Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
754/09.9TYVNG-I.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: MADEIRA PINTO
Descritores: RECURSO DE NULIDADE PROCESSUAL
DEVER DE GESTÃO PROCESSUAL
INTERVENÇÃO PROVOCADA
CONTRATO PROMESSA
TRADIÇÃO DA COISA
CONSUMIDOR
RECUSA DE CUMPRIMENTO PELO ADMINISTRADOR DE INSOLVÊNCIA
SINAL EM DOBRO
Nº do Documento: RP20180124754/09.9TYVNG-I.P1
Data do Acordão: 01/24/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Indicações Eventuais: 3ª SECÇÃO, (LIVRO DE REGISTOS N.º120, FLS.251-262 VRS.)
Área Temática: .
Sumário: I - A arguição de nulidade processual, nomeadamente ao abrigo do disposto no artº 195º, nº 1, NCPC, só é admissível quando a situação invocada não está abrangida por despacho judicial que a admita ou ordene. Nessa situação o prejudicado deve não arguir a nulidade nos termos do artº 199º, NCPC, mas recorrer do respectivo despacho que a ordenou ou sufragou por ilegalidade desse despacho.
II - O convite feito ao autor pelo senhor juiz a quo pelo despacho de 13.06.2017, com a indicação dos termos que seguiria o processado, caso fosse aceite, a fim de ser sanada a ilegitimidade processual activa do autor desacompanhado da esposa nesta acção, com a intervenção principal provocada desta, tem a cobertura legal do princípio da adequação formal e dever de gestão processual, mesmo após o encerramento da audiência final, que veio a ser reaberta, de acordo com o disposto nos artºs 6º, nº 2 e 607º, nº 1, NCPC.
III - Para quê, in casu, proferir a plausível sentença de absolvição da instância dos réus por ilegitimidade do autor em virtude de preterição do litisconsórcio necessário activo com a sua esposa, permitindo só depois o chamamento daquela por incidente de intervenção principal provocada e processar este incidente e reabrir o julgamento, seguindo-se nova sentença, se tudo isso foi feito nos autos sem violar interesses processuais legítimos dos réus.
IV - Estamos perante um negócio oneroso em curso, com mera eficácia obrigacional, em que os autores tinham obtido a tradição do bem imóvel prometido vender pela insolvente em data anterior à sentença declarativa da insolvência da promitente vendedora.
V - A jurisprudência obrigatória para os tribunais judicias do Acórdão de Fixação de Jurisprudência nº 4/2014, publicado no DR Iª Série, de 19/05/2, nos termos do qual, “o consumidor promitente-comprador em contrato, ainda que com eficácia meramente obrigacional com traditio, devidamente sinalizado, que não obteve o cumprimento do negócio por parte do administrador da insolvência, goza do direito de retenção nos termos do estatuído no artigo 755º nº 1 alínea f) do Código Civil”, tem plena aplicação ao caso em análise.
VI - Entendemos que o artigo 106.º n.º 2 do CIRE apenas se aplica aos contratos promessa com eficácia meramente obrigacional, mas sem tradição da coisa ao promitente comprador. Desta forma, é assim aplicável ao caso o disposto no artº 442º, nº 2, do Cód. Civil, tendo o A. e a interveniente principal direito ao sinal prestado em dobro nos termos do pedido.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo nº 754/09.9TYVNG-I.P1
Relator: Madeira Pinto
Adjuntos: Carlos Portela
José Manuel Araújo de Barros
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Sumário:
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I. RELATÓRIO
Por apenso aos autos de insolvência n.º 754/09.9TYVNG, em que é insolvente a sociedade comercial “B…, Lda.”, veio C…, com os sinais nos autos, em 25.07.2011, instaurar acção para verificação ulterior de crédito contra:
- a Massa Insolvente da B…, S.A., representada pelo seu Administrador de Insolvência (doravante apenas designado por Sr. AI);
- Credores da Insolvente de B…, S.A.; e
- B…, S.A., com sede na Av. …, nº …., …, sala …, …, Porto, pedindo que fosse considerado reconhecido e reclamado o crédito do A. sobre a insolvente no valor de €124.699,48, com o direito de retenção sobre a fracção autónoma indicada no artigo 4º da p.i..
Para tanto alegou, em síntese, que:
- em 13/03/1998 celebrou com a B… SA um contrato promessa de compra e venda de duas fracções, pelo preço global de esc. 23.000.000$00;
- com a outorga deste contrato, entregou à promitente vendedora a quantia de esc. 5.000.000$00, tendo mais tarde reforçado este valor com mais entregas, que totalizaram o valor global de €62.349,74;
- em 16/05/2000, o A. e a B… alteraram o contrato promessa, que passou a incluir apenas uma das fracções, que foi prometida vender pelo preço de €62.349,74, valor entretanto já entregue;
- em 2002 ao A. foram entregues as chaves dessa fracção autónoma, que o A. ocupou desde então, tendo mesmo celebrado um contrato de arrendamento da fracção;
- por diversas vezes interpelou a B…, S.A. para a realização da escritura pública, mas esta nunca a outorgou;
- o Sr. AI, por carta de 05/07/2011, comunicou a intenção de não cumprir o contrato;
- tem o A. o direito a uma indemnização correspondente ao sinal em dobro, beneficiando ainda do direito de retenção sobre a fracção para pagamento do seu crédito.
Regularmente citados os réus, apenas contestou a R. Massa insolvente, representada pelo seu administrador, D…, impugnando, na generalidade, a factualidade da p.i., concluindo pela improcedência do pedido.
No decurso do processo, após a conclusão da audiência final em 09.06.2017, o senhor juiz proferiu despacho, em 13.06.2017, verificando a falta de pressuposto de legitimidade processual activa por parte do autor desacompanhado da sua mulher e convidando o autor a comparecer com ela em data de continuação do julgamento, devendo ali requerer a sua intervenção principal, que seria aceite, determinando-se, nessa altura, a reabertura da audiência com perguntas à interveniente e, em princípio, com novas alegações finais. Ali adverte que tal solução não é imposta a ninguém, mas, se assim não for, apenas resta absolver imediatamente os réus da instância por ilegitimidade do autor.
A ré Massa Insolvente, por requerimento de 16.6.2017, veio opor-se à reabertura da audiência nos termos do referido despacho e dizer que deve ser absolvida da instância.
O autor veio dizer que aceita o sugerido naquele despacho, tanto mais que o artº 261º, nº 1, NCPC, permitiria a dedução do incidente de intervenção principal provocada da sua mulher até ao trânsito em julgado da sentença.
Em 19.6.2017, o senhor juiz a quo proferiu despacho suportando a sua intenção declarada no despacho anteriormente e concluindo “o tribunal irá manter a posição já expressa no processo”.
Foi reaberta a audiência, em 30.06.2017 e ali se procedeu aos termos processuais documentados na respectiva acta de fls 238 a 244, cujo teor se dá por reproduzido.
Como dela consta, foi proferido despacho que admitiu a intervenção principal provocada de E…, … com o A. C…, residente na Rua …, nº .., …, …. - … Vale de Cambra, para, conjuntamente com o A. C…, em litisconsórcio necessário activo, prosseguir a acção, tendo esta se considerado regularmente citada e declarado que adere aos articulados do autor e renuncia à repetição integral do julgamento e foi junto, ainda, a procuração forense ao ilustre mandatário do autor. Prestou depoimento de parte.
Veio a ser proferida sentença, em 11.07.2017, que julgou a presente acção de verificação ulterior de créditos totalmente procedente, por totalmente provada, e decidiu:
a) julgar verificados e reconhecer a C… e E… o crédito, sobre a insolvente B…, S.A. no valor de €124.699,48 (cento e vinte e quatro mil seiscentos e noventa e nove mil euros e quarenta e oito cêntimos);
b) reconhecer ao A. C… e E… o direito de retenção sobre a fracção autónoma designada pelas letras “AR” do prédio descrito na Conservatória do Registo Predial de … sob o nº 3963, freguesia de …, para pagamento do seu crédito, sendo, portanto, o crédito garantido por este direito de retenção.
Custas a cargo da massa insolvente.
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Na sentença foram considerados provados os seguintes factos:
1. Por escrito com a epígrafe de “Contrato Promessa de Compra e Venda e Recibo”, datado de 13/03/1998 e assinado pelos punhos dos contraentes (sendo a sociedade “representada pelo seu presidente Sr. F…”), e em que constam como “primeiro outorgante e promitente vendedor” a “B…, S.A.” e como segundos outorgantes e promitentes compradores o Sr. “C… (…) casado com E…”, pelos contraentes foi declarado.
“1º - pelo presente contrato o primeiro outorgante promete vender e o segundo outorgante promete comprar (…) dois apartamentos (…) designados provisoriamente pelas letras B e C (…) do edifício em construção (…) sito na Av. …, freguesia e concelho de ….
(…)
2º - o preço de compra e venda é feito pelo valor global de 23.550.000$00 (…) aos quais é feito um desconto de 550.000$00, ficando assim o preço final em 23.000.000$00, os quais vão ser pagos da forma seguinte:
a) como sinal e princípio de pagamento o Promitente Comprador entrega a quantia de 5.000.000$00 para os quais o Promitente Vendedor dá aqui a respetiva quitação.
b) a restante parte do preço = 18.000.000$00 será liquidada conforme combinado, até à data da escritura notarial de compra e venda das respetivas frações” – cfr. artigo 1º da p.i..
2. Com a outorga do contrato promessa indicado no número 1., e em cumprimento do mesmo, os AA. entregaram à sociedade B…, S.A.:
- esc. 5.000.000$00;
- em 12/02/1999, mais esc. 2.000.000$00;
- em 12/08/1999, mais esc. 1.500.000$00;
- em 17/12/1999, mais esc. 2.000.000$00;
- em 16/05/2000, mais esc. 2.000.000$00 – cfr. artigo 2º da p.i..
3. Por escrito, datado de 16/05/2000, com a epígrafe “aditamento ao contrato promessa de compra e venda e recibo celebrado em 13 de Março de 1998”, celebrado por B…, S.A. e “C… casado com E…” e assinado pelos contraentes, foi por estes declarado que
“Serve o presente aditamento para alterar o contrato promessa de compra e venda celebrado entre as partes em 13 de Março de 1998, no que se refere ao seguinte:
1º os promitentes compradores desistem da compra do apartamento do tipo T1 designado pela letra B, que atualmente tem como denominação “Fração AQ” pelo que passa apenas a comprar o apartamento T2, designado atualmente por fração AR, pelo preço e condições já estabelecidas.
2º Quanto ao preço e condições de pagamento, o valor atribuído à fração a adquirir já se encontra integralmente pago através das entregas efetuadas para a compra dos dois apartamentos, pelo que o promitente vendedor dá aqui a respetiva quitação” – cfr. artigo 3º da p.i..
4. A fração indicada no número 3. corresponde à fração AR do prédio descrito na Conservatória do Registo Predial de … sob o nº 3963, freguesia de …., tendo o prédio sido registado a favor da B…, S.A. pela AP. 4 de 30/06/1997 e tendo a constituição da propriedade horizontal sido registada pela AP. 7 de 24/07/2000. – cfr. artigo 4º da p.i..
5. Pelo menos desde 2002 que o A. tem acesso às chaves da porta de entrada da fração indicada no número 4., que lhe foi entregue pela promitente vendedora, só à mesma tendo acesso, a partir de então, os AA. C… e mulher e outras pessoas autorizadas por estes – cfr. parcialmente provado o artigo 5º da p.i..
6. Desde o ano de 2002 e, pelo menos, até ao ano de 2008, com a autorização do A. C…, um filho deste (G…) viveu na fração, aí dormindo, tomado as refeições, recebido a correspondência, recebido os amigos e aparcando o veículo na subcave – cfr. parcialmente provado o artigo 6º da p.i..
7. Desde o momento indicado no número 5. e pelo menos até 17/06/2010, o A. marido pagou a água e eletricidade consumidos na fração e os encargos de condomínio – cfr. parcialmente provado o artigo 6º da p.i..
8. Por escrito, datado de 17/06/2010, com a epígrafe de “Contrato de Arrendamento Habitacional” em que surgem como “primeiro Signatário e Senhorio” o Sr. C… e como “Segunda Signatária e Inquilina” a Srª “H…”, escrito que foi assinado por ambos os contraentes, foi declarado que:
“I
O primeiro outorgante é dono e legítimo possuidor de uma fração autónoma, tipo t2, designada pelas letras AR (…) do prédio sito na Av. …, nº …, Freguesia e Concelho de …, inscrita na matriz predial urbana nº 5784 e descrita na Conservatória sob o nº 03963.
II
O Primeiro outorgante dá de arrendamento à segunda signatária pelo prazo de 5 anos, com início em 01/07/2010 e termo em 30/06/2015 (…)” – cfr. artigo 7º da p.i..
9. O A. C…, por diversas vezes, antes do momento indicado no número 10., declarou à B…, S.A. (representada pelo seu Administrador F…) que pretendia celebrar a escritura pública de compra e venda da fração indicada no número 4., tendo a sociedade (através do seu Administrador F…) se negado naqueles momentos, alegando dificuldades financeiras para desonerar a fração autónoma do ónus (hipoteca) que a onerava – cfr. artigo 8º da p.i., com explicação.
10. Por carta datada de 13/10/2010, enviada pelo A. C… e endereçada à “B…, S.A.”, e recebida por esta em 14/10/2010, o A. C… declarou que
“Exmos Srs.
Na qualidade de promitente comprador da fração autónoma AR T2 correspondente ao 2º esquerdo situado no Edifício …, Av. …, nº … inscrito na Conservatória Predial com o nº 3963 e o respetivo lugar de garagem na cave.
Tendo eu procedido ao pagamento integral do preço estabelecido e estando na posse da referida fração autónoma, venho por este meio comunicar a Vossa Excelência que a escritura de compra e venda da fração acima mencionada está marcada para o próximo dia 25/10/2010 (…) no cartório notarial (Conservatória do Registo Predial de …), mediante as condições acordadas e constantes do contrato de promessa de compra e venda e respetivo aditamento (…)” – cfr. artigo 9º da p.i..
11. A B…, S.A. não compareceu no local, dia e hora indicados no número 10. para outorgar a escritura (cfr. artigo 10º da p.i.).
12. A Sociedade B… S.A. foi declarada insolvente em 09/02/2011, por sentença transitada em julgado (factos provados por documento – cfr. artº 607º, nº 4, 2º parte, do CPC).
13. Os AA. não foram notificados nos termos do artº 129º, nº 4, do CIRE (cfr. artigo 17º da p.i.).
14. Por carta datada de 05/07/2011, enviada pelo Sr. AI e recebida pelo A. C…, aquele comunicou-lhe que “na qualidade de administrador de insolvência nomeado no processo (…) venho pelo presente informá-lo, nos termos do artº 102º, nº 3, do CIRE, que não irei cumprir o alegado contrato-promessa, recusando, por isso, a outorga da escritura prometida, por entender que a solução contrária era prejudicial para a Massa Insolvente” – cfr. artigo 12º da p.i..
15. A B…, S.A. tinha por objeto a “compra, venda e construção de imóveis” (factos provados por documento – cfr. artº 607º, nº 4, 2º parte, do CPC).
16. O A. C…, nos finais dos anos 90 do século passado e após o ano 2000 tinha uma oficina de reparações elétricas de automóveis e procedia à venda de veículos usados (factos acrescentados nos termos do artº 5º, nº 2, al. b), do CPC).
17. A A. E…, de 1998 e até cerca do ano de 2000, teve uma livraria, sendo que, após essa data, e desde há cerca de 6 anos abriu em nome próprio uma loja de artes decorativas (factos acrescentados nos termos do artº 5º, nº 2, al. b), do CPC).
18. Os AA. C… e mulher pretendiam a aquisição da fração indicada no número 4. para acrescer ao património e a poderem arrendar (factos acrescentados nos termos do artº 5º, nº 2, al. b), do CPC).
19. Os AA. não pagaram o Imposto Municipal de Transmissões (IMT) referente à entrega da fração (cfr. artigo 11º da contestação).
20. No processo nº 754/09.9TYVNG, no apenso de reclamação de créditos, a fração designada pelas letras “AR”, integrante do prédio descrito na Conservatória do Registo Predial de … sob o número 3963, inscrito na matriz urbana sob o artigo 5784, encontra-se apreendida a favor da Massa, como verba nº 123.
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b) Factos não provados:
1. Foi especificamente no ano de 2002 que a sociedade “B… S.A.” entregou aos AA. as chaves indicadas no número 5. dos factos provados – cfr. parcialmente não provado o artigo 5º da p.i..
2. O filho dos AA. viveu na fração indicada no número 4. até 17/06/2010 – cfr. parcialmente não provado o artigo 6º da p.i..
3. O A. C… notificou o Sr. AI para optar, no prazo razoável de 20 dias, pelo cumprimento do contrato promessa indicado no número 1., com o aditamento referido no número 3. dos factos provados – cfr. não provado o artigo 11º da p.i..
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Desta decisão interpôs recurso a ré Massa Insolvente de B…, S.A., tendo apresentado alegações com as seguintes conclusões:
A - O presente recurso incide sobre quatro questões, sendo a primeira:
a) inadmissibilidade legal do suprimento da preterição do litisconsórcio necessário activo após já ter terminado a audiência de discussão e julgamento e produzidas alegações orais pelas partes, anulando-se a decisão do Tribunal que convidou o Autor a deduzir a indicada intervenção, e a admitiu, absolvendo-se a Ré da instância;
B - A presente acção foi interposta por C…, não obstante o contrato de promessa de compra e venda do qual emerge o crédito reclamado pelo mesmo ter sido outorgado em nome do referido autor e mulher, tendo-se os autos desenrolado até à fase de julgamento e alegações orais sem que nenhuma das partes tivesse suscitado a questão da eventual ilegitimidade activa do Autor para os autos;
C - Foram produzidas alegações orais, em 9 de junho de 2017. Mas, em 13 de junho de 2017, o Mm.º Juiz profere despacho onde considera dever intervir nos autos a mulher do Autor, e parte no contrato promessa em causa, convidando o Autor a suscitar incidente de intervenção principal provocada.
D – Deste despacho foi notificada a recorrente, mas não o foram os demais credores, que o deveriam ter sido na forma edital, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 146.º CIRE, sendo ainda, ademais, aplicável o disposto nos artigos 318.º n.º 2 e 319.º do CPC, quanto aos incidentes da instância, o que não foi feito, e sendo acto que a lei imperativamente prevê, a sua falta constitui nulidade, que expressamente se invoca, devendo anular-se todo o processado subsequente.
E – A Ré/Recorrente Massa Insolvente pronunciou-se pela inadmissibilidade do suprimento da preterição do litisconsórcio necessário activo após o término do julgamento, aduzindo o entendimento seguido no Acórdão do TRL de 06/03/2014, 281/12.7TBPTS.L1-6, no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 02/02/2005, proc. 04S610, sendo que na esteira de todos se impunha, verificados os pressupostos processuais para a verificação da ilegitimidade activa, o que sucede, que o Tribunal se pronunciasse, em sede de sentença, pela absolvição da Ré da instância, o que se impetra.
F - Mas não tendo tal sucedido, tendo antes o Tribunal, em 30 de Junho de 2017, em sessão de julgamento marcada para os fins indicados no despacho de 13/06, admitido a intervenção provocada principal da, doravante, Autora, E…, a qual, verifica-se, está ferida de nulidade, quer pela omissão da citação dos credores da massa insolvente, quer pela impossibilidade de suprir tal ilegitimidade no momento processual em que o Mm.º Juiz o fez.
G - b) o entendimento vertido na sentença de que o contrato promessa se encontraria ainda em cumprimento na data de declaração da insolvência; entende, e bem, o Mmº Juiz, que para ser aplicável aos presentes autos o regime previsto e ordenado pelo AUJ 4/2014 é necessário, além, entre outros, da qualificação do Autor, ou Autores, como consumidores, que não estivesse ainda definitivamente incumprido o contrato prometido.
H – Contudo, consta dos autos e da matéria dada como provada, que não se impugna, que o Autor C… enviou a carta referida no ponto 10 dos factos provados, sendo que nesta marcou local, data e hora para a escritura pública de compra e venda prometida, e exigiu que sobre a fracção não incidissem ónus ou encargos, carta enviada, aliás, no seguimento de variadas interpelações verbais que o dito Autor tinha feito já à Insolvente, na pessoa do seu Administrador, para que cumprisse o contrato e marcasse a escritura, sem sucesso, tendo aliás o administrador da Insolvente negado tal propósito, alegando dificuldades financeiras para desonerar a fracção.
I - Dispõe o artigo 808º do Código Civil, no seu número 1 que “1. Se o credor, em consequência da mora, perder o interesse que tinha na prestação, ou esta não for realizada dentro do prazo que razoavelmente for fixado pelo credor, considera-se para todos os efeitos não cumprida a obrigação”. Ora, in casu, dúvidas não existem que a prestação não foi realizada dentro do prazo fixado pelo credor, e que este foi, efectivamente mais do que razoável, pois entre o último pagamento (com o aditamento) feito pelo Autor, e a remessa da carta supra distaram mais de 8 anos.
J – Sendo certo, ainda, que aquelas sucessivas interpelações, verbais, culminaram com a marcação, formal, de uma escritura junto da Conservatória do Registo Predial de Vale de Cambra, em 25/10/2010 às 10,30h. Para a qual foi devidamente notificada a Insolvente, e à qual não compareceu o Administrador da Insolvente, nem deu justificação válida para a sua ausência, entendendo-se, pois que a prestação devida pela Insolvente/Devedora não foi realizada no prazo, razoável que lhe foi concedido pelo credor/Autor, em data anterior à da declaração de insolvência, entendendo-se, pois, que o contrato promessa dos autos se encontrava definitivamente incumprido, em termos objectivos, pela Insolvente, em data anterior à da declaração de insolvência, pelo que não poderá, neste caso, aplicar-se o regime disposto no AUJ, o que se impetra assim seja declarado.
K – Quanto à c) a não qualificação do Autor - ou admitindo-se a hipótese de se considerar válida a intervenção provocada da Autora mulher, o que se concebe sem conceder, os Autores – como consumidor; deve começar por se relembrar que o Autor confessadamente pretendeu adquirir duas fracções, e posteriormente apenas a fracção indicada nos autos, para a poder arrendar, nunca a tendo pretendido habitar.
L – Ora, não afectando o promitente comprador a fracção ao seu uso pessoal, como habitação principal ou secundária, mas para arrendamento, deve então entender-se que não poderá o mesmo ser considerado como consumidor nos termos e para os feitos do disposto no AUJ 4/2014, entendimento que é lapidarmente expendido no Acórdão TRG de 03/0/2016, processo 1174/13.6TJVNG-C.G1, Relator Conceição Bucho:
”II – Embora o Autor não tenha adquirido o imóvel para revenda, nem exerça qualquer profissão na área imobiliária, nem seja comerciante, mas sendo certo que também não resulta provado que o adquiriu para sua habitação própria, permanente ou secundaria, perante a interpretação restritiva de consumidor seguida pelo Acórdão Uniformizador o recorrido não goza de direito de retenção. III – Deve, pois, o seu crédito ser reconhecido e graduado como crédito comum (...)” .
M - Não se entendendo, sequer, a douta sentença quando, em rodapé da página 30 se refere que a posição nela (sentença) expendida se alteraria se estivéssemos perante alguém que arrenda múltiplas fracções, situação na qual entenderia o Mmº Juiz que tal promitente comprador já não poderia ser considerado um consumidor, porquanto Autor, relembre-se, prometeu comprar não uma, mas duas fracções, que iria destinar a arrendamento. Tendo apenas optado por “reduzir” o escopo do contrato promessa posteriormente.
N – Não se compreendendo, também, que se refira na sentença que “não se provou que os AA. tivessem outras fracções autónomas arrendadas” – cfr. pg 31 2.º parágrafo, quando sendo facto que aproveitaria aos Autores, sempre a eles competiria o ónus de tal prova, e na sua ausência, tal só pode ser entendido e dado por provado/não provado em seu desfavor, nomeadamente para efeitos da sua qualificação como consumidores nos termos e para os efeitos do estabelecido no AUJ 4/2014.
O – Pelo exposto, e também por esta via, não pode o Autor, ou Autores, beneficiar do regime estabelecido no citado aresto, quanto ao reconhecimento do seu invocado direito de retenção.
P - Por fim, d) a inaplicabilidade do disposto no artigo 442.º nº 2 do Código Civil, quando ao Administrador de Insolvência faz apelo ao disposto no artigo 106.º n.º 2 do CIRE, aplicando-se então o disposto no artigo 102.º n.º 3 do CIRE, nos termos do Ac. STJ de 21-06-2016, proc. 3415/14.3TCLRS_C.L1.S1, disponível em www.dgsi.pt, reconhecendo-se, apenas, ao credor, o crédito emergente dos pagamentos efectuados a título de sinal e reforço de preço, em singelo.
Q – Pois ao Autor, ou Autores, foi na sentença – mal - reconhecido o crédito correspondente ao sinal em dobro dos montantes entregues à Insolvente, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 442.º n.º 2 do Código Civil, porquanto, resultando dos autos que o Senhor Administrador de Insolvência decidiu não cumprir o contrato prometido, por entendê-lo contrário aos interesses da massa insolvente, e tendo o contrato-promessa tinha eficácia meramente obrigacional, com tradição da coisa (que na perspectiva supra elencada não poderia nunca conferir ao Autor, ou Autores, direito de retenção por não serem estes consumidores nos termos e para os efeitos do previsto no AUJ 4/2014), deveria o Autor ter direito a ver o seu crédito reconhecido em montante calculado nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 102.º n.º 3 do mesmo diploma, aplicável ex vi artigo 106.º n.º 2 do CIRE, reconhecendo-se, neste caso, apenas, o crédito emergente dos pagamentos efectuados a título de sinal e seus reforços, em singelo, sendo inaplicável o regime previsto no artigo 442.º n.º 2 do Código Civil.
R – Posição esta sufragada na jurisprudência mais recente do STJ, nomeadamente no Acórdão de 21/06/2016, processo 3415/14,3TCLRS-C.L1.S1, Relator Júlio Gomes, onde se ensina no seu Sumário: “I - O art. 106.º, n.º 2, do CIRE permite ao administrador de insolvência recusar o cumprimento de contrato-promessa com eficácia meramente obrigacional e tradição da coisa. II - Neste caso, ao direito de indemnização do promitente-comprador aplica-se o disposto no art. 102.º, n.º 3, por força daquele art. e do art. 104.º, n.º5, todos do CIRE, e não o disposto no art. 442.º do CC.”
S – Em suma, i) - não podia o Mmº Juiz ter “convidado” o Autor a suprir a ilegitimidade activa provocada pela falta de intervenção processual da sua mulher, interveniente no contrato dos autos, devendo, por tanto, ser revogada a sentença proferida e absolver a Ré da instância; ainda que assim não se entendesse, ii) - A sentença é nula por ter sido preterido acto essencial previsto na lei – a citação dos demais credores para o incidente de intervenção principal provocada – devendo anular-se todo o processado após a admissão daquele requerimento de intervenção provocada; ainda que assim não se entendesse, iii) - Não se podia, como o faz a douta sentença, aplicar aos presentes autos o regime previsto no AUJ 4/2014 por: a) o contrato já estar definitivamente incumprido na data da insolvência; b) o Autor, ou Autores, não poderem ser considerados como consumidores, para os termos do disposto naquele douto aresto uniformizador, não podendo, num e noutro caso, ser reconhecido ao Autor o direito de retenção que invoca; e por fim, ainda que assim não se entendesse, iv) - não pode ser reconhecido ao Autor o direito a ver o seu crédito fixado no montante correspondente ao sinal em dobro, nos termos do disposto no artigo 442.º n.º 2 Código Civil, mas antes o montante entregue, em singelo, nos termos do disposto no artigo 102.º n.º 3 do CIRE.
T – Pelos motivos supra invocados, absolvendo a ré da instância, anulando o processado, ou considerando não poder ser reconhecido ao Autor o direito de retenção invocado, ou o crédito correspondente ao sinal em dobro, farão V. Ex.cias, como sempre, a costumada JUSTIÇA!
Os apelados, autor e interveniente principal, vieram apresentar contra alegações de recurso, defendendo que a intervenção principal provocada foi deduzida nos termos legais, que os restantes réus não tinham de ser notificados da intervenção principal porque estão em revelia absoluta e que, mesmo que assim não fosse, a eventual nulidade processual encontra-se sanada e que o contrato promessa invocado não estava numa situação de incumprimento definitivo, mas apenas em mora, da insolvente e, no mais, concluem pela manutenção do julgado.
Recebido o recurso e colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
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II - DO RECURSO:
Os recursos são balizados pelas conclusões das alegações, estando vedado ao tribunal superior apreciar e conhecer de matérias que naquelas não se encontrem incluídas, a não ser que se imponha o seu conhecimento oficioso, acrescendo que os recursos não visam criar decisões sobre matéria nova, sendo o seu âmbito delimitado pelo conteúdo do acto recorrido e que o tribunal ad quem não aprecia razões ou argumentos, antes questões- artºs 627º, nº1, 635º e 639º, nºs 1 e 2, CPC, na redacção da Lei nº 41/2013, de 26.06.2013, aplicável ao presente processo na fase de julgamento e termos posteriores, por força do disposto nos artº 5º do diploma preambular.
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II.1 - QUESTÃO PRÉVIA:
Nem nas conclusões e nem sequer no corpo das alegações de recurso a apelante não impugna a decisão da matéria de facto da sentença recorrida, sendo claro que o recurso está limitado a questões de direito, conforme previsto nos artºs 637º, nº 2 e 639, nºs 1 e 2, NCPC.
Mas, mesmo oficiosamente, a Relação deve alterar a matéria de facto nas situações previstas no artº 662º, nº1, NCPC e quando a sentença na fundamentação de facto inclua matéria de direito ou conclusiva porque não cumpriu o disposto no artº 607º, nºs 3 e 4, NCPC.
Ora, foi dado como provado na sentença recorrida que “13. Os AA. não foram notificados nos termos do artº 129º, nº 4, do CIRE (cfr. artigo 17º da p.i.)”.
Trata-se de afirmação conclusiva que como tal não deve constar como “facto” provado, mas extrair-se de outros factos que sendo dados como provados conduzam a essa conclusão, factos esses que não se mostram alegados na petição inicial nem comprovados por documento.
Assim, retira-se tal número dos factos provados, sendo certo que isso nenhuma influência tem para a decisão da causa nos termos e para os efeitos desta acção de verificação ulterior de créditos.
Esta Relação fixa, pois, definitivamente, os factos provados com interesse para a decisão da causa nos termos expostos na sentença e supra transcritos, salvo o ponto 13., que se elimina.
Também, se vão considerar os factos atrás expostos no “Relatório” relativos aos trâmites do processo.
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Questões de direito colocadas em sede de conclusões de recurso:
II.2.1- A inadmissibilidade legal do suprimento da preterição do litisconsórcio necessário activo após já ter terminado a audiência de discussão e julgamento e produzidas alegações orais pelas partes, anulando-se a decisão do Tribunal que convidou o Autor a deduzir a indicada intervenção, e a admitiu, absolvendo-se a Ré da instância;
A esta questão dizem respeito as alíneas A) a F) das conclusões de recurso.
Como é sabido “dos despachos recorre-se, contra as nulidades reclama-se”- A. dos Reis, Comentário ao CPC, vol.2, p 505.
A arguição de nulidade processual, nomeadamente ao abrigo do disposto no artº 195º, nº 1, NCPC, só é admissível quando a situação invocada não está abrangida por despacho judicial que a admita ou ordene. Nessa situação o prejudicado deve não arguir a nulidade nos termos do artº 199º, NCPC, mas recorrer do respectivo despacho que a ordenou ou sufragou por ilegalidade desse despacho.
Como o referido despacho do senhor juiz a quo, proferido em 19.06.2017, é complemento decisório do despacho de 13.06.2017, bem andou a apelante em interpor dele recurso nesta altura e conjuntamente com o recurso da sentença final, nos termos do disposto no artº 6444º, nº 3, NCPC, dado que aquela decisão interlocutória não se enquadra em qualquer das previsões legais das alíneas do nº 2 da referida norma legal, que permitisse à apelante apresentar requerimento no prazo de quinze dias de recurso autónomo com as respectivas alegações[1].
Importa conhecer do recurso desse despacho intercalar.
O convite feito ao autor pelo senhor juiz a quo pelo despacho de 13.06.2017, com a indicação dos termos que seguiria o processado, caso fosse aceite, a fim de ser sanada a ilegitimidade processual activa do autor desacompanhado da esposa nesta acção, com a intervenção principal provocada desta, tem a cobertura legal do princípio da adequação formal e dever de gestão processual, mesmo após o encerramento da audiência final, que veio a ser reaberta, de acordo com o disposto nos artºs 6º, nº 2 e 607º, nº 1, NCPC.
Apercebendo-se da preterição do litisconsórcio necessário activo, o senhor juiz tinha o dever de procurar sanar a excepção dilatória de ilegitimidade activa, de acordo com o disposto no artº 6º, nº 2, NCPC e a forma como o fez e exposta no relatório supra é a adequada para que o processo tivesse o seu desiderato último que é o verdadeiro julgamento do mérito da causa.
Respeitou o direito de resposta da única ré contestante, dado que os demais são revéis absolutos porquanto foram citados e não contestaram e daí que não tivessem que ser notificados do despacho proferido em 13.06.2017, não tendo sido violado o princípio do contraditório plasmado no artº 3º, nº 3, NCPC.
Aceite o primado sobre a forma, bem como a celeridade e economia processual, como princípios basilares do NCPC, a intervenção principal provocada da esposa do autor e a sua audição, reaberta que foi a audiência de julgamento, seguindo-se a concessão da palavra aos ilustres mandatários das partes para alegações orais finais, não violou qualquer norma legal imperativa do NCPC. Com efeito, se o nº 1 do artº 261º do CPC [situação ressalvada na parte final da al. a) do nº 1 do artº 318º do CPC], permite ao A., numa situação de litisconsórcio necessário activo e para assegurar a legitimidade activa, requerer a intervenção principal provocada depois de ser proferida decisão que julgue a ilegitimidade activa por preterição do litisconsórcio necessário, e o seu nº 2 permite tal até trinta dias após o trânsito em julgado da sentença que ponha termo ao processo por procedência da excepção de ilegitimidade processual, por maioria de razão e por considerações de economia processual, permite que o A. deduza essa intervenção antes de ser proferida tal decisão – v., neste sentido, Ac. do TRG de 5/4/2011, in www.dgsi.pt.
Para quê, in casu, proferir a plausível sentença de absolvição da instância dos réus por ilegitimidade do autor em virtude de preterição do litisconsórcio necessário activo com a sua esposa, permitindo só depois o chamamento daquela por incidente de intervenção principal provocada e processar este incidente e reabrir o julgamento, seguindo-se nova sentença, se tudo isso foi feito nos autos pela forma supra exposta, sem violar interesses de outros sujeitos processuais.
O processo é um instrumento de justiça. O novo Código de Processo Civil abre efetivamente uma ampla janela de oportunidade que é a de possibilitar a todos os intervenientes, designadamente ao Tribunal, adequarem a tramitação concreta dos litígios aos princípios fundamentais que informam o processo civil quando dessa adequação resulte simplificação e celeridade processual sem que daí decorra prejuízo para os direitos fundamentais das partes”[2].
Improcedem assim essas conclusões de recurso referentes aqueles despachos intercalares.
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II.2.2- Nas conclusões G) a J), entende a apelante que o contrato promessa se encontrava incumprido antes da declaração de insolvência.
Diz a sentença recorrida:
Neste processo, C… e mulher (após o chamamento) pugnam pelo reconhecimento de um crédito, sobre a insolvente, de €124.699,48, valor correspondente a um sinal, em dobro, que teriam prestado em cumprimento de um contrato promessa de aquisição de uma fração.
Provou-se, neste processo, que:
- em 13/03/1998 os AA. C… e mulher celebraram, “com a B…, S.A.”, um contrato promessa de compra e venda de duas frações autónomas (cfr. número 1 dos factos provados).
- entretanto, em 16/05/2000, os AA. e a “B…, SA” celebraram um aditamento ao contrato promessa anterior, nos termos do qual o contrato-promessa passou a abranger apenas uma das frações autónomas anteriormente indicadas, neste caso, a fração designada pelas letras “AR” do prédio descrito na Conservatória do Registo Predial de … sob o número 3693. (cfr. números 3. e 4. dos factos provados).
Entretanto, o Sr. AI veio referir que não pretenderia cumprir este contrato promessa (cfr. número 14. dos factos provados).
Sobre esta temática haverá que ter em atenção a doutrina exposta no Acórdão de Fixação de Jurisprudência nº 4/2014, publicado no DR Iª Série, de 19/05/2, nos termos do qual, “o consumidor promitente-comprador em contrato, ainda que com eficácia meramente obrigacional com traditio, devidamente sinalizado, que não obteve o cumprimento do negócio por parte do administrador da insolvência, goza do direito de retenção nos termos do estatuído no artigo 755º nº 1 alínea f) do Código Civil”.
A orientação deste acórdão é, assim, aplicável:
- aos contratos promessa de compra e venda de eficácia meramente obrigacional;
- nos quais se tenha verificado o pagamento de sinal por parte do promitente comprador;
- em que tenha existido traditio da coisa objeto do contrato promessa; e
- que o promitente comprador seja um consumidor.
Para que se possa aplicar a posição deste acórdão é necessário que inexista incumprimento definitivo anterior à declaração de insolvência.
Ora, neste caso, se é certo que já existia mora da promitente vendedora (cfr. números 10. e 11. dos factos provados), não se provou que os AA. já tinham perdido o interesse no negócio ou que tivessem dado à promitente vendedora o derradeiro prazo razoável para o comprimento do contrato promessa (cfr. artº 808º, nº 1, do Cód. Civil).
Por isso considera o Tribunal que, à data da declaração de insolvência, ainda não tinha ocorrido o incumprimento definitivo do contrato promessa.
A situação é, assim, de possível aplicação da orientação fixada no AUJ nº 4/2014, desde que os restantes pressupostos estejam reunidos.
Ora, neste caso, provou-se que:
- os AA. celebraram um contrato promessa de eficácia meramente obrigacional (cfr. números 1. e 3. dos factos provados);
- sinalizaram o contrato promessa (cfr. número 2. dos factos provados, sendo que as quantias têm de ser consideradas como “sinal” por força do disposto no artº 441º do Cód. Civil);
- e também obtiveram a traditio da coisa (a fração autónoma) – cfr. números 5. e 6. dos factos provados”.
Concordando e reforçando esta fundamentação, acrescentamos que, convém precisar que o contrato promessa de compra e venda não se confunde com o contrato definitivo, nem em termos de forma nem de conteúdo. Aquele consiste num contrato oneroso de prestação de facto positivo, consistente na obrigação de emitir a declaração de vontade correspondente ao contrato definitivo e, este, consiste num contrato real quod effectum, de acordo com os respectivos regimes previstos nos artºs 442 ss , 442º e e 830º e artºs 408º, nº 1 e 874º e 875º, todos do Código Civil de 1961[3].
É oneroso porque existem prestações patrimoniais de ambas as partes e que estas consideram como correspondentes entre si em termos de vínculo da causalidade jurídica, não sendo gratuito por natureza porque não há um acordo das partes no sentido de que haja uma vantagem patrimonial apenas para uma delas, intervindo uma das partes com uma intenção liberal (animus donandi, animus beneficiandi).[4]
O aludido contrato mantinha-se em mora de cumprimento por parte da insolvente, conforme alegado na petição inicial da acção e provado nos pontos 9. a 11. dos factos provados da sentença, sendo pacífico que não tinha ocorrido antes da declaração de insolvência extinção do contrato por resolução contratual - artºs 432º a 436º do Código Civil- pelo que o negócio oneroso estava em curso e apenas ocorreu recusa definitiva de cumprimento pelo AI, através da carta de 05.07.1011.
Estamos perante um negócio oneroso em curso, com mera eficácia obrigacional, em que os autores tinham obtido a tradição do bem imóvel prometido vender pela insolvente em data anterior à sentença B… declarativa da insolvência da promitente vendedora.
Improcedem as conclusões de recurso de G) a J).
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II.2.3- Qualificação do A. e interveniente principal como consumidores e o direito de retenção que lhes assiste.
Diz a sentença:
Provou-se, relativamente a estes que:
- O A. C…, nos finais dos anos 90 do século passado e após o ano 2000 tinha uma oficina de reparações elétricas de automóveis e procedia à venda de veículos usados (cfr. número 16. dos factos provados) - cremos que deverá haver aqui um lapso de escrita, rectificável, no sentido que a data terá apenas um início, no sentido “nos finais dos anos 90 do século passado início do ano 2000” ou “ nos finais dos anos 90 do século passado e até ao ano 2000”.
- A A. E…, de 1998 e até cerca do ano de 2000, teve uma livraria, sendo que, após essa data, e desde há cerca de 6 anos abriu em nome próprio uma loja de artes decorativas (cfr. número 17. dos factos provados).
E mais se provou que pretendiam a aquisição da fração indicada no número 4. dos factos provados para acrescer ao património e a poderem arrendar (cfr. número 18. dos factos provados).
Sendo que a insolvente, promitente vendedora, se dedicava à compra, venda e construção de imóveis (cfr. número 15. dos factos provados).
É quanto basta para que se considerem os AA. C… e mulher como consumidores.
Com efeito, o conceito de consumidor está, desde logo, definido na Lei de Defesa do Consumidor. Assim, o artº 2º, nº 1, da Lei nº 24/96 de 31/07 define-o como “todo aquele a quem sejam fornecidos bens, prestados serviços ou transmitidos quaisquer direitos, destinados a uso não profissional, por pessoa que exerça com carácter profissional uma atividade económica que vise a obtenção de benefícios”.
Trata-se da consagração da noção estrita de consumidor. Nas palavras de Calvão da Silva “A noção estrita de consumidor – pessoa singular que adquire a fornecedor profissional bens ou serviços para uso não profissional –, que defendemos em geral e temos por consagrada no n.º 1 do art. 2º da LDC (...) impõe-se pertinente e inquestionavelmente in casu à luz do princípio da interpretação conforme à Directiva, em que se define consumidor como “qualquer pessoa singular que, nos contratos abrangidos pela presente Directiva, actue com objectivos alheios à sua actividade comercial ou profissional”- Venda de Bens de Consumo, Almedina, 4ª edição, p. 56.
No caso do promitente comprador pretender adquirir um bem imóvel com a finalidade, não de ali residir, mas para o arrendar, têm existido algumas divergências de entendimento na jurisprudência.
É consensual que a aquisição, por consumidor (pessoa individual), terá de ser uma aquisição para uso próprio. A aquisição para habitação própria ou secundária será uma aquisição para uso próprio de um consumidor.
As dúvidas colocam-se quando o promitente comprador pretende adquirir o imóvel, não como habitação própria ou secundária, mas para, eventualmente, o arrendar.
Foi também o que se provou, neste processo.
A este propósito, a jurisprudência tem-se dividido[5].
Pela nossa parte, entendemos que, se a fração é adquirida
- fora da atividade profissional dos promitentes compradores, e
- o arrendamento pretendido para a fração se trata se um ato isolado e não a manifestação do exercício de uma lucrativa atividade profissional paralela, devem os promitentes compradores, ainda assim, serem considerados como consumidores, para efeitos do …, considerando-se o bem adquirido para uso próprio[6].
É que, nessas circunstâncias, a aquisição da fração enquadra-se no normal desenvolvimento de uma economia familiar.
Uma família, prudente e precavida, amealha uma parte do rendimento mensal, para uma eventualidade futura. Pode simplesmente colocar o dinheiro numa qualquer instituição bancária, a receber juros de depósitos a prazo bancários (ou adotar uma solução conservadora, similar). Ou poderá também usar esse dinheiro para adquirir um imóvel que possa responder para qualquer eventualidade, impedindo também a erosão monetária da inflação. É evidente que, dentro desta economia familiar, o comprador usa o apartamento para receber algum rendimento, da mesma forma que, se simplesmente depositasse o dinheiro numa instituição bancária, iria beneficiar dos juros remuneratórios dos depósitos a prazo.
Não se pode considerar que, por adquirir um único imóvel e o arrendar, passou aquela pessoa a exercer uma atividade profissional paralela. E também não seria sequer sensato impor a uma família, nestas circunstâncias, que mantivesse o imóvel fechado, anos a fio, a degradar-se, com o pagamento de um conjunto de despesas (seguro multirriscos, despesas de condomínio, etc.), só para não perder a qualidade de consumidor.
Da mesma forma que uma pessoa, que beneficia de juros de depósitos a prazo de pequenas poupanças, não pode ser considerado um “investidor de capitais” (será apenas um pequeno aforrador), um promitente comprador de uma fração autónoma, que a pretende arrendar no futuro, não poderá ser considerado como estando a exercer uma atividade profissional de promoção de arrendamento de imóveis, como se fosse um fundo de investimento imobiliário ou sequer uma agência imobiliária[7].
Foi, precisamente, o que se provou neste processo.
Não se provou que os AA. tivessem outras frações autónomas arrendadas. Não se provou que exercessem qualquer atividade profissional relacionada com o arrendamento de imóveis ou, sequer, a transação comercial de imóveis. Não adquiriram o imóvel para futura revenda.
Consideramos, portanto, que os AA., são consumidores.
Concordando com esta fundamentação da sentença recorrida, reforçando a sua qualificação como consumidores para os efeitos do referido …, acrescentamos que ficou provado que os autores não arrendaram logo a dita fracção prometida vender pela insolvente e cujo gozo e fruição lhes foi entregue por ela no ano de 2002, apenas o tendo feito por contrato de arrendamento escrito celebrado em 17.06.2010, ou seja oito anos após, tendo habitado a dita fracção autónoma um filho dos autores entre os anos 2002 e 2008, suportando estes as despesas de condomínio, água e luz respectivas- factos provados nos pontos 6. a 8. da sentença.
Dos autos resulta que os ora recorridos, invocaram na petição inicial e requerimento de adesão a esta, e lograram provar, como lhes cabia- artºs 3º, nº 1, 5º, nº 1 e 552º, nº 1, al. d), todos do NCPC e artº 342º, nº 1, do Código Civil de 1966- actos de detenção efectiva da aludida fracção autónoma que lhes foi prometida vender e eles prometeram comparar à insolvente, designada por fracção AR, constituída por um apartamento T2, destinado a habitação, de um prédio urbano em regime de propriedade horizontal, cuja entrega pela promitente vendedora - traditio- ocorreu, em data incerta do ano de 2002, com a entrega das chaves desse apartamento; que somente eles recorridos, a partir dessa altura, passaram a ter a disponibilidade de acesso ao interior da referida fracção autónoma por si ou pessoas autorizadas por eles, tendo inclusive um seu filho ali residido habitualmente desde o ano de 2002 até, pelo menos, o ano de 2008, aparcando inclusivamente o veículo automóvel na subcave respectiva; que desde 2002 até, pelo menos 17.06.2010, foi o autor marido quem pagou os encargos com o condomínio e a com a água e electricidade daquela fracção e que, em 17.06.2010, por documento escrito particular o autor a deu de arrendamento para habitação para terceira pessoa, com início em 01.07.2010 e termo em 30.06.2015- factos provados números 1 a 8.
Dúvidas não há de que os recorridos obtiveram tradição da coisa prometida vender e estão na sua posse precária ou mera detenção desde data incerta de 2002 e que o contrato promessa celebrado é um negócio jurídico bilateral, de bem imóvel para habitação ao qual as partes não atribuíram eficácia real obedecendo aos respectivos requisitos de forma e registo e tendo os recorridos pago à insolvente a título presumido e não ilidido de sinal a quantia global hoje equivalente a €62.349,74- artºs 410º, 413º, 441º e 1252º, nº1, todos do CC de 1966.
E, assim, chegamos à conclusão que a jurisprudência obrigatória para os tribunais judicias do Acórdão de Fixação de Jurisprudência nº 4/2014, publicado no DR Iª Série, de 19/05/2, nos termos do qual, “o consumidor promitente-comprador em contrato, ainda que com eficácia meramente obrigacional com traditio, devidamente sinalizado, que não obteve o cumprimento do negócio por parte do administrador da insolvência, goza do direito de retenção nos termos do estatuído no artigo 755º nº 1 alínea f) do Código Civil”, tem plena aplicação ao caso em análise.
Assi, importa reconhecer nesta acção o pedido do A. e interveniente principal de que são titulares de do direito real de garantia traduzido no direito de retenção sobre a fração indicada no número 4. dos factos provados – cfr. artº 755º, nº 1, al. f), do Cód. Civil – tal como referiu o acórdão de Uniformização de Jurisprudência nº 4/2014, sendo que a aplicação do artº 442º, nº 2 e a culpa se irão demonstrar infra.
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II.2.3- A inaplicabilidade do disposto no artigo 442.º nº 2 do Código Civil, quando ao Administrador de Insolvência faz apelo ao disposto no artigo 106.º n.º 2 do CIRE, aplicando-se então o disposto no artigo 102.º n.º 3 do CIRE, nos termos do Ac. STJ de 21-06-2016, proc. 3415/14.3TCLRS_C.L1.S1, disponível em www.dgsi.pt, reconhecendo-se, apenas, ao credor, o crédito emergente dos pagamentos efectuados a título de sinal e reforço de preço, em singelo- conclusões P) a R).
Na sentença recorrida diz-se:
Mas que crédito têm os AA.?
O direito à restituição do que já pagaram, em singelo? O direito à indemnização prevista no artº 102º, nº 3, al.s c) e d) e 104º, nº 5, ex vi artº 106º, nº 2, do CIRE? Ou aplica-se o artº 442º, nº 2, do Cód. Civil, tendo os AA. direito o sinal em dobro ou ao aumento do valor da coisa?
Na verdade, por força do disposto no artº 441º do Cód. Civil, as quantias entregues pelos AA., e referidas no número 2. dos factos provados, devem ser consideradas como “sinal”.
E havendo incumprimento imputável à promitente vendedora, neste contrato (referido no número 14. dos factos provados – a carta de recusa é, para todos os efeitos, uma declaração de incumprimento definitivo), de efeitos meramente obrigacionais mas com traditio da coisa prometida vender, perante consumidores, coloca-se a questão de se saber se tem aplicação ao caso o disposto no artº 442º, nº 2, do Cód. Civil.
A jurisprudência do STJ encontra-se dividida:
- em sentido da não aplicação do artº 442º, nº 2, do Cód. Civil, por exemplo o acórdão do STJ de 21-06-2016, in www.dgsi.pt, onde se afirma que “Não é, assim, aplicável ao caso vertente de um contrato promessa com eficácia meramente obrigacional no contexto da insolvência o artigo 442.º do Código Civil. E o próprio artigo 755.º n.º 1 alínea f) que para ele remete terá que ser interpretado com cautela tendo em conta a radical diferença de situações”;
- em sentido da aplicação, por exemplo, o acórdão do STJ de 17/11/2015, in www.dgsi.pt, onde se lê “mesmo em caso de recusa pelo administrador da insolvência em cumprir o contrato-promessa de compra e venda, só no caso do promitente-comprador tradiciário ser consumidor é que goza do direito de retenção e tem direito a receber o dobro do sinal prestado ou aumento do valor da coisa – nºs 2 e 3 do art. 442º do Código Civil”.
O STJ, no Acórdão de Uniformização de Jurisprudência nº 4/2014 (supra referido) vem, na fundamentação, indicar que “Começaremos por referir que a norma do artigo 102º do CIRE acima transcrito se aplica, como se vê do próprio texto, “sem prejuízo do estatuído nos artigos seguintes”, conferindo de certa forma autonomia ao estatuído no artigo 106º; e aqui a lei é expressa ao referir que “no caso de insolvência do promitente vendedor, o administrador da insolvência não pode recusar o cumprimento se já tiver havido tradição da coisa a favor do promitente-comprador; a isto acresce que nada apontando, a nosso ver, para o facto de ter havido intuito de modificar com a entrada em vigor do CIRE a orientação legislativa ao nível das consequências de incumprimento da promessa do contrato e suprindo pelo recurso ao regime da compra e venda com reserva de propriedade, a omissão da regulamentação do contrato promessa com efeito obrigacional e tradição do objeto, ficará o nº 2 do artigo 106º aplicável apenas ao contrato promessa com efeito meramente obrigacional e em que não tenha havido aquela tradição ao promitente-comprador. Só aqui, e a menos que uma das partes tenha cumprido integralmente a sua obrigação, poderá o administrador optar por cumprir ou recusar a execução do contrato”.
E prossegue o mesmo acórdão, mais à frente “em suma, concluímos que não sendo afetado o contrato promessa, mantêm-se os efeitos do incumprimento a que se reporta o artº 442º, nº 2, do Código Civil”.
Este promitente comprador a que alude o acórdão de fixação de jurisprudência é apenas o promitente comprador que seja consumidor, como se refere no dispositivo do mesmo acórdão.
Nesse mesmo acórdão de uniformização, considera-se que o legislador, no artº 106º, nº 1, do CIRE, estabeleceu uma previsão para a situação do contrato promessa, com eficácia real, com tradição da coisa. Mas não se referiu nunca à situação concreta do contrato promessa com efeitos meramente obrigacionais, com tradição da coisa, existindo aqui uma lacuna legal.
Existe aqui, segundo o acórdão, uma lacuna legal, recorrendo-se à analogia com o artº 104º, nº 1, do CIRE, que dispõe que “no contrato de compra e venda com reserva de propriedade em que o vendedor seja o insolvente, a outra parte poderá exigir o cumprimento do contrato se a coisa já lhe tiver sido entregue na data da declaração de insolvência”.
Esta mesma disciplina será então de aplicar ao caso do contrato promessa de compra e venda, sem eficácia real mas com tradição da coisa, não tendo, nesse caso, o Administrador de Insolvência o direito de, licitamente, se recusar ao cumprimento do contrato promessa.
E por isso se afirma no Acórdão de Uniformização de Jurisprudência nº 4/2014 que “tal omissão é ultrapassada fazendo apelo ao “lugar paralelo” resultante da conjugação dos artigos 106º nº 2 e 104º nº 1 do CIRE (respeitante à venda com reserva de propriedade) aplicável no caso em análise, já que as razões determinantes do que ali vem exposto quanto ao que lá se regula (compra e venda a prestações) são idênticas às que aqui estão em causa. Subjacente a esta tomada de posição está a forte expectativa que a traditio criou no “promitente-comprador” quanto à solidez do vínculo. Cimentada esta confiança, e “corporizada” destarte a posse, existe, na prática, do lado do adquirente um verdadeiro ânimus de agir como possuidor, não já nomine alieno mas antes em nome próprio”.
Face ao valor reforçado da jurisprudência fixada, os Tribunais só em situações excecionais dela podem divergir[8]. Por isso acatamos a jurisprudência fixada.
É verdade que, como aliás é explícito o acórdão do STJ de 21/06/2016, supra referido, a fundamentação do acórdão de fixação de jurisprudência não faz parte do segmento uniformizador.
Todavia,
- assumindo-se como assente a jurisprudência do acórdão uniformizador de que o promitente comprador com traditio “goza do direito de retenção nos termos do estatuído no artigo 755º nº 1 alínea f) do Código Civil” e
- uma vez que o direito de retenção, previsto no artº 755º, nº 1, al. f), do Cód. Civil, pressupõe, tal como expressamente é afirmado na lei, o “não cumprimento imputável à outra parte, nos termos do artigo 442º”.
com todo o respeito, não vemos como possível afastar a aplicação do artº 442º do Cód. Civil, como o faz o acórdão do STJ de 21/06/2016, supra referido. Ou então estaremos perante uma total incoerência jurídica.
Por isso, por coerência jurídica, aderimos à fundamentação presente no acórdão uniformizador de jurisprudência 4/2014 e no acórdão do STJ de 17/11/2015, supra referidos.
Parece-nos ser também a posição maioritariamente seguida pelos Venerandos Tribunais da Relação[9].
Por outro lado, o incumprimento definitivo por parte da insolvente, deverá ser considerado culposo.
Como também se refere no mesmo Acórdão de Uniformização de Jurisprudência nº 4/2014 “Não se aduza ainda, contra o entendimento exposto, que não há imputação de culpa a fazer em caso de insolvência porque com a declaração desta última, a relação jurídica existente, então reconfigurada, não a poderá comportar, já que ao insolvente se substitui e passa a figurar em juízo apenas a massa falida e o administrador; é para nós claro o cariz redutor deste entendimento; a insolvência não surge do nada, radicando antes e à partida no comportamento de uma entidade que se mostrou não ter cumprido as suas obrigações. Nestes casos já foi decidido e bem, neste Supremo Tribunal de Justiça, que se verifica uma imputabilidade reflexa considerando o comportamento da insolvente na origem do processo falimentar; acresce que, seria sempre a esta última que cumpriria afastar a culpa, que se presume, em matéria de responsabilidade civil contratual – artigo 799º nº 1 do Código Civil”.
Neste processo, provou-se que o Sr. AI recusou a celebração do contrato prometido, do que se extrai o incumprimento definitivo.
E não foi afastada a culpa da promitente vendedora incumpridora, sendo que esta culpa se presumia.
Logo, é a insolvente devedora do valor do sinal prestado, em dobro (cfr. artº 442º, nº 2, do Cód. Civil).
(…)
Desta forma, é assim aplicável ao caso o disposto no artº 442º, nº 2, do Cód. Civil.
Provou-se que os AA. entregaram, a título de sinal, o valor de esc. 12.500.000,00 (doze milhões e quinhentos mil escudos - cfr. número 2. dos factos provados).
Tal corresponde ao valor de €62.349,74 (sessenta e dois mil trezentos e quarenta e nove euros e setenta e quatro cêntimos).
Por conseguinte, por força do disposto no artº 442º, nº 2, do Cód. Civil, terão assim os AA. direito ao sinal prestado em dobro (assim o peticionaram), ou seja, ao valor de €124.699,48 (cento e vinte e quatro mil seiscentos e noventa e nove euros e quarenta e oito cêntimos).
A este direito de crédito acresce o direito de retenção sobre a fração prometida vender, para pagamento do seu crédito”.
Concordamos plenamente com esta argumentação jurídica.
Acrescentamos que o STJ vem seguindo jurisprudência uniforme no sentido que “Deste modo, embora os tribunais sejam livres de seguirem a jurisprudência que julgam mais adequada, já que o STJ não “faz lei”, parece estultice tomar outro caminho que não o acolhido no Pleno do STJ, a não ser que se invoquem argumentos novos, não considerados na decisão que fixa a jurisprudência, ou que, considerando a legislação no seu todo, a jurisprudência fixada se mostre já ultrapassada”[10].
O não acatamento da jurisprudência fixada em AUJ e dos seus argumentos jurídicos além de poder “representar uma quebra injustificada do valor da segurança jurídica e das legítimas expectativas dos interessados, pode provocar graves danos na celeridade processual e na eficácia (e prestígio acrescentaremos nós) dos tribunais, considerando a previsível derrogação da decisão em caso de interposição de recurso”- Recursos no Novo CPC, Consº Abrantes Geraldes, Almedina, 2013, p. 380 - adiantando o autor que, obviamente, tal não se repercute nas sentenças ou acórdãos que, antes da publicação do AUJ no Diário da República, tenham sido proferidos.
O caso dos autos é, precisamente, o de um contrato-promessa sem eficácia real, mas com tradição da coisa e em que o promitente comprador é inequivocamente um consumidor.
Entendemos, como na sentença recorrida, que o artigo 106.º n.º 2 do CIRE apenas se aplica aos contratos promessa com eficácia meramente obrigacional, mas sem tradição da coisa ao promitente comprador.
No caso tratado no Acórdão do STJ de 21.06.2016 (JÚLIO GOMES) a ali em causa sentença recorrida substituiu-se ao Administrador da Insolvência e deu como definitivamente incumprido um contrato que se encontrava suspenso, nos termos previstos no art. 102.º n.º 1 do CIRE.
Nestes autos, o AI recusou expressamente o cumprimento do contrato em curso com a carta de 05.07.2011-facto provado número 14.
Daí que a situação factual aqui provada não é idêntica à que ficou provada no referido processo onde foi proferido o Ac. STJ de 21.06.2016, que a apelante invoca para sustentar estas conclusões de recurso.
Na interpretação dos factos e da lei aplicada nos moldes da sentença recorrida, para além dos arestos que nela se referem, pronunciou-se o Acórdão do STJ, de 13.11.2014 (Fernandes do Vale), www.dgsi.pt, cujo sumário (em parte) se transcreve “II - A recusa de cumprimento do contrato em curso, por parte do administrador da insolvência, legitima que se endosse ao próprio insolvente, em termos de imputabilidade reflexa, o incumprimento definitivo daquele contrato; III - O art. 106.º, n.º 2, do CIRE, reclama uma interpretação restritiva, de molde a considerar-se que o mesmo se aplica apenas às promessas não sinalizadas, devendo aplicar-se às demais – promessas sinalizadas – a disciplina civilista do art. 442.º, n.º 2”.
Contem a sentença recorrida, ainda, o seguinte trecho na fundamentação de direito:
De salientar que o incumprimento é refletido sobre a insolvente e não sobre a massa insolvente. Não que o acórdão de fixação de jurisprudência seja totalmente claro neste aspeto, mas a única forma de o respeitar será considerar o crédito nestes termos.
Se se considerasse que o incumprimento se refletia sobre a massa insolvente, então o acórdão de uniformização também não teria reconhecido o direito de retenção, porque não faz sentido reconhecer direito de retenção a quem dispõe de crédito sobre a própria massa insolvente (e que, por isso, é prioritário relativamente a qualquer garantia real referente a créditos sobre a insolvente, como é o caso do direito de retenção)”.
Ora, tal não é matéria que conste do pedido formulado pelo autor e ao qual aderiu a interveniente esposa, nem constituiu parte do dispositivo condenatório da sentença recorrida, nem é objecto deste recurso. Não passa de uma opinião jurídica sem interesse para a decisão desta causa.
Concluindo, improcedem totalmente as conclusões do recurso da apelante.
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III - DECISÃO:
Nestes termos, acordam os juízes nesta Relação em julgar improcedente a apelação e confirmar, quer o despacho intercalar acima referido, quer a sentença recorrida.
Custas pela apelante.
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Porto, 24.01.2018
Madeira Pinto
Carlos Portela
José Manuel Araújo de Barros
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[1] Ver Recursos no Novo Código de Processo Civil, Consº Abrantes Geraldes, Almedina 2013, p.152 a 163.
[2] A.SALAZAR CASANOVANOVA- REVISTA JULGAR, N.º 23 - 2014
[3] Ver Código Civil Anotado, Coimbra Editora 1982, Pires de Lima e Antunes Varela, pág.356 a 358 e 145 a 148.
[4] Ver Teoria Geral do Direito Civil, Coimbra Editora, 1976, pág278 a 280, Prof. Mota Pinto.
[5] No sentido de que, nestas situações, o promitente comprador não poderá ser admitido como um consumidor, veja-se, por exemplo, o acórdão do TRG de 03/03/2016, processo nº 1174/13.6TJVNF-C.G1, integralmente disponível no sítio www.dgsi.pt; no sentido se que, nestas situações, o promitente comprador deverá ser considerado como um consumidor veja-se o acórdão do TRC de 13/10/2015, processo nº 178/13.3TBSPS-A.C1, integralmente disponível no sítio www.dgsi.pt.
[6] Neste sentido, também o Acórdão do STJ de 24/05/2016, processo nº 3374/07.9TBGMR-C.G2.S1, integralmente disponível no sítio www.dgsi.pt.
[7] Se a situação for de alguém que arrenda múltiplas frações, a nossa posição altera-se; nesse caso, estamos perante um verdadeiro “negócio familiar paralelo”, e entendemos que o promitente comprador já não será um consumidor. Igualmente diferente será a situação do imóvel ser destinado à revenda: a revenda de imóveis não se inclui na normal organização de uma economia familiar quotidiana.
[8] Como se escreveu no acórdão do STJ de 12/05/2016, processo nº 982/10.4TBPTL.G1-A.S1, integralmente disponível no sítio www.dgsi.pt “Os Acórdãos de Uniformização de Jurisprudência, conquanto não tenham a força obrigatória geral que era atribuída aos Assentos pelo revogado art. 2º do CC, têm um valor reforçado que deriva não apenas do facto de emanarem do Pleno das Secções Cíveis do Supremo Tribunal de Justiça, como ainda de o seu não acatamento pelos tribunais de 1ª instância e Relação constituir motivo para a admissibilidade especial de recurso, nos termos do art. 629º, nº 2, al. c), do CPC”.
[9] Por exemplo, no TRL, vejam-se os acórdãos de 10/10/2013, processo nº 362/11.4TBCDV-F.L1-2 e 14/01/2016, processo nº 3415/14.3TCLRS-C.L1-2; no TRE, o acórdão de 12/01/2017, processo nº 1141/12.7TBBVN-B.E1; no TRP, os acórdãos de 14/03/2016, processo nº 3020/04.2TBVNG.P1 e de 06/04/2017, processo nº 1210/11.0TYVNG-C.P1 todos integralmente disponíveis no sítio www.dgsi.pt.
[10] Sumário do Ac. STJ de 05.11.2009 (Santos Carvalho).
No mesmo sentido Ac. STJ de 12.05.2016 (Abrantes Geraldes) e Ac. TRL, de 31-01-2008 (Ilídio S. Martins).