Acórdão do Tribunal da Relação do Porto | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | JTRP000 | ||
Relator: | DONAS BOTTO | ||
Descritores: | ABUSO SEXUAL DE CRIANÇA CONCURSO REAL DE CRIMES CRIME ÚNICO CRIME DE TRATO SUCESSIVO ALTERAÇÃO DA QUALIFICAÇÃO JURÍDICA DOS FACTOS | ||
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Nº do Documento: | RP201401297446/08.4TAVNG.S1.P1 | ||
Data do Acordão: | 01/29/2014 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
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Meio Processual: | REC PENAL | ||
Decisão: | NEGADO PROVIMENTO | ||
Indicações Eventuais: | 1ª SECÇÃO | ||
Área Temática: | . | ||
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Sumário: | I - Não sendo feita qualquer alteração factual em sede de sentença uma vez que a matéria de facto naturalisticamente considerada é exactamente a mesma da pronúncia, divergindo o Tribunal apenas quanto à qualificação jurídica, tendo sido feita a comunicação a que alude o n.º 3 do artigo 358º do CPP, nenhuma nulidade é cometida, ainda que se altere a qualificação jurídica para figura criminal mais grave. II - O tribunal tem liberdade para qualificar juridicamente de maneira diversa os factos descritos na acusação, apenas devendo prevenir o arguido de qualquer alteração de qualificação, nos termos sobreditos. III - O crime de trato sucessivo é reconduzível à figura do crime habitual a que Eduardo Correia chamou de crime único com pluralidade de actos. IV – No crime de trato sucessivo a consumação prolonga-se no tempo por força da prática de uma multiplicidade de actos reiterados. V - Havendo um certo distanciamento temporal, tais situações correspondem a casos especiais em que a estrutura do facto criminoso se apresenta ou, pelo menos, pode apresentar-se mais complexa do que habitualmente sucede e se desdobra numa multiplicidade de actos semelhantes que se vão praticando ao longo do tempo, com intervalos entre eles. VI - Os tipos de crime de abuso sexual de crianças e de abuso sexual de menores dependentes não contemplam aquela «multiplicidade de actos semelhantes», que está implicada no crime habitual, nem, por isso, a sua realização supõe um comportamento reiterado. VII – Se os vários actos do arguido foram executados num diverso contexto situacional, comandado por uma diversa resolução e se traduziu numa autónoma lesão do bem jurídico protegido, verifica-se concurso efectivo de crimes. | ||
Reclamações: | |||
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Decisão Texto Integral: | Proc. n.º 7446/08.4TAVNG.P1 Acordam em Conferência no Tribunal da Relação do Porto Relatório O Exmo Magistrado do Ministério Público, em processo comum com intervenção de tribunal colectivo, acusa: B…, casado, trolha, nascido em 13.07.1965, filho de C… e de D…, natural da freguesia …, Espinho, residente na Rua …, nº .., …, Vila Nova de Gaia pela prática, em autoria material, de um crime de abuso sexual de criança, p. e p. no artº 171º, nº 1 e 2, com as agravações resultantes do artº 177º, nº 1, al. a) e 4, do Código Penal, e um crime de coação agravada, p. e p. pelo artºs 154º, nº 1 e 155º, nº 1, al. b), do mesmo diploma legal, imputando-lhe a prática dos factos descritos na acusação de fls. 323 e seg., que aqui se dá por integralmente reproduzida. O arguido não apresentou contestação. Realizou-se a audiência de julgamento, com observância do legal formalismo. No decurso da audiência procedeu-se a uma comunicação da alteração jurídica dos factos constantes da acusação, por se considerar que a conduta do arguido aí descrita é susceptível de integrar a prática de, em concurso real, de um crime de abuso sexual de crianças agravado, previsto e punido, pelo artº 171º, nº 1 e 2 e 177º, nº 1, al. a) e um crime de abuso sexual de adolescente dependente agravado, previsto no artº 172º, nº 1, e 177º, nº 1 al. a) e nº 4, além de um crime de coação agravada, p. e pelo artº 154º, nº 1 e 155º, nº 1, al. b) do Código Penal. Notificado desta comunicação, o arguido requereu prazo para a defesa, que foi concedido, e não se opôs à continuação do julgamento, a que também se não opôs o Ministério Público. Procedeu-se à inquirição das testemunhas indicadas pelo arguido no referido prazo. A instância mantém-se válida e regular, não se suscitando questões prévias ou incidentais que obstem à apreciação do mérito da causa. – FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO: Factos provados: A) DA ACUSAÇÃO: Resultaram provados, com interesse para a sua decisão, os seguintes factos: 1. O arguido é pai da menor E…, nascida a 11.12.1993. 2. Em 2005 o arguido e a sua referida filha menor residiam na Rua …, nº .., em …, Vila Nova de Gaia. 3. Do agregado familiar faziam, ainda, parte, a mãe da menor E… e dois irmãos desta, também menores, bem como a avó materna. 4. A E… padece de deficiência mental moderada congénita, que lhe determina um atraso cognitivo. 5. Em data não concretamente apurada de 2005, na altura em que a E… contava 11 anos de idade, o arguido resolveu manter com ela relações sexuais. 6. Em execução de tal propósito, e ao longo do período compreendido entre 2005 e Setembro de 2008, aproveitando-se do natural ascendente que sobre ela detinha, fruto dos laços familiares que os uniam e da menor capacidade da mesma, quer em face da imaturidade inerente à respectiva idade, quer do atraso intelectual de que padecia, para compreender plenamente o significado e consequência dos relacionamentos sexuais, por diversas vezes, e com periodicidade regular não concretamente apurada, o arguido, levando-a a pensar que tal sucedia num contexto de afectividade e amor, introduziu o seu pénis erecto na vagina da E…, friccionando-o no respectivo interior até ejacular. 7. Por força e na sequência de uma das relações sexuais de cópula que o arguido com ela manteve, a E… engravidou, vindo a dar à luz, no termo da gravidez a menor F…, filha de ambos, nascida no dia 26 de Novembro de 2008, e concebida em data incerta, ocorrida dentro dos primeiro cento e vinte dias dos trezentos que precederam o respectivo nascimento. 8. O arguido conhecia os laços familiares que o uniam à E…, bem como a idade da mesma, sabendo, igualmente que aquela era portadora de deficiência mental moderada congénita, factos que a tornavam particularmente indefesa. 9. As relações sexuais acima referidas, ocorriam, normalmente no interior da residência de ambos, designadamente no quarto da E…. 10. A primeira vez em que o arguido introduziu o seu pénis na vagina da menor e com ela manteve relações sexuais de cópula, esta contava 11 anos de idade. 11. A E… nunca contou a ninguém – mormente aos familiares mais chegados – que se relacionava sexualmente com o arguido, porque este, como forma de a constranger ao silêncio, lhe dizia que, se o fizesse, lhe batia, incuntindo-lhe, desta forma receio. 12. Em consequência das supra descritas relações sexuais que o arguido consigo manteve, a E… apresenta profundas sequelas a nível psicológico, conforme resulta do exame de avaliação psicológica, de fls. 312 a 320, cujo relatório se dá por reproduzido, para todos os efeitos legais, nomeadamente no que toca à pessoa do arguido, confundindo a relação com aquele mantida, de subjugação, domínio e sujeição aos desejos libidinosos daquele, com amor, fortes sentimentos de culpa face aos factos ocorridos, vergonha, dificuldades relacionais, depressão, baixa auto-estima, baixa assertividade, insegurança e sentimentos de desamparo, traumatismos esses que prejudicaram e prejudicam gravemente o normal e livre desenvolvimento da sua personalidade na esfera sexual. 13. Conhecedor da idade da sua filha, quis e conseguiu o arguido, manter repetida e regularmente, com ela, relações de cópula vaginal, assim violando o direito desta à sua livre determinação sexual e prejudicando o livre desenvolvimento da respectiva personalidade, para satisfação dos seus próprios desejos sexuais, 14. Mais quis e conseguiu, através de ameaças com agressões, constranger, como constrangeu, a E… a não relatar a ninguém, os relacionamentos sexuais mantidos, como forma de sucessivamente e a coberto do silêncio da mesma, com ela poder relacionar-se sexualmente. 15. Agiu voluntária, livre e conscientemente, sabendo a sua conduta proibida e punida por lei. Mais se provou: 16. O arguido não tem antecedentes criminais. 17. O arguido é oriundo de agregado familiar de condição socioeconómica e cultural precária, constituída pelos progenitores e por 3 descendentes do qual é o mais velho. 18. O falecimento precoce da mãe, quando o arguido tinha cinco anos de idade, motivou a sua institucionalização na “G…”, no Porto, onde permaneceu durante cerca de 8 anos, tendo passado por diversas estruturas daquela instituição, designadamente pelo “H…”, em …, Santa Maria da Feira, e pela “I…”, no concelho de …, em Coimbra. 19. Nesse período, concluiu o 4º ano de escolaridade e foi encaminhado para a quinta agrária …, onde aprendeu lavoura e pecuária. 20. Aos 15 anos fugiu da instituição e nessa sequência integrou o agregado familiar do progenitor, constituído por este e por sua mulher, ambos operários fabris, e pela irmã mais nova, onde se manteve até casar. 21. Aos 27 anos, contraiu casamento com J…, relação da qual resultaram 3 descendentes, a menor E… e dois irmãos desta, actualmente com 13 e 11 anos de idade respectivamente. 22. O arguido apresenta um percurso profissional caracterizado pelo desempenho irregular de tarefas indiferenciadas na área da construção civil e da agricultura. 23. À data dos factos, entre 2005 e Setembro de 2008, o arguido residia na Rua …, nº .., …, em …, numa moradia, com quintal, propriedade da sua sogra, onde residia esta, reformada, a sua mulher, desempregada, os três descendentes menores do casal, o cunhado, uma companheira deste e a filha menor desta, sendo o dinâmica familiar caracterizada por diversas disfuncionalidades e uma precária condição económica, beneficiando de apoio do rendimento social de inserção. 24. Nesse período, o arguido desempenhava funções como trabalhador agrícola, integrando campanhas sazonais em Espanha, celebrando contratos de trabalho temporários com empresas espanholas daquele ramo, passando período de três meses naquele país, residindo com outros trabalhadores em habitações cedidas pela entidade patronal. Deslocava-se, no entanto, a casa com regularidade, onde permanecia aos fins de semana e nos períodos de inactividade. 25. Na sequência do diagnóstico da gravidez, a menor E… veio a ser acolhida no K…, Instituição Particular de Solidariedade com sede no Porto, em Setembro de 2008, juntamente com a menor F…, sua filha 26. De igual modo, os dois filhos mais novos do arguido foram institucionalizados, assim como a filha menor da companheira do cunhado do arguido. 27. O arguido continua a residir na habitação de sua sogra, com a seu cônjuge, cunhado e companheira desta. 28. Apresenta imagem desfavorável no meio residencial, sendo referenciado com uma pessoa com comportamentos éticos censuráveis e reduzidos hábitos de trabalho e o agregado familiar em que se integra como desestruturado e desorganizado. 29. No meio familiar, tanto a cônjuge do arguido e mãe da E…, como o cunhado do arguido e sua companheira negam a paternidade da F… por parte do arguido, refutando o resultado do exame efectuado. 30. Actualmente a menor E… encontra-se a residir, juntamente com a filha, com uma tia materna. Factos não Provados: Dos factos constantes da acusação, não se provou que: - o arguido tivesse introduzido o seu pénis no ânus da E…; - as relações sexuais havidas entre o arguido e a menor E… fossem habitualmente acompanhadas de beijos na boca, com introdução, por parte do arguido, da sua língua, na cavidade bocal da E…, bem como de carícias nos seios. Motivação: O tribunal baseou a sua convicção na valoração global e crítica da prova produzida. Concretamente: Foram particularmente relevantes as declarações para memória futura prestadas pela menor E…, transcritas a fls. 277 e 278, no decurso das quais relatou os actos de cópula praticados pelo arguido, iniciados quando tinha cerca de 11 anos e que se prolongaram até á altura em que, fruto daquelas relações, lhe foi diagnosticada gravidez no hospital de Vila Nova de Gaia e foi acolhida no K…, declarações a cuja leitura se procedeu em audiência de julgamento, conjugadas tais declarações com a prova pericial e documental junta aos autos, a saber: - perícia de investigação biológica de filiação, realizada pelo IML do Porto, cujo relatório consta de fls. 157 a 162 e que, das análises dos marcadores genéticos da menor E…, da sua filha F… e do arguido B…, concluiu por um probabilidade de paternidade de 99,99997% do arguido B… relativamente à menor F…, a que corresponde paternidade praticamente provada. - avaliação psicológica, cujo relatório consta de fls. 311 a 320, que confirmou a debilidade já anteriormente diagnosticada à menor E…, concluindo, não obstante, que a menor apresenta capacidade de ajuizar situações e compreender normas sociais, bem como estruturas e processos cognitivos e afectivos que lhe permitem fazer a distinção entre factos reais e imaginados e distinguir claramente a verdade da mentira, revelando-se o relato que efectuou quanto às situações de abuso sexual de que foi alvo por parte do pai, espontâneo e congruente, sem indicadores que sugiram que o por si relatado possa estar a ser produzido/inventado pela menor e/ou induzido por terceiros. No mesmo relatório, são assinaladas as consequências que para a menor resultaram da situação em causa e que se deram como provadas. - exame médico-legal de pedopsiquiatria, realizado em 5.09.2011, no IML do Porto, cujo relatório consta de fls. 293 a 296, nele se concluindo que a E… padece de deficiência mental moderada congénita e se refere ser o seu depoimento credível em relação ao tema em avaliação (abuso sexual de que foi alvo por parte do pai). Relevaram, de igual modo, os seguintes elementos: - as certidões de nascimento da menor E… e F…, juntas, respectivamente, a fls. 107/108 e fls. 132 dos autos; - registos clínicos da assistência prestada a E… no Centro Hospitalar de Vila Nova de Gaia, designadamente nos dias 23.09.08 a 29.09.08 (altura em que esteve internada e lhe foi diagnosticada gravidez com 27 semanas de gestação – cfr. fls. 219) e no dia 26.11.2008, aquando o nascimento da sua filha F…, a fls. 209/249 dos autos; - comunicação da comissão de protecção de crianças e jovens de Vila Nova de Gaia, a fls. 2 e 4 dos autos remetendo informação do centro social da paróquia de L…- serviço do rendimento social de inserção, datada de 24.09.08, relatando as circunstâncias em que, na sequência de diligências efectuadas e da assistência prestada à menor no Hospital de Vila Nova de Gaia, foi constatada a gravidez da menor E…; - informação do centro social da paróquia de L…, datada de 4.06.07, fls. 12 a 15 dos autos, dando conta da situação do agregado familiar onde se integrava a menor E…, que vinha sendo acompanhada desde 2005, como beneficiária do rendimento social de inserção. - interessou, ainda, o teor das cartas endereçadas pelo arguido à menor E… para a instituição de acolhimento onde esta se encontrava, juntas ao processo de promoção e protecção, referente à mesma menor, a correr termos pelo tribunal de família e menores de Vila Nova de Gaia, com o nº 11565/08.9TBVNG, e constantes de fls. 181 a 189 dos autos, no geral reveladoras de um tipo de relação e de manifestações que vão para além da normal relação de afecto entre pai e filha, particularmente a carta junta a fls. 187 (onde se lê “ ..è contigo que vou ficar para sempre tu vais ser o amor da minha vida para sempre. Amo-te muito só a ti a mais ninguém … Eu vou-me juntar contigo vais ser o amor até eu morrer.”) e a carta de fls. 190 verso, (onde se lê … “lembra-te de mim quando eu comecei a fazer amor contigo sempre há muitos anos – nunca digas a ninguém que eu fiquei apaixonado por ti …”) O arguido negou a prática dos factos e ter mantido relações sexuais com a menor sua filha, não obstante o resultado do exame de paternidade efectuado e mantendo essa negação ainda quando confrontado com as declarações discrepantes, prestadas no âmbito do inquérito, que, com o seu acordo e do Ministério Público, lhe foram lidas em audiência, e constantes de fls. 73 a 75 dos autos, não fornecendo qualquer explicação plausível para tais discrepâncias. As testemunhas inquiridas e indicadas pelo arguido, M..., N…, e O…, respectivamente sua sogra e cunhados, limitaram-se a relatar que viviam na mesma casa, e, de modo genérico, nunca terem visto ou ouvido que o arguido mantivesse relações sexuais com sua filha, depoimentos em nada contribui para o esclarecimento dos factos. Da conjugação dos meios de prova produzidos, nomeadamente das declarações para memória futura prestadas pela menor E…, que se revelam credíveis por si e conjugadas com os demais elementos de prova, bem como do resultado do exame de investigação biológica que comprovou a paternidade do arguido relativamente à menor F…, filha da menor E…, resultou a convicção segura quanto à prática pelo arguido dos factos que se deram como provados. A factualidade não provada deve-se a insuficiência de prova, nomeadamente por nesta parte não encontrarem correspondência nas declarações para memória futura prestadas pela menor, sendo que nenhuma outra prova testemunhal foi produzida sobre a matéria. - Enquadramento jurídico-penal O arguido vem acusado da prática de um crime de abuso sexual de crianças, previsto no artº 171º, nº 1 e nº 2 do Código Penal, com as agravações resultantes do artº 177º, nº 1, al. a) e 4 do Código Penal e um crime de coacção agravada p. e p. pelo artºs 154º, nº 1 e 155º, nº 1, al. b) do Código Penal. Quanto ao crime de abuso sexual de crianças: De harmonia com o disposto no artº 171º, nº 1 e 2. do CP, comete o crime em causa, o agente que “tiver cópula, coito anal ou coito oral com menor de 14 anos”, crime punido com pena de prisão de 3 a 10 anos. O bem jurídico protegido através da norma referida é a autodeterminação sexual, face a condutas de natureza sexual, que, em consideração da pouca idade da vitima, podem, mesmo sem coacção, prejudicar gravemente o livre desenvolvimento da sua personalidade. Presume a lei – presunção jure et iure – que a prática de actos sexuais com menor de 14 anos prejudica o seu desenvolvimento e autodeterminação. Trata-se, por outro lado, de um crime de perigo abstracto, cuja verificação não é afastada ainda que não ocorra um perigo concreto para a o desenvolvimento livre, físico ou psíquico do menor. Já a prática dos actos descritos no nº 1 e 2 do artº 172º do CP, relativamente a menor entre os 14 e 18 anos que tenha sido confiada ao agente para educação e assistência, integra do crime de abuso sexual de menor dependente, previsto no artº 172º do Código Penal e punido com pena de prisão de 1 a 8 anos. O bem jurídico protegido, é tal como no abuso sexual de crianças, o livre desenvolvimento do menor na esfera sexual, ligado aqui á ideia que a liberdade e autodeterminação sexual de menores entre os 14 e 18 anos, confiados a outrem para educação e assistência, se encontra em princípio carecida de uma protecção particular. Essa exigência a advém da especial relação de dependência existente a qual pode favorecer a actuação do agente ou restringir a possibilidade de denúncia dos factos – cfr. Maria João Antunes, Comentário Conimbricense do Código Penal, tomo I, 1999, pag 594. Como assinala a mesma autora (loc. cit, pag 556), encontra-se nessa relação de dependência, o menor que tenha sido confiado ao agente para educação ou assistência, por força da lei - v.g. os progenitores no exercício do poder paternal (artº 1878º do CC). Por outro lado, quanto ao elemento subjectivo, exige-se, em qualquer dos ilícitos em causa, que a conduta do agente seja dolosa, conforme resulta do art. 13º do Código Penal. As penas previstas nos citados normativos são agravadas de um terço nos seus limites mínimo e máximo, entre outras circunstâncias, se a vitima for descendente do agente – artº 177º, nº 1, al. a) - fundamento de um maior desvalor do tipo de ilícito, em razão da especial relação existente entre o agente e a vitima. As mesmas penas são agravadas de metade, nos seus limites mínimo e máximo se dos comportamentos naqueles normativos referidos resultar, entre outros resultados, gravidez – artº 177º, nº 4. Conforme resulta da factualidade provada, o arguido praticou, ao longo do período que decorreu entre 2005 e Setembro de 2008, por diversas vezes, e com periodicidade regular, embora não concretamente determinada, actos de cópula com a menor E…, sua filha, com ele convivente e, por lei, entregue à sua guarda e cuidado. O arguido agiu voluntária e conscientemente, conhecendo a idade da menor e os laços familiares que a ela o uniam, aproveitando-se da natural ascendência que sobre ela detinha e da sua debilidade, designadamente em razão da idade, sabendo a sua conduta proibida e punida por lei. A referida menor, nascida em 11.12.1993, perfez, entretanto, 14 anos de idade em 11.12.2007, mantendo-se a prática de relações sexuais de cópula pelo arguido com a menor sua filha até Setembro de 2008. Das relações de cópula havidas entre o arguido e sua filha, nasceu em 26 de Novembro 2008 a menor F…, concebida nos primeiros 120 dias dos 300 que precederam o nascimento. A relação de cópula de que resultou a gravidez da menor E… ocorreu numa altura em que a menor já tinha feito 14 anos. Face a esta factualidade, a conduta do arguido preenche a tipicidade objectiva e subjectiva de dois tipos de crime distintos: - no que se refere ao período que decorre entre 2005 e 11.12.2007, o crime de abuso sexual de crianças, previsto no artº 171º, nº 1 e 2 do Código Penal, agravado por força da circunstância prevista na alínea a) do nº 1, do artº 177º, punido, por força dessa agravação, com pena de 4 anos a 13 anos e 4 meses de prisão; - no que se refere ao período que decorre entre 12.12.2007 e Setembro de 2008, o crime de abuso sexual de adolescente dependente, previsto no artº 172º, nº 1, agravado por força do disposto no artº 177º, nº 1, al. a) e nº 4, e punido por força dessa agravação, com pena de um ano e seis meses a 12 anos de prisão. A conduta do arguido prolongado no tempo, preenche, pois, a tipicidade objectiva e subjectiva de dois tipos criminais distintos. Muito embora se trate de ilícitos criminais que protegem essencialmente o mesmo bem jurídico, executado de forma essencialmente homogénea e no quadro de um mesmo contexto situacional, a verdade é que se não vê que se haja verificado a persistência de uma situação exterior que haja facilitado a repetição da actividade criminosa e que diminua, de forma considerável, a culpa do agente. Não ocorre, pois, no caso, uma diminuição considerável da culpa do agente, como é pressuposto do crime continuado, antes se verificou um progressivo agravamento da culpa e da ilicitude à medida que foi reiterando a sua conduta criminosa. Assim sendo, concluiu-se que o arguido praticou, em concurso real, dois crimes de abuso sexual, previstos, respectivamente, nos artºs 171º, nº 2 e 177º, nº 1, al. a) e no artºs 172º, nº 1, e 177º, nº 1. al. a) e nº 4, todos do Código Penal. Quanto ao crime de coação agravada: Comete este crime quem, por meio de violência ou de ameaça com mal importante, constranger outra pessoa a uma acção ou omissão, ou a suportar uma actividade (art. 154.º, n.º 1), sendo agravado quando a coacção for realizada, contra pessoa particularmente indefesa, em razão de idade, deficiência, doença ou gravidez [art. 155.º, n.º 1, al. b)]. O arguido, para evitar que a menor contasse a alguém os relacionamentos sexuais mantidos, dizia que lhe batia, incutindo-lhe receio, constrangendo-a dessa forma ao silêncio para poder continuar a manter tais relacionamentos. Também neste aspecto agiu voluntária e conscientemente conhecendo o carácter proibido da sua conduta. Praticou, assim, o crime de coação de que vinha acusado. Medida da Pena: Enquadrada juridico-penalmente a conduta do arguido importa agora determinar a moldura penal abstracta aplicável. Os crime de abuso sexuais praticados pelo arguido são punidos com pena de 4 anos a 13 anos e 4 meses de prisão e 1 ano e 6 meses a 12 anos de prisão. Por seu turno o crime de coação agravada é punido com pena de prisão de um a cinco anos. Dentro das molduras penais assim fixadas, a medida concreta da pena será determinada, tendo como limite a culpa do arguido, em função das exigências de prevenção geral e especial que no caso se fazem sentir – 71, nº 1 do Código Penal, considerando, nomeadamente, as circunstâncias enunciadas no nº 2 do citado normativo. Assim pondera-se: Em desfavor do arguido, a intensidade do dolo com que agiu, configurado como intenso e directo, o período de tempo durante o qual se desenvolveu a sua conduta criminosa, as graves consequências que para o desenvolvimento psíquico e sexual da menor E… resultaram da conduta do arguido, o enorme desprezo que revelou pelos seus deveres de pai e encarregado de educação. A favor do arguido apenas ausência de antecedentes criminais e o seu percurso de vida, também ele desestruturado e disfuncional. Revelam-se elevadas as necessidades de prevenção geral que cumpra acautelar, pelo justificado repúdio e alarme social que os crimes de abuso sexual de crianças e adolescentes suscitam na comunidade, em particular quando praticados no seio familiar e por quem está obrigado a um especial dever de protecção e cuidado. Importa, todavia, ter em atenção que a medida da necessidade da tutela de bens jurídicos que assim cumpre determinar não é um acto de valoração em abstracto (já tida em conta pelo legislador ao fixar a moldura penal abstracta aplicável) mas um acto de valoração in concreto, de conformação social da valoração legislativa a levar a cabo à luz das circunstâncias de cada caso, entre elas, também os factores atinentes ao facto e agente em concreto – cfr. Figueiredo Dias, ob. cit, pag. 228. Tudo ponderado, tem-se por ajustado a aplicação ao arguido as seguintes penas: - pela prática de um crime de abuso sexual de criança agravado, previsto e punido pelos artºs 171º, nº 1 e 177º, nº 1, al. a) do Código Penal, na pena de 5 anos e 6 meses de prisão; - pela prática de crime de abuso sexual de menores dependentes, previsto e punido pelo artºs 172º, nº 1 e 177º, nº 1, al. a) e nº 4, na pena de 4 anos de prisão; - pela prática de coacção agravada, previsto e punido pelos artº 154º, nº 1 e 155º, nº 1, al. b), do CP, na pena de 1 ano e 6 meses de prisão. Encontrando-se os crimes praticados pelo arguido numa relação de concurso, importa proceder ao cúmulo jurídico das penas parcelares aplicadas - artº 77º, nº 1, do C.P. revisto. Tendo em conta, em conjunto os factos e a personalidade do arguido neles espelhada, o período temporal durante o qual os factos ocorreram e o seu contexto e circunstancialismo, tem-se por ajustada a aplicação ao arguido da pena única de 7 anos de prisão. – DECISÃO: Pelo exposto, acordam os Juízes que compõem o Tribunal Colectivo, julgar procedente a acusação e em condenar o arguido B…: 1) pela prática de um crime de abuso sexual de criança agravado, previsto e punido no artº 171º, nº 1 e 2 e artº 177º, nº 1 , al. a), na pena de cinco anos e seis meses de prisão; 2) pela prática de um crime de abuso sexual de menor dependente, agravado, previsto e punido pelo artº 172º, nº 1 e 177º, nº 1, al a) e nº 4, do CP, na pena de quatro anos de prisão; 3) pela prática de um crime de coação agravada, previsto e punido pelo artºs artº 154º, nº 1 e 155º, nº 1, al. b), do CP, na pena de 1 ano e 6 meses de prisão. 4) Em cúmulo jurídico das penas parcelares atrás referidas, na pena única de sete anos de prisão. ***** Inconformado, veio o arguido recorrer desta decisão, alegando, em síntese, que: ** - A condenação pela prática de um crime novo - crime de abuso sexual de menor dependente -, em cumulação com os dois crimes que lhe eram imputados quer na acusação, quer na pronúncia, configura uma alteração substancial dos factos descritos na acusação ou na pronúncia. Em consequência, deverá ser revogado o despacho proferido em audiência de julgamento, o qual deverá ser substituído por outro que, determine a extracção de certidão a fim de ser aberto inquérito pelo crime, quanto à nova qualificação jurídica, após o que o processo prosseguirá os trâmites legais, com a elaboração de nova acusação quanto a esse crime. - No caso dos crimes de trato sucessivo, que considera aplicáveis ao caso em análise, a punição faz-se pelo ilícito mais grave entretanto cometido, pelo que deverá considerar-se que o arguido cometeu um crime de abuso sexual de criança agravado, de trato sucessivo, p. e p. pelo art. 171º, n° 1 e 2 e 177°, n° 1 al. a) do CP, pelo que a pena deverá situar-se-á nos 4 anos de prisão para o primeiro dos crimes (antes de a menor perfazer 14 anos de idade) e de 1 ano para o segundo (depois de a menor perfazer os 14 anos), afigurando-se adequada a pena conjunta de 5 anos de prisão. *** O MP em 1ª Instância e o Sr. PGA junto desta Relação são de parecer que o recurso deve improceder.*** Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.*** 1ª questão: Alteração substancial ou não substancial dos factos, face à condenação do recorrente pela prática de um crime novo. Antes de mais, começamos por dizer que o CPP consagra a possibilidade da livre alteração da qualificação jurídica em julgamento, desde que se proceda a comunicação prévia da alteração ao arguido, e lhe seja concedido o prazo estritamente necessário para a preparação da sua defesa, mediante a inserção do n.º 3 no art. 358.º do CPP. Essa necessidade de comunicação prévia da alteração da qualificação jurídica é, também, de observar, agora por força da alteração introduzida pela Lei 48/2007, de 29-08, ao art. 424.º, do CPP, no seu n.º 3, no Tribunal da Relação. Esta Lei 48/2007, de 29-08, limita, contudo, o dever de notificação do arguido à alteração de si não conhecida, seja ela in mellius, seja in pejus, porque a lei, na alteração introduzida, não consente distinção, isto porque se entende prevenir a hipótese de o arguido ser surpreendido com essa qualificação, ante a qual, em nome do direito de contraditório, deve estar prevenido. Assim, esta norma não colide com a estrutura acusatória do processo penal, nem com as garantias de defesa, ao reconhecer ao juiz de julgamento o poder para proceder à alteração da interpretação do direito sem ter de ficar vinculado à qualificação jurídica efectuada pelo MP ─ cf. Acs. TC n.ºs 356/05 e 544/2006 (ver Ac. STJ de 9-5-2012, Ac. STJ de 26-4-2012 in www.dgsi.pt). Porém, a alteração, em audiência de discussão e julgamento, da qualificação jurídica dos factos constantes da acusação, ou da pronúncia, não pode ocorrer sem que haja produção de prova, de harmonia com o disposto no artº 358º nºs 1 e 3 do CPP» - Ac. fixação de jurisprudência do STJ de 16-6-2013. Assim, a alteração da qualificação jurídica está sujeita, pois, à regulamentação da alteração não substancial dos factos, conforme resulta do n.º 3 do artigo 358.º do CPP. Aí se contém a solução da livre qualificação jurídica com a dupla condição da comunicação prévia ao arguido da alteração e da concessão de tempo para a defesa, a qual, porém, já não é imposta se a alteração derivar de factos alegados pela defesa (n.º 2 do artigo 358.º). E, também, a observância da condição depende de a alteração não ser conhecida do arguido. Efectivamente, como se diz no Ac. do STJ de 18-6-2009, in www.dgsi.pt, ao arguido tem que ser dado conhecimento do exacto conteúdo jurídico-criminal da acusação, ou seja, da incriminação e da precisa dimensão das consequentes respostas punitivas, dando-se com isso expressão aos princípios da comunicação da acusação e da protecção global e completa dos direitos de defesa, expressos no artigo 32° n° 1 da Constituição da República Portuguesa. Qualquer alteração que se verifique da qualificação jurídica dos factos feita na acusação, em especial, qualquer alteração que importe um agravamento das sanções penais, tem necessariamente de ser dada a conhecer ao arguido através do "instituto da alteração dos factos", previsto nos artigos 358° e 359° do Código Processo Penal. O processo penal tem que ser um processo equitativo e justo, não sendo admissível, num Estado de Direito, a possibilidade de ao arguido ser aplicada uma pena sem que disso seja prevenido e avisado, isto é, sem que lhe seja dado oportuno e adequado conhecimento da possibilidade do que nela possa vir a ser condenado. No caso presente não está em causa uma alteração factual, mas tão só uma alteração de qualificação jurídica, pois os factos são, rigorosamente, os mesmos que constavam da acusação e da pronúncia. Aliás, tem sido este o sentido dos acórdãos do Tribunal Constitucional, podendo ver-se o Acórdão n.º 356/2005, acima referido, proferido no processo n.º 535/2003, de 06-07-2005, publicado in DR, II Série, nº 202, de 20-10-2005, em que se diz que “o aditamento do n.º 3 ao artigo 358º do CPP efectuado pela Lei n.º 59/98, de 25 de Agosto, veio expressamente impor, no seguimento daquela jurisprudência, a audição do arguido quando o tribunal altera a qualificação dos factos descritos na acusação ou na pronúncia”. Nesta linha evolutiva da enunciada solução jurisprudencial se situa a já referida alteração operada pela Lei n.º 48/2007, de 29 de Agosto, com a introdução do n.º 3 do artigo 424º do Código de Processo Penal, o qual estabelece: “Sempre que se verificar uma alteração não substancial dos factos descritos na decisão recorrida ou da respectiva qualificação jurídica não conhecida do arguido, este é notificado para, querendo, se pronunciar no prazo de 10 dias”. Este normativo terá aplicação no caso de o tribunal verificar por iniciativa própria, que face aos factos provados, o enquadramento jurídico – criminal se deveria fazer por modo diverso, integrando a conduta em outro preceito incriminador e face a essa alteração, não prevista, desconhecida do arguido, a fim de se evitar uma decisão surpresa, e visando a salvaguarda de interesses mais profundos e assegurar as garantias de defesa constitucionalmente acauteladas, haverá a necessidade de dar a conhecer a possível alteração de qualificação. Em anotação ao artigo 424º, n.º 3, do CPP, Pinto de Albuquerque, no Comentário do Código de Processo Penal, Universidade Católica Editora, 2007, pág. 1164, refere que o dever adicional de notificação é limitado aos casos de alteração “não conhecida do arguido”, tendo a limitação o propósito de subtrair do âmbito do dever de notificação no tribunal de recurso as situações em que a alteração já é conhecida do arguido. Neste sentido, qualquer alteração terá sempre que ser feita respeitando o objecto do processo talqualmente vem definido no artº 339º, nº 4, a vinculação temática do recurso e a proibição de reformatio in pejus.” MANUEL LOPES DE MAIA GONÇALVES, Código de Processo Penal, anotado – Legislação Complementar, 17ª edição, Almedina, Coimbra, 2009). De facto, o princípio da acusação não dispensa, antes exige, o controlo judicial da acusação de modo a evitar acusações gratuitas, manifestamente inconsistentes, visto que a sujeição a julgamento penal é, já de si, um incómodo muitas vezes oneroso e não raras vezes um vexame. Logicamente, o princípio acusatório impõe a separação entre o juiz que controla a acusação e o juiz de julgamento (cfr. Acs TC nºs 219/89 e 124/90).” Também o Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 90/2013, de 7 de Fevereiro de 2013, Processo n.º 357/1, 2.ª Secção, decidiu, mesmo no caso de se tratar de uma alteração dos factos, não julgar inconstitucional a norma constante dos artigos 358.º, 360.º e 361.º, do Código de Processo Penal, interpretados com o sentido de que é possível proceder à alteração dos factos da pronúncia até ao encerramento da audiência de julgamento, após terem sido produzidas as alegações orais, sem a verificação de circunstâncias de excecionalidade ou superveniência. No caso em análise nestes autos, vimos que não houve qualquer alteração factual, pois a matéria de facto naturalisticamente considerada é exactamente a mesma. Com o aditamento operado, ampliou-se o poder cognitivo e decisório do tribunal, acrescendo a possibilidade de o arguido ser condenado também em outro crime: «… os factos descritos na acusação são susceptíveis de integrar para além da prática de um crime de coacção agravada, p. e p. pelo art. 154°, n° 1 e 155, n.º 1 al. b) do CP, a prática em concurso real de dois crimes de abuso sexual, concretamente, em um crime de abuso sexual de criança agravado, p. e p. nos artigos 171°, n° 1 e 177°, n° 1 al. a) do CP e um crime de abuso sexual de menor dependente, p. e p. nos artigos 172°, n° 1 e 177°, n° 1, al. a) e no nº 4 do C Penal», tendo sido notificado a fim de preparar a sua estratégia de defesa. A partir da notificação desse despacho o arguido e seu mandatário ficam cientes de que à acusação acresce o que consta do citado despacho, e com a indicação da disposição legal em causa, sendo certo que na acusação e pronúncia, aquele vinha acusado «…pela prática, em autoria material, de um crime de abuso sexual de criança, p. e p. no artº 171º, nº 1 e 2, com as agravações resultantes do artº 177º, nº 1, al. a) e 4, do Código Penal, e um crime de coação agravada, p. e p. pelo artºs 154º, nº 1 e 155º, nº 1, al. b), do mesmo diploma legal. A comunicação do n.º 3 do artigo 358º do CPP, sendo feita em sede de audiência de julgamento, com este a decorrer, e após produzida a prova, não nos coloca qualquer dúvida de que todos os ditames foram observados. Efectivamente, segundo esse n.º 3, a alteração da qualificação jurídica dos factos descritos na acusação ou na pronúncia obedece ao mesmo regime da alteração não substancial dos factos, prescrito no n.º 1 do mesmo normativo. E esse regime aplica-se em relação a toda e qualquer alteração da qualificação, seja para figura criminal mais grave, seja para menos grave. Pinto de Albuquerque, Comentário Do Código De Processo Penal, p. 889, diz que o que está aqui em causa não é a liberdade de qualificação jurídica, mas apenas a protecção do contraditório. Revertendo ao caso sub judice, o que o tribunal fez, foi uma alteração da qualificação jurídica, não uma alteração dos factos. Com efeito, para ocorrer uma tal alteração factual, é necessário que aos factos constantes da acusação ou da pronúncia outros se acrescentem ou substituam, ou, pelo contrário, se excluam alguns deles (Cf. FREDERICO ISASCA, Alteração Substancial Dos Factos E Sua Relevância No Processo Penal Português, Almedina, 2.ª edição, p., p.98). O art. 359.º do CPP refere-se à alteração substancial dos factos descritos na acusação ou na pronúncia, e não ocorreu qualquer alteração dos factos, fosse substancial ou não substancial, mantendo-se o objecto do processo idêntico. Apenas a lei manda aplicar o regime da alteração não substancial à alteração da qualificação jurídica. O facto de a alteração implicar uma incriminação por um crime que não estava previsto na acusação, e de resultar dessa operação um agravamento das sanções aplicáveis, não é obstáculo a que o tribunal possa qualificar de maneira diversa os factos constantes da acusação ou da pronúncia, desde que respeitado, como vimos, o condicionalismo do n.º 1 do art. 358.º do CPP. Ao Ministério Público compete fazer a acusação, ao tribunal compete aplicar a lei e dizer o direito, decidindo os casos que lhe são apresentados e sendo independente nessa função (art. 203.º da CRP). Estando vinculado à lei e sendo independente, o tribunal tem liberdade para qualificar juridicamente de maneira diversa os factos descritos na acusação, apenas devendo prevenir o arguido de qualquer alteração de qualificação, nos termos sobreditos. Não há qualquer violação do princípio do acusatório neste caso, havê-lo-ia, sim, se se impusesse ao juiz de julgamento a qualificação jurídica efectuada pela entidade acusadora (FREDERICO ISASCA, ob. cit., p. 102). De facto, o núcleo essencial da doutrina do Acórdão de Uniformização de Jurisprudência n.º 7/2008 é o conhecimento prévio (à condenação) da alteração de qualificação jurídica, em ordem a propiciar todas as possibilidades de defesa, sendo certo que esse conhecimento ocorreu, sendo que a alteração já era conhecida do arguido. Ora, no caso concreto, como atrás já o dissemos, na audiência de discussão e julgamento, que teve lugar no dia 18-2-2013, a Srª Juíza Presidente proferiu o seguinte despacho: «Da análise dos factos descritos na acusação e na prova já produzida, conclui o Tribunal Colectivo que os factos descritos na acusação são susceptíveis de integrar para além da prática de um crime de coacção agravada, p. e p. pelo art. 154°, n° 1 e 155, n.º 1 al. b) do CP, a prática em concurso real de dois crimes de abuso sexual, concretamente, em um crime de abuso sexual de criança agravado, p. e p. nos artigos 171°, n° 1 e 177°, n° 1 al. a) do CP e um crime de abuso sexual de menor dependente, p. e p. nos artigos 172°, n° 1 e 177°, n° 1, al. a) e no nº 4 do C Penal. Proceda-se à comunicação da alteração jurídica dos factos descritos na acusação nos termos e para os efeitos do disposto no art. 358°, n° 1 e 3 do C P Penal». Notificada deste despacho, a ilustre defensora do arguido disse não se opor à continuação do julgamento, requerendo um prazo de 10 dias para preparação da defesa, prazo esse que lhe foi concedido. Assim, veio o recorrente, em 25-2-2013, juntar requerimento aos autos, pedindo a inquirição de três testemunhas, o que foi deferido, tendo-se procedido à sua inquirição na sessão seguinte, realizada no dia 6-3-2013. Por isso, repetimos, o que está em causa, é apenas a alteração da qualificação jurídica dos factos descritos na acusação, circunstância dada a conhecer ao arguido, em obediência ao disposto no art. 358°, nº 1 e 3 do CPP, não se vendo, assim, que quer as suas garantias de defesa, quer o princípio do contraditório, tenham ficado prejudicados, uma vez que entendeu apresentar três testemunhas, no prazo concedido para preparação da sua defesa, o que foi atendido e a cuja inquirição das mesmas se procedeu. Porém, mesmo seguindo a óptica do recorrente (alteração substancial dos factos), que já vimos não ser o caso (pois os factos são rigorosamente os mesmo que já constavam da acusação e pronúncia), tal questão estaria ultrapassada, face ao disposto no n.º 3 do art.º 359º do CPP, uma vez que nas actas da audiência, em nenhuma delas se verifica a oposição do recorrente ao prosseguimento do julgamento. Pelo exposto, improcede, pois, nesta parte, o recurso interposto pelo arguido. ***** 2ª questão: Enquadramento jurídico: Alteração da qualificação jurídica – Única resolução? Crime único? Concurso efectivo de crimes? Importa saber, mais concretamente, se a matéria de facto provada comporta a integração na figura do crime único de trato sucessivo, ou antes na pluralidade de crimes, em concurso real. Em primeiro lugar, convém dizer que nos termos do disposto no art. 30º, n.º 2, do CP, são pressupostos cumulativos da continuação criminosa, a realização plúrima do mesmo tipo legal, a homogeneidade na forma de execução, e a lesão do mesmo bem jurídico, no quadro de uma situação exterior ao agente do crime que diminua de forma considerável a sua culpa. Por sua vez, esta só tem lugar quando a ocasião favorável à prática do crime se repete sem que o agente tenha contribuído para essa repetição; isto é, quando a ocasião se proporciona ao agente e não quando ele activamente a provoca. Diga-se ainda que são circunstâncias exteriores (cf. Eduardo Correia, in Unidade e Pluralidade de Infracções, págs. 246-250) que apontam para aquela redução de culpa: a circunstância de se ter criado através da primeira acção criminosa uma certa relação de acordo entre os sujeitos; o facto de voltar a registar-se uma oportunidade favorável ao cometimento do crime, que foi aproveitada pelo agente ou o arrastou a ele; a perduração do meio apto para execução do delito, que se criou ou adquiriu com vista a executar a primeira acção criminosa; e o facto de o agente, depois da mesma resolução criminosa, verificar a possibilidade de alargar o âmbito da acção delituosa. Assim, podemos dizer que o pressuposto da continuação criminosa será a existência de uma relação que, e de maneira considerável, facilitou a repetição da actividade criminosa, tornando cada vez menos exigível ao agente que se comporte de maneira diferente, isto é, de acordo com o direito. Com este ambiente exterior, com reflexo na culpa, diminuindo-a, indica-se a circunstância de se ter criado, através da primeira actividade criminosa uma certa relação de acordo entre os sujeitos; a circunstância de voltar a verificar-se uma oportunidade favorável á prática do crime que já foi aproveitada ou que arrastou o agente para a primeira conduta criminosa: a circunstância da perduração do meio apto para executar um delito, que se criou ou adquiriu com vista a executar a primeira conduta criminosa; a circunstância de o agente, depois de executar a resolução que tomara, verificar que se lhe oferece a possibilidade de alargar o âmbito da actividade criminosa. Nestas situações há uma diminuição considerável da culpa do agente. Só tal situação exterior poderá justificar a facilitação da reiteração criminosa pois que quando se verifique uma situação exterior normal, ou geral, que facilite a prática do crime, o agente deve contar com elas para modelar a sua personalidade de maneira a permanecer fiel aos comandos jurídicos. Continuando a citar aquele autor, Eduardo Correia, o mesmo reconhece relevância a uma certa relação entre "um crime e o ambiente" ou uma "disposição exterior das coisas para o facto", que "arraste irresistivelmente o agente para a sua pratica". Na génese, o conteúdo da continuação criminosa apela à ideia de culpa como o "poder de agir de outra maneira", considerando que as circunstâncias externas, mesmo não excluindo totalmente o "poder de livre determinação do delinquente ... todavia mais ou menos o tentam, mais ou menos o arrastam para o crime, diminuindo ou alargando a sua liberdade de resolução e tornando, portanto, mais ou menos exigível outro comportamento" Por isso, ou a culpa foi das circunstâncias ou do agente. Se é deste último, desaparece a razão decisiva, a continuação. O crime continuado configura, pois, um conjunto de crimes repetidos, com uma característica peculiar: a repetição dá-se porque, acompanhando a nova acção, se repete ou permanece, uma circunstância exterior ao agente que a facilita. Essa circunstância que o agente aproveita, e que de alguma maneira o incita para o crime há-de ser tal que, se desaparecesse, a sucessão de crimes ver-se-ia provavelmente interrompida. Criada pelo autor com a primeira conduta, ou surgida de modo casual, sem a sua intervenção, tal circunstância funciona como ocasião propícia ou tentação. Sintetizando: por regra, sendo vários os preceitos violados, ou sendo o mesmo preceito objecto de plúrimas violações, há uma pluralidade de crimes; esta pluralidade só fica afastada no caso de concurso aparente, ou nas formas de unificação de condutas, seja como crime continuado, ou ainda fora dos quadros do artigo 30.º, como único crime, ou como crime de trato sucessivo. A Lei n.º 40/2010, de 03-09, que operou a alteração ao Código Penal, entrada em vigor em 3 de Outubro de 2010, suprimiu do nº. 3 do artigo 30º a expressão “salvo tratando-se da mesma vítima”, do que resultou o fim da figura do crime continuado que atinja bens essencialmente pessoais, mesmo quando a vítima dos diversos actos seja a mesma pessoa. O crime continuado fica assim restrito à violação plúrima de bens não eminentemente pessoais, independentemente de haver uma ou mais vítimas. Porém, esta alteração legislativa não tem, no caso, qualquer interferência, uma vez que esta sucessão de leis penais no tempo, atento o disposto no artigo 2.º do CP, leva à não aplicação da lei posterior (a nova redacção do n.º 3 do artigo 30.º) aos factos, por consubstanciar um regime mais desfavorável. Por outro lado, a matéria de concurso de crimes não é tratada no artigo 30.º do Código Penal, de forma abrangente, na medida em que as soluções indicadas neste preceito se limitam a estabelecer um critério mínimo de distinção entre unidade e pluralidade de crimes, tratando-se de um ponto de partida estabelecido pelo legislador, a partir do qual à doutrina e à jurisprudência caberá em última análise, encontrar soluções adequadas, tendo em vista a multiplicidade de casos e situações que se prefiguram e que ocorrem na vida real (Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 04-01-2006, in CJSTJ 2006, tomo 1, pág. 159), ou seja, para além do concurso de crimes, a punir nos termos dos artigos 77.º e 78.º, e do crime continuado, a punir de acordo com o artigo 79.º do Código Penal, há toda uma gama de situações da vida real a pedir uma específica regulamentação. O citado artigo 30.º contém assim, a indicação de um princípio geral de solução da problemática do concurso de crimes, a partir da qual há que olhar outras dimensões de violações de bens jurídicos, que ficam de fora. Falamos atrás, que no crime continuado há uma diminuição de culpa à medida que se reitera a conduta, mas tal diminuição não existe no caso do abuso sexual de criança por actos que se sucedem no tempo, bem pelo contrário, a gravidade da culpa parece aumentar à medida que os actos se repetem; o sucesso da primeira actuação e das seguintes não pode integrar a diminuição da culpa do arguido, agindo este determinado pela vontade de satisfazer os seus instintos libidinosos, para o que se aproveitou das situações mais favoráveis para esse efeito, nomeadamente da confiança da própria vítima, que com a repetição daqueles actos, vai sendo toda a vez, atacada psicologicamente, com as repercussões nefastas que a vida nos vai mostrando. Nestes casos, maioritariamente, a jurisprudência aponta para a pluralidade de crimes, nas situações em que esteja em causa o mesmo ilícito e a mesma vítima sexualmente abusada, quando haja a reformulação do desígnio criminoso, surgindo este de modo autónomo em relação ao propósito criminoso anterior. Ainda seguindo o pensamento de Eduardo Correia (Unidade e Pluralidade de Infracções, págs. 125), deve “considerar-se existente uma pluralidade de resoluções sempre que se não verifique entre as actividades do agente uma conexão no tempo tal que, de harmonia com a experiência normal e as leis psicológicas conhecidas, se possa e deva aceitar, que ele as executou a todas sem ter de renovar o respectivo processo da motivação”. Nos casos de reiteração criminosa há que distinguir entre a que resulta de uma situação externa que subsiste ou se repete sem que o agente para tal contribua e aquela que resulta de uma situação procurada, provocada ou organizada pelo próprio agente. Neste segundo caso, são obviamente razões endógenas relacionadas com a personalidade do agente, que levam à reiteração criminosa, não se reconduzindo no caso a um único desígnio. O mesmo autor (A Teoria do Concurso em Direito Criminal, Colecção Teses, Almedina, Coimbra, 1983, Capítulo III, § 2.º, pp. 189 e ss.), refere que não se deve confundir o crime continuado com o crime único com pluralidade de actos, sendo o critério da unidade ou pluralidade de resoluções que permitiria a distinção, uma vez que atribuía à resolução um papel decisivo na teoria da unidade ou pluralidade de crimes. E restringia a figura do crime continuado à hipótese de pluralidade de resoluções. O crime continuado abrangeria plúrimas actividades que preenchem o mesmo tipo legal de crime ou diversos tipos legais de crimes mas que fundamentalmente protegem o mesmo bem jurídico e às quais presidiu uma pluralidade de resoluções e que, portanto, atiraria a situação para o campo da pluralidade de infracções. Ora, em alguns casos, a situação de abuso sexual de criança tem sido enquadrada na figura do crime único, ou de crime único de trato sucessivo, entendendo-se haver lugar a uma unificação de condutas ilícitas sucessivas, desde que essencialmente homogéneas e temporalmente próximas, quando existe uma só resolução criminosa, desde o início assumida pelo agente. Assim, nos crimes sexuais que envolvem uma repetitiva actividade prolongada no tempo, torna-se difícil qualquer contagem, pelo que, para a resolução deste problema, há quem fale em crimes prolongados ou de trato sucessivo, entendendo-se que há só um crime, apesar de se desdobrar em várias condutas que, se isoladas, constituiriam um crime, tanto mais grave quanto mais repetido. Nestes crimes, e ao contrário dos crimes continuados, não haveria uma diminuição considerável da culpa, mas, em regra, um progressivo agravamento à medida que se reitera a conduta. Por isso, no crime de trato sucessivo, haveria uma certa «unidade resolutiva», mas que não se pode confundir com «uma única resolução», juntando-se ainda, uma homogeneidade na conduta do agente que se prolonga no tempo, em que os tipos de ilícito, individualmente considerados são os mesmos, ou, se diferentes, protegem essencialmente um bem jurídico semelhante, sendo que, no caso dos crimes contra as pessoas, a vítima tem de ser a mesma. É essa unidade de resolução, a par da homogeneidade de actuação, e da proximidade temporal, que constitui a razão de ser da unificação dos vários actos sucessivos num só crime. O dolo do agente abarca ab initio uma pluralidade de actos sucessivos que ele se dispõe logo a praticar, para tanto preparando, se necessário, as condições de realização, estando-se no plano da unidade criminosa; a reiteração, revelando uma resolução determinada e persistente do agente, traduz uma culpa agravada. Havendo um único dolo a abranger todas as condutas sucessivamente praticadas e essa unidade de resolução, a par da homogeneidade das condutas e da sua proximidade temporal, tal configuraria o trato sucessivo. Em defesa desta tese, podem ver-se, entre outros, os seguintes acórdãos do STJ: Ac. STJ de 14-06-2007, CJSTJ 2007, tomo 2, pág. 220; Ac. STJ de 21-10-2009, proferido no processo n.º 33/08.9TAMRA.E1.S1-3.ª; Ac. STJ de 07-01-2010, processo n.º 922/09.1GAABF-5.ª, CJSTJ 2010, tomo 1, pág. 176; Ac. STJ de 20-01-2010, processo n.º 19/04.2JALRA.C2.S1-3.ª; Ac. STJ de 23-01-2008, processo n.º 4830/07-3.ª; citado no Ac. STJ de 29-11-2012, in www.dgsi.pt. Porém, maioritariamente, o Supremo Tribunal de Justiça tem optado pela subsunção da pluralidade de condutas, neste plano do abuso sexual de crianças, na figura do concurso efectivo de crimes, em vários acórdãos, afastando a configuração de tais situações nos restantes quadros reguladores possíveis, como no crime continuado, como ocorre na maioria da vezes, no crime único, ou ainda no crime de trato sucessivo, de que se apontam como exemplos os seguintes acórdãos: Ac. STJ de 19-05-2005, processo n.º 890/05-5.ª, CJSTJ 2005, tomo 2, pág. 202; Ac. STJ de 15-06-2005, processo n.º 1558/05-3.ª, CJSTJ 2005, tomo 2, pág. 216; Ac. STJ de 17-11-2005, processo n.º 2760/05-5.ª, CJSTJ 2005, tomo 3, pág. 217; Ac. STJ de 05-07-2007, processo n.º 1766/07-5.ª, CJSTJ 2007, tomo 2, pág. 242; Ac. STJ de 05-09-2007, processo n.º 2273/07-3.ª, CJSTJ 2007, tomo 3, pág. 189; Ac. STJ de 16-01-2008, processo n.º 4735/07-3.ª; Ac. STJ de 01-10-2008, processo n.º 2872/08-3.ª; Ac. STJ de 05-11-2008, processo n.º 2812/08-3.ª; Ac. STJ de 19-03-2009, processo n.º 483/09-3ª; de 25-03-2009, processo n.º 490/09-3.ª, CJSTJ 2009, tomo 1, pág. 237; Ac. STJ de 25-06-2009, processo n.º 274/07.6TAACB.C1.S1-3.ª, CJSTJ 2009, tomo 2, pág. 247; Ac. do STJ de 20 de Janeiro de 2010, proc.º n.º 19/04.2JALRA. C2.S1; Ac.STJ de 13-07-2011, processo n.º 451/05.4JABRG.G1.S1; Ac. STJ de 12-07-2012, proferido no processo n.º 1718/02.9JDLSB.S1; Ac. STJ de 12-09-2012 e Ac. STJ de 22-1-2013, ambos em www.dgsi.pt. Sobre estes crimes de trato sucessivo, importa referir, para a análise do caso concreto, o voto de vencido junto ao Ac. do STJ de 29-11-2012, in www.dgsi.pt, da autoria do Sr. Conselheiro Manuel Brás (apoiando-se em Lobo Moutinho - Da unidade à pluralidade dos crimes no direito penal português, página 604 a 620, nota 1854), cujo teor vamos tentar sintetizar. Assim, ali se diz, desde logo, que a categoria de crime de trato sucessivo não vem, com essa designação, contemplada na lei, que prevê o crime permanente (artº 119º, nº 2, alínea a), do CP), o crime continuado (artºs 119º, nº 2, alínea b), 30º, nºs 2 e 3, e 79º) e o crime habitual (artº 119º, nº 2, alínea b)), bem como o crime que se consuma por actos sucessivos ou reiterados (artº 19º, nº 2, do CPP), pelo que o crime de trato sucessivo será reconduzível à figura do crime habitual. Efectivamente, Lobo Moutinho, depois de definir o crime contínuo como o «crime cuja consumação se protrai mediante a prática de uma pluralidade de actos sucessivos (no sentido de praticados em imediata sequência temporal)», correspondendo «basicamente àquilo que Eduardo Correia chamou o crime único com pluralidade de actos», caracteriza o crime habitual, como um crime em que a consumação se protrai no tempo (dura) por força da prática de uma multiplicidade de actos “reiterados. A persistência temporal na consumação, não se dá mediante a prática de um só acto, mas de uma multiplicidade deles, o que distingue o crime habitual do crime permanente; que os actos que vão consumando o crime são, não sucessivos, mas reiterados, que é o que distingue o crime habitual do crime contínuo. O ponto central da definição do crime habitual é, por isso, o que deve entender-se por “actos reiterados”. Por “actos reiterados”, deve-se entender, pelo menos, a pluralidade de actos homogéneos, actos diversos não são reiterados, pelo que apenas se pode admitir a “consumação por actos reiterados” (crime habitual) em casos especiais, isto é, nos casos e termos em que isso é expressamente possibilitado pelo tipo de crime. Embora a caracterização legal não se esgote nisso, os “actos reiterados” são opostos, pela própria lei, aos “actos sucessivos” no sentido de praticados em acto seguido. Isso indica um certo distanciamento temporal, pelo menos suficiente para se não admitir a existência de um crime contínuo, o que faz o crime perder o cariz episódico, para passar a estruturar-se numa actividade que se vai verificando, multi-episodicamente, ao longo do tempo. Porém, se em relação a todos os crimes fosse de admitir esta forma habitual de perpetração, as restantes figuras a que nos referimos ficariam em crise, se é que lhes sobraria qualquer espaço de aplicação, pelo que os crimes “habituais” (seja qual for o entendimento a dar à “habitualidade” do crime, o mesmo é dizer, à “reiteração” dos actos de que se compõe) correspondem a casos especiais em que a estrutura do facto criminoso se apresenta ou, pelo menos, pode apresentar mais complexa do que habitualmente sucede e se desdobra numa multiplicidade de actos semelhantes que se vão praticando ao longo do tempo, mediante intervalos entre eles. Exemplos apontados são o crime de maus-tratos e infracção às regras de segurança (art. 152º), o crime de lenocínio (art. 170º), bem como o crime de tráfico de estupefacientes, que pode desdobrar-se numa multiplicidade de actos semelhantes (art. 24º, nº 1, als. a) e b), do Dec.-Lei nº 15/93, de 22 de Janeiro)». Figueiredo Dias definia crimes habituais como sendo «aqueles em que a realização do tipo incriminador supõe que o agente pratique determinado comportamento de uma forma reiterada», dando como exemplo os crimes de lenocínio e de aborto agravado do artº 141º, nº 2, do CP (Direito Penal, Parte Geral, Tomo I, 2ª edição, página 314). Assim, conclui o Sr. Conselheiro Manuel Brás, que não é a unidade de resolução que pode conferir a uma reiteração de actos homogéneos, o cariz de crime de trato sucessivo, que se identifica com a categoria legal do crime habitual, mas somente a estrutura do respectivo tipo incriminador, que há-de supor a reiteração. Por isso, parece correcto que, tanto os tipos de crime de abuso sexual de crianças e de abuso sexual de menores dependentes, como o de violação, não contemplam aquela «multiplicidade de actos semelhantes» que está implicada no crime habitual nem, por isso, a sua realização supõe um comportamento reiterado. Efectivamente, cada um dos vários actos do arguido foi levado a cabo num diverso contexto situacional, necessariamente comandado por uma diversa resolução e traduziu-se numa autónoma lesão do bem jurídico protegido. Cada um desses actos não constituiu um momento ou parcela de um todo projectado nem um acto em que se tenha desdobrado uma actividade suposta no tipo, mas um “todo”, em si mesmo, um autónomo facto punível. Deve por isso entender-se que, referentemente a cada grupo de actos, existe, usando palavras de Figueiredo Dias, «pluralidade de sentidos de ilicitude típica» e, portanto, de crimes (ob. cit., página 989), conclui aquele Conselheiro (cfr. voto de vencido ao Ac. STJ de 29-11-2012). Não podemos deixar de concordar com o que acaba de se expor. Efectivamente, tratando-se de um crime de abuso sexual de criança, cada um dos actos referidos na decisão recorrida, não pode, como acima se disse, constituir um momento ou parcela de um todo projectado, nem um acto em que se tenha desdobrado uma actividade suposta no tipo, mas um autónomo facto punível, pois o arguido criava as condições, procurava e fomentava as oportunidades, renovando sempre o desígnio criminoso. As condições não surgiam por acaso, sendo antes conscientemente procuradas e criadas pelo arguido para concretizar a sua intenção criminosa. De cada uma daquelas vezes, em cada actuação, o arguido renovou o processo de motivação, o propósito criminoso, pelo que se está perante resoluções distintas, reformuladas de forma autónoma em relação às anteriores, pelo que a repetição teve a ver com circunstâncias próprias da personalidade do arguido. Assim, nenhum elemento existe na materialidade considerada provada que permita tal redução do processo volitivo do arguido a uma linha uniforme sem qualquer fractura temporal. Porém, pelo modo como a acusação e a pronúncia foram construídas e, em decorrência, pelos factos fixados, não é possível, pois, determinar o número exacto de actos singulares, das circunstâncias de tempo e lugar em que ocorreram, do específico conteúdo objectivo de cada um deles, da concreta actuação do recorrente que, em cada caso, teve como finalidade a sua prática e a precedeu ou acompanhou, e de falta de esclarecimento quer do número exacto de resoluções tomadas quer da renovação do processo de constrangimento, em cada um delas. Por outro lado, não podemos esquecer o princípio “reformatio in pejus”, inscrita no artigo 409.º do CPP, como medida protectora do direito de recurso em favor do arguido, pelo que nunca este poderia ser punido com sanções mais graves pelo tribunal superior competente para conhecer do recurso, uma vez que só tendo sido interposto recurso pelo arguido, há que ter em atenção tal principio, não se podendo retirar consequências desfavoráveis em termos de medida da pena, uma vez que o recurso, repetimos, foi interposto pelo arguido e em seu benefício. Assim, retomando o caso em análise, vimos que ao longo daquele período compreendido entre 2005 e Setembro de 2008, aproveitando-se do natural ascendente que sobre ela detinha, fruto dos laços familiares que os uniam e da menor capacidade da mesma, quer em face da imaturidade inerente à respectiva idade, quer do atraso intelectual de que padecia, para compreender plenamente o significado e consequência dos relacionamentos sexuais, por diversas vezes, e com periodicidade regular não concretamente apurada, o arguido, levando-a a pensar que tal sucedia num contexto de afectividade e amor, introduziu o seu pénis erecto na vagina da E…, friccionando-o no respectivo interior até ejacular. Este comportamento não dispensou a tomada da verdadeira resolução que veio a presidir a cada uma das concretas condutas posteriores do arguido, designadamente a decisão sobre quando e onde agir, como, de resto, é próprio neste tipo de situações. Ora, no caso concreto, concatenando o que atrás ficou dito com a matéria de facto assente verifica-se, como dissemos, que existiram várias resoluções criminosas, que se traduziram no facto de o arguido em dias e horas diferentes, ter accionado e renovado os mecanismos da sua vontade para praticar o crime sexual e repeti-lo, o que faz com que a cada uma dessas resoluções corresponda um crime, sem contudo se poder precisar o número concreto de crimes praticados. Concluímos de tudo o que ficou exposto, que a conduta descrita nos autos, praticada pelo arguido sobre a menor, integra a qualificação jurídica da pluralidade de infracções, verificando-se o concurso real dos crimes. Face a esta concreta factualidade, a conduta do arguido preenche a tipicidade objectiva e subjectiva de dois tipos de crime distintos: - no que se refere ao período que decorre entre 2005 e 11.12.2007, o crime de abuso sexual de crianças, previsto no artº 171º, nº 1 e 2 do Código Penal, agravado por força da circunstância prevista na alínea a) do nº 1, do artº 177º, punido, por força dessa agravação, com pena de 4 anos a 13 anos e 4 meses de prisão; - no que se refere ao período que decorre entre 12.12.2007 (quando a E… completou 14 anos de idade) e Setembro de 2008, o crime de abuso sexual de adolescente dependente, previsto no artº 172º, nº 1, agravado por força do disposto no artº 177º, nº 1, al. a) e nº 4, e punido por força dessa agravação, com pena de um ano e seis meses a 12 anos de prisão. Neste tipo legal de crime, visa-se “a protecção da autodeterminação sexual face a condutas de natureza sexual que, em consideração da pouca idade da vítima, podem, mesmo sem coacção, prejudicar gravemente o livre desenvolvimento da sua personalidade, presumindo a lei que a prática de actos sexuais com menor, prejudica o seu desenvolvimento”. No outro ilícito imputado ao recorrente e pelo qual também veio a ser condenado, o crime de coacção sexual, sabemos que foi através da ameaça e da violência de natureza psicológica, que o recorrente logrou manipular e subjugar a ofendida, cujas ocasiões foram, igualmente, provocadas pelo recorrente, com a consciência e o aproveitamento dessa tortura psicológica a que o recorrente foi sujeitando a ofendida ao longo de vários anos. A ameaça de que a agrediria fisicamente se relatasse a alguém os actos sexuais que praticara com ela, não foi, efectivamente, meio de constranger a ofendida a suportar aqueles actos, tendo antes e apenas sido o meio pelo qual procurou garantir o seu silêncio após a execução dos mesmos. Com isto, visou o arguido não ser descoberto, e não vencer a resistência da menor, sua filha. Conforme resulta da factualidade provada, o arguido praticou, ao longo do período que decorreu entre 2005 e Setembro de 2008, por diversas vezes, e com periodicidade regular, embora não concretamente determinada, actos de cópula com a menor E…, sua filha, com ele convivente e, por lei, entregue à sua guarda e cuidado. Por isso, em face dos factos dados por provados sobressai, com clareza, que, ao longo de mais de três anos, o recorrente teve, para com a ofendida, sua filha, um comportamento que se traduziu em muitas coacções sexuais. Assim, nesse período que decorreu entre data incerta de 2005 até Setembro de 2008, o recorrente sujeitou a ofendida a uma persistente violação do seu direito de se determinar em matéria sexual, e ainda, através de ameaças, exerceu uma forte violência psíquica sobre a mesma, com o propósito de a sujeitar a práticas de natureza sexual. De facto, o arguido, para evitar que a menor contasse a alguém os relacionamentos sexuais mantidos, dizia que lhe batia, incutindo-lhe receio, constrangendo-a dessa forma ao silêncio para poder continuar a manter tais relacionamentos. Ou seja, no quadro dos factos provados, as coacções sexuais não podem ser vistas, como integrantes dum processo que conduziu à cópula. E, assim sendo, as coacções sexuais possuem um desvalor autónomo, pelo que a relação entre estes tipos-de-ilícito referidos, é, por conseguinte, de concurso efectivo. Nestes termos, improcede, igualmente, esta questão do recurso. *** 3ª questão: medida da pena, parcelar e única. Sobre a determinação da medida concreta das penas parcelares, vejamos, desde logo, a súmula dos factos dados como provados na decisão sob recurso: - O arguido é pai da menor E…, nascida a 11.12.1993, com quem residia, fazendo ainda parte do agregado familiar, a mãe da menor E… e dois irmãos desta, também menores, bem como a avó materna. A E… padece de deficiência mental moderada congénita, que lhe determina um atraso cognitivo. Em data não concretamente apurada de 2005, na altura em que a E… contava 11 anos de idade, o arguido resolveu manter com ela relações sexuais. Em execução de tal propósito, e ao longo do período compreendido entre 2005 e Setembro de 2008, aproveitando-se do natural ascendente que sobre ela detinha, fruto dos laços familiares que os uniam e da menor capacidade da mesma, quer em face da imaturidade inerente à respectiva idade, quer do atraso intelectual de que padecia, para compreender plenamente o significado e consequência dos relacionamentos sexuais, por diversas vezes, e com periodicidade regular não concretamente apurada, o arguido, levando-a a pensar que tal sucedia num contexto de afectividade e amor, introduziu o seu pénis erecto na vagina da E…, friccionando-o no respectivo interior até ejacular. Por força e na sequência de uma das relações sexuais de cópula que o arguido com ela manteve, a E… engravidou, vindo a dar à luz, no termo da gravidez a menor F…, filha de ambos, nascida no dia 26 de Novembro de 2008, e concebida em data incerta, ocorrida dentro dos primeiro cento e vinte dias dos trezentos que precederam o respectivo nascimento. As relações sexuais acima referidas, ocorriam, normalmente no interior da residência de ambos, designadamente no quarto da E…, sendo que a primeira vez que o arguido introduziu o seu pénis na vagina da menor e com ela manteve relações sexuais de cópula, esta contava 11 anos de idade. A E… nunca contou a ninguém, nomeadamente aos familiares mais chegados, que se relacionava sexualmente com o arguido, porque este, como forma de a constranger ao silêncio, lhe dizia que, se o fizesse, lhe batia, incuntindo-lhe, desta forma receio. Em consequência das supra descritas relações sexuais que o arguido consigo manteve, a E… apresenta profundas sequelas a nível psicológico, confundindo a relação com aquele mantida, de subjugação, domínio e sujeição aos desejos libidinosos daquele, com amor, fortes sentimentos de culpa face aos factos ocorridos, vergonha, dificuldades relacionais, depressão, baixa auto-estima, baixa assertividade, insegurança e sentimentos de desamparo, traumatismos esses que prejudicaram e prejudicam gravemente o normal e livre desenvolvimento da sua personalidade na esfera sexual. O arguido não tem antecedentes criminais, e é oriundo de agregado familiar de condição socioeconómica e cultural precária, sendo que após o falecimento precoce da mãe, quando o arguido tinha cinco anos de idade, foi institucionalizado durante cerca de 8 anos. Concluiu o 4º ano de escolaridade e foi encaminhado para a quinta agrária …, onde aprendeu lavoura e pecuária, mas aos 15 anos fugiu da instituição e nessa sequência integrou o agregado familiar do progenitor, constituído por este e por sua mulher, ambos operários fabris, e pela irmã mais nova, onde se manteve até casar. Aos 27 anos, contraiu casamento com J…, relação da qual resultaram 3 descendentes, a menor E… e dois irmãos desta, actualmente com 13 e 11 anos de idade respectivamente. O arguido apresenta um percurso profissional caracterizado pelo desempenho irregular de tarefas indiferenciadas na área da construção civil e da agricultura. À data dos factos, o arguido residia com a sogra, reformada, a sua mulher, desempregada, os três descendentes menores do casal, o cunhado, uma companheira deste e a filha menor desta, sendo o dinâmica familiar caracterizada por diversas disfuncionalidades e uma precária condição económica, beneficiando de apoio do rendimento social de inserção. Na sequência do diagnóstico da gravidez, a menor E… veio a ser acolhida no K…, Instituição Particular de Solidariedade com sede no Porto, em Setembro de 2008, juntamente com a menor F…, sua filha. O arguido continua a residir na habitação de sua sogra, com a seu cônjuge, cunhado e companheira desta, apresentando imagem desfavorável no meio residencial, sendo referenciado com uma pessoa com comportamentos éticos censuráveis e reduzidos hábitos de trabalho e o agregado familiar em que se integra como desestruturado e desorganizado. Ora, sabemos que a prática de factos deste tipo com crianças, tem normalmente subjacente a lascívia sexual, sendo elevada a perigosidade do agente voltar a delinquir, sendo também de considerar elevada a ilicitude da conduta, além de ser muito elevada a censura social que os factos merecem, sem prejuízo de se terem actualmente por indeterminadas as sequelas que a conduta do Arguido determinará no desenvolvimento futuro da criança, sua filha. São ainda de ponderar as elevadas razões de prevenção geral, pois que o crime de abuso sexual de crianças é dos crimes que causam mais alarme social, com repulsa e indignação na comunidade. Trata-se de um crime de perigo abstracto, pelo que pode verificar-se mesmo que não haja lugar a perigo concreto para o correcto desenvolvimento fisiológico ou psíquico do menor. O bem jurídico protegido é a liberdade e autodeterminação sexual, ligado a outro bem jurídico, que é o do livre desenvolvimento da personalidade do menor na esfera sexual, que face a condutas de natureza sexual, em consideração da pouca idade de vítima, podem, mesmo sem coacção, prejudicar gravemente o livre desenvolvimento da sua personalidade. Trata-se de crime gerador de grande alarme social e repúdio das pessoas em geral, face à enorme intranquilidade que gera no tecido social, que vem assumindo uma prática frequente, sendo elevadas as exigências de reafirmação da norma violada. Por seu lado, a punição do concurso efectivo de crimes funda as suas raízes na concepção da culpa como pressuposto da punição – não como reflexo do livre arbítrio ou decisão consciente da vontade pelo ilícito. Mas antes como censura ao agente pela não adequação da sua personalidade ao dever - ser jurídico penal. Figueiredo Dias (Liberdade, Culpa e Direito Penal, Coimbra Editora, 2.ª edição, 1983, págs. 183 a 185) refere que o substracto da culpa não reside apenas nas qualidades do carácter do agente, ético-juridicamente relevantes, que se exprimem no facto, na sua totalidade todavia cindível. Reside sim na totalidade da personalidade do agente, ético-juridicamente relevante, que fundamenta o facto, e portanto também na liberdade pessoal e no uso que dela se fez, exteriorizadas naquilo a que chamamos a “atitude” da pessoa perante as exigências do dever ser. Daí que o juiz, ao emitir o juízo de culpa ou ao medir a pena, não possa furtar-se a uma compreensão da personalidade do delinquente, a fim de determinar o seu desvalor ético-jurídico e a sua desconformação em face da personalidade suposta pela ordem jurídico-penal. Assim, há que atender ao conjunto de todos os factos cometidos pelo arguido, de modo a obter conexões entre os diversos comportamentos ajuizados, através duma visão ou imagem global do facto, procurando estabelecer uma relação desses factos com a personalidade do agente, ou seja, há que proceder a uma ponderação da personalidade do agente e correlação desta com os concretos factos ajuizados. Ainda o mesmo autor (Figueiredo Dias, Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime, Aequitas, Editorial Notícias, 1993, § 420, págs. 290/1), diz que a pena conjunta do concurso será encontrada em função das exigências gerais de culpa e de prevenção, fornecendo a lei, para além dos critérios gerais de medida da pena contidos no art. 72.º-1 (agora 71.º-1), um critério especial: o do artigo 77.º, n.º 1, 2.ª parte, segundo o qual serão considerados, em conjunto, os factos e a personalidade do agente. Na avaliação da personalidade do agente relevará, sobretudo, a questão de saber se o conjunto dos factos é reconduzível a uma tendência criminosa, ou tão só a uma pluriocasionalidade que não radica na personalidade, que, naquele caso, deve-se atribuir à pluralidade de crimes um efeito agravante dentro da moldura penal conjunta, sem esquecer o efeito previsível da pena sobre o comportamento futuro do agente (exigências de prevenção especial de socialização). Concluindo: Na aplicação da pena, o fim primordial reside na prevenção geral, ou seja, que a pena deve ser encontrada de acordo com a necessidade de tutela de bens jurídicos que se exprime, no caso concreto, indo de encontro às expectativas comunitárias na validade da norma jurídica violada. A prevenção especial, é vista como a necessidade de socialização do agente, no sentido de o preparar para no futuro não cometer outros crimes, sendo certo que também aqui, é chamada a intervir a culpa a desempenhar o papel de limite inultrapassável de todas e quaisquer considerações preventivas, sendo pois, a pena medida pela prevenção geral, mas ela deve respeitar o limite da culpa, preservando a dignidade humana do condenado. Por outro lado, deve dár-se preferência às penas não privativas da liberdade, mas tal tem de ser feito de uma forma fundamentada, pois há que apurar criteriosamente se a pena não detentiva realiza de forma adequada e suficiente as finalidades da punição (art.º 70º e 71º, n.ºs 1 e 2, do CP). Por sua vez, atento o art.º 77.º, n.ºs 1 e 2, do CP, a pena aplicável ao concurso de crimes tem como limite máximo a soma das penas concretamente aplicadas aos vários crimes, não podendo ultrapassar 25 anos de prisão e como limite mínimo a mais elevada das penas concretamente aplicadas aos vários crimes. Na medida da pena são considerados, em conjunto, os factos e a personalidade do agente. Para fixar a pena única dentro desses limites, entende-se que na «avaliação da personalidade - unitária - do agente relevará, sobretudo, a questão de saber se o conjunto dos factos é reconduzível a uma tendência (ou mesmo, como no caso, a uma «carreira») criminosa, ou tão só a uma pluriocasionalidade que não radica na personalidade, só no primeiro caso sendo cabido atribuir à pluralidade de crimes um efeito agravante dentro da moldura penal conjunta» (Figueiredo Dias, in “Direito Penal Português – As Consequências Jurídicas do Crime”, pág. 291, § 421). Olhando ao caso concreto, vimos que o arguido é marido da mãe da ofendida, que vivia com eles, encontrando-se «à guarda e cuidados de ambos», ou seja, estava dependente da economia conjunta do casal. Esses cuidados só podiam ser os compreendidos no âmbito do poder paternal, nos termos do art.º 1878º do Código Civil, designadamente, de segurança, saúde, sustento e educação, que cabem no conceito de assistência, pelo que se tem de concluir que a ofendida estava confiada, de facto, ao casal constituído pela mãe e pelo arguido para educação e assistência, que exerciam o poder paternal. Ora, já vimos que há uma tendência do arguido para a prática dos crimes de abuso sexual de crianças, se necessário, com uso de coação. Como também já dissemos, a acusação e a pronúncia, e, reflexamente, a sentença, não contêm a concretização, devidamente especificada, de cada uma das realizações típicas, por referência ao tempo, lugar e modo da acção e conduta objectiva realizada, por forma a que seja possível determinar o número exacto das plúrimas realizações dos tipos de crime que foram considerados. Assim, é seguro afirmar, como se diz na decisão recorrida, que em desfavor do recorrente, há a intensidade do dolo com que agiu, configurado como intenso e directo, o período de tempo durante o qual se desenvolveu a sua conduta criminosa, as graves consequências que para o desenvolvimento psíquico e sexual da menor E… resultaram da conduta do arguido, o enorme desprezo que revelou pelos seus deveres de pai e encarregado de educação. A favor do arguido apenas ausência de antecedentes criminais e o seu percurso de vida, também ele desestruturado e disfuncional. Vimos que é a culpa que vai dizer em que medida, o facto deve ser reprovado pessoalmente ao agente, e qual é a pena que merece, e só depois é que se coloca a questão, totalmente distinta da prevenção em que se decide qual a sanção que parece apropriada para introduzir de novo o agente na comunidade e para influir nesta, num sentido social-pedagógico. A decisão recorrida apela, na medida da pena, às necessidades de prevenção geral expressas na perturbação comunitária que provoca este tipo de infracções em que está em causa um valor essencial, em particular quando praticadas no seio familiar e por quem está obrigado a um especial dever de protecção e cuidado, ficando a comunidade segura de que as violações dos laços mais básicos de relação social sejam penalizados com adequada punição. Assim, neste contexto atrás descrito, nunca se poderá dizer que as penas cominadas, parcelares e única, são elevadas, pelo que se mantêm. ** Pelo exposto, julga-se improcedente o recurso interposto pelo arguido, mantendo-se, consequentemente, a decisão recorrida.Custas pelo recorrente, com taxa de justiça que se fixa em 4 Ucs. Porto, 29-1-2014 Donas Botto José Carreto |