Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
2548/14.0TBVNG-D.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: ISABEL SÃO PEDRO SOEIRO
Descritores: CONTRATO DE FINANCIAMENTO
RESERVA DE PROPRIEDADE
Nº do Documento: RP201610102548/14.0TBVNG-D.P1
Data do Acordão: 10/10/2016
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Indicações Eventuais: 5ª SECÇÃO, (LIVRO DE REGISTOS N.º 633, FLS.347-352)
Área Temática: .
Sumário: Num contrato de compra e venda a prestações com mútuo, é nula a cláusula de reserva de propriedade sobre o bem vendido a favor do mutuante/financiador, por contrariar o disposto no art.º 409.º, n.º 1, do Código Civil.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: PROCESSO Nº2548/14.0TBVNG-D.P1
Acordam no Tribunal da Relação do Porto – Secção Cível:

A Administradora da insolvência nomeada nos autos nº2548/14.0TBVNG, em que são insolventes B… e C…, ambos ids nos autos, requereu a declaração de nulidade da cláusula de reserva de propriedade a favor do Banco D…, SA, que incide sobre o veículo de marca Peugeot, com a matrícula ..-IN-.., e se ordene o levantamento da referida cláusula da Conservatória do Registo Automóvel, libertando o bem de tal ónus de forma a se proceder ao seu registo definitivo a favor da massa insolvente.

Notificado, o credor deduziu oposição a esse requerimento, pugnando pela validade da cláusula.

Em 30.12.2015, foi proferido o seguinte despacho:
(…)
Cumpre decidir.
Dispõe o art. 409°, nº 1, do C.Civil que "nos contratos de alienação é lícito ao alienante reservar para si a propriedade da coisa até ao cumprimento total ou parcial das obrigações da outra parte ou até à verificação de qualquer outro evento".
Ora, da factualidade alegada e dos próprios documentos juntos a fls. 5 e 22 a 28 resulta que o Banco D…, SA, não é, nem foi proprietário do veículo em causa, tendo apenas celebrado com a insolvente mulher um contrato de financiamento para aquisição desse veículo a terceiro, tendo vindo, porém, a registar a seu favor cláusula de reserva de propriedade sobre esse veículo.
Assim, não foi o referido credor o alienante do veículo aos insolventes, ou seja, não teve intervenção no contrato de compra e venda celebrado entre os insolventes e o fornecedor do veículo, mas apenas no contrato de crédito, contraído pela insolvente mulher para obtenção de financiamento do preço de tal veículo.
Por somente ter financiado a aquisição do veículo pelo insolvente não era lícito ao Banco D… reservar para si a propriedade do mesmo já que foi alheio à sua transmissão.
Perante tal, encontra-se ferida de nulidade essa cláusula de reserva de propriedade a favor de outrem que não o vendedor, como tem considerado a jurisprudência, atento o disposto no art. 280°, n? 1, do C.Civil, por configurar uma prestação impossível de realizar (cfr., entre muitos outros, Acs da R.P. de 01/07/2008; 01/06/2004 - processo nº 0422028; e de 25/09/2008 - proc. nº0834835.)
Sendo nula a cláusula de reserva de propriedade invocada pelo Banco D…, terá que ser cancelado o registo dessa cláusula na Conservatória do Registo Automóvel.
Face ao exposto declaro nula a cláusula de reserva de propriedade e determino o cancelamento do registo dessa cláusula na Conservatória do Registo Automóvel a favor do Banco D…, SA.
Notifique.”
Inconformado veio o credor Banco D…, S.A. interpor o presente recurso, terminando a sua alegação enunciando as seguintes conclusões:
«I. O Tribunal a quo, decidiu pela nulidade da cláusula de reserva de propriedade constituída validamente a favor do ora recorrente por entender que não era lícito a este reservar para si a propriedade do veículo já que foi alheio à sua transmissão e somente financiou a aquisição do mesmo pela insolvente.
II. Decisão que o financiador ora recorrente não pode concordar pela mesma representar um frustrar das suas legítimas expectativas.
III. Ora o Recorrente celebrou com a insolvente um contrato de financiamento com o objectivo de financiar a aquisição de um veículo automóvel de passageiros.
IV. Esse contrato apenas foi celebrado porque ao financiador foi dado a possibilidade de constituir uma reserva de propriedade sobre o veículo objecto do financiamento (cfr. ponto 7 da cláusula 2.a do contrato de financiamento para aquisição a crédito documento n.? 1).
V. Caso contrário o financiador nunca teria aceite financiar a insolvente sem ter qualquer tipo de garantia numa situação de incumprimento ou insolvência.
VI. Ficou assim expressamente acordado entre as partes a reserva de propriedade sobre o bem, objecto do contrato.
VII. Tendo-se efectuado o registo da reserva de propriedade que foi plenamente aceite pela Conservatória do Automóvel não tendo à mesma havido qualquer a oposição de terceiro.
VIII. Sucede que a titular do contrato ficou insolvente e pretende agora a administradora de insolvência arrolar o veículo automóvel para a massa insolvente para com o produto da venda do veículo financiado pelo recorrente fazer pagar o outro credor (a quem foi reconhecido o crédito no valor de € 246.045,77) e as custas do processo.
IX. Para tanto, alega que a reserva de propriedade opera somente por ocasião da celebração de contratos de compra e venda nos termos do artigo 409.° do Código Civil.
X. O que é sobejamente discutível na nossa jurisprudência pois que a actualidade impõe a necessidade de fazer uma interpretação actualista da norma acima referida uma vez que este preceito legal foi criado num tempo em que as partes, num contrato de compra e venda, eram apenas duas: o vendedor de um lado e o comprador do outro e agora intervém por norma três partes: comprador, vendedor e financiador, como é o caso que aqui se discute.
XI. Para além do mais o contrato de alienação, no caso em apreço, não pode ser interpretado como de um contrato isolado já que está conexionado com o contrato de financiamento.
XII. Verifica-se assim uma verdadeira união de contratos e essa ligação acarreta necessariamente a produção de efeitos jurídicos muito próprios e peculiares.
XIII. Assim o contrato de alienação com financiamento constitui um contrato atípico e inominado.
XIV. Celebrado à luz do princípio da liberdade contratual e autonomia privada prevista no artigo 405.° do Código Civil.
XV. Pelo que considerar nula a reserva de propriedade a favor do recorrente significa defraudar as legítimas expectativas deste.
XVI. E bem assim, em consonância com a teoria ora defendida pelo recorrente andaram vários Acórdãos sobre a versada temática, nomeadamente:
XVII. o Tribunal da Relação do Porto no acórdão de 24.02.2011, disponível em www.dgsLpt que refere: "É válida a cláusula de reserva de propriedade a favor do mutuante que financiou a aquisição pelo mutuário a um terceiro de um bem sobre que incide a garantia, por resultar da liberdade contratual e não ser proibida por lei."
XVIII. O Tribunal da Relação de Coimbra de 15.07.2008, disponível em www.dgsLpt que refere: "II - Abrangendo o artigo 409°, nO 1, do CC, na sua letra e no seu espírito, a hipótese de conexão entre o contrato de mútuo a prestações e o contrato de compra e venda de veículo automóvel, em virtude de o objecto mediato do primeiro constituir o elemento preço do segundo, situação que se configura como se o pagamento do preço relativo ao contrato de compra e venda fosse fraccionado no tempo, a figura da reserva da propriedade tem sentido no contexto do contrato de mútuo celebrado com o objectivo de financiar o contrato da compra e venda.".
XIX. o Tribunal da Relação de Lisboa, no acórdão de 12.08.2013 em que refere: "A reserva da propriedade (art. 409 do CC) só pode ser estipulada a favor do alienante, mas isso não impede que a reserva possa ser estipulada para garantia do pagamento de crédito do mutuante (isto ao abrigo da parte da previsão "ou até à verificação de qualquer outro evento" que consta do nº. 1 do art. 409 do CC) e que depois possa ser transmitida para este, com sub-rogação dele nos direitos do vendedor."
XX. Razão pela qual entendemos que não colhem os argumentos aduzidos pela Administradora de Insolvência e apoiados pelo Tribunal a quo e que deste modo não deve proceder a nulidade da clausula de reserva de propriedade.
XXI. Em face do exposto, entende-se que deve ser revogada a decisão proferida pelo Tribunal da Comarca do Porto, com as legais consequências.»

Não foram apresentadas contra alegações.

Com dispensa de vistos, cumpre decidir.

Consideram-se assentes os factos seguintes:
1. No exercício da sua actividade, o Recorrente Banco D…, S.A. celebrou com os insolventes, em 17.11.2009, um contrato que denominaram de «Contrato de Financiamento de Aquisição a Crédito» tendo por objecto a aquisição de viatura ligeira de passageiros, marca Peugeot modelo …, com a matrícula ..-IN-...
2. Através do mencionado contrato foi concedido um financiamento no valor de €24.264,72 (vinte e quatro mil, duzentos e sessenta e dois euros e setenta e dois cêntimos)
3. Os insolventes ficaram obrigados a proceder ao pagamento correspondente ao financiamento através da realização de 120 prestações mensais, cada uma no valor de €270,13 acrescida da comissão de cobrança.
4. Para garantia do mencionado pagamento pelos insolventes foi constituída a favor do Recorrente reserva de propriedade do mencionado veículo.
5. A reserva de propriedade encontra-se registada na Conservatória do Registo Automóvel de Lisboa.
6. Os insolventes apenas liquidaram 52 prestações das 120 estabelecidas no contrato.
7. Os titulares do contrato referido em 1. foram declarados insolventes.
8. O Recorrente reclamou nos autos de insolvência o crédito referido em 3., invocando a reserva de propriedade sobre o veículo supra indicado.
9. A Srª Administradora da insolvência tendo conhecimento da existência do veículo de matrícula ..-IN.-.., em nome dos insolventes e da existência da reserva de propriedade a favor do Recorrente, solicitou ao Tribunal a quo a declaração da nulidade da aludida cláusula e ordenar o levantamento da mesma.
10. Neste contexto, foi proferido o despacho impugnado supra transcrito.

O DIREITO.
Como é sabido, o âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões da respectiva alegação do recorrente, não podendo o Tribunal “ad quem” apreciar as questões que, não sendo de conhecimento oficioso, nelas não estejam incluídas.(arts.637º, nº2 e 639º do Cód. Proc. Civil).
Pelo que a única questão que se coloca é de saber se é válida ou nula a cláusula de reserva de propriedade constituída a favor da entidade que financiou/mutuante a compra efectuada pelo Réu a terceiro, do bem – um veículo automóvel - sobre que incide a garantia.
O Tribunal a quo considerou que a cláusula de reserva de propriedade sobre o identificado veículo a favor do Recorrente como simples financiador é nula por contrariar a disciplina do Artº 409º, nº1, do Código Civil, que só permite a constituição da reserva da propriedade nos contratos de alienação do respectivo direito (e o contrato de mútuo, como o celebrado pelo Recorrente, não constitui uma alienação), e, em consequência, determinou o cancelamento do registo dessa cláusula na Conservatória do Registo Automóvel a favor do Banco D…, SA.
Assim, no caso sub judice, está em causa saber se num contrato de financiamento para aquisição de bens (mútuo), tendo sido constituída reserva de propriedade a favor do financiador/mutuante, em caso de incumprimento, este pode pedir a restituição do veículo ou, essa cláusula é nula, como se diz na decisão recorrida.
A este propósito a jurisprudência não é unânime.
Assim, por exemplo, defendeu-se no ac. desta Relação de 24.02.2011, proc. 935/09.5TBOAZ.P1, entre outros, publicados em wwwdgsi.pt que:“A venda financiada de veículos automóveis é, notoriamente, uma prática cada vez mais frequente, sendo habitual a inserção pelo financiador, no contrato que celebra com o adquirente, de uma cláusula em que reserva para si a propriedade do bem alienado pelo vendedor, até integral pagamento do empréstimo pelo mutuário adquirente. A validade desta cláusula – estipulação da reserva de propriedade em favor do mutuante, pessoa jurídica diversa do vendedor – vem sendo, porém, questionada, quer na doutrina (a título de exemplo Gravato Morais, in Cadernos de Direito Privado, n.º 6, p.49., quer na jurisprudência. E embora haja divergência na jurisprudência, parece-nos até que o entendimento maioritário será pela nulidade da cláusula. Porém, os argumentos apresentados não nos convencem (…)
Conforme resulta do disposto no art.º 1317.º a) do Código Civil[4], 408.º n.º1 e 409.º n.º 1, nos contratos de alienação de coisa determinada, a transferência do direito de propriedade dá-se por “mero efeito do contrato”. Tal significa que a transferência da propriedade não está na dependência de qualquer outro acto, designadamente a tradição da coisa ou a inscrição no registo. Porém, as partes podem estipular coisa diversa no que toca a este efeito real, mediante uma estipulação de “reserva de propriedade”, segundo a qual “o alienante pode reservar para si a propriedade da coisa até ao cumprimento total ou parcial das obrigações da outra parte ou até à verificação de qualquer outro evento”.Centremo-nos, pois, no teor do referido artigo 409.º n.º1: O vendedor pode reservar para si a propriedade da coisa. Qual o objectivo desta reserva de propriedade? Trata-se de uma cláusula com particular incidência na venda a prestações. Através desta reserva de propriedade o alienante pode acautelar-se, eficazmente, contra o risco de incumprimento por parte do adquirente.Até aqui a situação é relativamente clara. Este preceito legal foi criado num tempo em que as partes, num contrato de compra e venda, eram apenas duas: o vendedor de um lado e o comprador do outro.
Sucede que a venda a prestações enquanto relação bilateral entre comprador e vendedor já não corresponde à realidade sócio-económica actual.
A evolução da vida económica determinou uma maior complexidade das relações contratuais. Actualmente, para se concretizar o contrato de compra e venda, na maioria das vezes, intervêm não duas, mas três partes: o comprador, o vendedor e aquela que empresta o dinheiro.
Como refere GRAVATO MORAIS in Contratos de Crédito ao Consumo, Almedina, 2007, p.231. «na larga maioria das situações, o consumidor dirige-se ao vendedor para adquirir um bem. Dado que não tem disponível a quantia na totalidade, ou tendo-a, não a quer utilizar para esse fim, contrai um crédito. Como o alienante não está interessado em financiar a compra, normalmente propõe-lhe a concessão de um empréstimo por terceiro. Para o efeito tem em mão formulários de “propostas de mútuo” de um específico financiador, com quem coopera previamente, que entrega ao consumidor e que este subscreve com a sua ajuda. Ulteriormente, essas propostas são enviadas ao dador de crédito para aprovação, sendo que, em princípio, o consumidor não contacta com ele presencialmente, podendo até dar-se o caso de não ter sequer consciência de que celebrou dois contratos: a venda e o mútuo»
É, portanto, marcada a relação de dependência ou conexão entre os contratos de compra e venda e de mútuo. No caso que nos ocupa é sintomática desta realidade a designação da entidade financiadora (B…) que coincide mesmo com a marca do bem que é (...). O fenómeno é, aliás, explicado dogmaticamente através da figura da união de contratos: os dois contratos são juridicamente autónomos, mas ligados por um vínculo de natureza económica e essa ligação acarreta necessariamente a produção de efeitos jurídicos específicos e peculiares. (Gravato Morais, “Do regime jurídico do crédito ao consumo”, in Scientia Jurídica, Jul-Dez 2000, Tomo XLIX, p.410-411.)
Esta dinâmica contratual a que nos conduziu a já mencionada evolução das relações económicas e a transformações da sociedade de consumo em que vivemos exigem uma leitura actualista das disposições legais já mencionadas, designadamente do disposto no art.º 409.º do Código Civil.
Com efeito, do esquema contratual descrito, resulta evidente que o vendedor deixou de correr o risco resultante do incumprimento por parte do comprador, uma vez que lhe passou a ser entregue o preço, por parte da entidade financiadora. E assim, não faria sentido que ficasse registada a seu favor a reserva de propriedade em relação à coisa vendida. Neste caso, quem fica onerado com o risco do incumprimento é a terceira parte contratante, ou seja o financiador, por isso justifica-se que seja este o titular da garantia que constitui a reserva de propriedade. Mas dir-se-á: Como pode o mutuante reservar para si um direito de propriedade que nunca teve? Cremos que tal dificuldade se ultrapassa do seguinte modo: A reserva de propriedade é um direito do proprietário, ou seja do vendedor, conferida pelo disposto no art.º 409.º n.º 1 segundo o qual “ é lícito ao alienante reservar para si a propriedade da coisa até ao cumprimento total ou parcial das obrigações(…)”. Porém, também estabelece o art.º 405.º que “dentro dos limites da lei, as partes têm a faculdade de fixar livremente o conteúdo dos contratos, celebrar contratos diferentes dos previstos neste código ou incluir nestes as cláusulas que lhes aprouver”. O princípio da liberdade contratual é mesmo, a par do consensualismo, da boa fé, ou da força vinculativa um princípio fundamental do regime dos contratos. A regra consiste, pois, em os particulares, na área dos contratos, poderem agir por sua própria e autónoma vontade, os limites que a lei imponha constituem excepção. (Mário Júlio de Almeida Costa, Direito das Obrigações, 10.ª edição, Almedina, p.228)
Deste princípio da liberdade contratual derivam várias consequências: os contraentes são inteiramente livres tanto para contratar ou não contratar, como na fixação do conteúdo das relações contratuais que estabeleçam, desde que não haja lei imperativa, ditame de ordem pública ou bons costumes que se oponham.
Destaca-se, pelo interesse que tem para a questão em apreço, o segmento da liberdade contratual que se analisa na faculdade que os contraentes têm não só de seleccionar o tipo de negócio que lhes pareça mais adequado à satisfação dos seus interesses, mas ainda de preenchê-lo com o conteúdo concreto que bem entendam.
E é à luz deste princípio basilar do regime dos contratos que não se vislumbra qualquer obstáculo legal a que o alienante possa transferir um direito que é seu para a esfera jurídica de terceiro, neste caso o mutuante, no âmbito do contrato tripartido ou triangular a que vimos aludindo, em que o risco de crédito se desloca do vendedor para o financiador, estando ambos os contratos (compra e venda e mútuo) interligados.
Se o alienante pode reservar para si a propriedade da coisa como garantia do cumprimento das obrigações do comprador, também pode transferir esse direito para terceiro, precisamente aquele que lhe retirou o risco do negócio que celebrou. Esse é o acordo subjacente ao contrato: o financiador assume o risco do alienante e, em contrapartida, este transfere para aquele as garantias de que já não carece. Nada na lei parece impedi-lo.
Antes pelo contrário, é o próprio D. L. n.º 359/91, de 21/9 que regula o regime jurídico do crédito ao consumo que prevê como cláusula dos contratos de crédito ao consumo “ o acordo sobre reserva de propriedade”.
Por outro lado, traduzindo-se a cláusula da reserva de propriedade, prevista e regulada no art.º 409.º, na sujeição do efeito translativo desses negócios a uma condição suspensiva ou termo inicial, sendo a propriedade sobre o bem alienado, utilizada como garantia do cumprimento das prestações do adquirente nada impede que essa garantia seja transmitida pelo alienante ao mutuante. É o que resulta da vontade das partes, encontra toda a justificação na dinâmica contratual e no equilíbrio dos interesses de todas as partes envolvidas.
Este entendimento encontra pleno acolhimento no art.º 591.º do Código Civil. Efectivamente, nestas situações existe uma sub-rogação do mutuante na posição jurídica do vendedor, assumindo o risco em que este incorreria se tivesse celebrado um contrato de compra e venda a prestações e passando a dispor das garantias que pertenceriam aquele, no caso a reserva de propriedade.
Mas ainda que surjam dificuldades em enquadrar dogmaticamente esta “transmissibilidade” da posição do alienante ou que também a figura da sub-rogação possa revelar alguns escolhos sempre a já mencionada interpretação actualista do disposto no art.º 409.º do C.C. permitirá considerar extensiva ao contrato de mútuo conexo com o de compra e venda a referência ali feita ao “contrato de alienação” e, por consequência, reconhecer legitimidade do financiador para invocar a seu favor a reserva de propriedade.
Em complemento dos argumentos expostos, cabe ainda referir que no âmbito da liberdade contratual, a regra é a de que é permitido aquilo que a lei não proíbe. Portanto, não é válido o argumento subjacente às teses jurisprudenciais e doutrinais relativamente às quais manifestamos discordância, segundo o qual é proibido aquilo que a lei não prevê.
Tenha-se em conta, por outro lado que a interpretação jurídica das normas não deve restringir-se a um conceptualismo formalista, apoiado estritamente nos elementos literal, despido das consequências práticas que dele possam provir.No tempo em que hoje actuamos, “a linha de orientação exacta só pode ser aquela em que as exigências do sistema e de pressupostos fundamentos dogmáticos não se fechem numa auto - suficiência, a implicar também a auto-subsistência de uma hermenêutica unicamente explicitante, e antes se abram a uma intencionalidade materialmente normativa que, na sua concreta e judicativa – decisória realização, se oriente decerto por aquelas mediações dogmáticas, mas que ao mesmo tempo as problematize e as reconstitua pela sua experimentação concretizadora” (Castanheira Neves, Metodologia, 1993, p. 123.)
Ou por outras palavras, sendo a ordem jurídica uma estrutura não estática e acabada, mas uma ordem evolutiva, uma resposta diferente a cada nova situação social, o jurista tem de ser o agente desta incessante actuação da ordem jurídica garantindo o papel regulador e vivificador das normas e não deixando que elas se tornem espartilhos da actividade económica e social.
Assim, defendemos que é válida a cláusula de reserva de propriedade a favor do mutuante….”

Contrariamente, outra corrente jurisprudencial defende a nulidade da cláusula de reserva de propriedade feita a favor do financiador/mutuante.
A título de exemplo, neste sentido, pode ler-se no Ac. do STJ de 31.03.2011, proc. 4849/05.0TVLSBL1.S1 in wwwdgsi.pt.:
“(…)
Em suma: continua em equação, no caso sub judice, saber se num contrato de financiamento para aquisição de bens (mútuo), tendo sido constituída reserva de propriedade a favor do financiador/mutuante, em caso de incumprimento, este pode pedir a restituição do veículo, bem como ser-lhe reconhecido o direito ao cancelamento do registo averbado na Conservatória do Registo Automóvel a favor do mutuário/comprador desse veículo.
A jurisprudência, principalmente a nível de 2ª Instância, tem estado dividida sobre a solução a dar a esta questão, como o reconhecem as Instâncias.No Supremo Tribunal de Justiça, porém, tem vindo a prevalecer, (…) o entendimento de que uma tal cláusula de reserva de propriedade a favor do simples financiador/mutuante é nula, por ser legalmente impossível e dado que contraria a disciplina substantiva do Artº 409º, nº1, do Código Civil, que somente a admite nos contratos de alienação a favor do alienante ( “ 1. Nos contratos de alienação é lícito ao alienante reservar para si a propriedade da coisa até ao cumprimento total ou parcial das obrigações da outra parte ou até à verificação de qualquer outro evento”).
(…)
Não se ignora que o DL nº 359/91, de 21 de Setembro, que regula a concessão de crédito ao consumo (aplicável ao caso), inclui, sob o seu Artº 6º, nº3, al. f), no elenco dos requisitos a que deve obedecer o contrato de crédito para financiamento da aquisição de bens ou serviços mediante o pagamento em prestações, a menção do “acordo sobre a reserva de propriedade” – disposição esta que, de tão sóbria e generalizante, é, a nosso ver, e fundamentalmente, a responsável não só por que na Conservatória do Registo Automóvel se tenha passado a averbar uma tal cláusula de reserva de propriedade a favor do simples financiador/mutuante independentemente de ele ser ou não também o vendedor (alienante), como pela divergência jurisprudencial a que já se aludiu.
Todavia, é sabido que na interpretação das leis o julgador se não pode cingir à letra da lei e tem que ter em conta, além do mais, a unidade do sistema jurídico (com a sua harmonia institutiva e conceitual), em que estão incluídos os demais institutos legais, como o previsto no citado Artº 409º, nº1, quanto à reserva da propriedade – artº 9º, nº1, do CC – o que, tal como bem se salienta no referido Acórdão de 19-07-2008, nos leva a concluir que só quando o vendedor do bem em prestações (alienante) é simultaneamente o financiador da sua aquisição por outrem faz sentido que no respectivo contrato de crédito ou mútuo se inclua e mencione a cláusula da reserva de propriedade, se acordada pelos contraentes. De contrário, se não é o proprietário do bem que vende, nada poderá transmitir ( “nemo plus iuris in alium transferre postest quam ipse habet”), e também, por nada ter e nada poder transmitir, nada poderá reservar sob condição. É sempre o efeito de uma aquisição derivada de quem é dono e aliena que permite a este subordinar a transferência do direito de propriedade (que normalmente se dá por simples efeito do contrato – Artº 408º, nº1) do bem à verificação da condição suspensiva do pagamento integral do preço, pela inserção da cláusula da reserva de propriedade, que representa para si uma garantia de cumprimento.
Reconhece-se que o recurso ao crédito ao consumo, cada vez mais em uso, tem a virtualidade de aproximar interessadamente o vendedor, o financiador e o consumidor, pela afinidade das suas pretensões, que logram maior possibilidade de se concretizarem através da contribuição de cada um deles, maxime a do financiador, pela prontidão com que pode colocar o valor ou preço do bem logo ao alcance do vendedor (como está provado que aconteceu no caso dos autos) e assim também permite que o consumidor adquira imediatamente o bem, que doutro modo, à míngua de recursos financeiros, o não poderia fazer.
Contudo, esta realidade, de alguma conexão de interesses, não permite, só por si, e pelos motivos já expostos, se subverta, porventura a coberto do princípio da liberdade contratual ( Artº 405º do CC), o alcance e a clara definição do instituto da reserva de propriedade, para o estender, como garantia de cumprimento do contrato de mútuo, à protecção do credor como simples financiador. É que a liberdade de contratar há-de também conter-se “dentro dos limites da lei”, como expressamente o estabelece o referido Artº 405º, limites esses que, pelas razões já expostas, são as do citado Artº 409º, que o DL nº 359/91, de 21/9 (destinado, essencialmente, a proteger o consumidor – cfr suas nota preambulares) nem expressa, nem tacitamente, põe em causa.
A situação do mutuante/financiador para este efeito, quanto a possíveis garantias do seu crédito, é idêntica, aliás (ressalvadas as diferenças que decorrem de uma mais rápida degradação, tanto do valor dos bens como da sua conservação material), à das entidades bancárias que concedem crédito à habitação; não incluem a seu favor cláusulas de reserva de propriedade nos respectivos contratos de mútuo porque não são as alienantes do imóvel financiado, mas constituem outras garantias do seu crédito, reais ou pessoais (hipoteca, fiança, etc.), que também se podem usar no crédito para aquisição de veículo automóvel – cfr, entre outros, e com mais esclarecida desenvoltura, Fernando de Gravato Morais, in “Contratos de Crédito Ao Consumo”, Almedina, pag. 304-309.
Por outro lado, não decorre da aludida conexão de interesses, também só por si, que o mutuante/financiador fique sub-rogado nos direitos do vendedor ou do devedor, pois que a vontade de sub-rogar tem que ser expressa ( artºs 589º e 590º, nºs 1 e 2, do CC), e no caso de ser o devedor a sub-rogar o terceiro que lhe emprestou o dinheiro para cumprir o contrato, terá que a declaração além de ser expressa constar do documento do empréstimo ( Artº 591º, nºs 1 e 2, do CC).
(…)”
No nosso entender parece-nos ser esta a interpretação que melhor se insere na letra e espirito da lei (art.409º do Cód. Civil).
A cláusula de reserva de propriedade, nos termos legais descritos – artigo 409.º, do CC - apenas tem sentido quando relacionada com a transferência de propriedade operada pela compra e venda «nos contratos de alienação».
A reserva ocorre até o cumprimento total ou parcial das obrigações ou até à ocorrência de «qualquer outro evento».
Em todo o caso, como se escreve no Ac. da RL de 28.02.2013, proc.84/13.1JTLSB, L1-G in wwdgsi.pt “(…) Quer se entenda que a reserva tem natureza resolutiva (determinando o facto que a despoleta a resolução do contrato de alienação) quer se defenda que tem natureza suspensiva (determinando o facto a perfeição do negócio), sempre a mesma se encontra ligada às vicissitudes do contrato de alienação, à sua eficácia plena ou à sua resolução. O inominado evento que a poderá despoletar é assim um evento que «afecte» o contrato de alienação porque apenas a afecção deste poderá fazer reverter a propriedade ao alienante.
Dir-se-á: a teleologia da cláusula de reserva de propriedade é a de protecção do direito do credor do preço do bem, face à alienação do mesmo pelo devedor/vendedor ou face aos demais credores do vendedor. Razão de ser que encontra a sua sede, quando haja dissociação entre comprador e financiador, na protecção do financiador.
A reserva de propriedade seria assim um direito real de garantia que se desligaria do contrato de alienação e “seguiria” o bem. Mas tal redundaria em violação da tipicidade que o artigo 1306.º, do CC, impõe face ao que o artigo 409.º estatui.“
Como se refere no Ac.do STJ de 9.10.2008, proc 3965/07 «apesar da sua função de garantia de cumprimento de uma obrigação pecuniária, não assume a reserva de propriedade a estrutura de garantia real de cumprimento obrigacional, além do mais, por não fazer parte do respectivo elenco típico (art. 1306.º, n.º 1, do CC)».
Assim, de acordo com disposto no art. 409º, nº 1, do Código Civil, a reserva de propriedade apenas pode ocorrer por parte do alienante da mesma propriedade. Quer se opte por uma natureza de condição resolutiva ou suspensiva da reserva, parece iniludível que ela apenas possa ocorrer a favor do alienante, mesmo existindo, como no caso, um acto de registo a favor de terceiro/financiador/mutuante.
Caso contrário, as consequências seriam as de se reservar a propriedade quem nunca a adquiriu e de resolver o contrato de alienação quem dele não foi parte.
Pelo que, com todo o respeito pelas decisões contrárias, entendemos que não é possível, nem se impõe no art. 409.º, do CC, no sentido da clausula de reserva de propriedade ser válida quando feita a favor da entidade financiadora/mutuante. Para esta a lei prevê outro tipo de garantias, vg a garantia mediante a hipoteca – artigos 686.º, n.º 1, e 688.º, n.º 1, alínea f), do CC.
Diga-se ainda que, a interpretação actualista não pode alhear-se da letra da lei, antes lhe está submetida, nela incluindo as realidades que no momento da aplicação substituíram as que se verificavam no momento da produção legislativa.
Por outro lado, a liberdade contratual consignada no art.405º do Cód. Civil, está sujeita aos limites legais, como resulta do disposto no art.280º do mesmo Código. E, portanto, sendo a reserva de propriedade inerente à alineação, só pode ser constituída em beneficio do alienante (art.409º do Cód. Civil), como se refere na decisão recorrida.

Nestes termos, acordam em negar provimento ao recurso e confirmar a decisão recorrida.
Custas pelo recorrente.

Porto, 2016.10.10
Isabel São Pedro Soeiro
Maria José Simões
Cura Mariano