Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
6024/17.1T8VNG-C.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: MARIA CECÍLIA AGANTE
Descritores: COMUNHÃO CONJUGAL
INDIVISÃO
DÍVIDAS DA EXCLUSIVA RESPONSABILIDADE
EX-CÔNJUGE
PENHORA
PENHORA DA MEAÇÃO NOS BENS COMUNS
Nº do Documento: RP201810236024/17.1T8VNG-C.P1
Data do Acordão: 10/23/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO, (LIVRO DE REGISTOS N.º852, FLS.35-44)
Área Temática: .
Sumário: I - A indivisão que permanece no período entre a dissolução da comunhão conjugal e a partilha dos bens comuns tem uma natureza e regime distintos da comunhão conjugal que a precede.
II - Com a dissolução do casamento deixa de haver um património comum com a natureza de património coletivo e passa a existir uma situação idêntica à indivisão, em que cada um dos ex-cônjuges pode dispor da sua meação e pedir a sua separação, através da partilha.
III - Assim sendo, nesse período de indivisão, por dívidas da sua exclusiva responsabilidade, é legalmente admissível o arresto do direito do ex-cônjuge devedor à meação nos bens comuns.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo n.º 6024/17.1T8VNG-C.P1
Tribunal Judicial da Comarca do Porto
Juízo Central Cível de Vila Nova de Gaia
Acórdão
Acordam no Tribunal da Relação do Porto:
I. Relatório
Por apenso ao procedimento cautelar de arresto, B…, divorciada, beneficiária de apoio judiciário na modalidade de dispensa de taxa de justiça e demais encargos com o processo, residente no lugar de …, freguesia de …, concelho de Cinfães, deduziu embargos de terceiro contra C…, L.da e E…, L.da, ambas as sociedades com sede no dito lugar de …, n.º …, D…, residente na Rua …, n.º …., …, F…, residente na Rua …, n.º …, …, G…, residente em …, n.º …, …, e H…, residente em …, n.º …, …, …. Formulou o seguinte pedido:
«a) Ordenando-se a imediata suspensão dos termos do arresto sobre todos e quaisquer bens de que a embargante seja titular ou contitular, ou que de alguma forma tanjam ao património comum resultante da dissolução do casal, entre os quais os seguintes:
- “A meação do requerido H… no património comum do dissolvido casal”;
- “A quota do requerido H…, no valor nominal de 2.500,00€, no capital social da requerente C…”;
- O saldo bancário existente na conta à ordem que a embargante detém na agência de I1… da I…, com o N. º ………………………..
b) Devendo consequentemente ordenar-se o imediato cancelamento de quaisquer registos, do foro comercial ou outro, comprovativo do arresto, que impendam, nessas circunstâncias, sobre concretos bens, entre os quais os que já se detectou constarem sobre a quota e sobre o saldo bancário acima referidos, de sorte que todos e quaisquer bens nas referidas circunstâncias fiquem e continuem livres, alodiais, isentos de ónus, desarrestados e desembargados.
c) E, posteriormente, deverão os mesmos embargos ser julgados provados e procedentes, decidindo-se em conformidade:
d) Reconhecer definitivamente que a embargante não é devedora na relação subjacente, tal como alegada, que motivou o arresto.
e) Reconhecer definitivamente que todos e quaisquer bens de que a embargante seja titular ou contitular, ou que de alguma forma tanjam ao património comum resultante da dissolução do casal, entre os quais os seguintes:
- “A meação do requerido H… no património comum do dissolvido casal”;
- “A quota do requerido H…, no valor nominal de 2.500,00€, no capital social da requerente C…”;
- O saldo bancário existente na conta à ordem que a embargante detém na agência I1… da I…, com o n. º …………………….
f) Condenar todos os embargados a assim verem julgar e a respeitarem, doravante, os assim demonstrados direitos e bens da embargante, devendo-se abster de os onerar ou beliscar a respectiva propriedade, posse e detenção em que neles está a embargante, por qualquer forma e sob qualquer pretexto».
Alegou que não foi parte no procedimento cautelar de arresto, pelo que o arresto ordenado não lhe é oponível. O arresto da meação no património comum do dissolvido casal que constituiu com o Requerido H… não lhe diz qualquer respeito, por a dívida que o funda ser da responsabilidade deste. No tocante ao arresto da conta bancária, o requerido H… não é proprietário do dinheiro nela depositado, o qual corresponde às verbas de pensões de alimentos que o mesmo vem depositando a favor dos filhos menores. As quotas sociais arrestadas também integram o património comum, porque adquiridas pelo Requerido na constância do matrimónio, celebrado segundo o regime de comunhão de adquiridos.
Juntou documentos.

Após admissão liminar, foi ordenada a suspensão do arresto e notificados os embargados.

Com concessão de apoio judiciário na modalidade de despensa de taxa de justiça e demais encargos com o processo, contestou o embargado H…, alegando que acompanha a posição da Embargante quanto à impossibilidade de arresto dos bens comuns. Tendo sido casados até 17/02/2016, a dívida que sustentou o arresto não é da responsabilidade da Embargante.

Contestaram as Requerentes do arresto, as embargadas C…, L.da e E…, L.da, opondo que, depois do divórcio, os ex-cônjuges podem dispor da sua meação, que é passível de alienação por cada um deles, e, portanto, também de apreensão. Por isso, defenderam que foi arrestado um bem próprio do Requerido (a sua meação, e não um bem comum). No tocante às quotas sociais elas integram o património comum, mas só o seu titular pode exercer os direitos que lhes são inerentes, o que sempre sucedeu até à destituição do Requerido. Todavia a quota social da E… não foi arrestada. Excecionou a caducidade do direito a deduzir os embargos de terceiro.

Respondendo, a Embargante defendeu a improcedência da exceção e manteve a posição expressa no petitório.

Dispensada a realização de audiência prévia, no saneamento do processo, foi julgada improcedente a exceção de caducidade. Foram fixados o objeto do litígio e os temas de prova.
Realizada a audiência final, foi pronunciada sentença que, julgando procedentes os embargos, declarou:
«a) Reconhece-se definitivamente que a embargante não é devedora na relação subjacente.
b) Reconhece-se definitivamente que todos e quaisquer bens de que a embargante seja titular ou contitular, ou que de alguma forma tanjam ao património comum resultante da dissolução do casal, entre os quais os seguintes:
- “A meação do requerido H… no património comum do dissolvido casal;
- “A quota do requerido H…, no valor nominal de 2.500,00€, no capital social da requerente C…”;
- O saldo bancário existente na conta à ordem que a embargante detém na agência I1… da I…, com o n. º …………………...
c) Condeno todos os embargados a assim verem julgado e a respeitarem, doravante, os assim demonstrados direitos e bens da embargante, devendo-se abster de os onerar ou beliscar a respectiva propriedade, posse e detenção em que neles está a embargante, por qualquer forma e sob qualquer pretexto.
d) Ordeno o levantamento do arresto

As embargadas C…, L.da e E…, L.da recorreram da sentença, assim rematando a sua alegação:
«A) - Face ao teor das certidões permanentes das duas sociedades Embargadas já juntas aos autos, à valorização feita pelo Tribunal da testemunha J…, e ao disposto no art. 8º, n.º 2, do Código das Sociedades Comerciais, não se justifica a menção, nos arts. 7º e 9º da matéria provada, à detenção pela Embargante, com vontade de ser sua proprietária em comunhão com o seu ex-cônjuge, das quotas societárias;
B) - Deverá assim ser o art. 7º da matéria provada ser reduzido à primeira frase (até "quotas societárias"), e o art. 9º eliminado.
C) - As embargadas não pediram o arresto de um bem comum do dissolvido casal, mas sim da meação do Embargado H…, que pertence exclusivamente a ele;
D) - Após o divórcio, e até partilha do património em comum, cada cônjuge passa a dispor da sua meação, podendo a mesma ser alienada ou objecto de apreensão judicial;
E) - Não há pois qualquer obstáculo ao arresto da meação;
F) - Ao decidir de forma diferente não foram correctamente interpretados e aplicados os arts. 619º e seguintes do Código Civil.
Termos em que o recurso deve merecer provimento e revogada a douta decisão recorrida, mantendo o arresto anteriormente decretado.»

Em resposta, a Embargante concluiu a sua alegação deste modo:
«a) A decisão quanto a matéria de facto não merece reparo, nomeadamente quanto à redacção conferida aos artigos 7. º e 9. º da matéria provada.
b) Não é possível ao cônjuge não devedor, no âmbito do procedimento cautelar de arresto (diferentemente do que acontece na execução, no caso de penhora), requerer a separação de bens.
c) Também por esse motivo não cabe, no procedimento de arresto, proceder à citação do cônjuge não devedor, nos termos n. º 1do artigo 740.º, do Código de Processo Civil.
d) Não é admissível o arresto do direito à meação, ou do quinhão de um dos cônjuges na partilha que venha a ocorrer.
e) A douta sentença recorrida não violou nem interpretou menos correctamente o disposto nos artigos 619. º e seguintes do Código Civil, ou em qualquer outro preceito, sendo totalmente correcta a decisão de direito proferida, que deverá manter-se na íntegra.
f) Até trânsito em julgado da decisão recorrida, deverá manter-se o levantamento do arresto quanto aos bens da Embargante, inclusive quanto a todo o património comum do casal
II. Delimitação do objeto do recurso
Tendo em consideração que o objeto do recurso é delimitado pelas conclusões das alegações de recurso, sem prejuízo da apreciação de eventuais questões de conhecimento oficioso (artigos 635º e 639º do Código de Processo Civil, doravante denominado “CPC”), as questões a decidir são as seguintes:
1. A impugnação da decisão sobre a matéria de facto;
2. A validade do arresto do direito à meação do devedor nos bens comuns do casal após a dissolução do casamento por divórcio.
III. Fundamentação
1. Impugnação da decisão de facto
As Recorrentes discordam da redação dada aos n.ºs 7º e 9º da matéria de facto dada por provada, porquanto neles está mencionado que a Embargante “detém” as quotas sociais do arrestado H…, seu ex-cônjuge, “com vontade de ser a sua legítima proprietária, em comunhão com o seu ex-cônjuge”. É seu entendimento que a Embargante nem sequer detém as quotas, porque, nas relações com a sociedade, é apenas sócio aquele que tenha celebrado o contrato de sociedade.
Do ponto de vista do enquadramento jurídico da qualidade de sócio, o Código das Sociedades Comerciais[1] apenas enuncia um conjunto de deveres e de direitos dos sócios, incluindo de direitos especiais, intuitu personae, estabelecidos a favor de um concreto titular, que não são transmissíveis a terceiros, nem sequer conjuntamente com a respetiva quota[2]. Donde estatua o artigo 8º/2 do mesmo Código que, «[Q]uando uma participação social for, por força do regime matrimonial de bens, comum aos dois cônjuges, será considerado como sócio, nas relações com a sociedade, aquele que tenha celebrado o contrato de sociedade ou, no caso de aquisição posterior ao contrato, aquele por quem a participação tenha vindo ao casal». Portanto, não há dúvida que as quotas sociais referidas pela Embargante são bens comuns do casal e sobre isso nem há litígio entre as partes. Porém, o direito dos sócios não recai sobre os bens sociais, não é um direito real, mas somente um direito para com a corporação ou em face dela. O mesmo é dizer que o sócio só tem direitos perante a sociedade, mas não sobre os bens, nem em ser nem valor, e a quota ou ação representa apenas a unidade formal dos direitos e deveres, bem como exprime a medida da participação do sócio na sociedade[3]. Daí que a natureza jurídica da participação social seja tida como um estado ou conjunto de situações jurídicas detidas pelo sócio em relação à sociedade[4].
No caso, está em causa o arresto de uma participação social numa sociedade por quotas (C…, L.da) e, como o direito dos sócios não recai nos bens sociais, questiona-se se as quotas são suscetíveis de posse. Consabido que a posse se traduz no exercício de poderes de facto (corpus) sobre uma coisa, com intenção de exercer o direito real correspondente (animus), prima facie ela pode não parecer compatível com um domínio de facto sobre a participação social, mas na definição de coisa ínsita ao artigo 202º/1 do Código Civil a quota social é um bem incorpóreo[5]. A solução não é pacífica, porque se há doutrina que entende que «a posse, enquanto controlo material, só surge no domínio das coisas corpóreas»[6], outra há que defende a suscetibilidade de posse sobre todos os bens passíveis de domínio, porque o poder empírico que caracteriza a posse não se confunde com o poder físico[7].
Vista a alegação da Embargante, a mesma articula que o património comum do casal é composto por diversos bens, nomeadamente quotas societárias, sobre os quais exerce «posse jurídica e de facto, posto que os detém com ‘animus’ de sua legítima proprietária, em comunhão com o seu ex-cônjuge» (artigo 6º do petitório). Sobre essa matéria contrapuseram as Embargadas, ora Recorrentes, que «Sempre o embargado C… exerceu de facto todos o direitos inerentes à quota, designadamente em assembleias gerais. Foi também gerente ao longo de quase toda a vida da sociedade, até o Tribunal o destituir, como resulta da Certidão junta pela embargante (embora este aspecto até tenha aqui pouca relevância). Nunca a embargante agiu ou teve qualquer comportamento próprio de titular de quota. Aliás no seu articulado a embargante refere a posse, mas em abstracto, sem quaisquer factos que suportem a conclusão de que estava na posse - o que, salvo melhor opinião, torna essa alegação inócua» (artigos 21º a 24º da contestação).
A alegação das partes encerra a solução de uma questão jurídica controvertida e, relativamente à qual não nos cabe tomar partido em sede de matéria de facto. Para além disso, é aqui desnecessário tomar qualquer opção a respeito de tema tão polemizado como este, porque as partes não dissentem quanto à natureza de bem comum da quota social arrestada. Por outro lado, para além de indiscutibilidade da natureza de bem comum da quota social de que o Embargado H… é titular, a prova testemunhal produzida não registou qualquer intervenção societária da Embargante, antes deu nota do seu alheamento na gestão das sociedades. Isso mesmo exarou o tribunal a quo na motivação da decisão de facto, ao aludir ao depoimento da testemunha J…, contabilista das sociedades embargadas, inscrevendo «Nas sociedades as questões eram tratadas pelos sócios, J… e H…. A Embargante nunca a viu ou conheceu. Nem nunca foi tida ou achada para nada das sociedades». De facto, auditada a prova, pese embora não estar audível a parte inicial do depoimento dessa testemunha (ainda antes do juramento), a mesma disse que as assembleias gerais das sociedades embargadas eram «normalmente feitas lá na sociedade», reportando-se à sede social. Mais referiu que a Embargante nunca teve qualquer ligação com a sociedade, sento pessoas que não conhece. Confirmou que as sociedades desenvolviam as suas atividades, mas «a empresa, que eu me recorde, nunca teve uma efetiva distribuição de lucros, mas sempre que havia remunerações adicionais eram sempre feitas aos sócios ….». Depoimento que nada aportou quanto à intervenção da Embargante na vida das sociedades em causa. Tudo a legitimar a pretensão das Recorrentes quanto à alteração do texto do item 7. e supressão do item 9, passando o item 7. a exibir a seguinte redação: «7) O qual é composto de diversos bens, incluindo quotas societárias».
2. Factos provados
1. No procedimento cautelar de arresto foi proferida, em 06/06/2017, a seguinte decisão: «Em face do exposto, julgo o presente Procedimento Cautelar procedente e, em consequência determino que se proceda ao arresto de:
- A quota do Requerido H…, no valor nominal de 2.500,00€, no capital social da Requerente C…, L.da;
- A meação do Requerido H… no património comum do dissolvido casal, sendo que a ex-esposa do Requerido é B…, residente na Rua …, …, …. - … …;
- O quinhão hereditário do Requerido H… na herança indivisa aberta por mor te de seu pai K…, sendo os demais herdeiros: a Requerida F…, solteira, maior, residente na Rua …, …. - … … e o Requer ido G…, casado, residente no …, n.º …, …. - … …; L…, residente na Rua …, ….. - … …; M…, casada, residente Rua …, n.º .., …. - …, Horta, Açores; N…, solteiro maior , residente na Rua …, …. - … …; O… e P…, casados no regime da comunhão geral de bens, residentes em …. …., …, Califórnia Estados Unidos da América; Q… e mulher S…, casados no regime da comunhão geral, residentes em …. …, Winton, Cali fórnia, Estados Unidos da América; T…, cas ada, residente em …, …, Califórnia, Estados Unidos da América;
- O quinhão hereditário do Requerido do U… na herança indivisa aberta por mor te de seu pai K…, sendo os demais herdeiros: a Requerida F…, solteira, maior, residente na Rua …, ….. - …. … e o Requerido H…, casado, residente Rua …, n.º …, …. - … Vila Nova de Famalicão; e L…, residente na Rua …, …. - … …; M…, casada, residente Rua …, n.º .., …. - … …, Horta, Açores; N…, solteiro maior , residente na Rua …, …. - … …; Q… e P… casados no regime da comunhão geral de bens, residentes em …. …, …, Califórnia Estados Unidos da América; Q… e mulher S… casados no regime da comunhão geral, residentes em …. …, …, Califórnia, Estados Unidos da América; T…, casada, residente em …, …, Califórnia, Estados Unidos da América; - Os saldos existentes nas contas bancárias dos requeridos H… e D…..»
2) Por ofício registado que lhe foi dirigido pelo Senhor Agente de Execução V…, foi a Embargante notificada do despacho que, nos autos de providência cautelar, decretou o arresto requerido, dizendo-se na mesma carta que a notificação era assim feita na sua pessoa, «na qualidade de ex-esposa do requerido», mais aí se lhe dando conhecimento de se considerar arrestada «a meação do requerido H… no património comum do dissolvido casal», e tendo sido anexada cópia do «despacho judicial» .
3) O referido ofício e documentos anexos apenas foram levantados nos C.T.T. a 20/07/2017, dia que tomou a Embargante conhecimento do conteúdo do despacho.
4) A Embargante foi casada com o Requerido nesses autos de arresto, H…, com quem contraiu matrimónio a 20/06/1992 na Conservatória do Registo Civil de Vila Nova de Gaia, em segundas núpcias dele e primeiras dela, sem precedência de convenção antenupcial.
5) O referido casamento foi dissolvido por divórcio, em consequência de sentença homologatória de acordo, proferida a 17/02/2016 no âmbito da ação de divórcio sem consentimento do outro cônjuge n. º 1259/15.4T8LMG, que correu termos na Comarca de Viseu, Lamego, na 2.ª Secção de Família e Menores, J1, decisão transitada em julgado a 22/04/2016, tendo a efetivação do referido divórcio sido já averbada à certidão do dito casamento da Embargante.
6) Existe património comum do casal, decorrente da extinção da relação conjugal, o qual não foi ainda partilhado entre a ora Embargante e o Requerido/Embargado H…, seu ex-marido, encontrando-se na situação de ilíquido e indiviso.
7) O qual é composto de diversos bens, incluindo quotas societárias (alterado pela Relação).
8) Quanto à quota social na sociedade Requerente, C…, L.da, a sociedade foi constituída/registada em 06.10.1992, tendo a quota do titular H… sido por este adquirida no estado de casado com a Embargante, celebrado sob regime de comunhão de adquiridos.
9) (eliminado pela Relação).
10) O saldo bancário existente na conta à ordem da agência I1… da I…, com o n. º …………………….., o Requerido/Embargado é contitular de tal conta juntamente com a Embargante.
11) O mesmo Requerido nada detém do dinheiro na mesma existente.
12) Mantendo-se tal conta, hoje em dia, apenas com o fito de receber os depósitos que o Requerido vem fazendo, a título de pensões de alimentos devidas a favor dos seus filhos menores.
13) A conta é apenas nominalmente conjunta, já que o dinheiro aí existente pertence apenas à Embargante.
14) A quota societária da sociedade Requerente E…, L.da foi adquirida na constância do matrimónio.
3. Aplicação do direito
A única questão que esta apelação coloca à nossa apreciação consiste em saber se é válido o ordenado arresto da meação do Embargado H… após a extinção do seu casamento com a Embargante, por via do decretamento do divórcio. Enquanto o tribunal recorrido censurou a efetivação do arresto do seu direito à meação nos bens comuns e determinou o seu levantamento, as Embargadas arrestantes defendem a legalidade do arresto daquela meação por não afetar a meação da Embargante.
A sentença apelada, num excurso arrazoado, dá nota da controvérsia gerada em torno da natureza jurídica do património comum dos cônjuges e conclui que não é admissível o arresto do direito à meação do devedor, por não existir tal direito no património de cada um dos cônjuges, assim como também não é admissível o arresto do quinhão do requerido na partilha. Entendendo que o património comum do casal é uma massa patrimonial com certo grau de autonomia, que pertence aos dois cônjuges, em bloco, ordenou o levantamento do arresto do direito à meação do requerido/devedor nos bens comuns do casal.
A doutrina vem defendendo a inexistência de identidade ou analogia entre o regime dos bens comuns, em matéria de casamento, e o regime dos bens em compropriedade. Na compropriedade, está em causa o simples interesse individual dos comproprietários e qualquer dos contitulares pode, a todo o tempo, exigir a divisão da coisa comum, salvo se houver cláusula de indivisão (artigo 1412º do Código Civil). É que o legislador entende que a contitularidade dos direitos reais não corresponde, à melhor forma de exploração económica dos bens. Donde a afirmação: «Dos bens comuns, pelo contrário, nenhum dos cônjuges pode, em princípio, requerer a divisão. E a comunhão mantém-se, por imperativo da lei, enquanto persistir a sociedade conjugal, a cuja sustentação económica os bens comuns se encontram adstritos (art. 1689.º, nº 1). Por outro lado, cada comproprietário pode dispor livremente da quota que representa a medida da sua participação no direito comum (...). Quanto aos cônjuges, nenhum deles pode alienar ou onerar bens determinados, nem parte especificada de qualquer dos bens comuns, nem dispor sequer de qualquer quota ideal de participação no direito comum (...)»[8]. Nessa medida, os bens comuns são tidos como uma massa patrimonial com certo grau de autonomia, que pertence aos dois cônjuges, mas sendo os dois titulares de um único direito. É o conceito da propriedade coletiva, que corresponde a um património que pertence em comum a várias pessoas, mas sem se repartir entre elas por quotas ideais, como na compropriedade. É uma comunhão sem quotas, em que os vários titulares do património coletivo são sujeitos de um único direito, de um direito uno, que não consente divisão. «Esta particular fisionomia do património colectivo radica no vínculo pessoal que liga entre si os membros da colectividade e que exige que o património colectivo subsista enquanto esse vínculo perdurar»[9].
É inequívoco, desde logo, por resultar do consenso das partes, que a dívida que o arresto visa garantir é da exclusiva responsabilidade do ex-cônjuge da Embargante e, por isso, só ele foi demandado no procedimento cautelar de arresto. Contudo, a sociedade conjugal beneficia, nos termos legais, de um estatuto especial, com regras específicas, de natureza imperativa, que visa a proteção dos cônjuges e da família. Assim, no regime de comunhão de adquiridos fazem parte da comunhão o produto do trabalho dos cônjuges e, em geral, os bens por eles adquiridos na constância do matrimónio (artigo 1724º do Código Civil). Nesse património comum, os cônjuges participam por metade no ativo e no passivo da comunhão (artigo 1730º do Código Civil), mas, como vimos, esse regime não bebe da natureza do direito real do comproprietário. Na verdade, os cônjuges não podem dispor do seu direito ao património comum do casal nem podem exigir a divisão da coisa, porque a comunhão tem de durar enquanto persistir o vínculo conjugal, pois mantêm-se as razões da afetação especial dos bens que a compõem. «O património comum é o principal sustentáculo económico da sociedade conjugal e tem, por consequência de manter-se, embora respondendo pela satisfação das dívidas que lhe correspondem, enquanto o casamento persistir (…)»[10]. Donde a especificidade da natureza jurídica do património conjugal que, como propriedade coletiva, enforma um único direito sobre o património, sem haver sequer uma divisão ideal de quotas desse direito entre os cônjuges, o que equivale a afirmar que «[N]ão há quotas pertencentes a cada um dos cônjuges, porque o património comum pertence em bloco a ambos eles»[11]. É a atribuição da natureza jurídica de propriedade coletiva, tese mais divulgada entre nós, segundo a qual os bens comuns constituem uma massa patrimonial com certo grau de autonomia e que pertence aos dois cônjuges como titulares de um único direito sobre ela, tudo em vista da sua afetação especial à vida familiar[12]. Desta asserção resulta que o património pertence aos dois cônjuges, mas sem se repartir entre eles por quotas, como sucede na compropriedade é uma comunhão sem quotas. Logo, ambos «são sujeitos de um único direito e de um direito uno, o qual não comporta divisão mesmo ideal. Não tem, pois, cada um deles algum direito de que possa dispor ou que lhe seja permitido realizar através da divisão do património comum»[13].
Do exposto é certa a afirmação de que a meação do devedor no património conjugal não pode ser objeto de apreensão judicial enquanto persistir o vínculo conjugal. Só que a situação factual delineada apresenta uma nuance: o divórcio determinou a dissolução da sociedade conjugal na data do trânsito em julgado da sentença que o decretou, ou seja, em 22.04.2016, e o arresto daquela meação foi ordenado por decisão datada de 06/06/2017 isto é, quando já estava dissolvido o casamento por sentença transitada em julgado em 22/04/2016. Cabe-nos, então, indagar se, apesar de dissolvido o casamento, não obstante a ausência da partilha do património comum, é admissível a oneração da meação do cônjuge devedor.
Parece-nos que, dissolvido o casamento, capitula a intrínseca especificidade do património comum, que é a proteção da sociedade conjugal. O divórcio faz findar a relação conjugal e cessar as relações patrimoniais entre os cônjuges, tornando exequível, a partir de então, o direito à meação de que cada um dos cônjuges é titular. Extinta a sociedade conjugal não há justificação para a proteção conferida ao património comum, o qual, não obstante persistir até à partilha, congrega a concretização, na esfera jurídica dos cônjuges, do direito sobre os bens que integram a comunhão, quantificado na respetiva meação. «A indivisão que permanece no período entre a dissolução da comunhão e a partilha dos bens comuns tem uma natureza e regime distintos da comunhão conjugal que a precedeu»[14]. Esta indivisão pós-cessação da comunhão conjugal transporta um distinto regime legal e permite que os cônjuges possam, a todo o tempo, sair da indivisão através da partilha do património comum e dispor da sua meação, alienando-a ou onerando-a para pagamento das dívidas de responsabilidade exclusiva de um deles[15]. Nesse conspecto, cada um dos ex-cônjuges passa de uma comunhão coletivística para uma comunhão individualística, em que cada um detém uma quota abstrata sobre metade do património comum, mas não sobre cada bem em concreto, num regime similar ao da herança indivisa.
Cremos ser essa a leitura que deriva do posicionamento dos civilistas citados, os quais, como vimos, defendem a natureza de propriedade coletiva do património comum enquanto perdurar o vínculo conjugal, a significar que o património comum, com aquela específica natureza de propriedade coletiva, tem de persistir enquanto se mantiver o casamento[16]. De tal modo que a indivisão que permanece no período que medeia entre a dissolução do casamento e a partilha tem uma natureza e um regime distintos da comunhão conjugal que a antecede. Donde venha sendo afirmado que, após a dissolução do casamento cada ex-cônjuge pode dispor da sua meação, podendo a mesma ser alienada ou ser objeto de penhora[17].
Neste contexto, parece-nos que a meação do cônjuge devedor é suscetível de apreensão judicial por arresto, solução que não derroga o princípio da imutabilidade do regime de bens do casamento (artigo 1714º do Código Civil), que se mantém inalterado, e que também não contraria os mecanismos legais estabelecidos para a partilha. Nessa operação de partilha dos bens do casal, procede-se à separação dos seus bens próprios, à liquidação do património comum, destinada a apurar o valor do ativo líquido, calculando as compensações e contabilizando as dívidas entre os cônjuges e a terceiros, e, por fim, a partilha propriamente dita, com a determinação dos bens que integrarão a sua meação no património comum (artigo 1689º/1 do Código Civil)[18]. Operações que serão efetuadas, independentemente do arresto do direito à meação do cônjuge devedor, concretizável em bens no final dessa operação de partilha, momento a partir do qual o credor poderá realizar o seu direito.
Destarte, com a dissolução do casamento deixa de haver um património comum com a natureza de património coletivo e passa a existir uma situação idêntica à indivisão hereditária, em que cada um dos ex-cônjuges pode dispor da sua meação e pedir a sua separação, através da partilha. Ainda assim, continua a afirmar-se que se trata de situação distinta da compropriedade, já que o direito dos ex-cônjuges continua a não incidir sobre um bem em concreto, mas sobre o património comum, no seu conjunto, pois até à partilha ignora-se qual o preenchimento da meação de cada um.
Estamos cientes da divergência jurisprudencial que esta matéria tem merecido, alguma dela atribuindo aos bens comuns do casal, desde a dissolução da sociedade conjugal até à partilha, a mesma natureza de património coletivo e reputando de ilegal o arresto do direito à meação do cônjuge devedor[19]. Em contraponto, outra aceita que o trânsito em julgado da sentença de divórcio faz desaparecer o património comum como património coletivo e a situação passa a ser idêntica à da herança indivisa, em que cada um dos cônjuges pode dispor da sua meação[20].
Cremos, salvaguardando o muito respeito devido por diversa opinião, que a concreta situação que apreciamos, em que o arresto é decretado já depois da dissolução do casamento, que a matéria deve ser tratada em paridade com os patrimónios indivisos. Por um lado, o património comum perdeu a sua afetação à sociedade conjugal e, por outro, o cônjuge devedor não dispõe dos bens comuns, mas do seu direito à meação nos bens comuns. Este desfecho não desvirtua o estatuto patrimonial dos cônjuges e está compaginado com o preceituado no artigo 391º/1 do CPC, ao dispor que, para garantia patrimonial do seu crédito, o credor pode requerer o arresto em bens do devedor. Na verdade, como a responsabilidade do devedor se cinge à execução do seu património, a conservação da garantia patrimonial do credor que receie pela solvabilidade do devedor só pode ser atingida pela apreensão de bens suscetíveis de responder pelas suas dívidas[21]. O arresto tem, relativamente ao processo declarativo e executivo, a função instrumental de assegurar no seu património os bens do devedor e de antecipar os efeitos da penhora, representando, por isso, um relevante instrumento de proteção do credor, porque qualquer ulterior ato de disposição é ineficaz em relação ao arrestante (artigos 622º e 822º/2 do Código Civil). Ora, a apreensão do direito à meação do devedor nos bens comuns atinge um direito exclusivo desse devedor.
Aceitamos que, no arresto, não tem lugar a citação do cônjuge do executado, quer por não estar legalmente prevista quer por não ser possível o mecanismo da separação de bens[22]. De todo o modo, não está em causa uma situação similar de apreensão de bens comuns ou mesmo de convocação do estabelecido no artigo 1696º/1 do Código Civil, em função do qual pelas dívidas da exclusiva responsabilidade de um dos cônjuges respondem os bens próprios do devedor, e, subsidiariamente, a sua meação dos bens comuns. Aliás, não obstante a diversidade de regimes do arresto e da penhora, desde logo a natureza cautelar e provisória daquele, não podemos ignorar que se aplicam ao arresto as regras da penhora e, nesta, surge como judicialmente apreensível o direito do devedor à meação nos bens comuns do casal. E sendo também admissível a penhora de direitos a bens indivisos (artigo 781º do CPC), não intuímos qualquer óbice legal a que, após a dissolução do casamento, seja arrestável o direito do ex-cônjuge devedor à meação nos bens comuns do casal.
Do que fica dito decorre a revogação da decisão recorrida quanto a este concreto segmento decisório que denegou o arresto do direito da meação do devedor aos bens comuns do casal, assim mantendo esse arresto decretado em primeira instância. Contudo, em conformidade com o expendido, a apreensão judicial da quota social do devedor na C…, L.da não pode subsistir autonomamente, pois integra o património comum a partilhar, o que gera a confirmação da sentença apelada quanto ao levantamento do seu arresto.
Regime de custas: decaindo na apelação, cabem à Embargante as respetivas custas e a quota-parte de decaimento nos embargos, fixada em 50%, delas estando dispensada por força do apoio judiciário de que beneficia (artigo 527º/1 do CPC).
V. Dispositivo
Na defluência do relatado, acordam os Juízes do Tribunal da Relação do Porto em revogar a decisão recorrida e, consequentemente, em determinar a manutenção do arresto do direito do Requerido H… à meação nos bens comuns do casal que constituiu com B….
As custas da apelação e a quota-parte de decaimento nos embargos, estabelecida em 50%, ficariam a cargo da Embargante, que delas está dispensada por força \do apoio judiciário de que goza.
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Porto, 23 de outubro de 2018.
Maria Cecília Agante
José Carvalho
Rodrigues Pires
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[1] Aprovado pelo decreto-lei n.º 262/86, de 02 de setembro, com sucessivas alterações, das quais a mais recente é a introduzida pelo decreto-lei n.º 89/2017, de 28 de julho e retificação n.º 21/2017, de 25 de agosto, doravante denominado “CSC”.
[2] António Menezes Cordeiro, Manual de Direito das Sociedades, I, Das Sociedades em geral, Almedina, 2004, pág. 504.
[3] Ferrer Correia, Lições de Direito Comercial, vol. II, policopiadas, 1968, págs. 84/85.
[4] Pupo Correia, Direito Comercial, Ediforum, 2.ª ed., págs. 476/477.
[5] Miguel Mesquita, Apreensão de Bens em Processo Executivo e Oposição de Terceiro, Almedina, 2.ª ed. revista e aumentada, pág. 241.
[6] Menezes Cordeiro, A Posse, Perspectivas Dogmáticas Actuais, Almedina, pág. 81.
[7] Orlando Carvalho, Introdução à Posse, in R.L.J., ano 122, pág. 107.
[8] Antunes Varela, Direito da Família, Livraria Petrony, Lisboa, 1982, págs. 373/375.
[9] Pereira Coelho e Guilherme de Oliveira, Curso de Direito da Família, volume I, 2.ª ed., Coimbra Editora, pág. 507.
[10] Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, Volume IV, Coimbra Editora, 2.ª ed. revista e atualizada, pág. 437.
[11] Pires de Lima e Antunes Varela, ob. e loc. citados.
[12] Pereira Coelho e Guilherme de Oliveira, ibidem, pág. 506.
[13] Pereira Coelho e Guilherme de Oliveira, ibidem, pág. 507.
[14] Esperança Pereira Mealha, Acordos Conjugais para Partilha dos Bens Comuns, Almedina, 2009, pág. 74.
[15] Esperança Pereira Mealha, ob. e loc. citados.
[16] Pereira Coelho e Guilherme de Oliveira, ob. e loc. citados; Pires de Lima e Antunes Varela, ob. e loc. citados.
[17] Cristina M. Araújo Dias, Do Regime da Responsabilidade por Dívidas dos Cônjuges, Problemas, Críticas e Sugestões, Coimbra Editora, pág. 922
[18] Cristina M. Araújo Dias, in Scientia Ivridica, maio/agosto 2015, tomo LXIV, n.º 338, pág. 151.
[19] In www.dgsi.pt: Acs. RP de 12.07.2017, processo 159/17.8T8AVR.P1; RE de 20.09.2011, processo 322/04.4GBPSR-B.E1; 16.05.2006, processo 710/06-1.
[20] In www.dgsi.pt: Acs. RC de 28.06.2017, processo 947/15.0T8CBR-B.C1 (admite a alienação da meação do cônjuge nesse período); S.T.J. de 29.06.2004, processo 04A2062.
[21] António Santos Abrantes Geraldes, Temas da Reforma do Processo Civil, 4º Volume, Procedimentos Cautelares Especificados, 4.ª ed. revista e atualizada, pág. 177.
[22] In www.dgsi.pt: Ac. do STJ de 06.07.2000, in CJSTJ, ano VIII, tomo II, pág. 141.