Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
1358/20.0T8PNF-A.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: JOSÉ IGREJA MATOS
Descritores: EXCEPÇÃO DE CASO JULGADO
AUTORIDADE DE CASO JULGADO
TERCEIROS ABRANGIDOS
ACIDENTE DE VIAÇÃO
Nº do Documento: RP202102231358/20.0T8PNF-A.P1
Data do Acordão: 02/23/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I – A exceção de caso julgado distingue-se claramente da autoridade de caso julgado.
II - A autoridade de caso julgado visa o efeito positivo de impor uma primeira decisão enquanto pressuposto indiscutível para uma segunda decisão de mérito, determinando os fundamentos desta.
III – A autoridade do caso julgado não exige a tríplice identidade de sujeitos, objeto e pedido, como ocorre com a exceção de caso julgado.
IV – Num acidente de viação em que se fixou a responsabilidade pela eclosão do evento danoso, existe autoridade de caso julgado relativamente aos factos que explicam a dinâmica do acidente numa segunda ação interposta contra a mesma ré, responsável seguradora.
V- Esta conclusão surge reforçada sabendo-se que naquela primeira ação interposta pela proprietária do veículo acidentado a empresa seguradora, acostumada a este tipo de processos, teve oportunidade de produzir a prova que entendeu adequada sobre a eclosão do sinistro e pôde contraditar amplamente a tese da autora agora replicada, na nova ação, pelo condutor daquele veículo, agora autor.
VI – A adesão voluntária de quem seja materialmente terceiro ao caso julgado alheio pode, caso esteja assegurado no processo inicial o exercício de um contraditório efetivo pela parte vencida, implicar a aplicação da autoridade do caso julgado de molde a obstar a decisões opostas, consagrando-se assim os valores da certeza e segurança jurídicas em ordem a uma benquista celeridade processual.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo n.º 1358/20.0T8PNF-A.P1
*
Acordam os juízes do Coletivo do Tribunal da Relação do Porto

I – Relatório
B… intentou a presente ação declarativa de responsabilidade civil contra C…, Sucursal em Portugal, no âmbito de um acidente de viação ora em discussão nos autos.
Nesse sinistro foram intervenientes o veículo seguro na Ré com a matrícula ..-AD-.., e o veículo com a matrícula ..-..-GP conduzido pelo A..
A versão carreada pelo autor nos presentes autos quanto à dinâmica do acidente coincide com aquela que foi alegada e dada como provada numa outra ação já decidida com trânsito em julgado (Processo nº. 963/18.0T8FLG) na qual a ré interveio igualmente como requerida.
Em sede de despacho saneador, o tribunal “a quo” proferiu a decisão ora sob recurso no qual entendeu dar como demonstrada a dinâmica do acidente e a relação de comissão de um dos participantes.
Para tal, argumentou nos moldes que ora se reproduzem:
(...) torna-se evidente que não há entre a presente ação e a ação n.º 963/18.0T8PNF identidade total de sujeitos – a ré é a mesma, mas a parte ativa é diferente -, nem identidade de pedidos, pelo que, mesmo que a sentença proferida naquele processo tenha transitado em julgado, nunca se colocará um problema processual de caso julgado.
Todavia, afigura-se-nos que o acidente que se discute nos presentes autos é o mesmo que se discutiu naquela outra ação.
E a versão da sua dinâmica alegada pelo aqui autor, terceiro em relação àquela outra ação, coincide com aquela que ali foi alegada e dada como provada.
A aqui ré teve intervenção naquela outra ação, também na qualidade de ré, razão pela qual se nos afigura que a autoridade de caso julgado dessa mesma ação lhe é oponível.
E, a ser assim, afigura-se-nos que aquela decisão, concretamente a prova dos factos respeitantes à dinâmica do acidente, vincula definitivamente a aqui ré, podendo impedi-la de discutir novamente, nesta ação, a versão aqui alegada pelo autor, que corresponde àquela que foi dada como provada na ação supra citada.
A implicar que os factos da dinâmica do acidente dados como provados na supra referida ação devam ficar assentes na presente, sem possibilidade de voltarem a ser discutidos, designadamente a alegada relação de comissão, em virtude da autoridade do caso julgado – ou seja, tratar-se-á de extrair a relevância positiva do caso julgado formado pela decisão final proferida no processo 963/18.0T8FLG, a qual já transitou em julgado (está junta aos autos a respetiva certidão).
No contexto do mesmo despacho, foram dados como assentes, nomeadamente, os factos relativos à dinâmica do acidente, restando os restantes impugnados para aferição após a devida produção de prova.
*
Inconformada com tal decisão, dela interpôs recurso a ré seguradora, formulando as seguintes conclusões:
1. O douto despacho / sentença em recurso ao invocar a Autoridade do Caso Julgado e retirando à recorrente a legítima possibilidade do exercício do contraditório, viola o nº 1 do art. 581º e art.º 619º, do Cód. Proc. Civil.
2. Neste sentido, veja-se, entre outros, - Ac. de 1.10.19 (Raimundo Queiroz), proc. 653/14.
3. No caso concreto e salvo o devido respeito, contrariamente ao sentido adotado pelo douto despacho em apreço, numa eventual contrariedade de julgados, relativamente à complexa causa de pedir (que define um acidente de viação) em nada afetaria os valores de certeza e segurança jurídica, antes fazendo prevalecer o princípio maior da averiguação da verdade material.
Termina a apelante requerendo que seja revogado o despacho / sentença da 1ª substituindo-o por outro que acolha os argumentos expendidos.
Houve contra-alegações no qual se propugna pela confirmação do despacho em apreço.

II – Delimitação do objeto do recurso; questões a apreciar.
O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões das alegações, não podendo este Tribunal de 2.ª instância conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser em situações excepcionais que aqui não relevam.
O presente recurso tem por fundamento a inexistência da invocada autoridade do caso julgado, cumprindo discernir da sua verificação.

III – Fundamentação de Direito
Em causa nos autos, uma única questão jurídica concernente à aplicação feita nos autos da denominada” autoridade do caso julgado”.
A autoridade do caso julgado distingue-se da exceção de caso julgado e é, precisamente, na aferição dessa distinção e do sentido e alcance da autoridade do caso julgado que nos confrontamos aqui a partir da questão suscitada.
As doutas alegações da recorrente assentam, no essencial, na fundamentação presente num artigo recente do Professor Lebre de Freitas sintomaticamente intitulado “Um polvo chamado autoridade do caso julgado”, acessível online https://portal.oa.pt/media/130340/jose-lebre-de-freitas_roa-iii_iv-2019-13.pdf e publicado, em 2019, na Revista da Ordem dos Advogados, cujo sumário é igualmente incisivo: “A autoridade do caso julgado, tal como a jurisprudência dominante a entende, é um polvo devorador da figura da exceção do caso julgado e dos seus limites legais.”
Nos termos do artigo em causa que procuraremos sintetizar adiante nos seus pontos essenciais, entende-se que uma dada decisão judicial transita em julgado quando já não é suscetível de reclamação nem de recurso ordinário (art.º 628.º do Código de Processo Civil (CPC)). “Forma-se então o caso julgado, com efeitos circunscritos ao processo concreto em que a decisão é proferida, constituindo caso julgado meramente formal, quando ela seja de absolvição da instância (art. 279.º, CPC), extinga a instância por causa diversa do julgamento (art. 277.º, CPC) ou constitua despacho interlocutório que não seja de mero expediente (art. 152.º-4, CPC), e com efeitos dentro e fora do processo, constituindo caso julgado simultaneamente formal e material, quando tenha sido de mérito (art. 619.º-1, CPC).”
Nos termos do artigo 581º do CPC a exceção do caso julgado exige uma tríplice identidade: de sujeitos, pedido e causa de pedir.
Lebre de Freitas apresenta a distinção entre esta exceção do caso julgado e a denominada autoridade do caso julgado – onde, como é consabido, inexiste a dita tríplice identidade - a qual não descarta igualmente poder ocorrer. Como se lê no seu Código de Processo Civil, Anotado, 2ª ed., pág.354, A exceção de caso julgado não se confunde com a autoridade de caso julgado; pela exceção, visa-se o efeito negativo da inadmissibilidade da segunda ação, constituindo-se o caso julgado em obstáculo a nova decisão de mérito; a autoridade de caso julgado tem antes o efeito positivo de impor a primeira decisão, como pressuposto indiscutível da segunda decisão de mérito (…). Este efeito positivo assenta numa relação de prejudicialidade: o objeto da primeira decisão constitui questão prejudicial na segunda ação, como pressuposto necessário da decisão de mérito que nesta há-de ser proferida”.
Os excessos jurisprudenciais na aplicação da figura da “autoridade do caso julgado”, na perspetiva deste Autor, que caracterizam o dito Polvo, são descritos no que ao nosso caso particular diz respeito, no ponto 7 do seu artigo (“Crise na identidade das partes”).
Estão em causa acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça nos quais é alegadamente dado de barato o requisito da identidade das partes quando se aplica a autoridade do caso julgado; um domínio privilegiado, segundo o Autor, seria justamente o dos acidentes de viação.
Num dos casos descritos, idêntico ao nosso, em que a ré seguradora figura como parte em ambas as ações (Acórdão do STJ de 27.2.18, processo 2472/05), tendo tido intervenção sempre na qualidade de ré, entendeu-se ser oponível a autoridade de caso julgado, concretamente quanto à prova dos factos respeitantes à dinâmica do acidente. Donde, aquela outra sentença vincularia definitivamente a aqui ré/apelante, impedindo-a de discutir novamente, nesta ação, a versão aqui alegada pelo autor, que corresponde àquela que foi dada como provada na ação supra citada, sendo dando como provados os factos da dinâmica do acidente, sem possibilidade de voltarem a ser discutidos.
Esta foi precisamente a opção assumida pela decisão do tribunal de primeira instância, agora alvo de recurso.
Ora, o Prof. Lebre de Freitas discorda frontalmente deste entendimento, fazendo-o, sucintamente, nos seguintes moldes: “quanto ao argumento de que, tendo sido parte em ambas as causas, a seguradora já tinha exercido o contraditório quanto à imputabilidade do acidente, esquece que a solução legal para esse caso é outra — a da eficácia extraprocessual dos meios de prova produzidos na primeira ação, sem prejuízo do confronto com aqueles que venham a ser produzidos na segunda”.
Procurando avançar nesta discussão, julgamos que o presente dissídio jurídico foi, a nosso ver, corretamente enquadrado num outro artigo este da autoria do Prof. Rui Pinto, publicado na Revista Julgar, em 2018, igualmente disponível online neste link: http://julgar.pt/wp-content/uploads/2018/11/20181126-ARTIGO-JULGAR-Exce%C3%A7%C3%A3o-e-autoridade-do-caso-julgado-Rui-Pinto.pdf
Este autor aceita ser duvidoso o entendimento assumido na decisão recorrida.
Na verdade, como escreve, está em causa uma adesão ao caso julgado não prevista estritamente na lei. Seria, portanto, questionável a admissibilidade de utilização deste mecanismo de adesão ao caso julgado fora dos casos estritamente previstos na lei.
No fundo, como bem se explica no texto, trata-se de saber se um terceiro, o ora autor, pode, ou não, opor a alguém, a seguradora, que foi parte do processo que terminou com sentença, essa mesma sentença. Citando a interrogação que se suscita: “Em suma: existe um princípio de aproveitamento por terceiros do caso julgado secundum eventum litis?”
Já recenseamos em sentido afirmativo o Ac. do STJ de 27-02-2018/Proc. 2472/05.8TBSTR.E1 onde precisamente se “decidiu estender a autoridade de caso julgado a outro processo relativo a acidente de viação, apesar de ambos os sujeitos não serem os mesmos, invocando que tendo “tido a Ré – Companhia FF – oportunidade de, no âmbito deste processo, realizar a sua defesa – e tendo-se concluído aí que tem responsabilidade, sendo uma responsabilidade exclusiva em substituição do segurado –, não faz sentido que venha pretender que o apuramento dos factos e inerente responsabilidade possam ser efetuados de modo diferente no âmbito de outro processo judicial, em que se discute o mesmo acidente, com as mesmas circunstâncias factuais e pedidos do mesmo tipo, invocando que aqui não funciona a autoridade de caso julgado”.
O Prof. Rui Pinto assume, como explicamos, “algumas reservas” quanto a este entendimento mas, no que ao caso interessa, termina inequivocamente por aceitar “que a limitação inter partes do caso julgado se justifica pela necessidade de proteger quem não se pode defender; se é o próprio a querer “usar” da decisão, parece ser de defender a existência de um princípio de adesão ao caso julgado alheio. O único limite será, naturalmente, a indisponibilidade substantiva dos respetivos direitos.
Parece, em conclusão, que se pode pugnar pela existência de um princípio de adesão voluntária de quem seja materialmente terceiro ao caso julgado alheio.”
Este Autor centra, pois, a sua análise na perspetiva do “terceiro” – no caso, o agora autor – que, voluntariamente, prescinde de apurar certos factos e prefere aderir aos já apurados noutra ação, naturalmente mais favoráveis às suas pretensões, relativos à dinâmica do acidente e à existência de uma relação de comissão, sabendo que os mesmos foram já definitivamente discutidos e apurados relativamente à outra única parte, ré em ambos.
Por sua vez, o Prof. Lebre de Freitas assenta os seus argumentos na ótica dessa outra parte que, tendo que arcar com a exceção de caso julgado relativamente aos sujeitos, causa de pedir e pedido dessa outra ação, já não deveria ter esse encargo, através do que diz ser uma indevida extensão da figura da autoridade do caso julgado, relativamente a um outro sujeito processual que nunca interveio anteriormente. Admitir o contrário implicaria não ter em conta que “a diversidade de causas de pedir e de pedidos pode implicar variações apreciáveis no interesse da parte em contradizer e levar até a que a parte vencida descure a sua defesa (revelia, falta de impugnação de factos, falta de apresentação de provas)”.
Neste contexto, aponta o exemplo do direito processual brasileiro no qual muito embora exista uma norma segundo a qual o caso julgado abrange a questão prejudicial, quando desta “depender o julgamento do mérito” (art.º 503.º, § 1.º, i) é sempre preciso que tenha “havido contraditório prévio e efetivo”, não se formando o caso julgado quando, nomeadamente, haja revelia ou o processo em que a questão prejudicial é decidida tenha limitações probatórias (art.º 503.º, § 1.º, ii, e § 2.º). Note-se, como ressalva este Autor, que o direito brasileiro não dispõe de norma sobre a eficácia extra-processual da prova, como acontece na legislação portuguesa.
Refira-se finalmente, amenizando a polémica, que o “polvo” referido pelo Prof. Lebre de Freitas apenas estaria “no máximo das suas forças” naqueles casos, não o nosso, em que nem sequer ocorre a identidade da parte vencida – já vimos que a parte “vencida” quanto ao apuramento destes factos na outra ação é a mesma contra a qual se pretende impor a autoridade do caso julgado nos nossos autos.
Face a esta querela, doutrinal e jurisprudencial, sumariamente descrita nos seus desenvolvimentos mais recentes, a solução a adotar estará necessariamente eivada de dúvidas, constituindo uma opção entre o menor de dois males.
Todavia, neste específico caso concreto em apreço, entendemos não dever contrariar o que, como o próprio Prof. Lebre de Freitas refere, constitui um entendimento jurisprudencial maioritário.
Na verdade, a recorrente teve oportunidade de contraditar a dinâmica do acidente em discussão nestes autos e a subjacente relação de comissão então apurada. Fê-lo nos moldes que entendeu mais adequados, sem restrições, agindo enquanto pessoa coletiva interveniente acostumada a este tipo de conflitos. Ao autor sempre seria admissível descartar-se desta autoridade de caso julgado mas, numa extensão jurisprudencial que não se afasta do fim visado pelo legislador, também não deve coartar-se a este a opção de aderir ao que ficou definitivamente apurado e que vincula necessariamente a ré.
De um lado, protegem-se os princípios de certeza e segurança jurídicas, vedando-se, na medida do possível, decisões judiciais opostas ou contraditórias, assegurando-se igualmente uma desejada celeridade e simplificação processuais. Do outro, queda a crítica a uma eventual interpretação excessivamente abrangente da lei muito embora a mesma, mal ou bem, deva reputar-se, em particular em casos como o dos autos, como seguramente maioritária e não pondo minimamente em causa o contraditório efetivo a que alude a lei processual brasileira.
É certo que, descartando a aplicação da autoridade de caso julgado na situação em apreço, sempre seria aplicável o princípio da eficácia extraprocessual das provas, consagrado no art. 421º, nº 1, do Código de Processo Civil, o que implicaria que a prova produzida naquele outro processo pudesse ser utilizada pelo autor contra a ré seguradora neste processo, para fundamentar a sua pretensão; embora o autor seja pessoa distinta pretende apoiar-se nos mesmos factos.
Neste conspecto, convirá atentar na materialidade do que agora se discute a partir da certidão junta aos autos relativa a essa outra ação 963/18.0T8FLG.
Assim, vejamos:
O ora autor tomara de empréstimo o veículo que conduzia aquando do sinistro, de marca Mercedes, e que pertencia à empresa “D…, Lda.” Por sua vez, essa empresa foi autora naquele processo nele peticionando apenas os danos relativos ao veículo. A seguradora, que é sempre a mesma nos dois processos, foi então condenada ao pagamento da quantia de €6.609,74 enquanto responsável pelos danos decorrentes da circulação do veículo por si segurado, de marca Nissan, cujo condutor, à luz dos factos provados, foi tido como único responsável pelo acidente. Agora o autor nestes autos é, justamente, o condutor daquele veículo Mercedes, interveniente no sinistro cuja eclosão foi imputada ao segurado da ré.
Como se alcança do exposto, na presente situação, está em causa uma extensão subjetiva do sentido decisório; a sentença já fixou o responsável pelo dano e trata-se de estender essa opção decisória a alguém, um terceiro, que embora não fosse parte no primeiro processo, coincide exatamente na posição processual relativa à determinação da causa geradora dos danos a ressarcir (dinâmica do acidente) com a autora daquele.
Como descreve Rui Pinto, obra citada, pág. 28, “na autoridade de caso julgado a decisão anterior determina os fundamentos da segunda decisão”; ora, esta determinabilidade parece-nos preenchida no caso em discussão. Não se vislumbra nenhuma concreta razão, em termos de proteção de direitos, ou sequer de meras expetativas jurídicas, da recorrente que obstem à aplicação do instituto em causa, sendo manifestos os perigos a evitar decorrentes de uma decisão contraditória relativamente a um terceiro que coincide, em substância, na posição processual com a anterior autora; isto mesmo dando de barato que estaria assegurada a dita eficácia extra-processual da prova já produzida.
Aventa doutamente a recorrente com uma outra decisão do STJ, no caso o Acórdão. de 1 de Outubro de 2019, processo nº 653/14, igualmente decorrente de um acidente de viação. Neste caso, a questão balizou-se, sobretudo, na exceção do caso julgado. Assim, salvo melhor opinião, existem diferenças relevantes com a situação que nos ocupa sem prejuízo de um entendimento díspar que assumimos.
Valerá a pena citar o aresto jurisprudencial na parte relevante:
“No entanto, sendo certo que a causa de pedir justificativa do pedido indemnizatório se baseia nos factos atinentes à verificação do sinistro, os sujeitos e o pedido daquela ação são distintos dos em apreciação nestes autos. Com efeito, nem o aqui Autor foi parte naquele processo, não tendo tido oportunidade de se defender perante a imputação de responsabilidade, nem o pedido se reportava aos danos por si sofridos. Deste modo, impõe-se reconhecer que os factos apurados naqueles autos, não podem ser considerados nos presentes autos, por não ter havido formação de caso julgado (fundamento que a Ré/Recorrente não alegou no recurso), pela não abrangência da esfera de identidade de sujeitos e de pedidos (art. 581, nºs 2 e 3 do CPC).”
Julgamos clara a diferença a qual nos remete, afinal, para o que acima se procurou recensear e que diz respeito à “adesão voluntária de quem seja materialmente terceiro ao caso julgado alheio”.
No nosso caso, o autor aderiu inequivocamente à “imputação de responsabilidade” que foi fixada; fê-lo também no âmbito do presente recurso; a ré seguradora, por sua vez, não é “terceiro” para os efeitos considerados. Quanto aos danos, embora diversos, importa sublinhar que, neste âmbito, o devido contraditório está assegurado, bastando atentar nos temas de prova constantes do despacho saneador que fazem depender a fixação destes factos de prova ainda a produzir.
Em síntese conclusiva: uma vez assumida pelo único terceiro nos autos a adesão total à decisão proferida no outro processo, incluindo aqui os fundamentos essenciais que determinaram aquela sentença, atento o contraditório efetivo exercido já pela ora recorrente, parte em ambos os processos, e tendo em vista a concretização de princípios nucleares como os da certeza e segurança jurídicas, a par da consolidação dos valores da celeridade e eficiência processuais, privilegiando a ótica de quem não foi parte na ação primeira em detrimento de quem já teve oportunidade de devidamente jurisdicionalizar o seu ponto de vista no conflito, entendemos dever manter a decisão apelada com fundamentos que dela, no essencial, não dissentem.
*
V - Decisão
Em face do exposto, julga-se o presente recurso totalmente improcedente, confirmando-se a decisão apelada.
Custas pela recorrente.

Porto, 23 de Fevereiro de 2021
José Igreja Matos
Rui Moreira
João Diogo Rodrigues