Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
15892/22.4T8PRT.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: TERESA FONSECA
Descritores: RESPONSABILIDADE DE ADVOGADO
RESTITUIÇÃO DE VALORES DO CLIENTE
NOTA DE HONORÁRIOS
Nº do Documento: RP2025112415892/22.4T8PRT.P1
Data do Acordão: 11/24/2025
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Indicações Eventuais: 5ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - A parte que pretende impugnar a matéria de facto deve concretizar, por referência a cada facto, ou a cada conjunto de factos ligados entre si, os meios probatórios que sustentam o pedido de reapreciação.
II - Tendo o advogado em seu poder valores pertencentes ao cliente, deve restituí-los, podendo, porém, retê-los, desde que apresentada a competente nota de honorários.
III - Não havendo demonstração da apresentação da nota de honorários, desconhecendo-se, por inerência, qual o respetivo valor, o advogado deve restituir os valores em seu poder.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo: 15892/22.4T8PRT.P1
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Sumário
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Relatora: Teresa Maria Fonseca
1.ª adjunta: Eugénia Maria Cunha
2.ª adjunta: Anabela Morais

Acordam no Tribunal da Relação do Porto
I - Relatório
AA intentou a presente ação declarativa sob a forma de processo comum contra “A... - Sociedade de Advogados, Sp, RL”. Pede a condenação desta a pagar-lhe € 5.424,73, acrescidos de juros de mora vencidos desde 12-5-2021 e vincendos até pagamento.
Alegou:
- ter recorrido aos serviços da R. para o patrocinar em processo de execução em que era exequente;
- que BB, seu sobrinho, trabalhava junto da R.;
- que acordaram que os honorários seriam pagos a € 40,00 à hora;
- que a R. logrou obter com a executada um acordo de pagamento em prestações no valor de € 26 798,82, a transferir para conta bancária da R.;
- que a R. informou BB de que o valor dos honorários seria fixado em 30% do valor recuperado;
- que a R. reteve indevidamente € 5.424,73.
A R. contestou e requereu a intervenção acessória de BB. Pediu a condenação do A. como litigante de má-fé.
Admitida a intervenção, BB invocou não ter negociado honorários. Acompanhou o alegado pelo A.. Requereu a intervenção acessória da seguradora que assumiu o risco da responsabilidade civil profissional da R., “B... - Companhia de Seguros, S.A.”.
A interveniente “B... - Companhia de Seguros, S.A.” admitiu a existência do contrato de seguro e impugnou o alegado na petição inicial e nas contestações por desconhecimento.
Foram julgados verificados os pressupostos processuais.
Na sequência de audiência de discussão e julgamento, foi proferida sentença que julgou a ação inteiramente improcedente, absolvendo a R. do pedido.
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Inconformado, o A. interpôs o presente recurso que finalizou com as conclusões que em seguida se transcrevem.
(…)
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A interveniente contra-alegou, pugnando pela improcedência do recurso.
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II - Questões a decidir
a - se se mostram reunidos os requisitos de admissibilidade do recurso quanto à reapreciação da matéria de facto;
b - da violação e interpretação inconstitucional do art.º 607.º/3 do C.P.C.;
c - do direito do A. a que a R. lhe entregue a quantia por si retida.
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III - Fundamentação de facto
Factos provados constantes da sentença
1.1. A R. é uma sociedade de advogados registada na Ordem dos Advogados cujo objeto social é o exercício em comum e pelos sócios da advocacia com o fim de repartirem os resultados.
1.2. Em 23.02.2021, o A. recorreu aos serviços da R., através do seu sobrinho BB, que se encontrava a desempenhar funções de advogado na R., para o patrocinar no âmbito de uma execução de sentença que correu termos no Juízo do Trabalho de Barcelos - Juiz 1, com o n.º ..., em que o A. figurava como exequente.
1.3. A R. procedeu à abertura do cliente (n.º interno ...) e abertura do processo (n.º interno ...).
1.4. Em abril de 2021, na sequência de uma diligência de penhora de bens móveis na execução em causa, a R. logrou obter um acordo de pagamento com a executada no valor de 26.798,82 €.
1.5. O pagamento das respetivas prestações foi feito por transferência para uma conta bancária da R.
1.6. Em 12.05.2021, a R. endereçou para o correio eletrónico do A. uma fatura com o n.º ..., com a descrição “... – Honorários Recuperação de Crédito ...” e com um total a pagar de 4.500,00€.
1.7. O A. pagou à R., a título de provisão, a quantia de 184,50 €.
1.8. Para além desse pagamento, a R., recebendo ela própria os valores devidos ao A. no âmbito do processo n.º ..., reteve os montantes de 1.499,48 € e 4.500,00 €, a título de honorários.
1.9. Entregando o restante ao A.
1.10. A R. negociou parte das questões referentes à prestação de serviços objeto nos autos com BB.
1.11. A R. e BB acordaram que seria atribuída a este a percentagem, a título de comissão, de 10% sob a quantia que viesse a ser apurada como devida à R., a título de “success fee”.
1.12. No dia 21.04.2021, a R. transferiu a quantia de 3.498,79€ para a conta bancária do A., tendo-lhe remetido e-mail informativo no subsequente dia 23.04.2021, no qual expressamente referiu que havia sido efetuada dedução parcial nos honorários devidos à R.
1.13. Do supra referido e-mail, o A. não apresentou qualquer reclamação.
1.14. No dia 06.05.2021 e conforme acordado, a R. informou BB da comissão parcial que lhe era devida, no âmbito do processo judicial n.º ..., no valor de 156,46 €.
1.15. Do e-mail descrito em 1.14, BB não apresentou qualquer reclamação e/ou reparo.
1.16. No dia 31.05.2021 e conforme acordado, BB emitiu e remeteu à R. a fatura/recibo n.º ..., no qual se encontraram englobados os valores da comissão melhor descrita no artigo antecedente.
1.17. No dia 04.05.2021, a R. transferiu a quantia de 10.500,00€ para a conta bancária do A., tendo-lhe remetido e-mail informativo no subsequente dia 12.05.2021, no qual expressamente referiu que havia sido efetuada dedução parcial nos honorários devidos à R..
1.18. No dia 7.06.2021 e conforme acordado, a R. informou BB da comissão final que lhe era devida, no âmbito do processo judicial n.º ..., no valor de 424,52 €.
1.19. No dia 1.07.2021 e conforme acordado, BB emitiu e remeteu à R. a fatura/recibo n.º ..., no qual se encontraram englobados os valores da comissão melhor descrita no artigo antecedente.
1.20. A interveniente “B... – Companhia de Seguros, S.A.” celebrou com a R. “A... – Sociedade de Advogados, S.P., RL” um contrato de seguro do ramo RC sociedades de advogados, válido e eficaz à data dos factos relatados nos autos, titulado pela apólice n.º ....
1.21. O contrato tinha como objeto a responsabilidade civil profissional da segurada (atividade de sociedades de advogados).
1.22. O seguro teve o seu início em 06.04.2020. tendo duração anual e renovando-se por iguais períodos.
1.23. Em termos de garantias, o contrato abrange o pagamento de indemnizações que sejam legalmente devidas pelo Segurado, por danos causados a terceiros em consequência de atos ou omissões, praticados no exercício da atividade identificada nas Condições Especiais ou nas Condições Particulares, ficando a apólice sujeita aos termos e condições das Condições Gerais 143.
1.24. O seguro tinha um capital/limite de responsabilidade por sinistro/período de vigência a quantia de 250.000,00 € por sinistro e anuidade.
1.25. Estando consagrada uma franquia a cargo da Segurada em caso de sinistro, não oponível a terceiros lesados, de 10% do valor dos prejuízos indemnizáveis, no mínimo de 1.500,00 €.
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A.2. Factos não provados (conforme a sentença):
2.1. A. e R. acordaram que os honorários seriam pagos à hora de trabalho, a 40,00 €/hora.
2.2. Foi com BB, na qualidade de procurador de seu tio, que a R. negociou e acordou a prestação de serviços.
2.3. Perante isto, a R. informou o sobrinho do Autor que os valores dos honorários seriam fixados em 30% do valor recuperado.
2.4. Contudo, o sobrinho do Autor, estranhando a postura da R., referiu desde logo que qualquer assunto relativamente a honorários teria de ser tratado entre a Ré e o Autor.
2.5. Aquando do pagamento das prestações por parte da Ré ao Autor, e questionada pelo Autor sobre os valores que estavam a ser transferidos, a Ré comunicou ao Autor que os honorários referentes ao processo de execução correspondiam a 30% do valor recuperado, o que havia sido acordado com BB.
2.6. Surpreendido com o que lhe foi comunicado pela R. e dada a relação familiar, o Autor questionou de imediato BB acerca do sucedido.
2.7. Perante isto, o sobrinho do A., que nunca estabeleceu qualquer acordo relativo a honorários, demonstrou o seu desagrado junto da administração da R., referindo que nunca tinha acordado nada em relação aos honorários e que tal situação lhe estava a causar imensos problemas familiares, requerendo, por conseguinte, à administração da R. que regularizasse a questão dos honorários junto do A..
2.8. Contudo, ignorando o teor da conversa tida com BB, a R. contactou o A. reiterando que tinha sido acordado com o sobrinho deste a fixação do valor de honorários em função do valor recuperado.
2.9. A fatura n.º ... foi emitida sem a anuência do A.
2.10. Sabendo que o valor constante da fatura não correspondia ao acordado, o A. comunicou desde logo à R., por correio eletrónico, a não aceitação da mesma.
2.11. O montante dos honorários devidos pelo A., tendo em conta o valor/hora expressamente acordado entre as partes era de 759,25€.
2.12. Posteriormente ao acordado, em 23.03.2021, BB transmitiu à R. que o A. havia aceite as condições que aquele lhe havia comunicado.
2.13. No que tange ao acordo celebrado no âmbito do processo nº ..., a R. deu conhecimento, por escrito, tanto ao A., como a BB, do teor do mesmo.
2.14. Do supra referido e-mail, nem BB, nem tampouco o A., apresentaram qualquer reclamação.
2.15. Do e-mail referido em 1.17, o A. não apresentou qualquer reclamação.
2.16. A A. não cobrou a totalidade do montante de honorários acordado, atenta a relação profissional que mantinha, à data, com BB, não pretendendo suscitar qualquer desconforto que pudesse atentar quanto ao bom ambiente e satisfação dos seus colaboradores.
2.16. O documento n.º 2 junto com a petição inicial foi apropriado sem autorização da R. por BB.
2.17. O A. concebeu uma tese que bem sabe afrontar a verdade dos factos.
2.18. O A. sabe que não corresponde à verdade ter acordado com a R. a fixação de um valor hora pelos serviços prestados.
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IV - Fundamentação jurídica
a - Se se mostram reunidos os requisitos de admissibilidade do recurso quanto à reapreciação da matéria de facto.
Os factos cuja reapreciação é requerida são aqueles dados como não provados sob os números 2.1., 2.5., 2.6., 2.7., 2.8., 2.9., 2.10. e 2.11, cujo teor é o seguinte:
- A. e R. acordaram que os honorários seriam pagos à hora de trabalho, a 40,00 €/hora – ponto 2.1. dos factos não provados;
- Aquando do pagamento das prestações por parte da Ré ao Autor, e questionada pelo Autor sobre os valores que estavam a ser transferidos, a Ré comunicou ao Autor que os honorários referentes ao processo de execução correspondiam a 30% do valor recuperado, o que havia sido acordado com o Dr. BB – ponto 2.5. dos factos não provados;
- Surpreendido com o que lhe foi comunicado pela Ré e dada a relação familiar, o Autor questionou de imediato BB do sucedido – ponto 2.6. dos factos não provados;
- Perante isto, o sobrinho do Autor, que nunca estabeleceu qualquer acordo relativo a honorários, demonstrou o seu desagrado junto da administração da Ré, referindo que nunca tinha acordado nada em relação aos honorários e que tal situação lhe estava a causar imensos problemas familiares, requerendo, por conseguinte, à Administração da Ré que regularizasse a questão dos honorários junto do Autor – ponto 2.7. dos factos não provados;
- Contudo, ignorando o teor da conversa tida com BB, a Ré contactou o Autor reiterando que tinha sido acordado com o sobrinho deste a fixação do valor de honorários em função do valor recuperado – ponto 2.8. dos factos não provados;
- A fatura n.º ... foi emitida sem a anuência do A. – ponto 2.9. dos factos não provados;
- Sabendo que o valor constante da fatura não correspondia ao acordado, o Autor comunicou desde logo à Ré, por correio eletrónico, a não aceitação da mesma – ponto 2.10. dos factos não provados;
- O montante dos honorários devidos pelo Autor, tendo em conta o valor/hora expressamente acordado entre as partes era de 759,25€ - ponto 2.11. dos factos não provados.
Nos termos do disposto no art.º 639.º/1 do C.P.C., o recorrente deve apresentar a sua alegação, na qual conclui, de forma sintética, pela indicação dos fundamentos por que pede a alteração ou a anulação da decisão.
Relativamente aos requisitos de admissibilidade do recurso quanto à reapreciação da matéria de facto versa o art.º 640.º/1 do C.P.C. que quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:
a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;
b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;
c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.
O art.º 640.º/2/a) do C.P.C. prevê que quando os meios probatórios invocados tenham sido gravados incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes.
Escreve António Santos Abrantes Geraldes (in Recursos no Novo Código de Processo Civil, Almedina, 2018, 5.ª edição, pp. 165/166): “em quaisquer circunstâncias, o recorrente deve indicar sempre os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados, com enunciação na motivação do recurso e síntese nas conclusões”, “deve ainda especificar, na motivação, os meios de prova constantes do processo que nele tenham sido registados que, no seu entender, determinam uma decisão diversa quanto a cada um dos factos”, “relativamente a pontos de facto cuja impugnação se funde, no todo ou em parte, em provas gravadas, para além da especificação obrigatória dos meios de prova em que o recorrente se baseia, cumpre-lhe indicar com exatidão, na motivação, as passagens da gravação relevantes e proceder, se assim o entender, à transcrição dos excertos que considere oportunos”. Outrossim, deverá deixar expressa “a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas”.
O recorrente, quer na identificação do objeto do recurso, quer nas conclusões, tem de definir especificamente aquilo que pretende ver reapreciado, indicando os factos que pretende ver eliminados, alterados ou aditados. Poderá indicar com maior precisão os meios probatórios que justificam a sua pretensão nas alegações em sentido lato, mas os factos a expurgar, modificar ou introduzir, esses hão de, forçosamente, constar das conclusões, pois é esse, afinal, sob o ponto de vista da matéria de facto, o cerne da sua pretensão.
Assentemos, por um lado, em que o recorrente refere a decisão que deve ser proferida quanto a todos os factos não provados por si visados em conjunto, a saber, que devem ser dados como assentes. Por outro lado, que os factos não provados cujo conteúdo o apelante pretende ver revertido para a matéria assente são autónomos entre si, isto é, não integram um conjunto sequencial, cronológica ou logicamente.
Ora o recorrente não reporta, ou indexa, concretos excertos dos depoimentos e dos documentos que referiu a qualquer dos concretos pontos de facto em causa, que, como dissemos, integram matéria diversa entre si. Deixa para o tribunal de recurso a tarefa de selecionar, de destrinçar, o que de tais elementos probatórios se poderá extrair e que possa servir para cada um daqueles pontos no sentido da sua pretensão probatória.
Lê-se no acórdão do S.T.J. de 14/7/2021 (proc. n.º 65/18.9T8EPS.G1.S1, Fernando Baptista): cabe ao apelante – para efeitos de cumprimento do ónus de fundamentar a discordância quanto à decisão de facto proferida - argumentar, de forma concretizada, no sentido de que os meios de prova produzidos no processo, apreciados em conjunto e de forma crítica, impõem uma convicção diversa quanto à reconstituição dos factos, atingindo essa diferente versão dos factos o patamar da probabilidade prevalecente, arredando - do mesmo passo - a versão aceite pelo tribunal a quo. Cabe ao apelante colocar-se na posição do juiz a quo e exercitar - ele próprio - a apreciação crítica da prova, hierarquizando a credibilidade dos meios de prova (enunciando os parâmetros que majoram ou diminuem a credibilidade de cada meio de prova), concluindo por uma versão alternativa dos factos. Deste modo, este exercício não se basta com a mera enunciação da existência de meios de prova em sentido oposto/diverso da versão dos factos tida como provada pelo tribunal a quo. A existência de sentidos díspares dos meios de prova é conatural a qualquer processo judicial pelo que o cumprimento do ónus de fundamentar a discordância quanto à decisão de facto não pode ter-se por observado com tal enunciação singela. (…) É incumbência do apelante atuar numa dupla vertente: (i) rebater, de forma suficiente e explícita, a apreciação crítica da prova feita no tribunal a quo, (ii) tentando demonstrar que a prova produzida inculca outra versão dos factos que atinge o patamar da probabilidade prevalecente. Assim, não chega sinalizar a existência de meios de prova em sentido divergente, cabendo ao apelante aduzir argumentos no sentido de infirmar diretamente os termos do raciocínio probatório adotado pelo tribunal a quo, evidenciando que o mesmo é injustificado e consubstancia um exercício incorreto da hierarquização dos parâmetros de credibilização dos meios de prova produzidos, ou seja, que é inconsistente. E ainda ): (…) o apelante deve fazer corresponder a cada uma das pretendidas alterações da matéria de facto o(s) segmento(s) dos depoimentos testemunhais e a parte concreta dos documentos que fundou as mesmas, sob pena de se tornar inviável o estabelecimento de uma concreta correlação entre estes e aquelas.
Sumaria-se no ac. da Relação do Porto de 15-9-2025, proc. 10570/22.7T8PRT-A.P2, António Mendes Coelho:
I - Limitando-se o impugnante da matéria de facto a discorrer sobre os meios de prova carreados aos autos, sem a indicação/separação dos concretos meios de prova que, relativamente a cada um dos factos por si visados, impunham uma resposta diferente da proferida pelo tribunal recorrido, numa análise crítica dessa prova, não dá cumprimento ao ónus referido na al. b) do n.º 1 do art.º 640º do CPC.
II - O recurso, se incidente sobre a matéria de facto, não pode evidenciar uma simples discordância com os termos em que tal matéria foi julgada pelo tribunal recorrido e deve antes integrar uma análise probatória do recorrente por comparação ou contraponto com a análise efetuada pelo tribunal recorrido e em vista de, por via do confronto dos termos dessa análise probatória com os termos da análise probatória daquele tribunal, o tribunal de recurso vir a concluir que a análise defendida pelo recorrente impõe decisão sobre os pontos da matéria de facto em crise diversa da recorrida [al. b) do nº1 do art.º 640.º do CPC].
III - O cumprimento do ónus de fundamentar a discordância quanto à decisão de facto proferida não se basta com a mera enunciação da existência de meios de prova em sentido oposto/diverso da versão dos factos tida como provada pelo tribunal a quo; a existência de sentidos díspares dos meios de prova é conatural a qualquer processo judicial pelo que o cumprimento do ónus de fundamentar a discordância quanto à decisão de facto não pode ter-se por observado com tal enunciação singela.
IV - Assim, não chega sinalizar a existência de meios de prova em sentido divergente, cabendo ao recorrente aduzir argumentos no sentido de infirmar diretamente os termos do raciocínio probatório adotado pelo tribunal a quo, evidenciando que o mesmo é injustificado e consubstancia um exercício incorreto da hierarquização dos parâmetros de credibilização dos meios de prova produzidos, ou seja, que é inconsistente.
V - A assim não se considerar, o recurso quanto à matéria de facto deixa de ter em vista - como deve - uma reponderação da decisão do tribunal recorrido por via da demonstração da sua incorreção ou deficiência face a elementos probatórios que se têm por pertinentes e que não terão sido considerados ou terão sido insuficientemente considerados, e transmuta-se na pura enunciação de um raciocínio probatório desligado da decisão de facto recorrida, sendo que, neste caso, tal atuação está fora do pressuposto da “reponderação” de uma decisão anterior que é própria dos recursos.
Sumaria-se no ac. da Relação de Guimarães de 11-9-2025 (proc. 6799/23.9T8BRG.G1, Margarida Pinto Gomes): limitando-se o impugnante a discorrer sobre os meios de prova carreados aos autos, sem a indicação/separação dos concretos meios de prova que, relativamente a cada um desses factos, impunham uma resposta diferente da proferida pelo tribunal recorrido, numa análise crítica dessa prova, não dá cumprimento ao ónus referido na al. b) do n.º 1 do art.º 640.º do Código de Processo Civil.
No ac. do S.T.J. de 16/12/2021 (proc. 573/17.9T8MTS.P1.S1, Chambel Mourisco) consigna-se que não cumpre o ónus previsto no art.º 640º do Código de Processo Civil o apelante que, nas suas alegações e nas conclusões, agrega a matéria de facto impugnada em blocos ou temas e indica os meios de prova relativamente a cada um desses blocos, mas omitindo-os relativamente a cada um dos concretos factos cuja decisão impugna.
E no ac. da Relação de Évora de 27/2/2025 (proc. n.º 549/23.7T8SSB.E1, Ana Pessoa) que a impugnação da matéria de facto não pode ser feita por remissão genérica para meios de prova, sem demonstrar a sua relevância quanto a determinado facto concreto. Na indicação dos meios probatórios [sejam eles documentais ou pessoais] que sustentariam diferente decisão (art.º 640.º, nº 1, al. b)), deverão eles ser identificados e indicados por referência aos concretos pontos da factualidade impugnada, ou a um conjunto de factos que estejam interligados e em que os meios de prova sejam os mesmos, sempre de modo a que se entenda a que concretos pontos dessa factualidade se reportam os meios probatórios com base nos quais a impugnação é sustentada, mormente nos casos em que se pretende a alteração de diversa matéria de facto.
Já se vê que o recorrente não cumpriu o ónus constante da alínea b) do n.º 1 do art.º 640º do C.P.C.. Ignorou a análise crítica de elementos probatórios produzidos nos autos efetuada pelo tribunal recorrido que permitem explicar o modo como a convicção deste se formou. Omitiu a análise crítica a que o próprio deveria ter procedido de modo a dar conta da incorreção ou da deficiência da fundamentação. Não contrapôs a sua análise daquela mesma natureza. Remeteu indiscriminadamente para excertos de depoimentos e documentos. Não explicitou em que medida os meios de prova para que remete infirmam, de forma pertinente, a análise levada a cabo pelo tribunal recorrido dos demais meios probatórios.
Como tal, como se prevê no n.º 1 do art.º 640.º do C.P.C., rejeita-se o recurso quanto à pretendida impugnação da matéria de facto.
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b - Da violação e interpretação inconstitucional do art.º 607.º/3 do C.P.C.
A conclusão x) do apelante tem o seguinte teor:
A não correspondência entre a prova invocada pelo Tribunal e a decisão sobre a matéria de facto que sobre ela assentou traduz uma violação e uma interpretação inconstitucional do preceituado no artigo 607.º, n.º 3 do Código de Processo Civil e viola o artigo 205.º da Constituição da República Portuguesa, o que desde já se deixa invocado.
O apelante entende que houve lugar a uma interpretação inconstitucional do art.º 607.º do C.P.C., com violação do art.º 205.º da Constituição da República Portuguesa.
O art.º 607.º/1 do C.P.C. dispõe que encerrada a audiência final, o processo é concluso ao juiz, para ser proferida sentença no prazo de 30 dias; se não se julgar suficientemente esclarecido, o juiz pode ordenar a reabertura da audiência, ouvindo as pessoas que entender e ordenando as demais diligências necessárias.
O art.º 607.º/2 do C.P.C. prevê que a sentença começa por identificar as partes e o objeto do litígio, enunciando, de seguida, as questões que ao tribunal cumpre solucionar.
E o n.º 3 que se seguem os fundamentos, devendo o juiz discriminar os factos que considera provados e indicar, interpretar e aplicar as normas jurídicas correspondentes, concluindo pela decisão final.
Prevê, por seu turno, o n.º 4 que na fundamentação da sentença, o juiz declara quais os factos que julga provados e quais os que julga não provados, analisando criticamente as provas, indicando as ilações tiradas dos factos instrumentais e especificando os demais fundamentos que foram decisivos para a sua convicção; o juiz toma ainda em consideração os factos que estão admitidos por acordo, provados por documentos ou por confissão reduzida a escrito, compatibilizando toda a matéria de facto adquirida e extraindo dos factos apurados as presunções impostas pela lei ou por regras de experiência.
Preceitua o art.º 205.º/1 da Constituição da República Portuguesa que as decisões dos tribunais que não sejam de mero expediente são fundamentadas na forma prevista na lei.
O apelante arguiu a violação do n.º 3 do art.º 607.º do C.P.C. que, como vimos, consiste na discriminação dos factos que se consideram provados, com indicação, interpretação e aplicação das normas jurídicas correspondentes, com decisão final.
Compulsada a sentença, é inequívoco que esta obedeceu a todos os passos enunciados e que não houve lugar a interpretação do n.º 3 do art.º 607.º que contrarie o dever de fundamentação.
Não assiste, por isso, razão ao apelante nesta sua censura dirigida à sentença.
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c - Se o A. tem direito a que a R. lhe entregue a totalidade da quantia paga no âmbito do acordo.
O apelante entende que não existe fundamento para a retenção pela R. da quantia de € 5 424,73. O reconhecimento do direito da R. a conservar a quantia correspondente a 30% daquela que lhe foi entregue no âmbito de acordo judicial não teria cobertura legal.
Está provado que a R. logrou obter um acordo de pagamento com a executada em processo em que era exequente o A., acordo esse no valor de € 26.798,82, que o pagamento das prestações correspondentes ao cumprimento do acordo pela executada foi feito por transferência para uma conta bancária da R. e que a R. reteve os montantes de € 1.499,48 e de € 4.500,00 a título de honorários.
Segundo o art.º 1154.º do C.C., contrato de prestação de serviço é aquele em que uma das partes se obriga a proporcionar à outra certo resultado do seu trabalho intelectual ou manual, com ou sem retribuição.
De acordo com o art.º 1157.º do C.C. o mandato é o contrato pelo qual uma das partes se obriga a praticar um ou mais atos jurídicos por conta da outra.
Prevê a alínea a) do art.º 1161.º do C.C. que o mandatário é obrigado a praticar os atos compreendidos no mandato, segundo as instruções do mandante. E a alínea e) do mesmo art.º 1161.º que o mandatário é obrigado a entregar ao mandatário o que recebeu em execução do mandato ou no exercício deste, se o não despendeu normalmente no cumprimento do contrato.
O mandato judicial ou forense corresponde a um contrato de mandato, na modalidade de mandato com representação (cf. Moitinho de Almeida, in Responsabilidade Civil dos Advogados, p. 13). Poderá ainda ser qualificado como contrato inominado ou atípico, regulado por um conjunto de obrigações para com o cliente impostas ex lege ao advogado, na decorrência do interesse público do exercício da profissão e do dever de independência (cf. Orlando Guedes da Costa, in Direito Profissional do Advogado, 6.ª edição, pp. 395 e ss. seguintes).
Socorrendo-nos diretamente das normas da responsabilidade contratual, o art.º 798.º do C.C. prevê que o devedor que falta culposamente ao cumprimento da obrigação se torna responsável pelo prejuízo que causa ao credor. Esta responsabilidade existe, quer se trate de não cumprimento definitivo, quer de simples mora ou de cumprimento defeituoso (artigos 798.º, 799.º, 801.º e 804.º). No caso de mau cumprimento ou cumprimento imperfeito é aplicável o princípio de que o devedor que, por culpa sua, cumpre defeituosamente se constitui na obrigação de indemnizar o credor da prestação devida. Nestes casos, a obrigação de indemnizar reveste natureza claramente contratual ou obrigacional. Embora subordinada aos pressupostos comuns a todas as formas de responsabilidade - ato ilícito, culpa, dano e nexo de causalidade entre o facto e o dano -, a obrigação de indemnizar resulta da violação de um direito de crédito ou obrigação em sentido técnico (ou de um contrato). A responsabilidade contratual modifica a obrigação de prestar em obrigação de indemnizar. A pretensão indemnizatória consiste no ressarcimento dos prejuízos sofridos.
É certo ainda que a R. invoca dispor de um crédito de honorários. Visto, porém, o disposto no art.º 266.º/2/c do C.P.C., a defesa por compensação deve ser deduzida através de reconvenção. Ora nem a R. deduziu pedido reconvencional, nem se apurou qual o montante dos honorários devidos.
Veja-se ainda que o art.º 101.º do Estatuto da Ordem dos Advogados, sob a epígrafe valores e documentos do cliente, consigna o seguinte:
1 - O advogado deve dar a aplicação devida a valores, objetos e documentos que lhe tenham sido confiados, bem como prestar conta ao cliente de todos os valores deste que tenha recebido, qualquer que seja a sua proveniência, e apresentar nota de honorários e despesas, logo que tal lhe seja solicitado.
2 - Quando cesse a representação, o advogado deve restituir ao cliente os valores, objetos ou documentos deste que se encontrem em seu poder.
3 - O advogado, apresentada a nota de honorários e despesas, goza do direito de retenção sobre os valores, objetos ou documentos referidos no número anterior, para garantia do pagamento dos honorários e reembolso das despesas que lhe sejam devidos pelo cliente, a menos que os valores, objetos ou documentos em causa sejam necessários para prova do direito do cliente ou que a sua retenção cause a este prejuízos irreparáveis.
Em súmula, nos termos do art.º 101.º/1/2 e/3 que se vem de reproduzir, tendo o advogado em seu poder valores pertencentes ao cliente, deve, para além de prestar contas dos mesmos, restituí-los ao cliente quando cesse o patrocínio, podendo, porém, retê-los, desde que apresentada a competente nota de honorários.
Verifica-se, sem embargo, que não há demonstração da apresentação da nota de honorários, desconhecendo-se, por inerência, qual o respetivo valor.
Ora na presente ação não está em causa o valor dos honorários do mandato prestado pela R. ao A., mas sim saber se existe fundamento para que a R. seja condenada a restituir ao A. a quantia por si retida do acordo obtido em execução em que o A. era exequente. Dito de outra forma, a presente ação não é uma ação de honorários, mas sim uma ação de condenação da R., com fundamento na apropriação indevida por esta de quantia assumidamente pertença do A.. A R. apenas se poderia manter na posse desta quantia se tivesse demonstrado que acordara com o A. que corresponderia aos seus honorários, apresentando a competente nota. Não o tendo feito, nos termos do contrato de mandato celebrado entre A. e R., reportando-se a perceção da quantia ao contrato, é devida a respetiva entrega ao mandante.
O A. pede a condenação da R. a pagar-lhe juros sobre a quantia retida desde 12-5-2021 até pagamento. É a própria lei que, por vezes, como é o caso do art.º 806.º do C.C. a propósito da mora nas obrigações pecuniárias, impõe a obrigação de pagar juros. Essa obrigação ou indemnização corresponde aos juros a contar do dia da constituição em mora (n.º 1) e os juros devidos são os juros legais, salvo se antes da mora for devido um juro mais elevado ou se as partes houverem estipulado um juro moratório diferente do legal (n.º 2 do mesmo art.º). Não resulta, porém, dos autos a data da constituição em mora. Assim, os juros deverão ser contabilizados desde a data da citação (art.º 805.º/1 do C.C.), soçobrando a pretensão do apelante no que concerne aos juros vencidos antes dessa data.
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V - Dispositivo
Nos termos sobreditos, acorda-se em julgar o recurso parcialmente procedente, revogando-se a decisão recorrida, que se substitui por outra que condena a R. a entregar ao A. € 5 424,73, acrescidos de juros de mora vencidos e vincendos às taxas legais desde a data da citação até pagamento.
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Custas pela apelada, atento o seu decaimento (art.º 527.º/1/2 do C.P.C.).
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Porto, 24 de novembro de 2025
Teresa Fonseca
Eugénia Cunha
Anabela Morais