Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
707/10.4TBPVZ-A.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: FREITAS VIEIRA
Descritores: ARRENDAMENTO
GARAGEM
NATUREZA E LEI APLICÁVEL
CONTRATO DE DURAÇÃO LIMITADA
ESTIPULAÇÃO DE PRAZO INFERIOR AO MÍNIMO LEGAL
TÍTULO EXECUTIVO
Nº do Documento: RP20101202707/10.4TBPVZ-A.P1
Data do Acordão: 12/02/2010
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO.
Decisão: REVOGADA.
Indicações Eventuais: 3ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I – Constando do contrato de arrendamento celebrado que a fracção autónoma destinada a garagem, dada de arrendamento, se destinava a garagem, arrumos, armazém e depósito de equipamentos da fracção autónoma do mesmo prédio onde se encontra instalado o estabelecimento comercial “G..........”, deve considerar-se tal contrato como um contrato comercial em si mesmo considerado e, como tal, sujeito, antes da entrada em vigor da Lei nº6/2006, de 27.02, às normas próprias do regime do arrendamento urbano e, especificamente, às normas constantes dos arts. 110º a 120º do RAU e, posteriormente à entrada em vigor da referida Lei e do NRAU por ela aprovado, às normas próprias do NRAU, com as limitações e sem prejuízo do disposto nas normas transitórias dos arts. 26º a 58º da referida Lei nº 6/2006 – Cfr. seus arts. 50º e 59º.
II – Tendo as partes acordado no sentido da sujeição do contrato ao regime de duração limitada, inserindo tal acordo no texto escrito do contrato por elas assinado, o facto de terem estipulado o prazo de vigência inferior ao mínimo legalmente estabelecido não poderá ter como consequência o ter-se celebrado tal contrato sem prazo, mas sim ter-se celebrado pelo prazo de cinco anos, tanto mais que o prazo previsto no art. 98º, nº2 do RAU se deve ter também por prazo supletivo.
III – Muito embora o contrato de arrendamento tenha sido celebrado na vigência do RAU, entretanto revogado, deve ter-se como aplicável o disposto no art. 15º, nº1, al. c) da Lei nº 6/2006, para considerar como título executivo válido, em execução instaurada no domínio da vigência de tal Lei, o documento do qual consta o referido contrato, acompanhado da comunicação prevista no art. 1097º do CC.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: APELAÇÃO

PROC. N.º 707/10.4TBPVZ-A

Tribunal Judicial de Póvoa de Varzim
1º Juízo Competência Cível

Decisão recorrida:
A sentença proferida nos autos de oposição à execução que, face à excepção consagrada no artigo 26º, nº4, alínea c), do NRAU, considerou que ao contrato de arrendamento em questão não se aplicam as regras do NRAU, não constituindo por isso título executivo, o contrato de arrendamento acompanhado do comprovativo da comunicação prevista no artigo 1097º, do C.Civil.


ACORDAM NA SECÇÃO CÍVEL DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DO PORTO

Por apenso aos autos de execução para entrega de coisa certa que B………. e C………., com sinais nos autos, moveram contra D………., Lda., igualmente com sinais nos autos, deduziu o executado a presente oposição á execução, alegando a inexistência de título executivo. Alega para tal, em suma e em síntese, estar-se perante um contrato de arrendamento celebrado em 1 de Março de 2004, pelo que ao mesmo não se aplicam as regras do NRAU, o qual apenas entrou em vigor em 28 de Junho de 2006, estando arredada a aplicação das normas constantes dos artigos 1097º, 1110, nº1 do C. Civil, em que se sustentam os exequentes.
Nesta media, afirmam que para os contratos anteriores á entrada em vigor do NRAU, rege o denominado regime vinculístico, o qual não admite a livre denuncia por parte do senhorio.

Contestaram os exequentes, afirmando em suma e em síntese, que o contrato de arrendamento em questão é um contrato de arrendamento para armazenagem com duração limitada, ao contrário do defendido pela oponente que afirma tratar-se de um contrato de arrendamento comercial sem duração limitada.
E que a esse tipo de contrato de arrendamento se aplicam as regras dos artigos 1108º a 1113º, do C. Civil, na redacção posterior à Lei 6/2006, de 27 de Fevereiro, bem como as regras gerais da locação civil em tudo quanto não seja especialmente regulado, uma vez que as regras do NRAU se aplicam aos contratos de celebrados arrendamento anteriormente á sua entrada em vigor e que subsistam à sua data, ressalvadas as disposições de direito transitório – artigo 12º, n1, 2ª parte, do C.Civil e 59º, nº2, do NRAU.
Mais invocam que as normas do artigo 26º, do NRAU não versam sobre contratos de arrendamento para armazenagem, pois tais contratos nunca estiveram submetidos á disciplina do RAU, pelo que não faria sentido a previsão em relação a eles de disposições transitórias com vista á sua adequação ao NRAU, sendo-lhes aplicável a disciplina dos artigos 1022º a 1063º, do C. Civil.
Defendem ainda que mesmo que se considerasse tratar-se de um contrato para comércio, o artigo 117º, do RAU, excepcionava os contratos de arrendamento para comércio e indústria da aplicação de regras de tipo vinculístico, facultando ás partes a possibilidade de “convencionar um prazo para a duração efectiva dos arrendamentos urbanos para comércio ou indústria, desde que a respectiva cláusula seja inequivocamente prevista no texto do contrato, assinado pelas partes.”, motivo pelo qual as partes podiam, como fizeram, convencionar livremente um prazo de duração para o contrato, pelo que seria válida e eficaz a cláusula de que o contrato teria a duração de um ano, prorrogável por períodos iguais e sucessivos enquanto não fosse denunciado por qualquer das partes.
Tratando-se de um contrato de duração limitada seria manifestamente inaplicável a disciplina de direito transitório prevista no artigo 26º, nº4, alínea c), do NRAU, para os contratos sem duração limitada, aplicando-se a título supletivo as disciplina prevista para contratos habitacionais, do artigo 1097º, do C. Civil, pelo que o contrato de arrendamento acompanhado do comprovativo da comunicação prevista no referido artigo, é título executivo para a acção para entrega de coisa certa, nos termos do artigo 15º, nº1, alínea c), do NRAU.
+
Prosseguindo os autos os seus tramites normais, no final veio a ser proferida sentença que julgou a oposição totalmente procedente, por considerar que, face à excepção consagrada no artigo 26º, nº4, alínea c), do NRAU, considerando-se que ao contrato de arrendamento em questão se não aplicavam as regras do NRAU, e por isso o contrato de arrendamento acompanhado do comprovativo da comunicação prevista no artigo 1097º, do C. Civil, não constituía título executivo
+
Desta decisão recorreram os exequentes B………. e mulher, C………., alegando e formulando as seguintes CONCLUSÕES:
…………………………
…………………………
…………………………
+
A recorrida D………., LDª contra-alegou por sua vez formulando as seguintes CONCLUSÕES:
…………………………
…………………………
…………………………
+
Remetidos os autos a este Tribunal da Relação, o objecto do recurso deve ter-se como delimitado pelas conclusões das alegações do recorrente, sem prejuízo da apreciação de outras questões que, sendo de conhecimento oficioso do tribunal, se revelem pertinentes para a decisão da causa.

As questões que assim surgem como colocadas à nossa apreciação reconduzem-se às seguintes:

I - Se atenta a natureza e finalidade do contrato em apreço, deve o mesmo ser qualificado como contrato de armazenagem, como pretendido e declarado pelas partes no texto contratual, e não como contrato de arrendamento para comércio, como considerou o tribunal recorrido.

II - Se a considerar-se que se trata de contrato de arrendamento comercial, deve atender-se à vontade real e declarada das partes, que expressamente previram um prazo de duração efectiva do vínculo, considerando-se o prazo supletivo de 5 anos previsto no artigo 98.º, n.º 2, do RAU.

III - Se assistindo por isso ao recorrente a faculdade de denunciar o contrato nos termos em que efectivamente o fez, deve considerar-se constituir o documento comprovativo da denúncia com o contrato de arrendamento título executivo ao abrigo do disposto no art. 15.º, n.º 1, al. c) do NRAU.

B – Fundamentação:
a) De facto:
Resultaram provados por acordo das partes os seguintes factos:
1 – Entre E………. e D………., Lda., em 1 de Março de 2004, foi celebrado um contrato a que denominaram de “contrato de arrendamento”, através do qual o primeiro contraente declarou dar de arrendamento ao segundo, a fracção autónoma destinada a garagem, destinada a garagem, denominada pela letra “Q”, de um prédio urbano sito na Rua ………., cidade da Póvoa de Varzim, a qual se destina a garagem, arrumos, armazém e depósito de equipamentos da fracção autónoma do mesmo prédio onde se encontra instalado o estabelecimento comercial “G……….”. Mais declararam que o prazo de duração é de um ano, a começar no dia 1 de Março de 2004 e terminar em 28 de Fevereiro de 2005, prorrogável por períodos iguais e sucessivos enquanto não for denunciado por qualquer das partes, nos termos da lei.
2 – Por escritura pública de compra e venda, celebrada em 28 de Dezembro de 2007, E………. declarou vender a B………., a fracção autónoma identificada pela letra “Q”, objecto do contrato de arrendamento referido em 1.
3 – Por carta datada de 4 de Fevereiro de 2008, F………., na qualidade de procuradora de B………. e C………., dirigida à ora Oponente, comunicou que os mesmos tinham adquirido a fracção “Q”, objecto do contrato de arrendamento referido em 1.
4 – Por carta datada de 26 de Fevereiro de 2009, F………., dirigida à ora Oponente, na qualidade de procuradora de B………. e C……….., comunicou a oposição à renovação do contrato de arrendamento referido em 1, com produção de efeitos em 28 de Fevereiro de 2010.

Para além destes factos deve considerar-se como assente, porque admitidos por acordo - art.º 659º, nº 3, do CPC - o teor das cláusulas terceira e quarta do contrato de arrendamento em questão, nos termos seguintes:
CLÁUSULA TERCEIRA
A fracção arrendada destina-se a garagem, arrumos, armazém e depósito de equipamentos da fracção autónoma do mesmo prédio onde se encontra instalado no estabelecimento comercial denominado "G……….".
CLÁUSULA QUARTA
O prazo de duração do arrendamento é de UM ano, a começar no dia 01 de Março de 2004 e a terminar em 28 de Fevereiro de 2005, prorrogável por períodos iguais e sucessivos, enquanto não for denunciado por qualquer das partes, nos termos da lei.

Pelo mesmo motivo deve ter-se como assente o teor do art.º 11º da Resposta:
"Estabelecimento comercial de padaria e pastelaria este que funciona na Rua ………. nº … nesta cidade da Póvoa de Varzim e pertence igualmente à oponente executada."
+
Isto dito, importa atentar sobre o regime legal aplicável.
Com efeito, fundando-se o recurso de apelação na exequibilidade do título dado à execução, vem o mesmo interposto da sentença proferida pelo Tribunal de Comarca da Póvoa de Varzim, que julgou procedente a oposição à execução deduzida pela Executada aqui recorrida, o que implica decidir da aplicabilidade do regime do NRAU ao contrato de arrendamento em crise.
À data de celebração do contrato de arrendamento, 1 de Março de 2004, vigorava o RAU, aprovado pelo D.L., nº 321-B/90, de 15 de Outubro, o qual entretanto veio a ser revogado pela Lei nº 6/2006, de 27 de Fevereiro que veio aprovar o NRAU - Novo Regime de Arrendamento Urbano.
Esta lei, muito embora dispondo para o futuro, prevê a sua aplicação imediata aos contratos existentes à data da sua entrada em vigor, sem prejuízo do disposto nas normas transitórias, nos termos e em conformidade com o disposto no artº59º, nº1.
Não obstante, haverá em todo o caso de considerar o que no art.º 12º do CC, se dispõe acerca da aplicação das leis no tempo.
E assim que, relativamente aos contratos de arrendamento urbano, celebrados no contexto da vigência do RAU - Regime de Arrendamento Urbano - ou celebrados em data posterior ao DL 257/95 , de 30 de Setembro, no que concerne aos arrendamentos para fins não habitacionais, o regime a que se encontram sujeitos, haverá de resultar da conjugação de diferentes tipos de normas:
- Disposições próprias do arrendamento urbano - artigos 1064º a 1113º do C. Civil, na redacção que lhes foi dada pela referida Lei;
- Das disposições gerais da Lei 6/2006 de 27 de Fevereiro (artº 9º A 25º);
- Das normas transitórias constantes dos artigos 26º a 58º da Lei 6/2006 de 27 de Fevereiro.
- Aplicação da lei antiga, sempre que estejam em causa efeitos já produzidos, onde se incluiu o regime resultante do acordo contratual se a nova lei se não impõe ou sobrepõe de forma imperativa ao que possa ter sido acordado pelas partes.

Do exposto se conclui que, muito embora o princípio seja o da aplicação imediata da nova lei (o NRAU) aos contratos de pretérito, essa aplicação é feita em termos adaptados, e haverá de indagar-se em cada caso, o tipo de regulamentação a considerar já que em determinados sectores haverá de aplicar ainda a lei antiga (o RAU).
Isto dito.

I -
Para efeitos da indagação dos arrendamentos sujeitos ao NRAU, resulta agora do disposto no artº 1067º, nº1, do CC na sua redacção actual, que "o arrendamento urbano pode ter fim habitacional ou não habitacional".
O legislador afasta-se da anterior classificação resultante do RAU (art. 3.°) que distinguia os arrendamentos para habitação (arts. 74º ss.), para comércio (arts. 110º ss.), para o exercício de profissões liberais (arts. 121º ss.) e para outra qualquer aplicação lícita do prédio, de cariz não habitacional (art. 123.°).
Do arrendamento urbano para habitação configura-se ainda o regime especial dos arrendamentos para habitação não permanente ou para fins transitórios - artº 1095º-3, do CC.
Dentro do arrendamento para fins não habitacionais incluem-se por sua vez arrendamentos com regimes específicos, a saber:
- Arrendamento rústico, não sujeito a regime especial - artº 1108º, in fine, do CC;
- Arrendamento para fins comerciais ou industriais - artº 1112º-1, al. a), -3,-4,-5, do CC;
- Arrendamento para o exercício de profissão liberal - artº 1112º-11, al. b), -3,-5, do CC;
- Arrendamento de prédio urbano para outro fim não habitacional.
Não se refere agora o legislador especificadamente a arrendamento comercial, integrando este na categoria mais vasta de arrendamentos para fins não habitacionais.
Assim que, considerando a aplicabilidade do NRAU aos contratos de arrendamentos existentes à data da entrada em vigor da lei que aprovou o NRAU, não faz sentido falar em arrendamentos comerciais, mesmo em relação a arrendamentos celebrados ao abrigo do RAU, quando posteriores à entrada em vigor do DL 257/95, de 30 de Setembro - cfr. os termos em que o legislador se lhes refere no capítulo I do Título II da Lei 6/2006.
E é à face da nova lei - o NRAU - e não por referência às normas - revogadas - do RAU , que haverá de indagar-se se o contrato de arrendamento em causa nos autos haverá deve ser tido como arrendamento não habitacional, destinado a comércio ou indústria, e como tal sujeito ao respectivo regime, ou como arrendamento para outros fins não habitacionais. Com efeito, o legislador ao definir o âmbito de aplicação das normas referentes aos arrendamentos não habitacionais, está a regulamentar abstraindo da relação jurídica concreta que esteve na sua origem, e na medida em que dispõe de forma imperativa, sobrepondo-se mesmo ao que pudesse ter sido a intenção das partes contratantes. A sujeição ou não ao regime estabelecido na lei para os arrendamentos urbanos para fins não habitacionais, não depende da vontade das partes, mas resulta por mero efeito da lei, em face dos termos do contrato celebrado.
Neste contexto não faz sentido, depois da entrada em vigor da Lei 6/2006 de 27 de Fevereiro, e do NRAU por ela aprovado, o recurso ao disposto no artº 5º do RAU, entretanto revogado, para aferir do regime aplicável ao contrato celebrado que agora é exibido como título executivo.
Inexiste agora norma idêntica à que no referido artº 5º, n.º 2, al. e), do RAU, na qual se excepcionava do regime vinculístico do arrendamento urbano os “arrendamentos de espaços não habitáveis, para afixação de publicidade, armazenagem, parqueamento de viaturas ou outros fins limitados, especificados no contrato, salvo quando realizadas em conjunto com arrendamentos de locais aptos para habitação ou para o exercício de comércio”.
Aliás a norma em questão - o artº 5º-2, al. e) do RAU, tinha vindo a ser objecto de críticas pela falta de rigor no seu âmbito de aplicação, sendo preenchida doutrinaria e jurisprudencialmente, com vista à adequação do resultado interpretativo ao fim visado pelo legislador..
Assim entendia-se, doutrinaria e jurisprudencialmente, que os contratos de arrendamentos para armazenagem ou para garagem, na medida em que revestissem em si mesmo considerados, natureza comercial, seriam de considerar-se como submetidos ao regime geral de arrendamento urbano, independentemente de terem ou não sido realizados em conjunto com outro arrendamento [1], ou mesmo de o comerciante exercer o comércio em estabelecimento próprio. E isso porque o local de indústria ou de comércio de uma empresa industrial ou comercial não é apenas o local onde tem o seu parque de máquinas, utensílios de transformação, ou o local de porta aberta onde transacciona mercadorias e/ou serviços, mas também o local onde guarda os produtos ou arquivos necessários à sua actividade. E sendo igualmente gravosas, num e noutro caso, as consequências da falta de estabilidade na relação arrendatícia, considerava-se não ter nesses casos aplicação o disposto no referido artº 5º, nº2, alínea e) do RAU. Questão é que o prédio arrendado tivesse uma ligação directa com a actividade comercial ou industrial exercida pelo locatário e que, essa afectação houvesse sido acordada aquando da celebração do contrato. Como é sublinhado em acórdão do STJ de 17.03.2005, processo 05B174, www.dgsi.pt/jstj - "Para que o arrendamento de armazém por sociedade comercial se possa considerar comercial nos termos e para os efeitos dos arts. 5º, n. 2, al.e), 47º e 110º RAU não basta a invocação do princípio da especialidade consagrado no art. 6º CSC, tornando-se necessário demonstrar terem ambas as partes tido presente, aquando da celebração desse contrato, que o local arrendado se destinava à guarda das mercadorias comercializadas pela arrendatária". Comprovado que o fim acordado para o arrendamento referia a ligação do mesmo à actividade comercial ou industrial do arrendatário, então estaríamos perante um contrato para comércio ou industria, e como tal arredada a aplicação do artº 5º, nº2, alínea e) do RAU, porquanto não se poderia considerar arrendamento para outros fins, como aí é referido.

Após a entrada em vigor da Lei 6/2006 de 27 de Fevereiro, e do NRAU por ela aprovado, e na ausência de qualquer definição legal de arrendamento comercial - ao contrário do que sucedia no domínio da vigência do RAU , no artº 110º do RAU - haverá igualmente de atender ao tipo de actividade a que o arrendado foi destinado, considerando-se como arrendamento para fins comerciais e para fins industriais consoante o tipo de actividade que contratualmente foi estabelecida o uso a que o arrendado ficava adstrito.
Assim que cremos manter pertinência, face à actual lei, a orientação jurisprudencial acima referida.

No caso dos autos muito embora não se tenha provado efectivamente a existência de um qualquer outro arrendamento em relação ao qual o arrendamento a que os autos se referem fosse acessório, não restam dúvidas que o arrendamento celebrado se destinava a armazenamento e depósito de equipamentos da fracção autónoma onde a funcionava o estabelecimento comercial "G……….", estabelecimento esse que pertence igualmente à arrendatária. E essa circunstância ficou a constar expressamente do clausulado do referido contrato, e com ela aquiesceu o contratante senhorio.

Assim que o contrato de arrendamento relativo à fracção autónoma a que os autos se reportam, celebrado para fins directamente relacionados com a actividades comercial exercida pela recorrida não pode deixar de considerar-se como um contrato comercial em si mesmo considerado [2], e como tal sujeito, antes da entrada em vigor da Lei nº 6/2006 de 27 de Fevereiro, às normas próprias do regime do arrendamento urbano, e especificamente às normas constantes dos artigos 110º a 120º do RAU, e posteriormente à entrada em vigor da referida lei, e do NRAU por ela aprovado, às normas próprias do NRAU com as limitações e sem prejuízo do disposto nas normas transitórias dos artº 26º a 58º da Lei nº 6/2006, de 27 de Fevereiro -cfr. artº 50º e 59º do referido diploma.
Não assiste, neste particular aspecto, razão aos recorrentes.

II -
Se mesmo a considerar-se que se trata de contrato de arrendamento comercial, se deveria atender à vontade real e declarada das partes, que expressamente previram um prazo de duração efectiva do vínculo, considerando-se o prazo supletivo de 5 anos previsto no artigo 98.º, n.º 2, do RAU, assistindo por isso ao recorrente a faculdade de denunciar o contrato nos termos em que efectivamente o fez, constituindo o documento comprovativo da denúncia com o contrato de arrendamento título executivo ao abrigo do disposto no art. 15.º, n.º 1, al. c) do NRAU.

Importa reter, como começou por dizer-se na sentença recorrida, que fundamentalmente o que está em causa nos presentes autos de oposição à execução, é decidir da exequibilidade do título dado á execução, considerando que como tal foi apresentado o documento comprovativo da denúncia, e o contrato de arrendamento, ao abrigo do disposto no art. 15.º, n.º 1, al. c) do NRAU.

Tendo o contrato de arrendamento que serve de título à execução, sido celebrado em 01 de Março de 2004, ou seja, na vigência do RAU aprovado pelo DL 321-B/90 de 15 de Outubro, com as alterações introduzidas pelos DL n.º 329-B/2000, de 22 de Dezembro, e posteriormente à entrada em vigor do DL n.º 257/95, de 30 de Setembro, passou, como se referiu já, a estar sujeito à disciplina do NRAU, por força do disposto nos artigos 59º e 26º da Lei 6/2006 de 27 de Fevereiro, este aqui aplicável por força do disposto no art.º 50º, todos da Lei nº 6/2006, de 27 de Fevereiro, com as especificidades que no mesmo normativo são referidas, nomeadamente em termos de limitações ao direito de denúncia, continuando a aplicar-se o disposto no artº 107º do RAU, não tendo aplicabilidade o disposto m no artº 1101º, alínea c) do Cód. Civil - cfr. artº 26º-4, alínea c) da referida Lei nº 6/2006 de 27 de Fevereiro.

Por outro lado, e no que concerne à possibilidade de contratualização de arrendamentos para fins não habitacionais com duração limitada, o NRAU, com as alterações introduzidas no Cód. Civil, prevê agora, à semelhança do que, posteriormente à entrada em vigor do DL nº 275/95, de 30 de Setembro, já acontecia com o RAU, a possibilidade de celebração de contratos de arrendamento a prazo certo (de duração limitada, na terminologia do RAU).
No entanto, e ao contrário do limite mínimo de cinco anos previsto no RAU para os arrendamentos para o exercício do comércio e industria - artº 98º, nº2 e 117º, nº2, ambos do RAU - no NRAU prevê-se agora, para os arrendamentos para fins não habitacionais, a possibilidade de contratualização do prazo de duração do contrato, sem qualquer imposição de prazo mínimo - art.º 1110º, nº1, do Cód. Civil .

Assim que em face do NRAU seria perfeitamente válida a cláusula inserta no contrato de arrendamento a que os autos se referem, em que estipulam como prazo do mesmo, o de um ano.

No entanto o NRAU só dispõe para o futuro, e, ainda que aplicando-se aos contratos que celebrados anteriormente, que subsistam àquela data, na medida em que disponham sobre as condições de validade substancial ou formal de quaisquer factos ou sobre os seus efeitos, entende-se, na dúvida, que só visam os factos novos - cfr. artº 12º, nº2, primeira parte, do CC. Ou seja, a validade
E assim que no caso dos autos a cláusula contratual que estabelece como prazo de duração do contrato um ano é nula nos termos do art.º 294º do Cód. Civil - como reconhecem os recorrentes - porque violadora da norma imperativa que resulta do disposto no art.º 98º, nº2, do RAU, aplicável por força do disposto no art.º 117º, nº2, do mesmo diploma.

Questão é saber qual a consequência a extrair desse facto, e em que termos ela se repercute na exequibilidade do título dado à execução.
Considerou-se na sentença recorrida que, sendo nula a cláusula em questão, haveria de considerar-se o contrato como celebrado sem duração limitada.
Contrapõem os recorrentes que, constatada essa nulidade, e consabido que as partes quiseram estabelecer um contrato de arrendamento limitado na sua duração, haveria de reconverter-se o contrato celebrado em contrato de duração limitada pelo prazo mínimo legalmente admissível, ou seja, o prazo de cinco anos.

Não vemos razão para não acolher este entendimento.
Antes de mais cabe referir que não colhe a posição sustentada pela recorrida, de que a referência contratual de que o arrendamento era celebrado pelo prazo de um ano, não legitimava o entendimento de que as partes haviam pretendido celebrar um contrato de duração limitada. Esta posição não tem qualquer fundamento, legal ou outro. Desde logo porque nada na lei pressupõe que sejam empregues frases mais ou menos sacralizadas. O legislador, no RAU - em vigora à data em que o contrato foi celebrado - referia apenas a exigência de que as partes estipulassem um prazo para a duração efectiva do arrendamento contratualizado - artº 98º, nº1, e 117º, nº1, ambos do RAU, aprovado pelo 321-B/91, de 15 de Outubro.
Haverá assim de entender-se que quando as partes contratantes, ao clausularem que "... o prazo de duração é de um ano, a começar no dia 1 de Março de 2004 e terminar em 28 de Fevereiro de 2005, prorrogável por períodos iguais e sucessivos enquanto não for denunciado por qualquer das partes, nos termos da lei" quiseram efectivamente estipular um prazo para a duração efectiva do contrato.
No entanto, como vimos, fizeram-no fixando um prazo inferior ao que legalmente estava previsto como prazo mínimo, sendo por isso a cláusula em questão nula. e sendo um nulidade parcial, que afecta em princípio apenas a referida cláusula, haverá que atentar no disposto no art.º 292º do Cód. Civil.
Dispõe este normativo que a nulidade parcial não determina a invalidade total de todo o negócio, salvo quando se demonstre que este não teria sido celebrado sem a parte viciada.
Ou seja, nos termos deste normativo, a redução do negócio estaria dependente da verificação dos seguintes requisitos:
- Que se trate de uma nulidade parcial, ou seja, que afecte apenas parte do negócio;
- Que em face das circunstâncias objectivas, pela vontade real das partes, conhecida da outra parte - artº 236º do CC - ou pela sua vontade hipotética e pela boa-fé - artº 239º do CC - que sem a parte viciada o negócio não teria sido celebrado;
A estes requisitos, que resultam expressamente do disposto no artº 292º do CC, Menezes Cordeiro refere ainda [3] o respeito pela boa-fé, o respeito pelas regras formais, e o respeito por outras normas imperativas, como sendo requisitos sem a verificação dos quais não pode conceber-se a redução do negócio jurídico afectado por uma invalidade parcial.

No caso dos autos a vontade das partes, manifestada desde logo no contrato, foi a de celebrar um contrato de arrendamento de duração limitada.
Assim que fazer sobrestar o contrato sem a cláusula que limitava a sua duração, para além de ir contra a vontade expressa dos contratantes de limitar no tempo a duração do contrato, redundaria, não numa mera redução, mas numa conversão para mais [4], já que se trata de converter um contrato de arrendamento de duração limitada em contrato de arrendamento de duração ilimitada, com as gravosas consequências que daí advém em termos de cerceamento da liberdade contratual de denúncia.
Assim que, tendo as partes acordado no sentido da sujeição do contrato ao regime de duração limitada, inserindo tal acordo no texto escrito do contrato por elas assinado, o facto de terem estipulado o prazo de vigência inferior ao mínimo legalmente estabelecido não poderá ter como consequência o ter-se celebrado tal contrato sem prazo mas sim ter-se celebrado pelo prazo de cinco anos, tanto mais que o prazo previsto no art. 98º, nº 2 do RAU se deve ter também por prazo supletivo. Neste sentido se pronuncia aliás Januário Gomes, referindo [5]“ o prazo de cinco anos deve ter-se também por prazo supletivo, no caso de as partes, clausulando embora o regime dos contratos de duração limitada, terem omitido estipulação de prazo”.
Não deve por isso manter-se a sentença recorrida quando, declarada nula a cláusula que estipula um prazo de duração de um ano para o contrato de arrendamento celebrado, conclui, sem mais que estamos perante um contrato de arrendamento de duração ilimitada, antes devendo operar-se a sua redução dentro do mesmo tipo de contratos - de duração limitada - pela aplicação do prazo supletivo de 5 anos [6], renovando-se o contrato por igual período, se outro não estiver expressamente estipulado - artº 118º, nº1, do RAU.

III -
Finalmente, outra das inovações introduzidas pelo NRAU foi a criação de novos títulos executivos - artº 15º - do NRAU - constituindo título executivo , em caso de cessação por oposição à renovação, o contrato de arrendamento, acompanhado do comprovativo da comunicação prevista no artº 1097º do Código Civil - cfr. alínea e, do nº1, do referido artº 15º.
A aplicabilidade do que assim dispõe o NRAU não resulta afastada pelo preceituado no artº 26º, nº4, da Lei nº 6/2006. Ao contrário, a aplicabilidade do regime do NRAU, incluindo o disposto no artº 15º, nº1, alínea c) da Lei nº 6/2006, está prevista no artº 59º da Lei 6/2006 de aprova o NRAU.
Por outro lado, tratando-se de norma de natureza processual, a regra sempre seria da da sua imediata aplicação aos processos pendentes[7].
Temos assim que, muito embora o contrato de arrendamento em causa tenha sido celebrado na vigência do RAU, entretanto revogado, deve ter-se como aplicável o disposto no referido artº15º, nº1, alínea c) da Lei nº 6/2006, pelo que o contrato referido nos autos, acompanhado da comunicação prevista no artº 1097º do Cód [8]. Civil, constituem título executivo válido, à semelhança do que se verificava aliás no âmbito da vigência do RAU, por força do disposto nos artigos 45º e 46º, alínea d) do CPC, para efeitos de ser instaurada execução para entrega de coisa certa.

Deve como tal revogar-se a sentença recorrida, e, na procedência do recurso, julgar improcedente a oposição, formulando-se as seguintes conclusões - artº 713º, nº7, do CPC:
- Constando do contrato de arrendamento celebrado, que a fracção autónoma destinada a garagem, dada de arrendamento se destinava a garagem, arrumos, armazém e depósito de equipamentos da fracção autónoma do mesmo prédio onde se encontra instalado o estabelecimento comercial “G……….”, deve considerar-se tal contrato como um contrato comercial em si mesmo considerado, e como tal sujeito, antes da entrada em vigor da Lei nº 6/2006 de 27 de Fevereiro, às normas próprias do regime do arrendamento urbano, e especificamente às normas constantes dos artigos 110º a 120º do RAU, e posteriormente à entrada em vigor da referida lei, e do NRAU por ela aprovado, às normas próprias do NRAU com as limitações e sem prejuízo do disposto nas normas transitórias dos artº 26º a 58º da Lei nº 6/2006, de 27 de Fevereiro -cfr. artº 50º e 59º do referido diploma.

- Tendo as partes acordado no sentido da sujeição do contrato ao regime de duração limitada, inserindo tal acordo no texto escrito do contrato por elas assinado, o facto de terem estipulado o prazo de vigência inferior ao mínimo legalmente estabelecido não poderá ter como consequência o ter-se celebrado tal contrato sem prazo mas sim ter-se celebrado pelo prazo de cinco anos, tanto mais que o prazo previsto no art. 98º, nº 2 do RAU se deve ter também por prazo supletivo.

- Muito embora o contrato de arrendamento tenha sido celebrado na vigência do RAU, entretanto revogado, deve ter-se como aplicável o disposto no referido artº15º, nº1, alínea c) da Lei nº 6/2006, para considerar como título executivo válido em execução instaurada no domínio da vigência da Lei 6/2006 de 27 de Fevereiro, o documento do qual consta o referido contrato, acompanhado da comunicação prevista no artº 1097º do Cód. Civil.

TERMOS EM QUE ACORDAM NA SECÇÃO CIVEL DESTE TRIBUNAL DA RELAÇÃO EM JULGAR PARCIALMENTE PROCEDENTE O RECURSO E REVOGANDO A SENTENÇA RECORRIDA, JULGAM IMPROCEDENTE A OPOSIÇÃO, DEVENDO PROSSEGUIR A EXECUÇÃO.

CUSTAS PELO RECORRENTE.

Porto, 02 de Dezembro de 2010
Evaristo José Freitas Vieira
José da Cruz Pereira
Manuel Lopes Madeira Pinto

__________________________
[1] Pereira Coelho, obra e local citados, nota 19
[2] Ferrer Correia, Lições de Direito Comercial, I Vol. Págs 83-86
[3] I TRATADO DE DIREITO CIVIL PORTUGUÊS I PARTE GERAL TOMO I , págs. 879
[4] Manuel de Andrade - Teoria Geral da relação Jurídica, Vol.II, págs. 431
[5] Arrendamentos Para Habitação, 2ª edição, Almedina, 1996, pág. 209.
[6] Neste sentido o Acordão da Relação de Lisboa de 31-05-2007, Processo nº 3931/2007-8, disponível in www.dgsi.pt
[7] Manuel de Andrade - Noções Elementares de Processo Civil - Reimpressão, págs. 42
[8] No mesmo sentido Gravato de Morais - Novo Regime do Arrendamento Comercial - 2ª ed., págs. 48