Acórdão do Tribunal da Relação do Porto | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | JTRP000 | ||
Relator: | MENDES COELHO | ||
Descritores: | INSOLVÊNCIA EXONERAÇÃO DO PASSIVO RESTANTE CESSÃO DE RENDIMENTOS RENDIMENTO DISPONÍVEL | ||
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Nº do Documento: | RP202306267467/17.6T8VNG.P1 | ||
Data do Acordão: | 06/26/2023 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
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Meio Processual: | APELAÇÃO | ||
Decisão: | RECURSO IMPROCEDENTE; DECISÃO CONFIRMADA | ||
Indicações Eventuais: | 5ª SECÇÃO | ||
Área Temática: | . | ||
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Sumário: | I – Prevendo-se no nº3 do art. 12º da Lei 9/2022, de 11 de Janeiro – que introduziu diversas alterações ao CIRE, designadamente encurtando o período de cessão de rendimentos em sede de exoneração do passivo restante de 5 para 3 anos – que, para os processos pendentes aquando da sua entrada em vigor em que já se tenham completado três anos de cessão, tal período de cessão considera-se findo com a entrada em vigor daquela lei, de tal decorre que o encurtamento do período de cessão só tem efeitos dali para a frente e, por isso, que o período de tempo decorrido até àquela entrada em vigor está sujeito a cessão, desde logo porque incluído no período de cessão até ali ainda em curso. II – Em sede de admissão liminar da exoneração do passivo restante, a cessão do rendimento disponível deve ser calculada por referência a cada mês e ser actuada em cada mês que o rendimento auferido exceder o montante arbitrado a título de sustento minimamente digno do devedor; III – Nos meses em que não advierem rendimentos ao devedor, ou advierem rendimentos inferiores ao que foi considerado necessário para o sustento minimamente digno do mesmo, não há lugar a cessão de rendimento; porém, nestes casos, não nasce a favor do devedor o direito de compensar ou de deduzir, nos rendimentos futuros, a ausência de rendimentos ou rendimentos inferiores ao que foi estabelecido para aquele sustento. | ||
Reclamações: | |||
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Decisão Texto Integral: | Processo nº7467/17.6T8VNG.P1 (Comarca do Porto – Juízo de Comércio de Vila Nova de Gaia – Juiz 4) Relator: António Mendes Coelho 1º Adjunto: Joaquim Moura 2º Adjunto: Ana Paula Amorim Acordam no Tribunal da Relação do Porto: I – Relatório Nos presentes autos de processo de insolvência em que foi declarado insolvente AA, ocorreu o seguinte circunstancialismo: a) – em 13/11/2017 foi proferido despacho a declarar encerrado o processo ao abrigo do art. 230º, nº 1, al. e) do CIRE e, de seguida, foi proferido despacho inicial sobre a exoneração do passivo restante requerida pelo insolvente, tendo-se nele decidido o seguinte: - que, durante os 5 anos posteriores ao encerramento do processo, o rendimento disponível do Insolvente fica cedido ao Sr. Administrador da insolvência (na qualidade de fiduciário), ficando durante aquele período de cessão o insolvente obrigado a observar as imposições previstas no nº4 do art. 239º do CIRE; - foi fixado em 2 salários mínimos nacionais o montante necessário ao sustento digno do Insolvente; - advertir expressamente o devedor das obrigações a que fica sujeito, constantes dos arts. 239º nº4 e 240º nº1 do C.I.R.E., consignando-se que terá que entregar ao Sr. fiduciário o montante anual que receber e que exceda 12 vezes o valor acima fixado. b) – a 17/1/2019 foi apresentado o 1º relatório anual do fiduciário, tendo-se nele concluído que o insolvente estava em dívida para com a massa no montante de 347,66 euros; c) – na sequência de tal relatório foi proferido despacho a 4/2/2019 como seguinte teor: “Salvo melhor opinião, devendo o cálculo do rendimento a ceder ser feito de forma anual, não parece que tenha sentido que seja efectuado um cálculo todos os meses, antes se devendo fazer uma média no fim desse período anual. Desta forma, em face dos rendimentos que são apresentados (fls. 123, verso), ao contrário do que refere o Senhor Fiduciário, verifica-se que o insolvente nenhuma quantia tem de entregar, porquanto terá de fazer a compensação no único mês que o insolvente teve rendimento superior ao montante que pode reter com todos os outros meses desse ano em que teve um rendimento inferior. Notifique.” d) – a 7/4/2020 foi apresentado o 2º relatório anual do fiduciário, tendo-se ali concluído que não havia qualquer quantia a entregar pelo insolvente; relativamente a tal relatório foi proferido despacho a 7/9/2020 com o seguinte teor: “Tomei conhecimento do teor do relatório apresentado e nada tendo sido cedido, por falta de rendimentos bastantes, nada há a determinar a não ser que os autos aguardem o decurso do próximo ano do período de cessão.” e) – a 27/1/2021 foi apresentado o 3º relatório anual do fiduciário, tendo-se ali concluído que não havia qualquer quantia a entregar pelo insolvente; relativamente a tal relatório foi proferido despacho a 24/1/2021 com o seguinte teor: “Tomei conhecimento do teor do relatório apresentado, relativo ao 3º ano (Dezembro de 2019 a Novembro de 2020) e nada tendo sido cedido, por falta de rendimentos bastantes, nada há a determinar a não ser que os autos aguardem o decurso do próximo ano do período de cessão”. f) – a 15/12/2021 foi apresentado o 4º relatório anual do fiduciário, tendo-se ali concluído que não havia qualquer quantia a entregar pelo insolvente; relativamente a tal relatório foi proferido despacho a 18/1/20221 com o seguinte teor: “Vi o relatório apresentado pelo(a) senhor(a) Fiduciário(a) relativo ao 4º ano do período de cessão de rendimentos. Verificando-se que o(s) insolvente(s) se encontra(m) a cumprir as obrigações que para si decorrem do período de cessão de rendimentos relativo ao procedimento de exoneração do passivo restante, nada há a determinar.” g) – a 12/4/2022, o insolvente apresentou nos autos requerimento com o seguinte teor: “1 Com a alteração produzida pela Lei n.º 9/2022 de 11 de janeiro, publicada no Diário da República n.º 7/2022, Série I de 2022-01-11, páginas 3 – 31, é a seguinte a redacção actual da alínea b) do artigo 237.º do CIRE: “Artigo 237.º [...] b) O juiz declare que a exoneração será concedida uma vez observadas pelo devedor as condições previstas no artigo 239.º durante os três anos posteriores ao encerramento do processo de insolvência, neste capítulo designado por despacho inicial.” 2 Desta forma, actualmente, o prazo da exoneração encontra-se substancialmente reduzido, aplicando-se tal lei aos processos em curso – vide artigo 10.º (Regime transitório) da Lei n.º 9/2022 de 11 de janeiro.3 Atento o estado dos autos, o tempo já decorrido no período de cessão e exoneração do passivo restante, é de aplicar tal norma aos presentes.4 Do que antecede, requer a V.ª Ex.a se digne encerrar os presentes autos, proferindo a decisão final da exoneração a que se refere o artigo 244.º do CIRE, nos 10 dias subsequentes ao termo (ora peticionado) do período da cessão sobre a concessão da exoneração do passivo restante do devedor, ouvido este, o fiduciário e os credores da insolvência.5 Para tal desiderato, desde já e porque tal resulta dos autos, pronuncia-se no sentido que deve ser concedida a exoneração do passivo restante ao aqui devedor, de harmonia com o teor dos relatórios elaborados pelo Fiduciário, quanto foi pelo insolvente cumprido e se encontra plasmado nos autos, de harmonia com o disposto no artigo 244.º do CIRE, tudo com as legais consequências.”h) – na sequência de tal requerimento, foi proferido em 5/5/2022 o seguinte despacho: “Refª 31952601, de 12/4/2022: antes de mais, e tendo terminado o período de cessão de rendimentos a 11 de abril passado por força da entrada em vigor da Lei nº 9/2022, de 11/1, notifique o senhor Fiduciário a fim de apresentar o seu relatório referente à cessão de rendimentos desde o último período analisado até essa data.” i) – na sequência de requerimento do fiduciário nesse sentido, foi proferido despacho a 26/5/2022 a ordenar a notificação do insolvente para, no prazo de 10 dias, “juntar aos autos informação e comprovativos dos rendimentos auferidos durante o período anual de cessão de rendimentos findo, sob pena de cessação antecipada do procedimento de exoneração do passivo restante”. j) – o insolvente, em 8/6/2022, apresentou nos autos requerimento a dar conta que o tribunal ainda não se tinha pronunciado sobre o seu requerimento de 12/4/2022 e requerendo nele a final o encerramento dos autos “de imediato e sem necessidade de elaboração de qualquer outro relatório, proferindo a decisão final da exoneração a que se refere o artigo 244.º do CIRE (…)”. k) – na sequência da notificação do despacho referido em i), o insolvente, por requerimento de 9/6/2022, veio juntar aos autos os elementos solicitados, incluindo-se neles os seus recibos de vencimento relativos aos meses de Dezembro de 2021, sendo um relativo ao subsídio de Natal no montante líquido de 648,00 € e outro relativo à sua remuneração no montante líquido de 442,92 €, Janeiro de 2022, no montante líquido de 1.177,17 €, Fevereiro de 2022, no montante líquido de 11.768,99 €, e Março de 2022, no montante líquido de 970,28 €. l) – tais elementos foram notificados ao fiduciário, tendo nessa sequência vindo a ser apresentado por este, em 28/6/2022, o por si apelidado “Relatório Anual – Final da Exoneração – Lei 9/2022”, onde concluiu que o insolvente não cumpriu com o despacho de exoneração do passivo restante pois falta entregar à massa o montante de 9.447,36 €; nele requereu a final que o insolvente fosse notificado para proceder à entrega daquele montante ou para elaborar um plano de pagamento do mesmo sob pena de recusa da exoneração. Fez acompanhar tal relatório de um mapa por si elaborado relativo aos meses que decorreram entre Dezembro de 2017 e Março de 2022. Nele somou os quantitativos líquidos recebidos nos meses de Dezembro de 2021 a Março de 2022 supra referidos e dividiu o total por 4, assim alcançando o valor médio recebido por referência àqueles meses como sendo de 3.751,84 € por mês; depois, por referência a tal valor, considerou para cada mês o valor correspondente a 2 salários mínimos (de 1.330,00 € para Dezembro de 2021 e de 1.410,00 € para cada um dos meses de Janeiro, Fevereiro e Março de 2022) e concluiu que o insolvente teria que entregar a quantia de 2.421,84 € relativamente ao mês de Dezembro de 2021 (3.751,84 – 1.330,00) e que entregar a quantia de 2.341,84 € relativamente a cada um dos meses de Janeiro, Fevereiro e Março de 2022 (3.751,84 – 1.410,00), ascendendo a soma de todas elas àquele montante de 9.447,36 €. m) – o insolvente, por requerimento de 8/7/2022, renovou o seu requerimento anterior no sentido do encerramento dos autos de imediato e sem necessidade de elaboração de qualquer outro relatório e defendeu que “o último Relatório elaborado pelo Fiduciário é extemporâneo e não deve ser admitido, tanto mais que, há muito que o requerente reúne as condições para beneficiar da nova lei”. Subsidiariamente, defendeu ainda o seguinte (transcreve-se): “II – Do Relatório Anual – Do período temporal: 9. O Relatório Anual apresentado pelo Fiduciário está mal elaborado. 10. Com efeito, o Fiduciário contabiliza período temporal que extravasa o âmbito do relatório. 11. Pois que, de acordo com a decisão inicial sobre a exoneração do passivo restante, os períodos de rendimentos anuais correspondem a ciclos entre o mês de dezembro e novembro de cada ano – vide gratia decisão com a ref.ª 386770962, datada de 13/09/2017, onde foi fixada a seguinte decisão: “Assim sendo, tudo ponderado, fixo em 2 salários mínimos nacionais, o montante necessário ao sustento digno do Insolvente.”. 12. Ora, in casu, o Fiduciário reporta rendimentos até ao mês de Abril do corrente ano, o que não corresponde a qualquer ciclo. 13. Aliás, o 4.º ano de cessão de rendimento, findou em Dezembro de 2021, pelo que é apenas até essa data que o Fiduciário se pode pronunciar, de harmonia com a alteração produzida pela Lei n.º 9/2022 de 11 de janeiro, publicada no Diário da República n.º 7/2022, Série I de 2022-01-11, páginas 3 – 31, e de acordo com a actual redacção actual da alínea b) do artigo 237.º do CIRE. 14. De resto, se assim não se entendesse, sempre o Fiduciário deveria elaborar o relatório do 5.º ano após o fim do actual ciclo, que finda no mês de Novembro de 2022. III – Do Relatório Anual – Do cálculo efectuado pelo Fiduciário: 15. Mas, mesmo que assim não se considerasse, também o cálculo em apreço está errado. 16. Com efeito, resulta do relatório elaborado que o Fiduciário dividiu rendimentos globais e anuais, pelo período apenas 4 (quatro) meses, o que inquina os resultados apurados de forme decisiva. 17. Tais cálculos não podem ser aceites, seja a que titulo for. 18. De facto, reportar rendimentos (comissões) plurianuais a apenas 4 meses, vicia e deturpa a realidade económica e financeira do requerente, pelo que tal relatório, a ser aceite, terá forçosamente de ser reformulado. 19. Tanto mais que as comissões auferidas são rendimentos esporádicos e irregulares. 20. Em qualquer caso, hipótese que se não concebe, caso se entenda ser de elaborar relatório após o 4.º de cessão de rendimentos, Novembro de 2021, sempre os valores em causa devem ser calculados com a abrangência do período completo (12 meses), dividindo todos os rendimentos apurados pelos meses restantes. IV – Do Relatório Anual – Do (errado) cálculo efectuado pelo Fiduciário: 21. Com efeito, os rendimentos auferidos no mês de Fevereiro do corrente ano de 2022 pelo requerente, no valor global de € 11.768,99, correspondem a comissões plurianuais retidas e não pagas pela anterior entidade patronal, e, apenas amortizadas no respectivo mês. 22. Ora, tal amortização, por se tratar de rendimento correspondente a vários anos de trabalho, não pode ser creditado ao requerente como correspondente apenas ao referido mês, outrossim, como resulta do recibo de vencimento em causa, de COMISSÕES de VÁRIOS ANOS – vide gratia doc 1 ao diante junto. 23. Neste caso, tratando-se de rendimentos correspondentes a vários anos civis, deve o Senhor Fiduciário proceder à distribuição proporcional pelos respectivos anos dos rendimentos / comissões ora amortizadas pela entidade patronal, pois que, o referido valor global, corresponde a rendimentos dos anos de 2018, 2019 e 2021, respectivamente, o que, subsidiariamente, requer.” n) – Seguidamente, a 7/9/2022 foi proferido o seguinte despacho: “Refª 32784265, de 8/7/2022 e demais requerimentos antecedentes apresentados pelo insolvente: carece manifestamente de fundamento legal a pretensão do insolvente de termino do período de cessão a novembro de 2011. Na verdade, a Lei n.º 9/2022 de 11 de janeiro apenas entrou em vigor a 10 de abril de 2022 (cfr. art. 12º), para além de que contém uma norma transitória que determina que “O disposto no número anterior não prejudica a tramitação e o julgamento, na primeira instância ou em fase de recurso, de quaisquer questões pendentes relativas ao incidente de exoneração do passivo restante, tais como as referentes ao valor do rendimento indisponível, termos de afetação dos rendimentos do devedor ou pedidos de cessação antecipada do procedimento de exoneração”. Por isso, só a partir daquela data a lei passou a produzir efeitos, o que implica que só nessa data se avaliam os períodos de cessão de rendimentos relativo à exoneração do passivo restante: nos que a essa data tiverem já decorrido mais de 3 anos desde o inicio de cessão, deverá ser proferido despacho final; mas deverá ser apreciando todo o tempo decorrido até 10 de abril. Não existe fundamento legal para considerar que o período de cessão de rendimentos do insolvente terminou em novembro de 2021, pois a norma não estava ainda em vigor nessa altura. Improcede, por isso, esta a sua pretensão. Pela mesma razão, improcede a pretensão do insolvente de considerar que o Fiduciário reporta rendimentos até ao mês de Abril do corrente ano, o que não corresponde a qualquer ciclo. Pelo contrário, há um período de cessão que começou em novembro de 2021 e terminou em abril de 2022 por força da entrada em vigor da Lei n.º 9/2022 de 11 de janeiro. Também pela mesma razão, bem andou o senhor Fiduciário em dividir o rendimento do insolvente pelos meses a que corresponde o período, é certo que mais curto que o habitual, isto é, 4 meses. Não pode relevar o argumento apresentado de que estão em causa rendimentos (comissões) plurianuais ou comissões de vários anos, concretamente, dos anos de 2018, 2019 e 2021. É que o art. 239º, nº 3 do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas é muito claro ao determinar que “Integram o rendimento disponível todos os rendimentos que advenham a qualquer título ao devedor (…)” (sublinhado nosso). Ora o preceito “todos” não permite exclusões, com excepção das referidas nas alíneas a referida norma, que não relevam para o caso concreto. Deve, por isso, o insolvente entregar à fidúcia a quantia apurada pelo senhor Fiduciário. Improcedem, em face do exposto, todas as pretensões deduzidas pelo insolvente, por não terem acolhimento na lei. Termos em que indefiro a pretensão deduzida pelo insolvente. Notifique, sendo o insolvente a fim de proceder ao pagamento da quantia em divida de € 9.447,36 no prazo de 10 dias, sob pena de não concessão da exoneração do passivo restante.” Desta decisão veio o insolvente interpor recurso, terminando as suas alegações com as seguintes conclusões: “1) Inconformado com o valor a devolver, pois que o Recorrente, necessita de todo o rendimento disponível auferido, interpõe o presente recurso. 2) A análise do tribunal a quo incorre em vários vícios. 3) O Senhor AI / Fiduciário, apresentou relatório em que pugnou pela entrega de valores, que se reportam até Abril de 2022. 4) Com a alteração produzida pela Lei n.º 9/2022 de 11 de janeiro, publicada no Diário da República n.º 7/2022, Série I de 2022-01-11, páginas 3 – 31, é a seguinte a redacção actual da alínea b) do artigo 237.º do CIRE: “Artigo 237.º [...] b) O juiz declare que a exoneração será concedida uma vez observadas pelo devedor as condições previstas no artigo 239.º durante os três anos posteriores ao encerramento do processo de insolvência, neste capítulo designado por despacho inicial.”. 5) Actualmente o prazo da exoneração encontra-se substancialmente reduzido, aplicando-se tal lei aos processos em curso – vide artigo 10.º (Regime transitório) da Lei n.º 9/2022 de 11 de janeiro. 6) Atento o estado dos presentes autos, o tempo já decorrido no período de cessão e exoneração do passivo restante, sendo que o 4.º ano de cessão terminou em Novembro de 2021, é de aplicar tal norma à quaestio decidenda. 7) O Recorrente pronunciou-se no sentido que deve ser concedida a exoneração do passivo restante ao aqui devedor, de harmonia com o teor dos relatórios elaborados pelo Fiduciário, quanto foi pelo insolvente cumprido até esta data e se encontra plasmado nos autos, de harmonia com o disposto no artigo 244.º do CIRE, com as legais consequências. 8) O recorrente peticionou que o Senhor Juiz se dignasse a encerrar os autos, de imediato e sem necessidade de elaboração de qualquer outro relatório, proferindo a decisão final da exoneração a que se refere o artigo 244.º do CIRE, nos 10 dias subsequentes ao termo (ora peticionado) do período da cessão sobre a concessão da exoneração do passivo restante do devedor, ouvido que foi este (pois que se pronunciou favoravelmente no artigo anterior), o fiduciário e os credores da insolvência. 9) O 4.º ano de cessão de rendimento, findou em Dezembro de 2021, pelo que é apenas até essa data que o Fiduciário se pode pronunciar, de harmonia com a alteração produzida pela Lei n.º 9/2022 de 11 de janeiro, publicada no Diário da República n.º 7/2022, Série I de 2022-01-11, páginas 3 – 31, e de acordo com a actual redacção actual da alínea b) do artigo 237.º do CIRE. 10) Se assim não se entendesse, sempre o Fiduciário deveria elaborar o relatório do 5.º ano após o fim do actual ciclo, que finda no mês de Novembro de 2022, o que seria aberrante perante a nova lei. 11) Mesmo que assim não se considerasse, também o cálculo em apreço estaria errado. 12) Resulta do relatório elaborado, que o Fiduciário dividiu os rendimentos globais e anuais, pelo período apenas 4 (quatro) meses, o que inquina e vicia decisivamente os resultados apurados de forme decisiva. 13) Fazer reportar rendimentos (relativos a comissões de vários anos) plurianuais, a apenas (quatro) 4 meses, vícia e deturpa a realidade económica e financeira do requerente, ora recorrente, pelo que tal relatório teria forçosamente de ser reformulado. 14) Caso se entendesse ser de elaborar relatório após o 4.º de cessão de rendimentos, Novembro de 2021, sempre os valores em causa devem ser calculados com a abrangência do período completo (12 meses), dividindo todos os rendimentos apurados pelos anos e meses respectivos. 15) Perante a 1.ª instância, o recorrente também alegou que os rendimentos auferidos no mês de Fevereiro do corrente ano de 2022, no valor global de € 11.768,99, correspondem a comissões plurianuais retidas e não pagas pela anterior entidade patronal, e, apenas amortizadas no respectivo mês. 16) Tratando-se de rendimentos correspondentes a vários anos civis, deveria o Senhor Fiduciário proceder à distribuição proporcional pelos respectivos anos dos rendimentos / comissões ora amortizadas pela entidade patronal, pois que, o referido valor global, corresponde a rendimentos dos anos de 2018, 2019, 2020 e 2021 17) Se o 1.º ano de cessão se reporta a 13/11/2017 a 12/11/2018; o 2.º ano de cessão de 13/11/2018 a 12/11/2019; o 3.º ano de cessão de 13/11/2019 a 12/11/2020; o último ano de cessão (4.º ano) há-de reportar-se a 13/11/2020 a 12/11/2021, e o 5.º ano haveria de reportar-se a 13/11/2021 a 12/11/2022. 18) Neste conspecto, o recibo de vencimento em causa, relativo ao mês de Fevereiro de 2022, já está dentro do 5.º ano de cessão, não podendo, nem devendo, ser considerado. 19) Os fundamentos promanados na decisão estão em oposição com a decisão sobre a matéria de facto, pelo que o despacho padece de manifesta ambiguidade e obscuridade, o que torna a decisão ininteligível em face do relatório anual junto aos autos, pelo que deve considerar-se a decisão nula, o que deve ser reconhecido e declarado, nos termos e para os efeitos do previsto no artigo 615.º, n.º 1, alínea c) do CPC. 20) A interpretação que o Tribunal a quo faz das alíneas a), b) e c) do n.º 3 do artigo 239.º do CIRE, no sentido em que os valores auferidos por insolvente devem ser todos contabilizados para fins de cessão, mesmo que resultantes de comissões e mesmo que relativos a períodos anteriores ao início da instância falimentar, deve ser considerada inconstitucional; talqualmente a interpretação que tais rendimentos, resultantes de actividades plurianuais, não devem ser divididos por cada mês do ano, a titulo de cessão de rendimentos a considerar / entregar ao fiduciário, padece igualmente de inconstitucionalidade. 21) Sobre esta mesma questão, o Colendo tribunal da Relação já se pronunciou e decidiu muito recentemente, nestes termos: “Isto é, refere que os rendimentos percebidos em MAR2022 estão compreendidos no período de FEV2021 a ABR2022, o que sendo correcto, não significa, de todo, que seja, verdadeiro, ié., que sejam relativos ao último período da cessão, desde logo – sendo que cada um vai de 21FEV até igual data do ano seguinte - e, muito menos que o seja, por via da aplicação da lei nova.” “Com efeito pela aplicação imediata da lei nova o último período é o 3.º ano, no caso, compreendido entre 21FEV2020 e 21FEV2021.” Vive autos do recurso de Apelação que correu termos no âmbito do processo n.º 6766/16.9T8VNG.P1, pela 3ª Secção deste Colendo Tribunal da Relação, documento ao diante junto, para mais fácil reporte – doc 1. 22) Na fundamentação da douta decisão ora invocada, mais se refere: “Se dúvidas poderiam existir - a apelante o afirma - sobre a facto de o recibo do vencimento de MAR2022 poder estar, ou não, abrangido pelo período de cessão, que já entrara, então, no 5.º ano, ficam agora dissipadas. Não está, seguramente abrangido pelo período que vai até ao fim do 3.º ano – afinal o definido pela lei nova.”. “Ora cremos bem, em face do regime transitório, acabado de enunciar, que no caso concreto, acabado de terminar o 4.º ano do período de cessão e, de se iniciar o 5.º (cerca de 50 dias antes), há que aplicar a regra, contida no n.º 3 - considera-se findo o referido período com a entrada em vigor da presente lei - e, não a excepção contida no n.º 4 – cuja aplicação pressupõe que estivesse pendente de decisão, à data de 11.4, qualquer questão relativa ao incidente de exoneração do passivo restante. Com efeito, à data da entrada em vigor da nova lei, 11.4, não estava pendente qualquer questão relativa a tal matéria – nem a qualquer outra, de resto. Questão pendente não pode deixar de ser entendida, como matéria, ponto, assunto, tema, que haja sido suscitado e, que falta discutir e/ou decidir. Isto é, questão, que tivesse sido suscitada anteriormente e que à data de 11.4 não estivesse, ainda, decidida, ou em 1.ª instância ou em sede de recurso. À data de 11.4 estava a decorrer já o 5.º ano do período de cessão, iniciado a 21.2., sem qualquer intercorrência, de todo. Muito menos, que possa ser qualificada como questão pendente. A questão decidida através do despacho recorrido, não estava pendente seguramente. Nem latente, sequer.”. 23) Este é, precisamente, thema decidendum nos presentes autos. 24) O despacho em crise viola, entre outros, o disposto no artigo 239.º do CIRE, por falta de fundamentação, bem como viola, quer directa, quer indirectamente, o disposto na Lei 9/2022, de 11 de Janeiro, artigo 2.º, alínea b); e os artigos 47.º, 58.º, 64.º, 67.º e 73.º da CRP, pelo que, a final, deve ser substituído por Douto Acórdão que decida nos termos propugnados pelo Recorrente, concedendo-lhe a exoneração do passivo restante de acordo com os valores peticionados no RI. 25) A final, o despacho deve ser substituído por Douto Acórdão que decida nos termos propugnados pelo Recorrente, bem como nos termos da decisão, aliás douta, proferida no âmbito do Processo n.º 6766/16.9T8VNG.P1, que correu na 3ª Secção deste Colendo Tribunal da Relação – e que ao diante se junta, apenas por mais fácil reporte – concedendo ao recorrente a exoneração do passivo restante, como é de elementar, justiça.” Foram apresentadas contra-alegações de resposta pelo Ministério Público, pugnando pela manutenção da decisão recorrida. Antes do despacho de admissão do recurso, pelo Sr. Juiz foi proferido despacho em que conclui pela não verificação da nulidade imputada pelo recorrente à decisão recorrida. Foram dispensados os vistos ao abrigo do art. 657º nº4 do CPC. Considerando que o objecto do recurso, sem prejuízo de eventuais questões de conhecimento oficioso, é delimitado pelas suas conclusões (arts. 635º nº4 e 639º nº1 do CPC), tendo em conta a lógica e necessária precedência das nulidades relativamente às questões de direito, são as seguintes as questões a tratar: a) – apurar da nulidade invocada pelo recorrente; b) – apurar se no caso dos autos, por via da entrada em vigor das alterações previstas na Lei 9/2022, de 11 de Janeiro, há que contabilizar para efeitos de cessão os rendimentos auferidos nos meses de Dezembro de 2021 a Março de 2022 e repercutir só em relação a esses meses os montantes neles recebidos. ** II – FundamentaçãoOs dados a ter em conta são os acima alinhados no relatório. Vamos ao tratamento da questão enunciada sob a alínea a). Defende o recorrente que a decisão recorrida enferma da nulidade prevista no art. 615º nº1 c) do CPC. Mas não lhe pode ser reconhecida razão. Existe aquela nulidade, como se prevê naquele art. 615 nº1 d) CPC, quando “os fundamentos estejam em oposição com a decisão ou ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível”. O vício previsto na primeira parte de tal alínea verifica-se sempre que a fundamentação de facto e de direito da decisão proferida apontam num certo sentido e, depois, surge um dispositivo que de todo não se coaduna com as premissas, sendo assim um vício lógico na construção da decisão. Já o vício previsto na segunda parte da aludida previsão legal, ocorre sempre que alguma ambiguidade ou obscuridade torne a decisão ininteligível. Compulsando a decisão recorrida, que versa exclusivamente sobre matéria de direito, verifica-se que, através de raciocínios argumentativos ali explanados, foram aplicadas à situação dos autos as normas jurídicas e sua interpretação que se tiveram por pertinentes e verifica-se ainda que o seu dispositivo final constitui conclusão consequente com aquela aplicação do direito feita em sede de fundamentação jurídica e do que se concluiu nesta quanto às questões analisadas (considerou-se que, não obstante as alterações introduzidas no CIRE pela Lei 9/2022, os meses de Dezembro de 2021 a Março de 2022 estão sujeitos a cessão de rendimentos e, nessa sequência, indeferiram-se as pretensões deduzidas pelo insolvente através dos requerimentos ali identificados e decidiu-se que havia rendimento a ceder no montante ali indicado, tudo em conformidade com raciocínios nesse mesmo sentido expendidos antes). Como tal, não se verifica o vício previsto na primeira parte da alínea em causa. Por outro lado, não se detecta na decisão em causa – nem vem assinalada pelo recorrente – qualquer ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível, isto é, que torne incompreensível o raciocínio e/ou os argumentos que foram aduzidos para chegar à mesma, pois os raciocínios utilizados pelo tribunal e que dali constam estão perfeitamente explicados e fundamentados e é utilizada linguagem clara e bem perceptível. Aliás, independentemente da adesão ou não a tal decisão e ao caminho jurídico pelo qual enveredou o tribunal recorrido para a ela chegar, é até bem patente da argumentação utilizada pelo recorrente na sua peça de recurso, que este, embora dela discorde frontalmente em termos de direito, percebe bem tal decisão e o seu alcance. Assim, também não se verifica o vício previsto na segunda parte da alínea em causa. Como tal, é manifesta a improcedência da arguição da referida nulidade. Passemos agora para a questão enunciada sob a alínea b). A Lei 9/2022, de 11 de Janeiro, conforme disposto no seu art. 12º, entrou em vigor no dia 12 de Abril de 2022 (decorridos 90 dias após a sua publicação). Tal diploma introduziu diversas alterações ao CIRE, designadamente encurtando o período de cessão de rendimentos em sede de exoneração do passivo restante de 5 para 3 anos, conforme alterações à alínea b) do art. 237º e ao nº2 do art. 239º. Consentaneamente com tal redução do período de cessão para 3 anos, aquela Lei prevê expressamente sob o nº3 do seu art. 10º (com a epígrafe “Regime transitório”) que “Nos processos de insolvência de pessoas singulares pendentes à data de entrada em vigor da presente lei, nos quais haja sido liminarmente deferido o pedido de exoneração do passivo restante e cujo período de cessão de rendimento disponível em curso já tenha completado três anos à data da entrada em vigor da presente lei, considera-se findo o referido período com a entrada em vigor da presente lei”. Isto é, para os processos em que, aquando da sua entrada em vigor, já se tenham completado três anos de cessão – portanto, para os que decorreram três anos ou mais mas ainda não a totalidade dos 5 anos anteriormente previstos –, tal período de cessão considera-se findo com a entrada em vigor daquela lei. Se, como acontece no caso dos autos, aquando de tal entrada em vigor já tinham decorrido 4 anos e 4 meses – os 4 anos que vão de Novembro de 2017 a Novembro de 2021 e os meses de Dezembro de 2021 e Janeiro, Fevereiro e Março de 2022 –, o encurtamento do período de cessão só tem efeitos dali para a frente, do que decorre que o período de tempo decorrido até àquela entrada em vigor está sujeito a cessão, desde logo porque incluído no período de cessão até ali ainda em curso. Deste modo, aplicando-se a nova lei, como ela própria estipula, por referência à sua entrada em vigor, é assim óbvio de concluir, em contrário do que pretende o recorrente, que a mesma não se aplica por referência a Novembro de 2021 – mês em que se perfez o último ano de cessão (no caso o 4º) decorrido por inteiro – mas apenas ao período subsequente a Abril de 2022 (mês da sua entrada em vigor), do que decorre que os meses de Dezembro de 2021 e Janeiro, Fevereiro e Março de 2022 estão ainda sujeitos a cessão e, portanto, com a consequente contabilização dos rendimentos nele auferidos para se apurar da existência de rendimento a ceder. A assim não se considerar estar-se-ia a violar a previsão do nº3 do art. 10º da referida lei e a atribuir-lhe efeito retroactivo, ficcionando o termo do período de cessão por referência a momento temporal em que a mesma ainda não estava vigente. Passemos agora – e assim entramos no tratamento da segunda parte da questão em análise – a apurar dos termos da contabilização dos rendimentos recebidos naqueles meses de Dezembro de 2021 e Janeiro, Fevereiro e Março de 2022, pois foi só por referência a eles (já que relativamente aos rendimentos dos 4 anos anteriores, entre Novembro de 2017 e Novembro de 2021, se concluiu pela inexistência de rendimento a ceder relativamente a qualquer dos meses integrados em tal período, como decorre das alíneas b), c), d), e) e f) do elenco factual referenciado no relatório desta peça, designadamente dos despachos ali referidos) que o Fiduciário concluiu, nos termos supra referidos sob a alínea l) do relatório, que o insolvente teria que entregar a quantia de 2.421,84 € relativamente ao mês de Dezembro de 2021 (3.751,84 – 1.330,00) e que entregar a quantia de 2.341,84 € relativamente a cada um dos meses de Janeiro, Fevereiro e Março de 2022 (3.751,84 – 1.410,00), ascendendo a soma de todas estas quantias ao montante de 9.447,36 €, montante este que veio a ser o considerado pela decisão recorrida como sendo aquele que está em dívida pelo insolvente e cujo pagamento se ordenou no prazo de 10 dias sob pena de não concessão da exoneração do passivo restante. Em vista da sua análise, vamos seguir de perto o acórdão desta mesma Relação de 8/11/2021, proferido no processo nº2718/18.2T8OAZ.P2, no qual foi relator o ora também relator (disponível em www.dgsi.pt). Ao dispor-se no art. 239º nº2 do CIRE, na sequência da admissão liminar da exoneração do passivo restante, que o despacho inicial determina que durante o período – agora de 3 anos (por via da lei acima referida) e antes de 5 anos – subsequente ao encerramento do processo de insolvência, designado por “período da cessão”, “o rendimento disponível que o devedor venha a auferir se considera cedido” ao fiduciário, consagra-se ali uma cessão de bens futuros ao fiduciário que tem a sua fonte na lei, embora concretizada por decisão judicial [neste sentido, Luís Carvalho Fernandes e João Labareda, “Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado”, Quid Iuris, 2ª edição, pág. 789, Assunção Cristas, “Exoneração do Devedor pelo Passivo Restante”, Themis, edição especial, 2005, págs. 176 e 177, e Maria do Rosário Epifânio, “Manual de Direito da insolvência”, 6ª edição, pág. 327]. Aquela disposição legal tem sido interpretada no sentido de dali resultar que a entrega dos rendimentos auferidos pelo beneficiário do passivo restante deve ser feita directamente ao fiduciário, entregando este depois os rendimentos excluídos da cessão ao devedor [como se refere no Acórdão desta mesma Relação de 30/4/2020, proferido no proc. nº2441/16.2T8AVR, em que foi relator o Desembargador Carlos Gil e em que o ora relator foi adjunto, disponível em www.dgsi.pt, referindo-se ali naquele mesmo sentido José Gonçalves Ferreira, “A Exoneração do Passivo Restante”, Coimbra Editora, 2013, pág. 88, Luís Carvalho Fernandes e João Labareda, obra supra citada, 3ª edição, págs. 860 e 861, anotação 7, e Alexandre Soveral Martins, “Um Curso de Insolvência”, Almedina, 2015, pág. 544]. Esta leitura (como também se refere naquele Acórdão desta Relação de 30/4/2020) resulta reforçada pela alínea c) do nº4 do art. 239º do CIRE, da qual decorre de forma incisiva que o recebimento de rendimentos pelo devedor é uma situação excepcional [como referem Luís Carvalho Fernandes e João Labareda, obra supra citada, 2ª edição, pág. 790, “se tal não correspondesse a uma situação excepcional, não faria sentido incluir-se nela a locução “quando por si recebida”, porquanto isso sempre se verificaria”, relevando também para tal interpretação o facto de naquele caso a lei impor ao devedor a obrigação de entregar “imediatamente” os rendimentos recebidos ao fiduciário] e aponta no mesmo sentido a previsão do art. 241º nº1 do CIRE quando ali se prevê a necessidade do fiduciário notificar a cessão de rendimentos às entidades de quem o devedor tenha direito a recebê-los, notificação essa que visa possibilitar a entrega directa dos rendimentos do devedor por parte de tais entidades ao fiduciário. Assim, todos os rendimentos que advierem ao insolvente consideram-se cedidos, no momento da sua aquisição, ao fiduciário, com excepção – além de outros sem relevância para o caso vertente – da parcela dos que são necessários à satisfação da exigência prevista na alínea b), subalínea i), do nº3 do art. 239º, isto é, o sustento minimamente digno do devedor e do seu agregado familiar. No caso vertente, tendo o rendimento necessário ao sustento minimamente digno do devedor sido fixado no montante de 2 vezes o salário mínimo nacional [alínea a) do circunstancialismo elencado no relatório desta peça], o apuramento do que em cada momento integra o rendimento disponível não pode deixar de ter por referência o período de um mês, já que a unidade temporal pela qual se afere o salário mínimo nacional é o mês (veja-se o art. 273º do Código do Trabalho). Como tal, o objecto da cessão ao fiduciário é aquilo que em cada mês exceder o que lhe foi arbitrado a título daquele sustento minimamente digno, o que – como se refere no Acórdão do STJ de 9/3/2021 (proferido no proc. nº11855/16.7T8SNT.L1.S1 e em que foi relator o Sr. Conselheiro José Rainho, disponível em www.dgsi.pt) – “afasta por completo a possibilidade” de o insolvente proceder “de outro modo que não seja afectar ao fiduciário em cada mês o rendimento desse mês que exceder o montante arbitrado a título de sustento” (os sublinhados são nossos; no texto daquele acórdão as mesmas expressões constam em itálico). Como se diz no acórdão desta mesma Relação de 30/4/2020, já referido supra, “[a] circunstância de ser anual a informação prestada pelo fiduciário a cada credor e ao juiz nos termos do disposto no nº 2, do artigo 240º do CIRE e de a afetação dos rendimentos nos termos do disposto no nº 1, do artigo 241º do CIRE ser feita no final de cada ano não significa que o apuramento do rendimento disponível apenas se processe no final de cada ano apurando a média auferida nesse período temporal. Se assim fosse, sendo cumprida a lei no que respeita a entrega dos rendimentos diretamente ao fiduciário, só no final de cada ano o devedor receberia o rendimento disponível, o que, convenhamos, o colocaria em sérias dificuldades financeiras. De facto, aquilo que se processa no final de cada ano é a afetação dos montantes recebidos até então e não a liquidação do rendimento disponível nesse momento, liquidação que pelo contrário se foi processando, mensalmente, pelo menos, quando como sucede no caso, o devedor é trabalhador por conta de outrem, sendo os seus rendimentos percebidos mensalmente. Assim, a regra da anualidade que decorre do nº 2, do artigo 240º e do nº 1, do artigo 241º, ambos os artigos do CIRE, dirige-se ao fiduciário, tendo em vista a prestação de informações aos credores e ao juiz e a afetação dos rendimentos que ao longo do ano foram sendo por ele recebidos.” Deste modo, no seguimento de toda a disciplina legal que se veio de referir e interpretar, devendo a cessão do rendimento disponível ser calculada por referência a cada mês e ser actuada em cada mês que o rendimento auferido exceder o montante arbitrado a título de sustento minimamente digno do devedor, é manifesta a improcedência da pretensão do recorrente no sentido de o cálculo do rendimento para efeito de cessão dever ser feito por referência a cada ano [conforme defende sob as conclusões 14 a 17 do recurso]. Por outro lado, e como decorrência do cálculo e actuação da cessão naqueles termos, sempre que há entradas de rendimentos no património do devedor – sejam elas periódicas, esporádicas ou ocasionais –, o rendimento disponível a ceder ao fiduciário deve ser calculado em relação a cada mês de recebimento dos mesmos, sendo que nos meses em que não advierem rendimentos aos devedores ou advierem rendimentos inferiores ao que foi considerado necessário para o sustento minimamente digno dos mesmos não há lugar a cessão de rendimentos. Porém, nestes casos referidos por último, e como se diz no Acórdão da Relação de Coimbra de 28/3/2017[1], “não nasce, a favor do devedor, o direito de compensar ou de deduzir, nos rendimentos futuros, a ausência de rendimentos ou rendimentos inferiores ao que foi estabelecido como o razoavelmente necessário para o sustento dele e da família. Com efeito, só se compreenderia tal direito de compensação ou de dedução se se configurasse a subalínea i) da alínea b), do n.º 3 do artigo 239.º do CIRE como uma “garantia de rendimento” a favor do devedor ao longo do período da cessão. Sucede que não é este o sentido da garantia de tal norma. Ela não garante rendimentos ao devedor. O que ela garante é que uma parcela dos seus rendimentos, havendo-os, não será atingida pela cedência ao fiduciário. Garante-se uma “exclusão” se houver rendimentos.” (sublinhados nossos). Nesta mesma linha, diz-se no Acórdão do STJ de 9/3/2021 que supra se referiu: “Se o devedor gerou em certo mês um rendimento que é inferior ao montante atribuído para seu sustento, é sobre ele (e não sobre o fiduciário ou os credores) que recai essa desvantagem circunstancial. Tal desvantagem não é adequadamente causada pelo funcionamento próprio da exoneração do passivo, mas sim por um fator externo: a insuficiência ocasional do rendimento auferido pelo devedor. (…) O que o devedor não goza é do direito a que no procedimento de exoneração do passivo restante lhe seja obrigatoriamente assegurado todos os meses, ainda que a operacionalizar de modo indireto (no caso, com recurso a operações contabilísticas de “compensação” ou “ajuste de contas”), o montante estipulado a título de sustento. Vistas as coisas assim, como nos parece que devem ser vistas, logo se alcança que não se pode argumentar validamente com a circunstância de haver meses em que se aufere menos do que aquilo que foi arbitrado a título de sustento, para a partir daí construir a tese de que terá de haver uma “compensação” pela diferença, sendo esta a fazer através dos meses (…) em que se aufere mais. As coisas devem ser vistas precisamente ao contrário: se o devedor gerou rendimentos que excedem o que lhe foi arbitrado para seu sustento, tem de entregar a diferença ao fiduciário; não goza da faculdade de reter ou usar essa diferença para “compensação” com a sua insuficiência de rendimentos de pretérito ou de futuro. Se não gerou rendimentos excedentes, nada tem de entregar ao fiduciário, mas não lhe assiste o direito a que lhe seja assegurado o recebimento do que lhe foi arbitrado a título de sustento. Repete-se que o fim precípuo do instituto da exoneração do passivo não é garantir ao devedor um certo rendimento, pelo que não faz sentido falar-se aqui numa espécie de direito ao reequilíbrio económico de um equilíbrio que foi (ou poderá vir a ser) rompido. Daqui que os invocados “mecanismo de compensação”, “ajuste de contas” e recurso ao “rendimento médio mensal” não têm, quanto a nós, a menor lógica ou cabimento jurídico dentro daquilo que constitui a finalidade e o funcionamento próprios da exoneração do passivo restante.” Diz-se ainda mais à frente em tal aresto – e que vem no seguimento do já por nós referido anteriormente quanto à cessão de bens futuros ao fiduciário e de tal cessão resultar que a entrega dos rendimentos auferidos pelo beneficiário do passivo restante deve ser feita directamente ao fiduciário, entregando este depois os rendimentos excluídos da cessão ao devedor, e também ainda no seguimento de se prever no art. 239º nº4 c) que o devedor deve entregar imediatamente ao fiduciário, quando por si recebida (excepcionalmente, como já se deu conta acima), a parte dos seus rendimentos objecto de cessão – que “[o]s rendimentos que o devedor adquire transferem-se no momento da sua aquisição para o fiduciário, de sorte que o devedor não tem legitimidade para deles dispor, nomeadamente para proceder às visadas “compensações” ou “ajuste de contas”” e que tais operações contabilísticas de compensação “produzem, pura e simplesmente, a neutralização do direito que assiste ao fiduciário de receber em cada mês o rendimento que vai para além do montante excluído a título de sustento nesse mês” (sublinhados nossos). Em consonância com o que antecede, não pode proceder a pretensão do recorrente de repercutir ou distribuir o rendimento obtido no mês de Fevereiro de 2022, no montante líquido de 11.768,99 € (alínea k) do elenco de factualidade do relatório), pelos anteriores anos de 2018 a 2021 (conclusões 15 e 16 do recurso), já que, ainda que esporádico ou ocasional e eventualmente integrado por “comissões plurianuais retidas” (como referido sob a conclusão 15), foi recebido naquele mês e, como tal, a cessão que ainda o abrange deve ser calculada e actuada por referência apenas a tal mês. Por outro lado, face a tudo quanto anteriormente se analisou, não se vê em que medida a não consideração da repercussão ou distribuição por vários anos daquele valor, onde se integra rendimento resultante de “actividades plurianuais” mas recebido só num mês, integre uma interpretação das alíneas do nº3 do art. 239º do CIRE que “deve ser considerada insconstitucional”, como o defende o recorrente sob a conclusão 20 do recurso sem nada precisar ou concretizar quanto a tal. Para finalizar, não podemos de deixar de referir o seguinte: os termos em que no mapa elaborado pelo Sr. Fiduciário (referido sob a alínea l) do elenco factual constante do relatório) é feita a indexação dos valores recebidos nos meses de Dezembro de 2021 a Março de 2022 (somando a totalidade dos mesmos, dividindo o valor global por aquele número de meses e fazendo as contas do montante a ceder com base no valor médio encontrado) até beneficia sobremaneira o insolvente, pois se se considerasse o recebido em cada mês – que, como se viu acima, era como deveria ser – e tendo em conta que no mês de Fevereiro de 2022 foi auferido o montante líquido de 11.768,99 €, então o montante a ceder seria o de 10.358,99 € (11.768,99 – 1.410,00) em vez do de 9.447,36 € referido pelo Sr. Fiduciário e perfilhado pelo despacho recorrido. Porém, porque a decisão recorrida não foi objecto de recurso no sentido da consideração de um valor mais elevado do montante de rendimento a ceder, há que manter o montante referido na decisão recorrida (art. 635º nº5 do CPC, como manifestação do princípio da proibição da reformatio in peiús[2]). Resta notar que, face ao praticado nos autos, conclui-se que, ao contrário do que a lei prevê e supra se referiu, o insolvente só foi chamado a prestar contas da cessão anualmente (e não mensalmente, como deveria) e foi ele quem recebeu, em cada um dos meses, todos os seus rendimentos e fez com eles as contas que entendeu. Portanto, ao insolvente tem sido dada ou possibilitada uma margem de manobra quanto à administração dos rendimentos que tem vindo a receber durante o período de cessão que a lei manifestamente não permite. Porém, quanto a tal – e porque extravasa do recurso em análise – só ao fiduciário e ao tribunal de primeira instância competiria algo fazer para a tal atalhar. Em conformidade com tudo quanto se veio de referir, é de julgar totalmente improcedente o recurso. As custas do recurso ficam a cargo do recorrente, porque nele decaiu (art. 527º, nºs 1 e 2 do CPC), sem prejuízo do apoio judiciário de que possa beneficiar por força do art. 248º do CIRE. * Sumário (da exclusiva responsabilidade do relator – art. 663 º nº7 do CPC):……………………… ……………………… ……………………… ** III – DecisãoPor tudo o exposto, acorda-se em julgar improcedente o recurso, mantendo-se a decisão recorrida. Custas pelo recorrente, sem prejuízo do apoio judiciário de que possa beneficiar por força do art. 248º do CIRE. *** Porto, 26/6/2023Mendes Coelho Joaquim Moura Ana Paula Amorim ______________ [1] Proferido no processo nº 178/10.5TBNZR.C1 e relatado pelo Sr. Juiz Desembargador Emídio Santos, disponível em www.dgsi.pt [2] Neste sentido, António Santos Abrantes Geraldes, “Recursos no Novo Código de Processo Civil”, Almedina, 5ª edição, 2018, pág. 117. |