não merece reparo.

IV – Decisão

Nos termos e pelas razões expostas, acorda-se em se negar provimento ao agravo interposto e confirmar a decisão agravada.
Custas pelo agravante.
*

Porto, 21 de Fevereiro de 2005
Rui de Sousa Pinto Ferreira
Joaquim Matias de Carvalho Marques Pereira
Manuel José Caimoto Jácome