Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
1606/17.4T8PVZ.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: ARISTIDES RODRIGUES DE ALMEIDA
Descritores: INSPECÇÃO TRIBUTÁRIA
ACESSO A INFORMAÇÃO CLÍNICA
SEGREDO PROFISSIONAL
QUEBRA
Nº do Documento: RP201911071606/17.4T8PVZ.P1
Data do Acordão: 11/07/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA A DECISÃO
Indicações Eventuais: 3ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - O artigo 63.º da Lei Geral Tributária prevê a possibilidade de a Administração Tributária e Aduaneira, no âmbito de uma inspecção tributária, aceder a informação clínica dos cidadãos pacientes do contribuinte alvo da inspecção que exerce a medicina, mediante autorização judicial prévia a conceder nos termos da lei geral que regula o segredo médico e a sua dispensa.
II - O artigo 63.º da Lei Geral Tributária, interpretado no sentido de permitir a quebra do segredo profissional e o acesso a dados da vida intima e privada dos cidadãos, não é formalmente inconstitucional por falta de autorização da Assembleia da República para o Governo legislar sobre restrição de direitos, liberdades e garantias dos cidadãos.
III - Mesmo que essa norma interfira com o direito à reserva da vida privada, protegido pelo artigo 26.º da CRP, pode existir justificação bastante para limitar o referido direito em nome dos interesses públicos prosseguidos, tais como a distribuição equitativa da contribuição para os gastos públicos e o dever fundamental de pagar impostos.
IV - A quebra do segredo profissional e o acesso da ATA a dados sobre factos da vida íntima dos cidadãos não depende de permissão da Lei da Protecção de Dados Pessoais.
V - A Lei da Protecção de Dados Pessoais não impede a comunicação dos dados a terceiros desde que nessa comunicação exista um objectivo legítimo que seja susceptível de justificar uma ingerência na vida privada, o que cabe às ordens jurídicas nacionais definir.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Recurso de Apelação
ECLI:PT:TRP:2019:1606.17.4T8PVZ.P1
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Sumário:
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Acordam os Juízes da 3.ª Secção do Tribunal da Relação do Porto:

I. Relatório:
A Direcção de Finanças de Braga - Autoridade Tributária e Aduaneira intentou a presente acção especial para suprimento de consentimento, nos termos do artigo 63.º, n.º 6, da Lei Geral Tributária, conjugado com o artigo 1000.º do Código de Processo Civil, contra B…, contribuinte fiscal n.º ………, residente na Póvoa do Varzim, e C…, Lda.”, pessoa colectiva e contribuinte fiscal n.º ………, com sede em Vila Nova de Famalicão, pedindo que seja «concedido o levantamento do segredo profissional ora invocado e atribuir-se a necessária autorização judicial à Autora».
Para tanto alegou, em síntese, que o réu é médico e desenvolve a prestação de serviços para a 2ª requerida na área da cirurgia plástica e a ré é uma sociedade comercial que desenvolve a actividade designada por “Outras Actividades de Saúde Humana, N.E.” - Código nº …… - sempre com a intervenção do réu.
No âmbito da realização de uma acção inspectiva aos anos de 2011, 2012 e de 2013, para apuramento do enquadramento em sede de IVA e de impostos em falta, a autora detectou anomalias na forma e conteúdo dos recibos emitidos, por a ré ter emitido facturas-recibos sem data, sem o número de identificação fiscal do cliente e sem a correta descrição dos serviços efectuados.
No exercício de 2013, a ré levou à respectiva escrita prestações de serviços a título de honorários médicos, consultas e outras realizados na clínica, a clientes seus, que qualifica como isentas de IVA, mas as correspondentes facturas-recibo não contêm qualquer descrição do serviço efectuado que permita concluir que as cirurgias efectuadas tiveram um objectivo terapêutico.
Por isso, a ré foi notificada para prestar esclarecimentos sobre a prestação de serviço efectuada e a finalidade da mesma, tendo respondido com invocação do sigilo profissional do réu, médico e sócio-gerente da ré. Porém, a indicação do serviço prestado não implica o acesso ao historial clinico do cliente, a dados clínicos relevantes ou ao estado de saúde ou que seja violada a reserva da intimidade da vida privada.
Os réus contestaram por excepção e por impugnação, defendendo a improcedência da acção. Por excepção, arguiram a ineptidão da petição por falta de causa de pedir e ininteligibilidade do pedido e da causa de pedir, por ser impossível descortinar os concretos elementos, informações, livros ou documentos sujeitos a sigilo médico a que a autora pretende aceder e para que períodos de tempo pretende a autorização judicial, sendo que o levantamento do sigilo apenas poderá dizer respeito à única inspecção em curso e que se reporta exclusivamente a 2013.
Mais sustentam que já foram prestados todos os esclarecimentos e toda a colaboração que o artigo 63.º da Lei Geral Tributária impõe aos contribuintes, mormente a indicação dos serviços prestados, patologias tratadas e finalidade dos tratamentos administrados sido tempestivamente veiculados à Autoridade Tributária pela sociedade requerida. Não obstante, a requerente exige que requerida proceda à conciliação entre as patologias clinicas objecto de cuidados médicos e as facturas emitidas, o que os requeridos se recusam a fazer por respeito ao dever de segredo médico que vincula o exercício da actividade médica.
O Estado não deve afectar o segredo médico ou o direito à reserva da intimidade da vida privada se não por via estritamente excepcional, para salvaguarda e protecção de outros valores que sejam superiores a estes, nos termos do artigo 18º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa o que não é o caso dos autos. A omissão da descrição requerida pelo art. 36º, n.º 5, al. b) do CIVA, substituída por uma descrição não específica, como por exemplo prestação de serviços médicos, permite ainda assim, conhecer os elementos essenciais à dinâmica do imposto, como sejam, o valor da prestação e/ou valor tributável, o momento da sua realização, a taxa de imposto aplicável e a norma de isenção, bem como a identificação do prestador e do adquirente, que permitirão quer ao sujeito passivo exercer o direito à dedução de imposto, nos termos do art. 20º e seguintes do IVA, como a permitem à A.T. o controlo do imposto liquidado e suportado em cada período de tributação.
Não se verificando no caso concreto a colisão entre direitos e interesses constitucionalmente protegidos inexiste necessidade de a harmonização dos deveres em conflito, devendo sobrelevar o dever de guardar segredo médico face ao dever de colaboração (nos termos pretendidos pela requerente) com a AT, por contender directamente com a reserva da intimidade da vida privada.
Invocaram ainda que o efeito pretendido pela Autoridade Tributária poderia ser conseguido por outra via que não colocaria em causa o dever de preservação do segredo clínico, a saber, solicitar a colaboração dos pacientes/clientes da sociedade requerida, inquirindo-os sobre a natureza dos serviços prestados, pelo que a pretendida autorização para o levantamento do segredo profissional e a inerente violação de direitos, liberdades e garantias (de terceiros) não obedece ao princípio da proporcionalidade.
A autora respondeu à contestação, sustentando que o pedido e causa de pedir estão devidamente configurados, tendo os réus conhecimento dos dados que os Serviços de Inspecção necessitam para cruzar a factura com o tratamento médico ou serviço estético subjacente, dados esses relativos ao ano de 2013.
A seguir foi determinado que a autora indicasse os concretos elementos, informações, livros ou documentos em relação aos quais pretende o levantamento do sigilo médico.
A autora, em resposta, indicou que necessita de ter acesso ao processo clínico e respectivo conteúdo ou documentação equivalente, que originou a emissão das facturas que especifica, a fim de aferir o tipo de serviço subjacente à emissão das mesmas e discriminar as facturas em causa.
No decurso da instrução do processo, foi remetido aos autos ofício subscrito pelo Bastonário da Ordem dos Médicos no qual o mesmo – e não propriamente a Ordem ou o seu órgão competente – se pronuncia no sentido de considerar «justificada, face às normas e princípios deontológicos, a invocação de segredo médico por parte do Dr. B… e a consequente recusa em fornecer à Autoridade Tributária e Aduaneira – Direcção de Finanças de Braga, a especificação concreta de serviços que o referido médico prestou aos seus doentes».
Após julgamento, foi proferida sentença na qual se decidiu «autorizar o acesso pela requerente aos elementos dos processos clínicos e respectiva documentação subjacentes à emissão das facturas identificadas no artigo 3º do requerimento de 08-02-2018 no âmbito da acção inspectiva tributária referente ao ano de 2013, com a quebra do correspondente sigilo profissional médico incidente sobre os mesmos, na medida do estritamente necessário para ser efectuada a conciliação entre as patologias clínicas objecto de cuidados médicos e as aludidas facturas».
Do assim decidido, os réus interpuseram recurso de apelação, terminando as respectivas alegações com as seguintes conclusões:
1- A Sentença recorrida obriga os Recorrentes a violar o sigilo profissional médico a que estão adstritos que e, concomitante, permite que a Recorrida proceda ao tratamento de dados pessoalíssimos dos pacientes das Recorrentes (acesso aos respectivos processos clínicos a fim de que seja “efectuada a conciliação entre as patologias clínicas objecto de cuidados médicos e as aludidas facturas.”
2- A protecção do “segredo médico” em si (nas suas variadas acepções e refracções jurídico-normativas), tem como radical último a protecção de direitos, liberdades e garantias dos cidadãos, vale por dizer, a reserva da intimidade da vida estritamente privada dos seus pacientes (que ademais são terceiros em relação à relação jurídico-tributária em que assenta a pretensão da Recorrida).
3- Em patente desconformidade com o artigo 18.º da Constituição, não existe qualquer norma constitucional ou Lei ordinária que preveja a possibilidade de a Administração Tributária restringir tal dais direitos fundamentais (mormente do previsto no n.º 1 do art.º 26º), pelo que não pode a Recorrida ser autorizada a aceder a informação clínica dos cidadãos, muito menos de pacientes /clientes de um contribuinte que seja alvo de inspecção.
4- Mesmo que se admita a teoria das autorizações constitucionais implícitas de restrição de direitos, liberdades e garantias, é insofismável que tais restrições têm, forçosamente, de estar vertidas em Lei na qual se ache a sua justificação, fundamentação e critério de ponderação que seja constitucionalmente conforme – como é exemplo o art.º 135.º do Código do Processo Penal –, no caso dos autos tal não ocorre.
5- O artigo 63º da Lei Geral Tributária, no qual a Recorrida estriba o seu pedido não regula o levantamento da obrigação de violação do segredo profissional, nem tão pouco o acesso a dados clínicos de terceiros.
6- Pelo contrário: o artigo 63º da LGT estabelece um princípio geral de legítima recusa de revelação de factos cobertos pelo segredo profissional e, bem assim, protege os cidadãos, perante a Administração Tributária, da perscrutação sobre factos da sua vida íntima e da violação dos direitos de personalidade e outros direitos, liberdades e garantias dos cidadãos, pelo que, quando correctamente interpretado – não viola, antes protege, os direitos previstos no artigo 26.º da Constituição da República Portuguesa, sendo ilegítimo concluir que o n.º 2 ou n.º 6 deste artigo constituam normas restritivas (ainda que implícitas) de princípios constitucionais.
7- Assim, a interpretação do artigo 63.º da Lei Geral Tributária segundo a qual a mesma permite, para efeitos de inspecção tributária, quer a quebra do segredo profissional quer o acesso a dados da vida íntima e privada dos cidadãos – ademais terceiros perante a relação jurídico-tributária em causa – é material e formalmente inconstitucional por violação dos artigos 26º, 18º e al. b) do n.º 1 do artigo 165.º da Constituição, na medida em que, tratando-se a LGT de Decreto-Lei autorizado, a Assembleia da República não atribuiu poderes ao Governo para legislar sobre restrição de direitos, liberdades e garantias dos cidadãos.
8- A Sentença recorrida não fez a correcta interpretação do artigo 63.º da LGT (antes se abstraiu totalmente dele) e, perante a evidência de que a recusa dos Recorrentes tem guarida legal – entre outros, vide artigo 139º (segredo profissional) do Estatuto da Ordem dos Médicos, aprovado pela Lei 117/2015 de 31 de Agosto, a Base XIII, n.º 2 da Lei de Bases da Saúde - Lei 48/90, a Lei 13/93, de 22 de Abril, o Decreto-Lei 97/94, de 9 de Abril, o Decreto-Lei 26/94, de 1 de Fevereiro, o artigo 7º da Lei 67/98, de 26 de Outubro e o art.º 80º do Código Civil), protecção supraconstitucional (art. 8º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem) e consagração constitucional nos artigos 26.º e 18.º da Constituição decidiu, para “cumprir os mínimos” do princípio da reserva constitucional da restrição legal de direitos, liberdades e garantias, invocar o n.º 4 do artigo 35.º da Constituição.
9- Ora n.º 4 do artigo 35º da Constituição contem um mandamento expresso ao legislador ordinário: este deverá regular as situações excepcionais de permissão a dados de terceiros, da mesma forma que o n.º 2 do artigo 26.º da Constituição comanda que: “A lei estabelecerá garantias efectivas contra a obtenção e utilização abusivas, ou contrárias à dignidade humana, de informações relativas às pessoas e famílias”.
10- Ora, a concretização legislativa dos princípios consagradas nesse n.º 4 do artigo 35º da Constituição (mas também, e mais propriamente, no n.º 2 do artigo 26.º da mesma Lei) dá resposta à questão dos autos que é diametralmente oposta àquela que foi acolhida pela Sentença recorrida.
11- Com efeito, e em cumprimento de tais injunções constitucionais a Assembleia da República (reserva de Lei), aprovou a “Lei da Protecção de Dados Pessoais” – Lei nº 67/98, de 26.10, da qual ressuma que o tratamento de dados pessoais contra ou sem o consentimento do titular consubstancia uma séria violação dos direitos de personalidade, particularmente do direito à reserva da vida privada (com consequências contra-ordenacionais e penais – vide artigos 38º a 49º).
12- Conforme refere Catarina Sarmento e Castro ("Direito da Informática, Privacidade e Dados Pessoais", Almedina, 2005, pág. 91) “consideram-se dados de saúde, não apenas aqueles que resultem do diagnóstico médico feito, mas todos aqueles que permitam apurá-lo, incluindo resultados de análises clínicas, imagens de arames radiológicos, imagens, vídeo ou fotográficas que sirvam o mesmo fim”.
13- Os dados de saúde – i.e., os que estão em causa nos autos – são, ademais, considerados “dados sensíveis” (art.º 7º dessa Lei) e por isso sujeitos a uma disciplina de controlo reforçada e de sanção, mas severa.
14- A Sentença recorrida – pese embora até tenha, por remissão e em en passant, na página 22, feito referência a esta Lei – não cuidou de apurar o que nela se prescrevia, quando, como pugnamos, terá de ser em função desta Lei que se aplica o Direito ao caso vertente,
15- Isto é, nos termos das disposições conjugadas do artigo 26º, 18º, 32 e 35º da CRP, e, bem assim, do que se acha prescrito nos n.º 6 e 2 do artigo 63º da LGT, quer a quebra do segredo profissional a que os Recorrentes estão sujeitos, quer o acesso, por parte da Recorrida, a dados que contendem com factos da vida íntima dos cidadãos (clientes da alegante) só será de autorizar se a Lei 67/98 o permitir.
16- Sucede que o art.º 7º da Lei 67/98 postula, em conformidade com a Constituição, um princípio de proibição do tratamento de tais dados, não se mostrando, in casu, preenchidas as hipóteses excepcionais ab-rogantes desse princípio e que esse artigo prevê.
17- Fica assim claro que a Recorrida não tem direito a exigir que os Recorrentes violem o seu segredo profissional, nem, tão pouco, tem direito a aceder e consultar (“tratar” nos termos legais) os dados sensíveis dos seus pacientes, pelo que a Sentença recorrida andou mal ao não observar o estatuído na Lei 67/98, assim se concluindo que o decidido é ilegal e viola a Constituição, devendo, consequentemente, ser tal decisão expurgada da ordem jurídica.
sem prescindir
18- A Sentença, mesmo dentro das fronteiras equivocadas em que delimita o seu raciocínio, parte de uma falácia que sempre determinaria sorte diferente à acção, pois que não vem imputado aos Recorrentes a prática de qualquer acto tendente a ferir os interesses públicos invocados.
19- Na verdade, e como resulta do probatório (vide facto 6), a Recorrida pretende, tão-somente, e em fase de inspecção (isto é, de mera averiguação sobre a actuação da Recorrente) que esta viole o segredo médico e devassar a intimidade da vida privada dos seus pacientes, tendo apenas e unicamente por base o entendimento da Recorrida quanto ao suposto incumprimento das normas do Código do IVA por banda da Recorrente relativamente à extensão da informação que deve constar do descritivo das facturas que emite pelos serviços médicos que presta.
20- Note-se que a Recorrente prestou toda a colaboração que legalmente lhe era possível (facto 8) declarando em sede inspectiva que “todas as intervenções médicas executadas pela sociedade C… … correspondem a actos médicos que visam diagnosticar a tratar de forma preventiva ou reactiva uma concreta situação de saúde. Nuns casos de índole curativa de uma situação de falta de saúde, noutros hipóteses, de índole preventiva, destinadas a evitar a verificação futura de casos de doença física.”
21- Ora, o n.º 1 do art. 75.º da Lei Geral Tributária estabelece uma presunção legal de veracidade das declarações dos contribuintes, bem como dos dados que constam da sua contabilidade e escrita, o que significa que, se a AT, aqui Recorrida, não demonstrar a falta de correspondência com a realidade do teor das declarações estas são consideradas verdadeiras.
22- Do probatório não resulta qualquer facto que possa elidir, ou ad minimum fazer vacilar, a presunção de veracidade de que a Recorrente goza, pelo que a Sentença faz tábua rasa do princípio ínsito no art.º 75.º da LGT e pretende que a Recorrente viole o seu dever de sigilo visando obter elementos que, pela sua natureza intrínseca, são núcleos fundamentais da intimidade da vida privada dos seus pacientes.
23- Assim, inexistindo nos autos qualquer indício de que a Recorrente tenha efectuado serviços não isentos de IVA, não se pode aceitar como verdadeira a assunção, por parte da Sentença recorrida, de que a ponderação dos valores conflituantes seja entre valores constitucionalmente protegidos, antes, e como alegado na petição inicial, a única suposta inconformidade que a Recorrida detectou prender-se á com a suposta (in)observância das regras de forma e conteúdo do dever de facturação.
24- A apontada omissão da descrição “detalhada” a que alude o pelo art. 36º, n.º 5, al. b) do CIVA não bule com os princípios constitucionais invocados pela Sentença recorrida, desde logo porque a descrição não específica (como por exemplo prestação de serviços médicos), ademais associada à declaração da Recorrente, permite conhecer os elementos essências à dinâmica do imposto, como sejam, o valor da prestação e/ou valor tributável, o momento da sua realização, a taxa de imposto aplicável e a norma de isenção, bem como a identificação do prestador e do adquirente.
25- Fica, pois, à vista que o mal julgado pela Sentença recorrida radica, também, no facto de, para construir o seu raciocínio e fundamentar a decisão, partir do pressuposto de que existiam dois valores constitucionais em colisão, quando, na verdade, a “falha” apontada à Recorrente não é a da lesar o erário público, mas sim o de não ter emitido as facturas in questio com o rigor e preciosismo que, no entender da Recorrida, o artigo 35.º do CIVA impõe.
26- Se se entender diversamente, no que não se concede, o artigo 63.º da LGT sempre será inconstitucional quando interpretado no sentido em que o dever de colaboração em sede inspectiva, mormente em situações em que o obrigado à colaboração está sujeito a dever de sigilo médico, pode violar a reserva da vida privada, no caso, de terceiros, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 26.º e 18.º da Constituição da República Portuguesa.
27- Assim como será inconstitucional, pela violação das mesmas normas e princípios constitucionais, a interpretação da al. b) do n.º 5 do artigo 36.º do Código do IVA segundo a qual as menções que deverão constar das facturas inerentes a actos clínicos deverão relevar dados clínicos dos pacientes/clientes sujeitos a sigilo médico.
também sem prescindir
28- Cumpre ponderar se, na hipótese de se tratar de um caso de colisão entre direitos e interesses constitucionalmente protegidos, deverá ou não sobrelevar o dever de guardar segredo médico, por contender directamente com a reserva da intimidade da vida privada.
29- O que a Recorrida pretende, em bom rigor, é, no exercício da sua actividade estritamente administrativa, ultrapassar a presunção de veracidade das declarações da ora Recorrente e devassar a vida privada dos seus pacientes, sobrepondo o “ius imperii” da sua actuação aos Direitos, Liberdades e Garantias que a Constituição vincou precisamente a fim de evitar essa dimensão abusiva da autorictas do Estado.
30- Assim, sempre o Tribunal a quo deveria ter concluído que o pedido de levantamento do sigilo médico seria desproporcional em face dos valores em presença, não tendo a Sentença recorrida sopesado que a pretensão da Recorrida ocorre numa fase administrativa/inspectiva – e não numa fase judicial –, sem que tenham sido apurados quaisquer factos que coloquem em causa a veracidade da declaração da Recorrente.
31- Aliás, toda a fundamentação da Sentença a quo louva-se nos Acórdãos proferidos pelo Tribunal da Relação do Porto de 13/03/2013 (tirado no proc. 605/10.1T3AVR-A.P1) e de 10-10-2018 (proc. 544/17.5GBOAZ-A.P1) – decisões prolatadas em processo penal e em concreto, resolvendo dissídios inerentes ao artigo 135.º do Código Penal – que não têm qualquer paralelismo com os presentes autos.
32- Em suma: a Recorrida está actuar na veste de entidade administrativa, sendo que a previsão de Direitos, Liberdades e Garantias na Constituição visa, também, se não primacialmente, proteger os direitos dos cidadãos em face do Estado e da Administração, sendo tal visão tributária do princípio da sociedade livre e democrática que a Constituição de 1976 corporiza.
33- Com efeito a violação dos direitos, liberdades e garantias constitucionalmente protegidos dos pacientes que procuram os serviços médicos dos Recorrentes sempre deveriam, no caso concreto, prevalecer sobre a actividade meramente investigatória da Administração – mesmo considerando os “interesses públicos prosseguidos, tais como a distribuição equitativa da contribuição para os gastos públicos e o dever fundamental de pagar impostos” (cf. p. 24 da Sentença).
34- Em suma, o pretendido pela Autoridade Tributária – e sancionado pela Sentença recorrida – consubstancia uma violação das disposições constitucionais e legais sobre a confidencialidade e reserva da intimidade da vida privada, não se encontrando razões objectivas nem de boa exegese jurídica que permitam o sacrifício desses direitos fundamentais.
35- A supressão do direito à intimidade da vida privada que a AT pretendeu que os Requeridos perpetrassem – e que a primeira instância autorizou – não passa no teste da concordância prática, no juízo de proporcionalidade e não reveste o requisito de indispensabilidade que teriam de estar reunidos para que – mesmo na desacertada tese da Sentença recorrida – a presente acção tivesse hipóteses de procedência.
36- A Sentença recorrida violou, eventualmente entre outras normas e princípios jurídicos, os artigo 63.º e 75.º da LGT o art.º 139º do Estatuto da Ordem dos Médicos, aprovado pela Lei 117/2015 de 31 de Agosto, a Base XIII, n.º 2 da Lei de Bases da Saúde (Lei 48/90, a Lei 13/93, de 22 de Abril), o Decreto-Lei 97/94, de 9 de Abril, o Decreto-Lei 26/94, de 1 de Fevereiro, o artigo 7º da Lei 67/98, de 26 de Outubro, o art.º 80º do Código Civil, o artigo 8º da Convenção Europeia e os artigos 26.º, 34º e 18.º da Constituição.
Nestes termos, e nos melhores de Direito que V. Exas. suprirão, deverá o presente recurso ser julgado procedente e, inerentemente, a Sentença a quo ser revogada e substituída por outra que indefira o impetrado pela Recorrida, com o que V. Exas. farão a habitual e sã Justiça.
A AT recorrida respondeu a estas alegações defendendo a falta de razão dos fundamentos do recurso e pugnando pela manutenção do julgado.
Após os vistos legais, cumpre decidir.

II. Questões a decidir:
As conclusões das alegações de recurso demandam desta Relação que decida as seguintes questões:
1- Se não existe lei que possibilite à Administração Tributária aceder a informação clínica dos cidadãos pacientes de um contribuinte que seja alvo de inspecção.
2- Se o artigo 63.º da Lei Geral Tributária, interpretado no sentido em que permite a quebra do segredo profissional e o acesso a dados da vida intima e privada dos cidadãos, é formalmente inconstitucional por falta de autorização da Assembleia da República para legislar sobre restrição de direitos, liberdades e garantias dos cidadãos.
3- Se a quebra do segredo e o acesso a dados da vida íntima dos cidadãos só será de autorizar se a Lei da Protecção de Dados Pessoais o permitir e esta não o permite.
4- Se no caso não existe qualquer colisão entre direitos e interesses constitucionalmente protegidos.
5- Se nas concretas circunstâncias do caso os direitos dos utentes dos cuidados de saúde devem prevalecer sobre a pretensão da Administração.

III. Os factos:
Na decisão recorrida foram julgados provados os seguintes factos:
1. O 1.º requerido é médico e desenvolve a prestação de serviços para a 2ª requerida na área da cirurgia plástica.
2. A 2.ª requerida é uma sociedade comercial, que se encontra registada sobre o Código de Classificação das Actividades Económicas nº ……, ao qual corresponde a designação de “Outras Actividades de Saúde Humana, N.E.” e desenvolve a actividade sempre com a intervenção do 1.º requerido.
3. No âmbito das funções da requerente foi solicitada a realização de uma acção inspectiva aos anos de 2011, 2012 e de 2013 tendo em vista “o apuramento do verdadeiro enquadramento em sede de IVA e dos impostos que porventura se encontrem em falta”.
4. A 2.ª requerida optou por passagem de facturas-recibos, alguns são emitidos sem data, sem o número de identificação fiscal do cliente, sem a descrição dos serviços efectuados.
5. A contabilidade da 2.ª requerida, no exercício de 2013, evidencia a escrituração de prestações de serviços efectuadas a título de honorários médicos, consultas e outras realizados na clínica, a clientes seus, nas facturas identificadas no artigo 3º do requerimento de 08-02-2018, cujo teor aqui se dá integralmente por reproduzido, cuja não tributação enquadra como isentas nos termos do art.º 9.º do CIVA.
6. A 2.ª requerida foi notificada através do ofício …….. de 18/07/2016, para prestar esclarecimentos sobre qual a concreta e específica prestação de serviço efectuada, bem como qual a finalidade que subjaz à mesma.
7. Solicitaram os Serviços de Inspecção que a 2.ª requerida identificasse os casos de cirurgias de índole curativa, preventiva ou de doença, quais as patologias clinicas e as respectivas facturas emitidas, com vista à comprovação da isenção do IVA invocada.
8. Em 21/09/2016, respondendo à notificação acima referida, a 2ª requerida indicou, que: “todas as intervenções médicas executadas pela sociedade C… correspondem a actos médicos que visam diagnosticar a tratar de forma preventiva ou reactiva uma concreta situação de saúde. Nuns casos de índole curativa de uma situação de falta de saúde, noutros hipóteses, de índole preventiva, destinadas a evitar a verificação futura de casos de doença física.”
9. E no que concerne ao segmento da notificação para que fosse efectuada a conciliação entre as patologias clínicas objecto de cuidados médicos e as facturas emitidas, “…tal pretensão da Inspecção tributária contende com a reserva de intimidade da vida privada dos pacientes ”, alegando a vinculação ao dever de segredo médico profissional.”.
10. Foi solicitada pelos Serviços de Inspecção a visualização de relatórios médicos de algumas clientes, a fim de se aferir o tipo de serviço subjacente aos documentos emitidos (honorários e depilação a laser), tendo o Dr. B… alegado que tais relatórios feriam a intimidade das suas clientes e, mais, estavam sujeito ao sigilo profissional, pelo que não deu acesso aos mesmos.
11. Procederam os Serviços de Inspecção a uma amostragem dos documentos de facturação.
12. Em relação ao tipo de serviço prestado muitos aparecem com as seguintes descrições: a. Honorários médicos; b. Consultas; c. Depilações a laser.
13. Nas facturas não são descritas as cirurgias de “Mamoplastia de aumento”, apesar da 2ª requerida as efectuar.
14. A sociedade requerida foi inspeccionada relativamente aos anos 2011, 2012 e 2013, mas também quanto aos anos 2008, 2009 e 2010.
15. Quanto aos anos 2008 a 2010, os actos tributários foram anulados por sentença judicial proferida pelo Tribunal Administrativo e Fiscal de Braga (UO 2) no âmbito do proc. n.º 848/13.6BEBRG e já transitada, nos termos constantes de fls. 286 a 303 cujo teor aqui se dá integralmente por reproduzido.
16. A Autoridade Tributária já concluiu as respectivas acções inspectivas, já produziu os inerentes relatórios fundamentadores e já emitiu as concernentes liquidações adicionais de imposto relativamente os anos de 2011 e 2012.
17. A sociedade requerida apresentou as impugnações judiciais que correm os seus termos respectivamente sob os n.ºs 993/16.6BEBRG e 809/17.6BEBRG junto do Tribunal Administrativo e Fiscal de Braga, nos termos constantes de fls. 77 a 233 cujo teor aqui se dá integralmente por reproduzido.
18. A Autoridade Tributária não requereu o levantamento do sigilo médico no decurso da acção inspectiva relativa àqueles anos económicos.
19. A sociedade requerida presta actos médicos no âmbito da especialidade médica de cirurgia plástica reconstrutiva e estética.

IV. O mérito do recurso:
A] questão prévia:
O presente recurso foi apresentado da sentença proferida no âmbito de uma acção especial para suprimento de consentimento.
Essa foi a forma de processo mandada seguir para tramitar o pedido da autora, Autoridade Tributária, de «levantamento do segredo profissional» invocado por um contribuinte e «a necessária autorização judicial à Autora».
A autoridade Tributária tinha no entanto indicado a seguinte forma do processo: «acção de processo especial de suprimento de segredo profissional».
Esta forma de processo não existe. Existe sim a forma de processo denominada por «acção especial de suprimento», prevista nos artigos 1.000.º e seguintes do Código de Processo Civil.
Todavia, nenhum destes preceitos se refere à dispensa ou levantamento do sigilo profissional – prevêem apenas o suprimento do consentimento, o suprimento de deliberação da assembleia de condóminos, o suprimento da falta de nomeação de administrador na propriedade horizontal e a determinação judicial de prestação ou de preço – pelo que em virtude do princípio da especialidade das formas de processo (artigo 549.º do Código de Processo Civil) essa forma não é adequada àquele objectivo.
Todavia, uma vez que nos termos do artigo 2.º, n.º 2, do Código de Processo Civil, a todo o direito corresponde necessariamente uma acção adequada a fazê-lo reconhecer em juízo, aquela constatação não significa que não haja um meio processual – que possui uma forma – de suscitar o levantamento do segredo.
Normalmente esta questão suscita-se no âmbito de uma acção judicial pendente no decurso da qual uma pessoa, parte na causa ou não, recusa a colaboração que lhe foi pedida invocando o sigilo profissional. A questão é então tramitada como um incidente da própria acção e decidida em termos incidentais.
No caso existe uma disposição legal que consente a dedução do pedido de levantamento sem que haja qualquer acção instaurada e sem que se antevenha a necessidade de a mesma ser instaurada, com a agravante de a matéria substancial a decidir e para cuja instrução se pretende o levantamento não caber depois sequer no âmbito de competência material do tribunal judicial, mas antes ao tribunal administrativo e fiscal.
Ao remeter sem mais para os trâmites do levantamento do sigilo profissional, os quais se encontram definidos de forma perfunctória e imperfeita em normas avulsas do Código de Processo Civil e do Código de Processo Penal, aquela disposição parece dever ser interpretada como consentido a dedução do incidente do levantamento do sigilo não através de uma acção específica para o efeito mas ainda por via de um incidente, mesmo sem acção pendente e por isso a distribuir na espécie 9.ª prevista no artigo 212.º do Código de Processo Civil, sendo depois tramitada como incidente – autónomo – de levantamento do sigilo profissional.
A entender-se assim, o que atenta a deficiência da regulação processual da questão admitimos que seja controverso e recusado por alguns, a forma de processo mandada seguir não seria a própria para tramitar o incidente.
Como quer que seja, esse vício, para além de determinar apenas que se seguissem os termos do incidente, com eventual necessidade de ajustar o requerimento a essa tramitação (artigo 193.º do Código de Processo Civil), ficou sanado com a prolação do despacho saneador ou com a sentença final (artigo 200.º, n.º 2, do Código de Processo Civil).
Acresce que nenhuma questão vem suscitada a esse respeito nas alegações de recurso, pelo que nada há também que decidir a esse respeito nessa sede.

B] do levantamento do dever de sigilo:
A Autoridade Tributária encetou uma acção inspectiva à sociedade ré relativa aos exercícios dos anos de 2011, 2012 e 2013 tendo em vista «o apuramento do verdadeiro enquadramento em sede de IVA e dos impostos que porventura se encontrem em falta».
Nessa acção apurou que, por referência aos actos comerciais que praticou, a ré passou facturas-recibos, algumas das quais sem data, sem o número de identificação fiscal do cliente e sem a descrição dos serviços efectuados.
Uma vez que na contabilidade da ré, no exercício de 2013, estão escrituradas prestações de serviços efectuadas a título de honorários médicos, consultas e outras realizados na clínica, como estando isentas de tributação em IVA nos termos do art.º 9.º do CIVA, a Administração Tributária pretendeu saber mais pormenores sobre os actos praticados para saber que tratamento em sede de IVA lhe corresponde e, portanto, determinar se o modo como estão contabilizados está correcta, isto é, saber se estavam mesmo isentos de IVA ou não.
Para o efeito, solicitou à ré que esclarecesse qual a concreta e específica prestação de serviço efectuada e qual a finalidade da mesma, especificando os casos de cirurgias de índole curativa, preventiva ou de doença e as patologias clinicas que determinaram a prestação do serviço, estabelecendo a correspondência entre a factura/recibo e o serviço que lhe corresponde.
A ré respondeu que «todas as intervenções médicas executadas … correspondem a actos médicos que visam diagnosticar e tratar de forma preventiva ou reactiva uma concreta situação de saúde» e que não faria a conciliação entre as patologias clínicas objecto de cuidados médicos e as facturas emitidas porque isso «contende com a reserva de intimidade da vida privada dos pacientes» e invocando para isso o «dever de segredo médico profissional».
Perante isso a Autoridade Tributária veio solicitar ao tribunal de comarca o levantamento do dever de sigilo, levantamento que foi determinado pelo tribunal a quo, insurgindo-se agora os réus contra tal decisão.
Convém começar por acentuar que o objecto do presente incidente e, consequentemente, do recurso, se cinge à dispensa do levantamento do sigilo profissionalmédico – invocado pelos réus e, portanto, à verificação dos respectivos requisitos.
Toda a discussão sobre a isenção de tributação em IVA dos actos médicos praticados pela ré, através do réu médico, é estranha ao presente incidente e não faz parte das questões a decidir.
Da mesma forma que não cabe apreciar aqui se é sobre a Administração que recai o ónus da prova de que não se verificam as condições da isenção do imposto ou é o contribuinte que tem de provar que essas condições estão verificadas. Tratar-se-á de questão da competência material dos Tribunais Administrativos e Fiscais se a acção inspectiva vier a resultar numa liquidação adicional de imposto pela Autoridade Tributária e o contribuinte apresentar uma impugnação judicial dessa liquidação.
Para o efeito, aceitaremos pois que é discutível se a isenção mencionada pela ré nas facturas/recibos do exercício de 2013 é correcta e, como tal, que a Autoridade Tributária tem legítimo interesse em apurar as circunstâncias dos actos médicos correspondentes às facturas /recibos que mencionam a isenção do imposto para efeitos de liquidação adicional do respectivo imposto.
O artigo 63.º da Lei Geral Tributária aprovado pelo Decreto-Lei n.º 398/98, de 17 de Dezembro, estabelece, no que aqui interessa, o seguinte:
«1 - Os órgãos competentes podem, nos termos da lei, desenvolver todas as diligências necessárias ao apuramento da situação tributária dos contribuintes, nomeadamente:
[…] b) Examinar e visar os seus livros e registos da contabilidade ou escrituração, bem como todos os elementos susceptíveis de esclarecer a sua situação tributária; […]
2 - O acesso à informação protegida pelo segredo profissional ou qualquer outro dever de sigilo legalmente regulado depende de autorização judicial, nos termos da legislação aplicável.
[…] 4 - O procedimento da inspecção e os deveres de cooperação são os adequados e proporcionais aos objectivos a prosseguir, só podendo haver mais de um procedimento externo de fiscalização respeitante ao mesmo sujeito passivo ou obrigado tributário, imposto e período de tributação mediante decisão, fundamentada com base em factos novos, do dirigente máximo do serviço, salvo se a fiscalização visar apenas a confirmação dos pressupostos de direitos que o contribuinte invoque perante a administração tributária e sem prejuízo do apuramento da situação tributária do sujeito passivo por meio de inspecção ou inspecções dirigidas a terceiros com quem mantenha relações económicas.
5 - A falta de cooperação na realização das diligências previstas no n.º 1 só será legítima quando as mesmas impliquem:
[…] b) A consulta de elementos abrangidos pelo segredo profissional ou outro dever de sigilo legalmente regulado, à excepção do segredo bancário, realizada nos termos do n.º 3;
c) O acesso a factos da vida íntima dos cidadãos;
d) A violação dos direitos de personalidade e outros direitos, liberdades e garantias dos cidadãos, nos termos e limites previstos na Constituição e na lei.
6 - Em caso de oposição do contribuinte com fundamento nalgumas circunstâncias referidas no número anterior, a diligência só poderá ser realizada mediante autorização concedida pelo tribunal da comarca competente com base em pedido fundamentado da administração tributária
Resulta deste preceito legal que no âmbito da realização de acções inspectivas, a Administração Tributária pode, respeitando as normas legais pertinentes, desenvolver todas as diligências necessárias ao apuramento da situação tributária dos contribuintes, nomeadamente examinar os livros e registos da contabilidade ou escrituração e todos os elementos susceptíveis de esclarecer a sua situação tributária.
Resulta igualmente que o acesso à informação protegida pelo segredo profissional ou qualquer outro dever de sigilo legalmente regulado depende de autorização judicial, nos termos da legislação aplicável.
Por outras palavras, a Administração Tributária encontra-se, como qualquer outra entidade pública, obrigada a respeitar os direitos dos titulares da informação protegida por segredo profissional ou outro dever de sigilo consagrado na lei e, portanto, se a informação dever ser mantida sob reserva a Autoridade Tributária a ela não pode aceder de motu próprio.
Resulta de seguida que o contribuinte está sujeito ao dever de cooperação com a Autoridade Tributária para o apuramento da respectiva situação tributária. Essa cooperação, bem como o âmbito das diligências a realizar pela Autoridade no decurso da inspecção, depende das circunstâncias concretas e dos objectivos a prosseguir pela Administração, mas, em qualquer caso, deve reger-se pelos princípios da adequação e proporcionalidade.
O contribuinte pode escusar-se a prestar a colaboração devida quando se tratar da consulta de elementos ou informações abrangidos pelo segredo profissional ou outro dever de sigilo legalmente regulado, do acesso a factos da vida íntima dos cidadãos ou a colaboração importar a violação dos direitos de personalidade e outros direitos, liberdades e garantias dos cidadãos, nos termos e limites previstos na Constituição e na lei.
Nos termos da norma citada, esta escusa não constitui, porém, um direito absoluto do contribuinte. Se ele se escusar a colaborar com invocação de qualquer uma dessas situações, a Administração Tributária poderá pedir ao tribunal de comarca, de forma fundamentada, autorização para que a diligência seja realizada apesar da situação invocada. Feito o pedido, caberá ao tribunal decidir se autoriza ou não a quebra do segredo para efeitos de acesso pela Administração Tributária à informação necessária para o apuramento do imposto.
No caso, a diligência pretendida e para cuja realização se pede a autorização judicial consiste no acesso ao processo clínico e respectivo conteúdo ou documentação equivalente que originou a emissão das facturas especificadas pela Administração, isto é, a documentos médicos e clínicos em poder da ré referentes aos respectivos clientes para determinação da natureza dos actos médicos que lhes foram prestados em ordem a aferir se a remuneração da prestação desses serviços é isenta de IVA, como o contribuinte pretende, ou não.
O artigo 139.º do Estatuto da Ordem dos Médicos, aprovado pela Lei n.º 117/2015, de 31 de Agosto, regula nos seguintes termos o dever do médico de guardar «segredo profissional»:
«1- O segredo médico profissional pressupõe e permite uma base de verdade e de mútua confiança e é condição essencial ao relacionamento médico-doente, assentando no interesse moral, social, profissional e ético, tendo em vista a reserva da intimidade da vida privada.
2- O segredo médico profissional abrange todos os factos que tenham chegado ao conhecimento do médico no exercício da sua profissão ou por causa dela e compreende especialmente:
a) Os factos revelados directamente pela pessoa, por outrem a seu pedido ou por terceiro com quem tenha contactado durante a prestação de cuidados ou por causa dela;
b) Os factos apercebidos pelo médico, provenientes ou não da observação clínica do doente ou de terceiros;
c) Os factos resultantes do conhecimento dos meios complementares de diagnóstico e terapêutica referentes ao doente;
d) Os factos comunicados por outro médico ou profissional de saúde, obrigado, quanto aos mesmos, a segredo.
3- A obrigação de segredo profissional existe quer o serviço solicitado tenha ou não sido prestado e seja ou não remunerado.
[…] 6 - Exclui-se do dever de segredo profissional:
a) O consentimento do doente ou, em caso de impedimento, do seu representante legal, quando a revelação não prejudique terceiras pessoas com interesse na manutenção do segredo profissional;
b) O que for absolutamente necessário à defesa da dignidade, da honra e dos legítimos interesses do médico, do doente ou de terceiros, não podendo em qualquer destes casos o médico revelar mais do que o necessário, nem o podendo fazer sem prévia autorização do bastonário […].
De modo concordante, o artigo 29.º do Código Deontológico da Ordem dos Médicos aprovado pelo Regulamento n.º 707/2016 (Regulamento de Deontologia Médica) publicado no Diário da República, 2.ª série, de 21 de Julho de 2016, estabelece o seguinte sobre o segredo médico:
«O segredo médico é condição essencial ao relacionamento médico-doente, assenta no interesse moral, social, profissional e ético, que pressupõe e permite uma base de verdade e de mútua confiança.»
O artigo 30.º do mesmo Código define o âmbito do segredo médico nos seguintes termos:
«1- O segredo médico impõe-se em todas as circunstâncias dado que resulta de um direito inalienável de todos os doentes.
2- O segredo abrange todos os factos que tenham chegado ao conhecimento do médico no exercício da sua profissão ou por causa dela e compreende especialmente:
a) Os factos revelados directamente pela pessoa, por outrem a seu pedido ou por terceiro com quem tenha contactado durante a prestação de cuidados ou por causa dela;
b) Os factos apercebidos pelo médico, provenientes ou não da observação clínica do doente ou de terceiros;
c) Os factos resultantes do conhecimento dos meios complementares de diagnóstico e terapêutica referentes ao doente;
d) Os factos comunicados por outro médico ou profissional de saúde, obrigado, quanto aos mesmos, a segredo.
3- A obrigação de segredo médico existe, quer o serviço solicitado tenha ou não sido prestado e quer seja ou não remunerado. […]»
O artigo 32.º estabelece as condições em que o segredo médico é excluído, prescrevendo o seguinte:
«Excluem o dever de segredo médico:
a) O consentimento do doente ou, em caso de impedimento, do seu representante legal, quando a revelação não prejudique terceiras pessoas com interesse na manutenção do segredo médico;
b) O que for absolutamente necessário à defesa da dignidade, da honra e dos legítimos interesses do médico, do doente ou de terceiros, não podendo em qualquer destes casos o médico revelar mais do que o necessário, nem o podendo fazer sem prévia autorização do Bastonário;
c) O que revele um nascimento ou um óbito;
d) As doenças de declaração obrigatória.»
O artigo 39.º, relativo à informação médica, tem o seguinte conteúdo normativo:
«1- A informação médica é a informação de saúde destinada a ser utilizada em prestações de cuidados ou tratamentos de saúde.
2- Entende-se por «processo clínico» qualquer registo, informatizado ou não, que contenha informação de saúde sobre doentes ou seus familiares.
3- Cada processo clínico deve conter toda a informação médica disponível que diga respeito ao doente.
4- A informação médica é inscrita no processo clínico pelo médico que tenha assistido o doente ou, sob a supervisão daquele, por outro profissional igualmente sujeito ao dever de segredo.
5 — O processo clínico só pode ser consultado por médico incumbido da realização de prestações de saúde a favor do doente a que respeita ou, sob a supervisão daquele, por outro profissional de saúde obrigado a segredo e na medida do estritamente necessário à realização das mesmas, sem prejuízo da investigação epidemiológica, clínica ou genética que possa ser feita sobre os mesmos.
E o artigo 40.º dispõe o seguinte:
«1- O médico, seja qual for o enquadramento da sua acção profissional, deve registar, de forma clara e detalhada, os resultados que considere relevantes das observações clínicas dos doentes a seu cargo, conservando -os ao abrigo de qualquer indiscrição, de acordo com as normas do segredo médico.
2- A ficha clínica é o registo dos dados clínicos do doente, das anotações pessoais do médico e tem como finalidade a memória futura e a comunicação entre os profissionais que tratem o doente.
3- O doente tem direito a conhecer a informação registada no seu processo clínico, a qual lhe é transmitida, se requerida, pelo próprio médico assistente ou, no caso de instituição de saúde, por médico designado pelo doente para este efeito.
4- Sempre que tenha de facultar informação do processo clínico o médico tem o direito de expurgar as suas anotações pessoais e o dever de não fornecer informações sujeitas a segredo de terceiros e não comunicar circunstâncias que, a serem conhecidas pelo paciente, poriam em perigo a sua vida ou seriam susceptíveis de lhe causar grave dano à saúde, física ou psíquica.
5- Os exames complementares de diagnóstico e terapêutica são lhe facultados quando este os solicite, aceitando-se no entanto que o material a fornecer seja constituído por cópias correspondentes aos elementos constantes do processo clínico.»
O Regulamento de Dispensa de Segredo Profissional da Ordem dos Médicos, aprovado pelo Regulamento n.º 228/2019, publicado no Diário da República, 2.ª série, de 15 de Março de 2019, contém uma disposição sobre os critérios a observar na decisão de dispensa do segredo profissional dos médicos. O respectivo artigo 4.º estatui que:
«1- A dispensa do segredo profissional tem carácter de excepcionalidade.
2- A autorização para revelar factos abrangidos pelo segredo profissional, apenas é permitida quando seja inequivocamente necessária para a defesa da dignidade, da honra e dos legítimos interesses do próprio médico, do doente ou de terceiros.
3- A decisão do Bastonário, ou daquele em quem tenha sido delegada a competência, aferirá da essencialidade, actualidade, exclusividade e imprescindibilidade do meio de prova sujeito a segredo, considerando e apreciando livremente os elementos de facto trazidos aos autos pelo requerente da dispensa.»
Demos ainda ter presente o disposto nos seguintes preceitos da Lei n.º 12/2005, de 26 de Janeiro, relativa à informação genética pessoal e informação de saúde:
«Os responsáveis pelo tratamento da informação de saúde devem tomar as providências adequadas à protecção da sua confidencialidade, garantindo a segurança das instalações e equipamentos, o controlo no acesso à informação, bem como o reforço do dever de sigilo e da educação deontológica de todos os profissionais.» - Artigo 4.º
«Entende-se por «processo clínico» qualquer registo, informatizado ou não, que contenha informação de saúde sobre doentes ou seus familiares.» - Artigo 5.º, n.º 2
«A informação de saúde, incluindo os dados clínicos registados, resultados de análises e outros exames subsidiários, intervenções e diagnósticos, é propriedade da pessoa, sendo as unidades do sistema de saúde os depositários da informação, a qual não pode ser utilizada para outros fins que não os da prestação de cuidados e a investigação em saúde e outros estabelecidos pela lei.» - Artigo 3.º, n.º 1
Não há pois dúvida de que nos encontramos perante documentos e informações abrangidos pelo dever de segredo profissional dos médicos e/ou sociedades de prestação de serviços médicos.
O segredo profissional a que os médicos se encontram vinculados visa a protecção da intimidade da vida privada do doente. O que se pretende não é esconder os factos de natureza clínica que o médico observou ou lhe foram transmitidos, é sim reservar para o doente o direito de ser ele a decidir se divulgar e como divulgar os factos que lhe respeitam, segundo o seu próprio critério e interesse pessoal. E isso não pela relevância ou interesse da informação mas porque a mesma respeita a um segmento da vida pessoal do doente que integra a sua esfera de privacidade e pessoalidade.
Sucede, no entanto, que muito embora seja esse o objectivo que preside ao estabelecimento e à manutenção do dever de sigilo, a lei admite a possibilidade de em determinados casos o mesmo ser excluído, conforme prevê expressamente o n.º 6 do artigo 139.º do Estatuto da Ordem dos Médicos.
O artigo 26.º da Constituição da Republica Portuguesa dispõe que:
«1. A todos são reconhecidos os direitos à identidade pessoal, ao desenvolvimento da personalidade, à capacidade civil, à cidadania, ao bom nome e reputação, à imagem, à palavra, à reserva da intimidade da vida privada e familiar e à protecção legal contra quaisquer formas de discriminação.
2. A lei estabelecerá garantias efectivas contra a obtenção e utilização abusivas, ou contrárias à dignidade humana, de informações relativas às pessoas e famílias. […]»
Segundo Gomes Canotilho e Vital Moreira, in Constituição Anotada, 3.ª edição revista, Coimbra Editora, 1993, pág. 181, o direito à intimidade da vida privada e familiar inclui «dois direitos menores: a) o direito a impedir o acesso de estranhos a informações sobre a vida privada e familiar; e b) o direito a que ninguém divulgue as informações que tenha sobre a vida privada e familiar de outrem.
Segundo Rui Medeiros e António Cortês, in Constituição Portuguesa Anotada, Tomo I, 2010, pág. 620, «a tutela constitucional de uma reserva de intimidade da vida privada e familiar confere a faculdade de conservar na esfera não pública e reservada dos cidadãos todos os dados pessoais quer pertençam à sua vida privada e familiar, dispondo o respectivo titular o direito de impedir o acesso, emprego e revelação desses dados, em moldes que não tenham sido previamente autorizados.»
Segundo Paulo Mota Pinto, in A Protecção da Vida Privada e a Constituição, Boletim da Faculdade de Direito, Universidade de Coimbra, vol. LXXVI, pp. 153 e segs., «em princípio, o direito à reserva da intimidade da vida privada incluirá [...] também um dever de respeitar o segredo, isto é, a proibição de acções com o objectivo de tomar conhecimento ou de obter informações sobre a vida privada de outrem, que devem ser consideradas intrusivas».
Reconhecendo que este direito não é absoluto em todos os casos e relativamente a todos os domínios, o mesmo autor, in O Direito à Reserva sobre a Intimidade da Vida Privada, Boletim da Faculdade de Direito, Universidade de Coimbra, LXIX, págs. 508 e 509, afirma que «podemos verificar que a “infra-estrutura” teleológica do problema da tutela da privacy é caracterizada por uma fundamental contraposição: de um lado, o interesse do indivíduo na sua privacidade, isto é, em subtrair-se à atenção dos outros, em impedir o acesso a si próprio ou em obstar à tomada de conhecimento ou à divulgação de informação pessoal (interesses estes que, resumindo, poderíamos dizer serem os interesses em evitar a intromissão dos outros na esfera privada e em impedir a revelação da informação pertencente a essa esfera), de outro lado, fundamentalmente o interesse em conhecer e em divulgar a informação conhecida, além do mais raro em ter acesso ou controlar os movimentos do indivíduo - interesses que ganharão maior peso se forem também interesses públicos
O artigo 18.º da Constituição estabelece que:
«1. Os preceitos constitucionais respeitantes aos direitos, liberdades e garantias são directamente aplicáveis e vinculam as entidades públicas e privadas.
2. A lei só pode restringir os direitos, liberdades e garantias nos casos expressamente previstos na Constituição, devendo as restrições limitar-se ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos.
3. As leis restritivas de direitos, liberdades e garantias têm de revestir carácter geral e abstracto e não podem ter efeito retroactivo, nem diminuir a extensão e o alcance do conteúdo essencial dos preceitos constitucionais.»
Gomes Canotilho, in Direito Constitucional e Teoria da Constituição, 5.ª ed., pág. 448, ensina que a autorização de restrição expressa de um direito fundamental «tem como objectivo obrigar o legislador a procurar sempre nas normas constitucionais o fundamento concreto para o exercício da sua competência de restrição de direitos, liberdades e garantias», de modo a criar segurança jurídica nos cidadãos, que poderão contar com a inexistência de medidas restritivas de direitos fora dos casos expressamente considerados pelas normas constitucionais como sujeitos a reserva de lei restritiva.
Desse modo, a intervenção normativa abstracta do legislador ordinário que importe a restrição de direitos fundamentais só pode ocorrer nos termos autorizados pela norma constitucional e nos casos nela previstos. Nalgumas situações a própria Constituição delimita a restrição (cf. artigo 34.º, n.º 4, em relação ao direito à inviolabilidade das comunicações). Noutros casos, ao remeter para «os termos da lei» (v.g. artigo 18.º, n.º 2) a Constituição atribui uma competência genérica de regulação que pode ser interpretada como incluindo poderes de restrição. Nestas situações é a lei que cria a restrição admitida pela Constituição, tendo, no entanto, de sujeitar-se aos requisitos de legitimidade impostos pelo princípio da proporcionalidade, como decorre do artigo 18.º, n.º 2, segunda parte (cf., por exemplo, o Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 403/2015).
Ensina Viera de Andrade, in Os Direitos fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976, Almedina, 2.ª edição, pág. 312 e seguintes que a “solução dos conflitos e colisões entre direitos, liberdades e garantias ou entre direitos e valores comunitários não pode, porém, ser resolvida através de uma preferência abstracta, com o mero recurso à ideia de uma ordem hierárquica dos valores constitucionais”, não devendo erigir-se o principio da harmonização ou da concordância prática enquanto critério ou solução dos conflitos ou pelo menos “ser aceite ou entendido como um regulador automático”. Na metodologia para a resolução de conflitos entre direitos deve “atender-se, desde logo, ao âmbito e graduação do conteúdo dos preceitos constitucionais em conflito, para avaliar em que medida e com que peso cada um dos direitos está presente na situação de conflito – trata-se de uma avaliação fundamentalmente jurídica, para saber se estão em causa aspectos nucleares de ambos os direitos ou, de um ou de ambos, aspectos de maior ou menor intensidade valorativa em função da respectiva protecção constitucional. Deve ter-se em consideração, obviamente, a natureza do caso, apreciando o tipo, o conteúdo, a forma e as demais circunstâncias objectivas do facto conflitual, isto é, os aspectos relevantes da situação concreta em que se tem de tomar uma decisão jurídica – em vista da finalidade e a função dessa mesma decisão. Deve ainda ter-se em atenção, porque estão em jogo bens pessoais, a condição e o comportamento das pessoas envolvidas, que podem ditar soluções específicas, sobretudo quando o conflito respeite a conflitos entre direitos sobre bens e liberdades.”
Segundo o artigo 135.º do Código de Processo Penal o tribunal superior pode decidir da prestação de testemunho com quebra do segredo profissional sempre que esta se mostre justificada, segundo o princípio da prevalência do interesse preponderante, nomeadamente tendo em conta a imprescindibilidade do depoimento para a descoberta da verdade, a gravidade do crime e a necessidade de protecção de bens jurídicos.
Valem aqui as regras de ponderação de direitos e interesses consagradas nos artigos 31.º e seguintes do Código Penal – haja “sensível superioridade do interesse a salvaguardar relativamente ao interesse sacrificado”, seja “razoável impor ao lesado o sacrifício do seu interesse em atenção à natureza ou ao valor do interesse ameaçado”, seja necessário “satisfizer dever ou ordem de valor igual ou superior ao do dever ou ordem que sacrificar”, a violação decorra do “cumprimento de um dever imposto por ordem legítima da autoridade” – e no artigo 335.º do Código Civil – observando o “necessário para que todos produzam igualmente o seu efeito, sem maior detrimento para qualquer” deles – e os princípios constitucionais do direito à tutela jurisdicional efectiva (artigo 20.º, n.os 1, 4 e 5 da Constituição da República Portuguesa), da proibição do excesso e da proporcionalidade (artigo 18.º do mesmo diploma).
Sustentam os recorrentes que «no caso dos autos inexiste qualquer Lei que preveja a possibilidade de a Administração Tributária aceder a informação clínica dos cidadãos, muito menos de pacientes / clientes de um contribuinte que seja alvo de inspecção».
Salvo melhor opinião, esta afirmação é incorrecta. O artigo 63.º da Lei Geral Tributária prevê de forma expressa essa possibilidade no âmbito e para efeitos da realização de uma inspecção tributária pela Administração Tributária e Aduaneira – tal como faz a lei penal e a lei civil para efeitos de prestação de declarações no âmbito dos respectivos processos por pessoas sujeitas ao dever de segredo – embora condicionando-a a autorização judicial prévia, a conceder nos termos da lei geral que regula o segredo em causa e as situações em que o mesmo pode ser dispensado.
A circunstância de a norma em causa não regular os termos em que essa autorização deve ser concedida pelo tribunal rectius: os critérios que deverão presidir à decisão judicial – apenas tem o significado de remeter para as normas gerais – de natureza constitucional ou infra-constitucional – a determinação das condições em que o segredo pode ceder perante a necessidade de acautelar outros direitos e interesse dignos de protecção e tutela. Desse modo, acentua-se que a Administração Tributária e Aduaneira não possui um direito especial a aceder a essa informação e, sobretudo, que no caso serão aplicáveis os critérios normativos gerais, designadamente os impostos pelos princípios da própria Constituição, os quais terão de ser apreciados na decisão judicial.
Sustentam ainda que «se se interpretar o artigo 63.º da Lei Geral Tributária no sentido em que o mesmo permite, para efeitos de inspecção tributária, quer a quebra do segredo profissional quer o acesso a dados da vida intima e privada dos cidadãos (… terceiros perante a relação jurídico-tributária em causa), tal norma seria formalmente inconstitucional, na medida em que, tratando-se de Decreto-Lei autorizado, a Assembleia da República, através da Lei autorizante (Lei 41/98 de 4 de Agosto) não atribuiu poderes ao Governo para legislar sobre restrição de direitos, liberdades e garantias dos cidadão (al. b) do n.º 1 do artigo 165.º da Constituição)».
Sobre essa questão o próprio Tribunal Constitucional já se pronunciou nos Acórdãos n.º 602/2005, 672/2006 e 490/2011, embora a propósito do segredo bancário e não do segredo profissional (médico), mas em termos aplicáveis a este – razão pelo que na transcrição que segue onde se lê segredo bancário se pode ler segredo profissional –.
No último desses Acórdãos, in http://www.tribunalconstitucional.pt, pode ler-se o seguinte que responde cabalmente à objecção dos recorrentes, embora repete-se a propósito do segredo bancário:
«[…] da análise dos artigos 1.º e 2.º da Lei n.º 41/98, de 4 de Agosto pode considerar-se que a matéria relativa à quebra do sigilo bancário se encontrava incluída na referida autorização legislativa. De facto, os objectivos referidos na lei de luta contra a evasão fiscal e a prossecução do interesse público, bem como o desenvolvimento dos princípios da igualdade, da imparcialidade, e da cooperação dos contribuintes pode implicar a eventual quebra do sigilo bancário quando a descoberta da verdade material das situações tributárias dos contribuintes inspeccionados imponha a consulta de elementos bancários e essas consultas não forem autorizadas pelos contribuintes. Assim se pronunciou, de resto, o Tribunal Constitucional no já citado Acórdão n.º 602/2005:
"(…) poderia sustentar-se que dos acima transcritos números do artº 2º da Lei nº 41/98 sempre resultaria que o legislador parlamentar previu que na lei geral tributária editanda pelo Governo se haveriam de gizar procedimentos de onde resultasse o apuramento da real situação tributária do contribuinte, o combate à simulação tributária e à evasão fiscal, a prossecução do interesse público e da igualdade equitativa nos encargos tributários e ao estabelecimento do princípio do inquisitório; e, desta sorte, não poderia deixar de ser cogitada por aquele legislador, em face da indesmentível dificuldade de se obter uma visão da realidade tributária sem o conhecimento dos dados resultantes das operações bancárias dos contribuintes, a possibilidade de, no diploma credenciado, entre os vários procedimentos a adoptar, se contarem os adequados à aquisição daquele conhecimento que, em caso de recusa do visado, só seriam cognoscíveis por determinação judicial”.
[…] Mesmo que assim não se entenda, ainda assim não se concluiria pela inconstitucionalidade orgânica da norma impugnada. De facto, a LGT, aprovada pelo Decreto-lei n.º 398/98, veio a ser revista pela Lei n.º 30-G/2000 de 29 de Dezembro. Assim, a LGT passou a fazer parte integrante dessa mesma Lei. As normas porventura organicamente inconstitucionais que da LGT constassem teriam assim sido confirmadas - e ratificadas - pela Assembleia da República, deixando, assim, de poder ser invocada tal inconstitucionalidade. De contrário, poderia ter-se por inconstitucional por falta de autorização legislativa da Assembleia da República determinado preceito de um diploma integrante de uma Lei da própria Assembleia da República.
Assim o afirmou já o Tribunal Constitucional, entre outros, no Acórdão n.º 368/2002 (publicado no DR IIª Série, de 25 de Outubro de 2002):
“O Tribunal Constitucional já teve oportunidade de se pronunciar sobre os efeitos da aprovação de uma lei de emendas (…) Fê-lo nos Acórdãos n.ºs 415/89 e 786/96, in Acórdãos do Tribunal Constitucional, 13.º vol., tomo I, pág. 507, e 34.º vol., pág. 23, respectivamente. No primeiro, depois de se citar as diversas doutrinas defendidas sobre o estatuto da ratificação de decretos-leis (na versão originária da Constituição) na perspectiva do efeito da ratificação expressa de decretos-leis organicamente inconstitucionais por invasão governamental das matérias de exclusiva competência da Assembleia da República (Rui Machete, “Ratificação de decretos-leis organicamente inconstitucionais”, in Estudos sobre a Constituição, vol. I, pp. 281 e segs.; Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Anotada, 1980, pp. 347/348; Jorge Miranda, “A ratificação no direito constitucional português”, in Estudos sobre a Constituição, vol. III, pp. 547 e segs.; Luís Nunes de Almeida, “O problema da ratificação parlamentar de decretos-leis organicamente inconstitucionais”, in Estudos sobre a Constituição, vol. III, pp. 619 e segs.), bem como a jurisprudência produzida quer pela Comissão Constitucional (Parecer n.º 7/79, in Pareceres da Comissão Constitucional, vol. 7.º, p. 308) quer pelo Tribunal Constitucional (Acórdãos n.ºs 174/87 e 266/87 in Diário da República, II Série, de 14 de Julho de 1987, e I Série, de 28 de Agosto de 1987, respectivamente) e de referidas as profundas alterações introduzidas nos artigos 172.º e 165.º, alínea c), da Constituição, com a revisão constitucional de 1982 – designadamente o facto de ter deixado de existir um acto positivo de ratificação, pois apenas se passou a prever a recusa de ratificação e a alteração do decreto-lei – dando lugar a uma orientação doutrinal dominante no sentido da não convalidação de decretos-leis organicamente inconstitucionais (Gomes Canotilho, Direito Constitucional, 4.ª ed., p. 654; Jorge Miranda, Funções, Órgãos e Actos do Estado, pp. 231/232; António Nadais, António Vitorino e Vitalino Canas, Constituição da República Portuguesa, p. 203; Gomes Canotilho e Vital Moreira, ob. cit., p. 222 e Jorge Simão, Da ratificação dos Decretos-Leis, p. 32), escreveu-se:
“Não se afigura indispensável para a solução do caso dos autos resolver expressamente questões como a de saber se, face ao texto constitucional saído da revisão de 1982, ainda se pode falar de ratificação expressa, ou, até, se no caso de ser aprovada uma lei de alteração ao decreto-lei ratificando, tal lei tem como efeito, genericamente, inviabilizar que, para o futuro possa ser invocada a eventual inconstitucionalidade orgânica de qualquer das suas normas.
Na verdade, ainda que se admita que a figura da ratificação expressa deixou de ter assento constitucional – como parece resultar do que se escreveu no citado Acórdão n.º 266/87 – e que a mera aprovação de uma lei de alterações, na sequência de um processo desencadeado ao abrigo do artigo 172.º da Constituição, não pode ter como efeito impedir a invocação, a partir da entrada em vigor dessa lei, de eventuais inconstitucionalidades orgânicas que afectassem originariamente normas do decreto-lei ratificando, a questão não fica inteiramente resolvida para todos os casos.
Com efeito, sempre será necessário ressalvar, pelo menos, a hipótese de a lei de alterações reproduzir as normas organicamente inconstitucionais do decreto-lei submetido à sua apreciação. Em tal caso, é inegável que a Assembleia da República assume ou adopta tais normas como suas ao mantê-las inalteradas de forma expressa e inequívoca. E, assim sendo, tais normas não podem mais ser arguidas de organicamente inconstitucionais, até porque se verifica, quanto a elas, uma novação da respectiva fonte».
(…) “Da jurisprudência transcrita – que se não vê razão para inflectir e aqui se reitera – retira-se que, tendo em conta “a função de controlo parlamentar da decisão legislativa”, a aprovação de uma lei de emendas, ao abrigo do antigo artigo 172.º da Constituição, tem como efeito a ininvocabilidade futura da inconstitucionalidade orgânica de, pelo menos, as seguintes normas constantes do decreto-lei alterado por essa mesma lei de emendas: a) As normas reproduzidas na lei parlamentar; b) As normas que a Assembleia da República não pode ter deixado de querer manter inalteradas, porquanto constituem um pressuposto logicamente necessário e indispensável de todas as restantes normas contidas no decreto-lei originário e na própria lei de alteração; c) As normas que, durante o especial processo legislativo parlamentar, foram objecto de propostas de alteração rejeitadas.
Ora, no que toca à norma em análise, há que ter presente que a Lei n.º 30-G/2000 de 29 de Dezembro revogou todo o título V da LGT e alterou o artigo 63º. O n.º 5 do artigo 63º não foi, porém, alterado, tendo sido substituído por ponteado. Ora, os números não alterados da referida norma devem ser tidos como confirmados e adoptados pela Assembleia da República.
Assim, se alguma inconstitucionalidade orgânica existia em relação a qualquer dos preceitos do Decreto-lei n.º 398/98 que não foram alterados, tal inconstitucionalidade desapareceu com a confirmação dos mesmos pela Assembleia da República.
Foi, esse, de resto, o juízo do Tribunal Constitucional no já referido Acórdão n.º 602/2005:
“depois da entrada em vigor da Lei nº 30-G/2000 – o eventual vício de inconstitucionalidade orgânica de que padeceria se terá de ter como ultrapassado. Na verdade, a Assembleia da República, ao editar aquela Lei, não só alterou a redacção dos próprios números 2 e 4, alínea b) do artº 63º da Lei Geral Tributária, como lhe aditou os números 6 e 7, indubitavelmente ligados ao procedimento de suprimento judicial de autorização do contribuinte, como ainda introduziu o artº 63º-B. Isto vale por dizer, sem que dúvidas a esse respeito se suscitem, que assumiu o competente órgão legislativo – o Parlamento – como válido aquele procedimento, pois manteve inalterado o nº 5 do aludido artº 63º (quando, com as alterações que em tal artigo introduziu, se entendesse que esse preceito se não justificava, bem o poderia alterar), o que revela, de forma inequívoca, uma intenção de novar a fonte legislativa que o consagrou.
Como se referiu no Acórdão deste Tribunal nº 321/2004 (in Diário da República, II Série, de 20 de Julho de 2004) se a lei de alteração e um decreto-lei vier a reproduzir normas organicamente inconstitucionais, “é inegável que a Assembleia da República assume ou adopta tais normas como suas ao mantê-las inalteradas de forma expressa e inequívoca. E, assim sendo, tais normas não podem mais ser arguidas de organicamente inconstitucionais, até porque se verifica, quanto a elas, uma novação da respectiva fonte”.
A doutrina extraível daquele aresto é aplicável ao caso agora em apreço, pois que, como resulta do seu próprio texto, no artº 13º da Lei nº 30-G/2000, que determinou, por entre outras, alteração ao artigo 63º da Lei Geral Tributária, consignou que este passaria a ter a seguinte redacção: […]
Vale isto por dizer que o órgão parlamentar, em face da forma como deu a nova redacção ao artº 63º, de forma inequívoca, «fez seu» (ou seja, assumiu como manutenção inalterada), no que agora importa, o nº 5, que, por isso, novou como vontade legislativa.
O raciocínio agora efectuado não se ancora, pois, na mera republicação da Lei Geral Tributária (a que o recorrente alude, mas visando a Lei nº 15/2005)”.
Esta mesma orientação foi seguida no também já citado Acórdão n.º 675/2006, que confirmou que o teor da norma impugnada foi expressamente recebido pela Lei n.º 30-G/2000, de 29 de Dezembro, “tendo-se verificado, assim, uma novação da respectiva fonte”.»
Este Acórdão aborda ainda uma objecção que os recorrentes suscitam igualmente no presente recurso, qual seja, a de que o artigo 63.º da LGT viola o artigo 26.º da CRP na medida em que contém uma derrogação do direito à reserva da vida privada que esta disposição da Constituição não prevê.
Afirma então o Tribunal Constitucional:
«[…] Mas ainda assim, sempre se dirá, com o Acórdão n.º 602/2005:
“(…) no tocante a este problema, de um primeiro passo, hipotiza-se que a matéria de sigilo bancário, no seu reflexo de apuramento da realidade tributária dos contribuintes (e não olvidando que a obtenção de dados por parte da administração fiscal também está coberta pelo dever de reserva), possa ser perspectivada como sendo respeitante a direitos, liberdades ou garantias, na medida em que, como tem sido sustentado por alguma doutrina, a situação económica dos cidadãos espelhada nas respectivas contas bancárias fará parte do âmbito de protecção do direito à reserva da intimidade da vida privada, constituindo o segredo bancário um corolário dessa reserva, por constituir uma súmula do relacionamento entre o banqueiro e o seu cliente e respectiva conta, através da qual, em geral, são processados dados de onde se pode retirar boa parte do giro económico do particular que, muitas vezes, reflecte dados relacionados com a sua vida privada [cfr. Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, 3.ª edição, pp. 181 e 182, ao analisarem em que consiste e como se deve analisar o direito à intimidade da vida privada; J. M. Serrano Alberca, Comentários a la Constituicion, Madrid, Civitas, 1985, p.353; Parecer n.º 138/83 do Conselho Consultivo da Procuradoria-Geral da República, in Boletim do Ministério da Justiça, n.º 342, p. 161; Alberto Luís, Direito Bancário, Coimbra, 1985; e, porventura com uma posição um tanto divergente, Saldanha Sanches, Segredo Bancário, segredo fiscal: uma perspectiva funcional, in Medidas de Combate à Criminalidade Organizada e Económico-Financeira, Centro de Estudos Judiciários, 25 anos, 2004, p. 57 e seguintes, para quem, porque existe uma “proibição que incide sobre os membros da Administração fiscal de dar conhecimento a terceiros da situação fiscal (e por isso patrimonial)”, o fundamento do segredo bancário, para os efeitos em causa, residiria na esfera da privacidade e não da intimidade da vida privada, pelo que não estaríamos “e isto deve ser afirmado com muita clareza, perante uma norma destinada a tutelar a nossa intimidade: pela razão pura e simples que num Estado-de-Direito a devassa da intimidade (buscas domiciliárias, escutas telefónicas, filmagens ou gravações que registem todos os movimentos de uma certa pessoa) só pode ter lugar para investigação de crimes graves e mediante a devida decisão judicial (…). Se o segredo fiscal tutela a intimidade, então parece que os cidadãos se encontram obrigados a entregar periodicamente à Administração Fiscal e sempre que esta o exija – mediante qualquer acto administrativo tributário que pode ser produzido por qualquer funcionário – dados referentes à sua intimidade. Dados referentes à intimidade dos cidadãos que estes estariam obrigados a facultar à Administração fiscal e cujo conhecimento deveria ser confinado aos serviços de finanças e aos inúmeros funcionários da Administração fiscal mas que estes não poderiam – fraco consolo – partilhar com mais ninguém”, e que o “controlo da conta bancária como poder administrativo que constitui uma restrição ao direito do cidadão de manter longe de vistas e curiosidades externas toda a sua situação pessoal (e qualquer restrição a este direito exige uma específica legitimação) é uma decisão secundária. Decisão secundária no preciso sentido de ser resultado de uma outra: o dever das pessoas singulares de declarar anualmente os seus rendimentos e a obrigação das pessoas colectivas de franquear permanentemente os seus registos comerciais ao controlo da Administração fiscal.”]
De todo o modo, como este Tribunal já teve ocasião de discretear, tal como o sigilo profissional, a reserva do sigilo bancário não tem carácter absoluto, antes se admitindo excepções em situações em que avultam valores e interesses que devem ser reputados como relevantes como, verbi gratia, a salvaguarda dos interesses públicos ou colectivos (cfr. Acórdão n.º 278/95, publicado na II Série do Diário da República, de 28 de Julho de 1995, onde se disse que “o segredo bancário não é um direito absoluto, antes pode sofrer restrições impostas pela necessidade de salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos. Na verdade, a tutela de certos valores constitucionalmente protegidos pode tornar necessário, em certos casos, o acesso aos dados e informações que os bancos possuem relativamente às suas relações com os clientes. Assim sucede com os artigos 135.º, 181.º e 182.º do actual Código de Processo Penal, os quais procuram consagrar uma articulação ponderada e harmoniosa do sigilo bancário com o interesse constitucionalmente protegido da investigação criminal, reservando ao juiz a competência para ordenar apreensões e exames em estabelecimentos bancários”.
Sendo o controlo administrativo das movimentações bancárias dos contribuintes, como método de avaliação da sua situação fiscal, uma realidade recente (ou, como diz Saldanha Sanches, ob. cit., que “são esses dados contidos nas contas bancárias e nos seus movimentos (ou na aquisição de um bem sujeito a registo como um prédio ou um automóvel) que permitem o controlo da declaração tributária do sujeito passivo e que constituem a condição sine qua non de um controlo eficaz, na fase actual da evolução da relação jurídico-tributária”), e postando-se como necessário – e, quantas vezes para tanto como imprescindível – o conhecimento das respectivas operações, não se poderá deixar de concluir que se torna justificada, para proteger o bem constitucionalmente protegido da distribuição equitativa da contribuição para os gastos públicos e do dever fundamental de pagar os impostos, a procura da consagração de uma articulação ponderada e harmoniosa da reserva (se não da intimidade da vida privada, ao menos da reserva de uma parte do acervo patrimonial) acarretada pelo sigilo bancário e dos interesses decorrentes dos citados dever e direito”.
Assim, mesmo que se considere que a presente norma interfere com o direito à reserva da vida privada, protegido pelo artigo 26.º da CRP, ainda assim se deve considerar existir justificação bastante para a limitação do referido direito em nome dos interesses públicos prosseguidos, tais como a distribuição equitativa da contribuição para os gastos públicos e o dever fundamental de pagar impostos.» (nota: sublinhados nossos para localizar os momentos em que o Tribunal Constitucional alude ao segredo profissional de forma específica e o coloca a par do segredo bancário).
Improcedem assim estas objecções dos recorrentes.
No passo seguinte os recorrentes defendem que a «quebra do segredo profissional a que os recorrentes estão sujeitos, quer o acesso por parte da recorrida, a dados que contendem com factos da vida íntima dos cidadãos (clientes da alegante) em violação dos direitos de personalidade e outros direitos, liberdades e garantias dos cidadão só será de autorizar se a Lei 67/98 [Lei da Protecção de Dados Pessoais] o permitir», sendo que não o permite.
Com todo o devido respeito, não se concorda com este argumento.
Tanto quanto julgamos existe uma relação de especialidade entre as normas.
A Lei da Protecção de Dados Pessoais rege sobre a forma como são tratados e circulam os dados pessoais. Nos termos do seu artigo 2.º o tratamento dos dados pessoais deve processar-se no estrito respeito pela reserva da vida privada, bem como pelos direitos, liberdades e garantias fundamentais.
Daqui resulta, cremos, que se os dados respeitam a direitos fundamentais dos cidadãos, tais dados estão sujeitos ao regime desses direitos fundamentais, pelo que se estes se encontram sujeitos a restrições designadamente para tutela de outros direitos igualmente legítimos, não é a circunstância de a informação integrar um ficheiro de dados que impede a referida restrição na medida em que a mesma for consentida pela constituição e pela lei ordinária.
A Lei da Protecção de Dados Pessoais[1] acrescenta um nível de tutela da informação, não subverte a concreta configuração constitucional ou legal do direito que essa informação integra. Se o conteúdo da informação já se encontra sujeito a um dever de segredo de determinado sujeito, a proibição da revelação da informação é independente da forma como ela foi adquirida e portanto existe mesmo que a informação dos dados pessoais não esteja tratada em ficheiros manuais ou a estes destinados por meios total ou parcialmente automatizados ou por meios não automatizados – artigo 4.º da LPDP –. Logo a proibição da divulgação não advém da lei de protecção de dados, que reforça as regras de tratamento da informação, advém do regime legal desse segredo, que concerne ao conteúdo material do respectivo direito e à necessidade de o compatibilizar com outros direitos legítimos.
Como quer que seja, é necessário ter presente que nos termos do artigo 6.º da Lei n.º 67/98, de 26 de Outubro, o tratamento de dados pessoais, conceito onde se inclui a sua transmissão a terceiros, é legítimo, designadamente, quando for necessário para a «prossecução de interesses legítimos do responsável pelo tratamento ou de terceiro a quem os dados sejam comunicados, desde que não devam prevalecer os interesses ou os direitos, liberdades e garantias do titular dos dados» - alínea e) -.
Esta disposição corresponde ao disposto na alínea f) do artigo 7.º da Directiva 95/46/CE do Parlamento Europeu e do Conselho de 24 de Outubro de 1995, relativa à protecção das pessoas singulares no que diz respeito ao tratamento de dados pessoais e à livre circulação desses dados, a qual foi transposta para a ordem jurídica interna precisamente pela Lei n.º 67/98, de 26 de Outubro.
Ora, conforme manifestou o Tribunal de Justiça da União Europeia no Acórdão de 24 de Novembro de 2011, proferido nos processos apensos C468/10 e C469/10, ECLI:EU:C:2011:777, in http://curia.europa.eu/juris/document/document.jsf,:
«40. Contudo, há que ter em conta que a segunda dessas condições requer uma ponderação dos direitos e interesses opostos em causa que depende, em princípio, das circunstâncias concretas do caso concreto em causa e no âmbito da qual a pessoa ou a instituição que efectua a ponderação deve ter em conta a importância dos direitos da pessoa em causa resultantes dos artigos 7.º e 8.º da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia (a seguir «Carta»).
41. A este respeito, sublinhe-se que o artigo 8.º, n.º 1, da Carta estabelece que «[t]odas as pessoas têm direito à protecção dos dados de carácter pessoal que lhes digam respeito». Este direito fundamental está indissociavelmente relacionado com o direito ao respeito da vida privada consagrado no artigo 7.º da Carta (acórdão de 9 de Novembro de 2010, Volker und Markus Schecke e Eifert, C92/09 e C93/09, ainda não publicado na Colectânea, n.º 47).
42. Segundo a jurisprudência do Tribunal de Justiça, o respeito pelo direito à vida privada face ao tratamento de dados pessoais, reconhecido pelos artigos 7.º e 8.º da Carta, abrange todas as informações relativas a qualquer pessoa singular identificada ou identificável (v. acórdão Volker und Markus Schecke e Eifert, já referido, n.º 52). Contudo, resulta dos artigos 8.º, n.º 2, e 52.º, n.º 1, da Carta que, sob certas condições, podem ser impostas restrições ao referido direito.
43. Além disso, incumbe aos Estados-Membros, na transposição da Directiva 95/46, assegurar que se baseiam numa interpretação desta directiva que lhes permita assegurar um equilíbrio justo entre os diferentes direitos e liberdades fundamentais protegidos pela ordem jurídica da União (v., por analogia, acórdão de 29 de Janeiro de 2008, Promusicae, C275/06, Colect., p. I271, n.º 68)
Também no Acórdão do Tribunal de Justiça de 4 de maio de 2017, proferido no processo C13/16, ECLI:EU:C:2017:336, in http://curia.europa.eu/juris/document/document.jsf, aquele Tribunal assinalou o seguinte:
«26. Assim, resulta da sistemática da Directiva 95/46 e da redacção do seu artigo 7º que o artigo 7.º, alínea f), da Directiva 95/46 não prevê, em si mesmo, uma obrigação, mas expressa uma faculdade de efectuar o tratamento de dados, como a comunicação a um terceiro de dados necessários para a realização de um interesse legítimo por ele prosseguido. Como observou o advogado-geral nos n.os 43 a 46 das suas conclusões, essa interpretação pode igualmente ser deduzida de outros instrumentos do direito da União que digam respeito aos dados pessoais (v., neste sentido, no que se refere ao tratamento dos dados pessoais no sector das comunicações electrónicas, acórdão de 29 de Janeiro de 2008, Promusicae, C275/06, EU:C:2008:54, n.os 54 e 55).
27. Todavia, há que observar que o artigo 7.º, alínea f), da Directiva 95/46 não se opõe a essa comunicação no caso de ser efectuada com base no direito nacional, respeitando os requisitos previstos nesta disposição.
28. A este respeito, o artigo 7.º, alínea f), da Directiva 95/46 prevê três requisitos cumulativos para que um tratamento de dados pessoais seja lícito, a saber, em primeiro lugar, a prossecução de interesses legítimos do responsável pelo tratamento ou do terceiro ou terceiros a quem os dados sejam comunicados, em segundo lugar, a necessidade do tratamento dos dados pessoais para a realização do interesse legítimo e, em terceiro lugar, o requisito de os direitos e as liberdades fundamentais da pessoa a que a protecção de dados diz respeito não prevalecerem.
29. No que se refere ao requisito da prossecução de um interesse legítimo, como salientou o advogado-geral nos n.os 65, 79 e 80 das suas conclusões, não há dúvida de que o interesse de um terceiro em obter uma informação de ordem pessoal sobre uma pessoa que danificou os seus bens para instaurar uma acção contra essa pessoa constitui um interesse legítimo (v., neste sentido, acórdão de 29 de Janeiro de 2008, Promusicae, C275/06, EU:C:2008:54, n.º 53). Esta análise é confirmada pelo artigo 8.º, n.º 2, alínea e), da Directiva 95/46, que prevê que a proibição do tratamento de certos tipos de dados pessoais, como os respeitantes à origem racial ou às convicções políticas, não se aplica, designadamente, quando o tratamento é necessário à declaração, ao exercício ou à defesa de um direito num processo judicial.
30. No que se refere ao requisito da necessidade do tratamento dos dados, há que recordar que as derrogações e as restrições ao princípio da protecção dos dados pessoais devem ocorrer na estrita medida do necessário (acórdãos de 9 de Novembro de 2010, Volker und Markus Schecke e Eifert, C-92/09 e C93/09, EU:C:2010:662, n.º 86; de 7 de Novembro de 2013, IPI, C-473/12, EU:C:2013:715, n.º 39; e de 11 de Dezembro de 2014, Ryneš, C-212/13, EU:C:2014:2428, n.º 28). […]
31. Por último, no que respeita ao requisito de uma ponderação dos direitos e dos interesses opostos em causa, este depende, em princípio, das circunstâncias concretas do caso específico (v., neste sentido, acórdãos de 24 de Novembro de 2011, Asociación Nacional de Establecimientos Financieros de Crédito, C-468/10 e C-469/10, EU:C:2011:777, n.º 40, e de 19 de Outubro de 2016, Breyer, C-582/14, EU:C:2016:779, n.º 62).
32. A este respeito, o Tribunal de Justiça declarou que é possível tomar em consideração o facto de a gravidade da violação dos direitos fundamentais da pessoa em causa pelo referido tratamento poder variar em função da possibilidade de aceder aos dados em causa em fontes acessíveis ao público (v., neste sentido, acórdão de 24 de Novembro de 2011, Asociación Nacional de Establecimientos Financieros de Crédito, C-468/10 e C-469/10, EU:C:2011:777, n.º 44)
Nas Conclusões apresentadas nesse processo em 26 de Janeiro de 2017, ECLI:EU:C:2017:43, in http://curia.europa.eu/juris/document/document.jsf, o Advogado-Geral argumentou do seguinte modo:
«62. […], para efeitos do artigo 7.º, alínea f), têm de estar presentes três elementos: a) a existência de um interesse legítimo que justifique o tratamento; b) a prevalência de tal interesse sobre os direitos e interesses da pessoa em causa (ponderação de interesses); e c) a necessidade do tratamento para a prossecução dos interesses legítimos.
a) Interesse legítimo
63. Em primeiro lugar, nos termos do artigo 7.º, alínea f), da directiva, o tratamento depende da existência de interesses legítimos do responsável pelo tratamento de dados ou de um terceiro.
64. A directiva não define o conceito de interesses legítimos (..), pelo que incumbe ao responsável pelo tratamento ou ao subcontratante, sob a fiscalização dos órgãos jurisdicionais nacionais, determinar se existe um objectivo legítimo que seja susceptível de justificar uma ingerência na vida privada.
65. O Tribunal de Justiça já afirmou que a transparência (..) e a protecção dos bens, da saúde e da vida familiar (..) constituem interesses legítimos. O conceito de interesses legítimos é suficientemente flexível para comportar outros tipos de considerações. Não há dúvida de que o interesse de um terceiro em obter os dados pessoais de uma pessoa que danificou os seus bens para pedir uma indemnização a essa pessoa pode ser classificado como um interesse legítimo.
b) Ponderação de interesses
66. A segunda condição prende-se com a ponderação de dois conjuntos de interesses concorrentes, ou seja, os interesses e os direitos da pessoa em causa (..) e os interesses do responsável pelo tratamento dos dados ou de terceiros. O requisito de ponderação decorre claramente tanto do artigo 7.º, alínea f), como dos trabalhos preparatórios da directiva. A redacção do artigo 7.º, alínea f), da directiva impõe que os interesses legítimos da pessoa em causa sejam ponderados em relação aos interesses legítimos do responsável pelo tratamento ou de um terceiro. Os trabalhos preparatórios confirmam que a ponderação dos interesses já tinha sido prevista, de forma ligeiramente diferente, na proposta inicial da Comissão (..) e também na sua proposta alterada após a primeira leitura do Parlamento Europeu (..).
67. O Tribunal de Justiça já sustentou que a aplicação do artigo 7.º, alínea f), requer uma ponderação dos direitos e interesses opostos em questão. Deve ser tida em conta a importância dos direitos da pessoa em causa, resultantes dos artigos 7.º e 8.º da Carta (..). Essa ponderação tem de ser efectuada de forma casuística (..).
68. A ponderação é um aspecto fundamental da correta aplicação do artigo 7.º, alínea f). É esse exercício que distingue esta disposição das restantes alíneas do artigo 7.º A sua aplicação depende sempre das circunstâncias do caso concreto. É por esse motivo que o Tribunal de Justiça já sublinhou que um Estado-Membro não pode prescrever, para algumas categorias de dados pessoais, de forma definitiva, o resultado da ponderação dos direitos e dos interesses opostos, sem permitir um resultado diferente devido a circunstâncias particulares de um caso concreto (..).
69. Para realizar judiciosamente essa ponderação, devem ser tidos especialmente em consideração a natureza e o carácter sensível dos dados solicitados, o seu grau de publicitação (..) e a gravidade da infracção cometida. […].
c) Necessidade
70. No que respeita à necessidade, ou, de certa forma, à simples proporcionalidade, o Tribunal de Justiça tem considerado, em geral, que as derrogações à protecção dos dados pessoais e as respectivas limitações devem ocorrer na estrita medida do necessário (..). Portanto, a natureza e o volume dos dados que podem ser objecto de tratamento não devem exceder o que é necessário para efeitos dos interesses legítimos em presença.
71. A análise da proporcionalidade consiste na avaliação da relação entre os objectivos e os meios escolhidos. Os meios escolhidos não podem exceder a medida do necessário. Todavia, este raciocínio aplica-se igualmente no sentido oposto: os meios devem ser adequados à prossecução do objectivo declarado.
72. Em termos práticos, confrontado com a tarefa de avaliação da necessidade, o responsável pelo tratamento de dados tem duas opções: ou se abstém de comunicar quaisquer informações ou, caso decida proceder ao tratamento das informações em causa, deve comunicar todas as informações necessárias para efeitos da prossecução dos interesses legítimos em presença (..).
73. Em primeiro lugar, o artigo 6.º n.º 1, alínea c), e o considerando 28 da directiva estabelecem que os dados pessoais deverão ser adequados, pertinentes e não excessivos relativamente às finalidades para que são recolhidos, mas também relativamente às finalidades para que são tratados posteriormente (..). Logo, resulta destas disposições que os dados comunicados têm igualmente de ser adequados e pertinentes para a prossecução dos interesses legítimos.
74. Em segundo lugar, o bom senso impõe que a abordagem aos dados que devem efectivamente ser objecto de tratamento se paute pela razoabilidade. Com efeito, devem ser prestadas aos requerentes de dados informações úteis e pertinentes, que sejam necessárias e suficientes para a prossecução dos seus interesses legítimos próprios, sem que seja necessário apresentar um pedido a outra entidade que talvez também possua as informações em causa.
[…]
76. Por último, cumpre repetir que a determinação precisa do escopo dos dados a comunicar é uma matéria de direito nacional. É certo que o direito nacional também pode prever apenas a comunicação parcial, que, só por si, será insuficiente. Isso é realmente possível. O facto de a legislação nacional parecer fazer pouco sentido prático não determina automaticamente a sua incompatibilidade com o direito da União, desde que tal legislação permaneça na esfera regulamentar dos Estados-Membros. As presentes conclusões sugerem apenas que, desde que as restantes condições sejam satisfeitas, o artigo 7.º, alínea f), da directiva não se opõe à comunicação integral de todas as informações necessárias à prossecução efectiva do objectivo legítimo de uma pessoa
Pode assim concluir-se que a lei da protecção de dados pessoais[2] não impede a comunicação dos dados a terceiros desde que nessa comunicação exista um objectivo legítimo que seja susceptível de justificar uma ingerência na vida privada, o que cabe às ordens jurídicas nacionais definir.
Improcede pois mais este argumento dos recorrentes.
Prosseguindo nas suas alegações, defendem depois estes que não existe no caso qualquer colisão entre direitos e interesses constitucionalmente protegidos.
O argumento dos recorrentes parece ser o seguinte: as facturas/recibos têm o conteúdo necessário para salvaguardar o direito dos clientes dos cuidados de saúde à reserva da sua vida privada, tal como imposto pelo dever de sigilo profissional; como se presumem verdadeiras as declarações dos contribuintes e os dados e apuramentos inscritos na sua contabilidade ou escrita, quando estas estiverem organizadas de acordo com a legislação comercial e fiscal, terá de ser a Autoridade Tributária a demonstrar a falta de correspondência desses elementos com a realidade; inexistindo nos autos qualquer indício de que a recorrente tenha efectuado serviços não isentos de IVA não há conflito entre valores constitucionalmente protegidos porque estaria em causa somente a suposta inobservância das regras de forma e conteúdo do dever de facturação.
É fácil de ver como se trata de um argumento em círculo vicioso cuja finalidade é exclusivamente impedir o acesso à informação.
As facturas /recibos têm um descritivo que consente a dúvida sobre a isenção de imposto que mencionam e incorporam. Os próprios recorrentes o admitem, embora defendendo que não tinham acrescentar qualquer outra menção ao descritivo – aspecto que não está em causa na presente acção porque mesmo que o descritivo seja o correcto, tal não obsta à possibilidade da realização de inspecções tributárias para determinar o acerto da liquidação de imposto contida em tais documentos –. Perante essas dúvidas é legítimo que a Autoridade Tributária determine a abertura de uma inspecção para apurar o tipo de serviço subjacente à emissão de cada factura /recibo para verificar se a isenção de imposto é cabida.
Se perante essa iniciativa da Administração, o contribuinte pudesse invocar a presunção de veracidade das suas informações ou declarações, para impedir a Autoridade de investigar a natureza dos actos (médicos) tributários e determinar a correcção da declaração, teríamos que bastava o contribuinte opor-se ao fornecimento de qualquer informação para cercear a investigação da Administração e a possibilidade de esta vir a apurar a realidade.
Afinal se em simultâneo é o próprio contribuinte a elaborar as facturas /recibo, a decidir o descritivo que lhe coloca, que tira proveito da isenção que neles assinalou livremente, que conhece em exclusivo os actos que realizou e porque os realizou e que possui a informação que permitiria apurar a situação real, como poderia a Administração realizar de outra forma investigação necessária a apurar a realidade tributária?
Acresce que ao invés do referido a Administração já apurou e sinalizou indícios da existência de incorrecções na emissão das facturas/recibos: v.g. informação privada divulgada por clientes dos recorrentes nas redes sociais, listas de materiais adquiridos pela recorrente que servem para a realização de actos médicos de determinada natureza.
Nessa medida, é evidente, cremos, que existe claramente um conflito entre o direito dos utentes dos serviços médicos à reserva da intimidade da vida provada e o interesse público no apuramento da realidade tributária de modo a que se paguem os impostos legalmente devidos. Não se trata, ao invés do que sustentam os recorrentes, do mero interesse no cumprimento das formalidades legais na emissão dos documentos fiscais e contabilísticos. Trata-se de tutelar o bem constitucionalmente protegido da distribuição equitativa da contribuição para os gastos públicos e do dever fundamental de pagar os impostos.
Por fim, esgrimem os recorrentes a ideia de que os direitos dos utentes dos cuidados de saúde devem prevalecer sobre a pretensão da Administração.
Cremos que para o efeito é irrelevante que estejamos ainda perante uma acção inspectiva e não já num procedimento judicial. O que se pretende numa acção inspectiva é o mesmo que se pretende num procedimento judicial: apurar a realidade material dos actos tributários praticados pelos contribuintes. O que não faz sentido é impedir o acesso à informação só por se estar na fase da inspecção porque isso determinaria a Administração a proceder como se a informação confirmasse as suas suspeitas, obrigando a novos procedimentos onde o acesso à informação já seria consentido quando isso podia ser evitado se a informação tivesse sido fornecida antes e determinasse a improcedência das dúvidas da Administração – situação que imporia actos inúteis e despesas acrescidas para o Estado-Administração e para o contribuinte –.
No caso estamos perante um confronto entre o dever de segredo profissional do médico e, por outro lado, o interesse público do apuramento da realidade material dos actos tributários em ordem à boa cobrança dos impostos necessários para o funcionamento do Estado e a realização das suas finalidades colectivas.
A restrição dos direitos dos utentes dos serviços médicos só é constitucionalmente admissível se, entre outros limites, observar as exigências impostas pelo princípio da proibição do excesso constitucionalmente consagrado na segunda parte do n.º 2 do artigo 18.º da Constituição, nas suas dimensões de princípio da determinabilidade e princípio da indispensabilidade ou do meio menos restritivo.
A restrição não pode ser excessiva, inadequada, desproporcionada ou desnecessária. E, sob pena de violação dos artigos 26.º e 18.º, n.º 2, da Constituição, não pode traduzir-se numa efectiva aniquilação de um direito fundamental ao arrepio do princípio da mútua compressão que deve nortear a harmonização dos direitos fundamentais, fruto de uma avaliação comparativa dos interesses ligados à confidencialidade e à divulgação que atenda, designadamente, ao interesse do doente, à natureza da informação e aos reflexos que a sua divulgação traz para a sua privacidade.
Ora, o que se pretende, no caso, não é o acesso à informação dos utentes dos cuidados de saúde que prestou para estabelecer com esses utentes qualquer relação, os contactar ou decidir sobre qualquer direito ou interesse dos mesmos. Para a finalidade que se pretende, a informação continua a reportar-se a pessoas sem rosto, sendo indiferente que se trate da pessoa A ou B.
O número de facturas/recibo que levantam a suspeita sobre a isenção do IVA é elevado sendo por conseguinte também elevado o número de clientes cuja informação se pretende, situação que por um lado incrementa o interesse público na averiguação e por outro lado acentua a falta de individualização ou personalização da informação a obter.
Por outro lado, uma vez que o acto tributário é praticado entre o médico e o utente e consiste num acto médico, não existe outra forma de apurar a materialidade do acto e efectuar a sua integração nas normas de incidência e/ou de isenção tributária se não for através da determinação da necessidade, interesse ou motivação que está na génese da prática do acto médico, isto é, apurar se estamos perante tratamentos de medicina estética por pura opção pessoal ou impostos por necessidades clínicas.
Se nesse contexto fosse consentido aos únicos interessados no acto – o médico e o paciente – vedar por completo o acesso à informação necessária à qualificação tributária do acto, estaríamos a criar uma situação prática em que seriam os interessados a definir com absoluta discricionariedade e interesse egoístico a incidência do imposto e/ou se o acto está sujeito a tributação.
Tal situação da mesma forma que seria violadora das regras e princípios legais que regem o estabelecimento e a cobrança dos impostos, criaria uma situação de desigualdade entre contribuintes, gerando a favor daqueles um privilégio singular.
Dir-se-á que a Administração Tributária poderia contactar cada um dos pacientes e obter deles a autorização, pelo que não é necessário aceder à informação daquele em poder dos recorrentes. Todavia, essa imposição é na prática inviável não apenas pelo número de pacientes visados, mas também porque boa parte das facturas/recibo não mencionam o número de contribuinte do paciente e porque sempre ficaria por fazer a conciliação entre o paciente/acto médico e a factura/recibo correspondente que só o acesso à informação clínica em poder dos recorrentes permitirá realizar.
São os próprios recorrentes a sustentar que cabe à Administração Tributária o ónus de provar que as prestações de serviços realizadas não correspondem a actos isentos de tributação em sede de IVA. A ser assim, vedar o acesso da Administração Tributária à informação pretendida impediria quase em absoluto a possibilidade de a inspecção tributária encetada permitir à Administração alcançar o conhecimento da realidade material que pode decidir essa questão tributária.
Os dados apurados pela Administração através das redes sociais, em páginas de acesso público na internet, constituem indícios claros de que a Administração tem fundadas suspeitas de haver incorrecções nas facturas/recibos que qualificam a prestação de serviços como isenta de IVA, justificando-se, por isso, não criar barreiras intransponíveis à inspecção em curso.
Essas publicações por serem feitas num espaço público e de acesso público revelam igualmente que as pessoas em causa prescindem em alguma medida da reserva associada a estes dados e embora isso não justifique o acesso indiscriminado – em qualquer circunstância é a eles que cabe decidir o que partilhar e se partilhar e o facto de divulgarem alguma coisa não significa que tudo se possa tornar público –, torna menos relevante – para o próprio – o interesse subjacente à reserva dos dados num confronto com o interesse público do acesso controlado e para fins exclusivamente de uma inspecção tributária destinada a apurar se determinada isenção é aplicável.
Sopesando todos estes aspectos, cremos que se justifica autorizar a Administração Tributária a aceder à informação pretendida, exclusivamente para efeitos de realização da inspecção tributária, impondo-se-lhe apenas um cuidado acrescido: o de no relatório da inspecção, para efeitos de conciliação dos actos médicos com as facturas/recibo, eliminar a identificação pessoal dos utentes da prestação de serviços, indicando-as somente por um código numérico, conservando em envelope fechado e lacrado à ordem do Juiz do TAF todos as informações documentais recolhidas e a lista com a atribuição a cada pessoa do respectivo código numérico.
Com tal limitação, improcede o recurso.

V. Dispositivo:
Pelo exposto, acordam os juízes do Tribunal da Relação em julgar o recurso improcedente e, em consequência, confirmam a decisão recorrida.
Estabelecem no entanto a obrigação de a Administração Tributária, no relatório da inspecção, para efeitos de conciliação dos actos médicos com as facturas/recibos, eliminar a identificação pessoal dos utentes da prestação de serviços, indicando-as somente por um código numérico, conservando em envelope fechado e lacrado à ordem do Juiz do TAF todos as informações documentais recolhidas e a lista com a atribuição a cada pessoa do respectivo código numérico.
Custas da acção e do recurso pelas recorrentes, as quais vão condenadas a pagar à recorrida as custas de partes e os eventuais encargos.
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Porto, 7 de Novembro de 2019.
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Os Juízes Desembargadores
Aristides Rodrigues de Almeida (R.to 521)
Francisca Mota Vieira
Paulo Dias da silva
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[1] A Lei n.º 67/98 foi entretanto revogada pela Lei n.º 58/2019, de 08 de Agosto, que assegura a execução, na ordem jurídica interna, do Regulamento (UE) 2016/679 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 27 de Abril de 2016, relativo à protecção das pessoas singulares no que diz respeito ao tratamento de dados pessoais e à livre circulação desses dados, designado por Regulamento Geral de Protecção de Dados (RGPD).
[2] A alínea f) do artigo 7.º da Directiva 95/46/CE do Parlamento Europeu e do Conselho de 24 de Outubro de 1995 corresponde agora à alínea f) do artigo 6.º do Regulamento (UE) 2016/679 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 27 de Abril de 2016, que revogou a Directiva 95/46/CE e cuja execução foi, como referido, assegurada na ordem jurídica nacional pela Lei n.º 58/2019, de 8 de Agosto, presentemente em vigor.

[a presente peça processual foi produzida com o uso de meios informáticos e tem assinaturas electrónicas]