Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
3424/20.5T9MTS.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: PAULA GUERREIRO
Descritores: CONSCIÊNCIA DA ILICITUDE
NULIDADE DA ACUSAÇÃO
Nº do Documento: RP202402213424/20.5T9MTS.P1
Data do Acordão: 02/21/2024
Votação: UNANIMIDADE COM 1 DEC VOT
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL / CONFERÊNCIA
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - A acusação particular omissa quanto à consciência da ilicitude por parte do arguido, conduz à nulidade da mesma e não pode ser colmatada em audiência de julgamento.
II - A alegação e demonstração positiva da consciência da ilicitude do arguido aquando da prática objetiva dos factos, é essencial, porquanto, isso é algo de emocional que acresce ao conhecimento das circunstâncias do facto, e por isso, integra elemento cognitivo/intelectual do dolo, o conhecimento de que o comportamento é proibido e punido por lei.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo nº 3424/20.3T9MTS.P1

1. Relatório
Nos autos de processo comum com julgamento perante tribunal singular com o nº 3424/20.3T9MTS do Tribunal Judicial da Comarca do Porto, Juízo Local Criminal de Matosinhos, Juiz 2, foi depositada em 7/06/2023 sentença com o seguinte dispositivo:
«A. ABSOLVER o arguido AA da prática, em 13/07/2020, em autoria material, na forma consumada, de um crime de difamação, p. e p. pelo art. 180.º, n.º 1, do Código Penal.
B. ABSOLVER a arguida BB da prática, em 13/07/2020, em autoria material, na forma consumada, de um crime de difamação, p. e p. pelo art. 180.º, n.º 1, do Código Penal.
C. JULGAR TOTALMENTE IMPROCEDENTE o pedido de indemnização civil formulado pelo demandante CC e, em consequência, ABSOLVER os demandados AA e BB do mesmo.
D. CONDENAR o assistente ao pagamento de custas criminais, que se fixam em 4 UC.
E. CONDENAR o assistente ao pagamento de custas cíveis.»
Inconformado com a decisão veio o assistente CC interpor o presente recurso.
É o seguinte o teor das conclusões do recurso:
«1 - O presente recurso adstringe-se a matéria de direito e tem por objeto:
i) erro de direito, relativamente ao crime de difamação, fundado na particularidade de não ter sido alegada, na acusação particular, a consciência da ilicitude e de esta não puder ser integrado com recurso ao mecanismo prevenido no artigo 358.º do Código de Processo Penal; e
ii) - a improcedência do pedido de indemnização civil.
2 – O arguido, AA, foi absolvido da prática, em autoria material, de um crime de difamação, p. e p. pelo artigo 180.º, n.º 1, do Código Penal. No consectário, em razão da sua improcedência, o arguido foi também absolvido do pedido de indemnização civil deduzido pelo assistente.
3 – No recurso, sinalizou-se a facticidade que o tribunal a quo deu como provada e não provada, bem como o enquadramento jurídico-penal dos factos (que aqui se consideram descritos).
4 – A assimetria do arguido relativamente à decisão proferida pelo tribunal recorrido correlaciona-se com a inteleção acerca da necessidade, ou não, da alegação, na acusação, da consciência da ilicitude.
5 – O tribunal a quo considerou ser indispensável a sobredita alegação; reversamente, o arguido entende que tal não se mostra necessário.
6 – A temática em pauta tem merecido um tratamento jurisprudencial não uniforme, porquanto, nesse recorte, se mostram marcadamente delimitadas duas orientações ou teses jurisprudenciais, correspondendo uma à daqueles que pugnam pela indispensabilidade da alegação da consciência da ilicitude, e corporizando-se a outra num sentido inteiramente antinómico.
7 – No enfoque do arguido, a alegação da consciência da ilicitude, na singularidade do crime dos autos, não se conforma essencial para a perfetibilização do ilícito.
8 – Nessa esteira, pelo seu acerto e translucidez, foram transcritas as excogitações tecidas na envolvência dos seguintes Acórdãos: da Relação do Porto de 25/02/2015 e de 12/07/2017; e da Relação de Évora de 19/12/2019 e de 28/02/2023.
9 – O assistente adere, na totalidade, à dialética aportada nos indigitados arestos e às conclusões neles extratadas, que são inteiramente transponíveis/subsumíveis ao caso sub examine.
10 – Na focalização do assistente, a valência argumentativa averbada nos citados Acórdãos, que se conforma superlativa, categórica e cogente, sobrepuja nitidamente o arrazoado expendido pelo tribunal a quo, não obstante as cogitações tecidas na sentença se achem, de facto, teoreticamente admissíveis e proficientemente densificadas. Diante disso, o assistente, por desnecessidade, podia dispensar-se de considerações adicionais.
11 – Não obstante, foram sinalizados alguns aditamentos no plano teórico-jurídico, relativamente ao seguinte: ao dolo; aos respetivos elementos; às atinentes modalidades; à correlativa prova; à conformação do elemento subjetivo do crime de difamação.
12 – A consciência da ilicitude desorbita claramente do dolo, pois que se aloca incontroversamente na culpa.
13 – Após, foi feito igualmente um excurso teórico-jurídico, algo desenvolvido, sobre o seguinte: o erro; a distinção entre o erro de conhecimento ou erro intelectual e erro de valoração ou erro moral; os efeitos decorrentes dos sobreditos erros [o erro intelectual exclui o dolo ou, em termos mais amplos, a imputação do facto doloso (cf. o artigo 16.º, n.os 1 e 2), ao passo que o erro moral concerne a um problema de culpa, devendo a respetiva relevância ser aferida de harmonia com um critério de censurabilidade, que poderá conduzir à sua irrelevância, à exclusão da culpa ou à sua atenuação – ver o artigo 17.º, n.os 1 e 2]; a concreta distinção entre o artigo 16.º, n.º 1, in fine (no segmento atinente ao erro sobre proibições), e o artigo 17.º, n.º 1, ambos do Código Penal; em que termos se opera a diferenciação dos citados normativos (é apartir da natureza axiológica da conduta praticada pelo agente); e a separação entre as condutas axiologicamente neutras e axilogicamente relevantes.
14 – Em vista das premissas averbadas, concluiu-se o seguinte:
a)- no caso ad rem, mostram-se preenchidos os elementos, objetivo e subjetivo, do crime de difamação, p. e p . pelo artigo 180.º, n.º 1, do Código Penal;
b) - a particularidade de não se achar alegada a consciência da ilicitude exsurge aqui irrelevante, porquanto esta não é elemento integrante do elemento subjetivo do tipo penal, prevalecendo unicamente em termos de culpa, nos termos do artigo 17.º do Código Penal;
c)- o crime de difamação, em foco nestes autos, inclui-se nos crimes do designado direito penal de justiça, ou seja, nos crimes naturais, crimes em si ou mala in se, cuja punibilidade se pode presumir conhecida, por respeitar a condutas axiologicamente relevantes – não é, por conseguinte, desculpável que a correlativa publicada não seja conhecida de todos os cidadãos regularmente socializados;
d) - a doutrina firmada pelo Acórdão de Fixação de Jurisprudência n.º 1 /2015 é aqui inaplicável, dado que concerne somente às situações em que não foram descritas na acusação os elementos subjetivos do tipo – e já não aos casos em que consciência da ilicitude se encontre omissa;
e) - o arguido deve, ipso facto, ser condenado pela prática, em autoria material, do pertinente crime.
15 – Ao decidir nos termos em que o fez, o tribunal a quo infringiu o disposto nos artigos 17.º, n.os 1 e 2, e 180.º, n.º 1, ambos do Código Penal.
16 – Dado que se logrou demonstrar a comissão, pelo arguido, do crime de difamação e sendo certo que o pedido de indemnização civil se fundou, em obediência ao fixado no artigo 71.º do Código de Processo Penal, na prática desse crime, a consequência será naturalmente a procedência do pedido de indemnização civil deduzido, porquanto se verifica a responsabilidade extracontratual com base no qual foi formulado, o que vale por dizer que se verificam os pressupostos do artigo 483.º do Código Civil.
17 – Neste apartado, além do que consta dos factos assentados, foram extratadas, pela sua relevâncias, as sequentes passagens da sentença: “[…] imputar a outrem consumos de droga não pode deixar de ter-se por ilicitamente ofensivo do bom-nome, por desprestigiante e estigmatizante”; e “A difusão desses factos imputados, no contexto formal em que o foram, em sede de audiência pública de julgamento, perante magistrado, era claramente adequado a melindrar o assistente na sua pessoa, mormente na sua probidade, e afetar o bom conceito social deste que se formava naquele preciso momento diante do Tribunal”.
18– O arguido/demandado civil deve, pois, ser condenado a pagar, ao assistente/demandante civil, a importância por este reclamada no pedido de indemnização civil por si deduzido.
19 – Ao absolver o arguido/demandado civil, o tribunal a quo violou o estabelecido nos artigos 71.º do Código de Processo Penal e 483.º do Código Civil.
Conclui pedindo que na procedência do recurso seja revogada a decisão recorrida e, em consequência, seja reconhecida a desnecessidade da alegação, na acusação, da consciência da ilicitude; e como resultado dessa constatação seja o arguido condenado pela prática, em autoria material, de um crime de difamação, p. p. pelo artigo 180.º, n.º 1, do Código Penal e a pagar, ao assistente/demandante civil, a importância por este reclamada no pedido de indemnização civil por si deduzido.
O recurso foi admitido por despacho proferido em 6/09/2023.
O MP em primeira instância respondeu ao recurso alegando, em síntese, que:
«conforme o AUJ 1/2015, sendo a acusação delimitadora do objecto do processo tem de conter todos os aspectos que integram e delimitam os elementos subjectivos do crime e, de entre esses elementos subjectivos, tem de constar o facto de que o seu agente actuou sabendo que cometia um ilícito e fê-lo bem sabendo disso.

Não levar este facto à acusação particular é retirar ao objecto do processo um elemento essencial para a integração subjectiva do ilícito imputado com vista à sua condenação e, com tal, ao decidir como decidiu, bem andou a Srª Juíza “a quo”.
Termos em que, concluindo:
a) a sentença recorrida é ajustada,
b) não merece tal sentença qualquer censura;
c) deve por isso ser mantida.»
Nesta Relação o Sr Procurador-geral-adjunto concorda integralmente com a resposta do MP em primeira instância e emite parecer no sentido do não provimento do recurso.
Cumprido o disposto no art. 417 nº2 do CPP não foi apresentada resposta ao parecer.
2. Fundamentação
A- Circunstâncias com interesse para a decisão
Por se mostrar com interesse para a decisão a proferir, passamos de seguida a transcrever a sentença recorrida:
«II. Fundamentação de facto
Com relevância para a causa resultam os seguintes:
Factos provados
Constantes da acusação:
1. No dia 13-07-2020, durante a audiência de discussão e julgamento realizada no processo n.º 3061/20.278MTS, referente a procedimento cautelar de arrolamento, o arguido e a arguida, pai e madrasta do assistente, respetivamente, prestaram declarações, o primeiro como parte e a segunda como testemunha, tendo sido advertidos pelo Tribunal do dever de falar a verdade.
2. O arguido, nas suas declarações, afirmou, referindo-se ao assistente, seu filho:
«Ele ameaça-me, diz que me faz uma espera. Aliás, aqui há uns tempos disse-me que ia resolver o problema à pancada. Eu tenho medo dele»;
«Anda na droga, Sra. Dra. Anda aí a.... ainda no outro dia andava naqueles bairros... que ainda agora apanharam e andava lá a comprar. Eu vi com os meus olhos. Não me disseram»;
«Está com o […] rendimento mínimo»;
Ao ser questionado se o assistente tem hábitos de trabalho, respondeu:
«Não, não trabalha. O meu filho é a minha vergonha. Não trabalha, não quer trabalhar, nunca quis trabalhar»;
3. O assistente constituiu, em 2020, uma sociedade unipessoal por quotas, com a firma A... – Unipessoal, Lda., da qual, no momento da sua constituição, foi nomeado gerente.
4. A arguida, nas suas declarações, referindo-se ao assistente, afirmou:
«Eu conheci-lhe muitos empregos, e bons empregos, mas ele ao fim de algum tempo saía, não sei porquê»;
Questionada se o arguido suportava financeiramente o assistente, a resposta por esta dada foi: «Sim, sim».
5. Ao proferir as expressões supra referidas, o arguido agiu de forma consciente de que atingia, e com vontade de atingir o bom-nome, a honra, reputação e autoestima do assistente, o que conseguiu, pretendendo criar uma imagem do assistente de alguém não integrado no mundo de trabalho, enquanto um adulto economicamente dependente do seu pai e toxicodependente, com a pretensão de obter uma decisão judicial que lhe fosse favorável.
Mais se apurou:
6. O arguido foi já condenado por sentença proferida no âmbito do processo n.º 5979/17.0T9PRT, e transitada em 29/01/2019, pela prática, em 21/04/2017, de um crime de difamação agravada, na pena de 80 dias de multa, à taxa diária de 5,00€, num total de 400,00€.
7. Não se mostram averbados antecedentes criminais relativos à arguida.
Das condições socioeconómicas dos arguidos:
8. A arguida tem o 12.º ano de escolaridade e laborava como sócio-gerente de uma ótica, encontra-se atualmente desempregada.
9. O arguido encontra-se atualmente aposentado, tendo laborado durante a vida ativa como profissional de ótica, auferindo de pensão a quantia estimada de 480,00€.
10. Os arguidos vivem juntos, em casa pertencente ao filho da arguida, por cuja estadia nada despendem, encontrando-se a arguida, de momento, em virtude da sua situação de desemprego, a residir com o seu filho em Bruxelas.
Factos não provados
a) À data dos factos, o assistente era ou tinha sido consumidor de drogas, e frequentava ou frequentara bairros para comprar droga.
b) À data dos factos, o assistente não era beneficiário do rendimento social de inserção e não trabalhava.
c) O assistente nunca foi sustentado financeiramente na idade adulta pelo pai, o arguido.
d) Ao proferir as expressões supra referidas, a arguida agiu de forma consciente de que atingia, e com vontade de atingir o bom-nome, a honra, reputação e autoestima do assistente, o que conseguiu, pretendendo manchar a imagem do mesmo, com a pretensão de obter uma decisão judicial que lhe fosse favorável.
e) Em consequência da conduta supra descrita, o assistente sofreu forte abalo psíquico, sobretudo pela perturbação, desgosto, vergonha, dissabores e tristeza que sentiu.
f) O assistente goza de boa reputação no local onde vive, e é estimado por toda a gente, estando socialmente integrado.
Foram desconsiderados os factos irrelevantes e imputações conclusivas, sobre os quais o Tribunal não se pronuncia.
Motivação de facto
Cumpre afirmar que toda a prova valorada é aquela validamente produzida em audiência de julgamento, tendo a mesma sido analisada criticamente à luz das máximas da experimentação, de acordo o livre e prudente arbítrio do Tribunal, conforme decorre do artigo 127.º do Código de Processo Penal (doravante CPP).
A convicção do Tribunal formou-se pela análise conjugada das declarações do assistente, dos arguidos, e dos depoimentos prestados pela testemunha DD, e a demais prova documental indicada na acusação particular, nomeadamente, CD referente à gravação da audiência de julgamento de 13/07/2020, realizada no âmbito de procedimento cautelar de arrolamento, de fls. 17; declaração de Segurança Social de fls. 165; prints da consulta à aplicação da Segurança Social de fls. 166-169; e contrato social de fls. 170-172; bem como os certificados de registo criminal de fls. 8-10 (do separador).
A factualidade objetiva que é imputada aos arguidos, além de confirmada à saciedade pelas reproduções fonográficas legitimamente captadas em sede de audiência cível realizada no âmbito de procedimento cautelar de arresto, no processo n.º 3061/20.278MTS, saiu reafirmada pelos próprios, os quais não negaram terem proferido aquelas expressões naquele contexto.
Já no que concerne à vontade e conhecimento da prática dos factos, relativamente ao arguido, cumpre dizer que a demonstração da realidade da factualidade objetiva que àquele vinha imputada permitiu, sob a ótica das regras de experimentação comum, e mais atendendo o contexto em que aqueles expressões foram proferidas, inferir a matéria de facto atinente aos elementos subjetivos da conduta.
Também o propósito com que o arguido agiu se tornou claro quando considerado não só o contexto em que foram proferidas as expressões em causa, mormente a própria natureza do procedimento judicial, a qualidade na qual o arguido (requerente) e o assistente (requerido) foram intervenientes naquela lide – qualidades relatadas pelo assistente e não negadas pelo arguido – e o interesse que o primeiro mantinha no desfecho daquela causa, como também a hostilidade por que se pautava, e pauta ainda agora, a relação do arguido com o assistente (por estes suficientemente narrada e por atos demonstrada na audiência de julgamento).
É evidente, mediante consulta das regras de experimentação comum que o arguido agiu propositadamente, imputando aqueles factos com ciência e vontade de obter a procedência da sua pretensão, pretendendo criar a convicção do risco de dissipação de bens, o que naturalmente se presumiria de alguém com problemas de adição e hábitos de prodigalidade.
Tanto mais quando confrontada a razão de ciência avançada pelo arguido para os factos que imputou ao assistente.
Com efeito, o arguido ofertou explicações para reputar aqueles factos como verdade que não se acolheram.
Desde logo quanto ao consumo de drogas, alegadamente percecionado pelo arguido, não foi crível que o mesmo tivesse seguido o assistente e tivesse assistido à compra de estupefaciente numa banca de rua, no bairro ..., não apenas pelo caráter evidentemente inverosímil da existência de tal estrutura aberta ao público, mas também porque admitido pelo arguido que não avistou qualquer produto estupefaciente, mas apenas a uma aparente troca que não soube concretizar.
Mais alegou o arguido que o facto de o filho (assistente) consumir estupefacientes tinha vindo ao seu conhecimento através de um amigo de nome EE, atualmente falecido, alegação essa de ouvir dizer que se julgou insuficiente para convencer do efetivo consumo, sendo que, pelo assistente, foi negado veementemente essa realidade, relatando ainda conhecer EE apenas de vista.
A única prova testemunhal produzida (da acusação) foi perentória em excluir essa hipótese, embora se tenha valorado com a devida parcimónia o testemunho de DD, que se demonstrou altamente partidário, a favor do sobrinho (assistente), e assumindo as más relações com o irmão (arguido), mostrando-se acérrimo da defesa da tese da acusação.
De todo modo, não foi produzida prova bastante que sustentasse essa hipótese fáctica.
O mesmo sucede relativamente à tese do arguido atinente aos hábitos e percurso laboral do assistente.
Dos elementos documentais indicados na acusação colhe-se precisamente o argumento oposto àquele aventado pelo arguido, sendo patente que, pelo menos nos 5 anos que precederam ao evento em discussão, o assistente declarou rendimentos, o que implica, logicamente, o exercício de uma qualquer atividade laboral.
É pertinente atentar que o relato da arguida acaba por infirmar aquele do arguido, quando refere ter conhecido muitos empregos ao assistente, o que, sendo os arguidos unidos de facto há mais de 20 anos (conforme a arguida referiu), permite concluir com elevado grau de probabilidade que o arguido disso também era conhecedor.
Por outro lado, nunca o arguido teria razão de ciência sobre os hábitos laborais do filho, quando é o mesmo – ainda que com alguma confusão quanto à colocação temporal – que refere ter deixado de cuidar ou preocupar-se com o filho e a sua vida há mais de vinte anos, sendo pelo assistente aventada a data de 2004 como aquela em que estes se encontravam já de relações cortadas.
Quanto à veracidade que subjaz ao benefício do rendimento mínimo ou, como é hodiernamente designado, rendimento social de inserção, também foi o próprio arguido a afirmar que à data dos factos não sabia se o arguido trabalhava e que apenas se referiu ao rendimento mínimo como uma força de expressão, o que, logicamente, não colhe.
No tocante às ameaças de que o arguido alega ter sido alvo por parte do assistente, embora o mesmo tenha logrado circunstanciar espacialmente aquelas ameaças, não se produziu qualquer outro indício que permitisse firmar aquela realidade invocada pelo arguido, sendo que pelo assistente foi negado e a testemunha da acusação não revelou conhecimento de causa.
Em excecional desvio à estrutura acusatória do processo penal, e aos princípios da presunção de inocência e in dubio pro reo, cabia ao arguido provar a verdade das afirmações que propalou ou aduzir fundamento sério para, em boa fé, reputar aquelas como verdadeiras, nos termos da al. b) do n.º 2, do art. 180.º do Código Penal, o que não logrou, decidindo-se assim, defronte da insuficiência de prova, em seu desfavor – no sentido da inaplicabilidade do princípio in dubio pro reo em matéria de exceptio veritatis, vide acórdão do TRP, de 10/12/2008, proc. n.º 0846092, disponível em www.dgsi.pt.
As mesmas considerações já não se tecem relativamente à consciência psicológica e volitiva da arguida.
O teor da primeira expressão proferida pela arguida não permite, de acordo com o que é a consciência social dominante, presumir que a arguida sabia que ofendia o assistente com aquelas palavras, ou sequer fazê-lo com intenção de criar uma imagem do assistente como não integrado no mundo laboral, desde logo porque não se reconhece aptidão àquelas expressões para ofender o assistente.
Contrariamente ao sentido que a acusação lhes quer emprestar, a arguida é a primeira a referir como conheceu muitos e bons empregos ao assistente.
Quanto a responder afirmativamente à questão sobre se o arguido sustentava financeiramente o filho, não é descortinável, do modo como a mesma foi colocada, a que período temporal se refere (podendo mesmo referir-se aos tempos em que existia coabitação entre pai e filho), sendo, ademais, tanto a pergunta como a resposta demasiado vagas para deixar definido o seu conteúdo.
Tanto mais que, à pergunta sobre se era conhecedora da situação financeira do assistente à data dos factos, a mesma respondeu que não fazia ideia.
Não se convenceu, ainda, o Tribunal de que o assistente nunca tivesse sido sustentado na idade adulta pelo pai, uma vez que, da prova que foi produzida, não foi possível excluir a hipótese de tal ter alguma vez ocorrido.
Na verdade, só constam dos autos declarações de rendimento referentes aos anos 2015 a 2020, sendo que o próprio assistente referiu que labora desde a faculdade, situando o ingresso nos anos 90.
É com bastantes reservas que se encara o depoimento da única testemunha da acusação, que atestou que o assistente sempre trabalhou, pelos motivos supra já explanados, motivo pelo qual nele não se fez fé.
De resto, é a expressão «sempre» conflituante com o número de dias indicados como referente aos rendimentos do ano de 2015 (cfr. fls.165).
Quanto aos sentimentos de vergonha, tristeza, perturbação e abalo psíquico, há a referir que a escassa prova produzida a este tocante não foi apta, pela sua insuficiência, a formar convicção sobre a sua realidade.
Na verdade, apesar de ter sido referido pelo assistente que se sentiria incomodado por ser reputado como toxicodependente pelo pai, a posição extremada e de adesão ao conflito pelo mesmo, que se evidenciou ao longo das suas declarações, bem como o facto de admitir estar de relações cortadas com o pai há 20 anos, levam, consultadas as regras da experiência comum, a ter como inverosímil que tais sentimentos tenham sido na verdade experienciados pelo próprio.
Assim, dado o clima de intensa litigiosidade existente entre o assistente e o arguido, não é sequer percetível se o assistente relatava com sinceridade o seu estado íntimo ou se, contrariamente, o fazia falseadamente com a intenção de prejudicar o arguido.
Uma vez que também não se pode reputar as suas declarações como isentas, o assistente mostrou-se irritável aquando da instância dos Ilustres defensores, pese embora tal instância tenha sido dirigida com calma pelos mesmos.
Noutro conspecto, não existiu qualquer factualidade do mundo exterior, isto é, manifestações externas daquele estado de espírito, que fosse trazida pela prova produzida, sendo que a mera referência pela testemunha da acusação – de posição assumidamente tomada na contenda (conforme já se fez referência) – de que era claro que o assistente houvera sentido vergonha não constitui nada mais do que uma presunção ou convicção interior que não é apta a provar a experimentação daqueles sentimentos alegados.
No mais, relativamente ao bom conceito em que o assistente seria tido no seu meio, nenhuma prova foi produzida a esse respeito.
Os antecedentes criminais resultam provados por confronto com os CRCs junto aos autos.
Os factos relativos às condições socioeconómicas dos arguidos resultaram do confronto com as declarações dos mesmos, as quais, nessa medida, também se afiguraram credíveis.
III. Fundamentação de direito
Do enquadramento jurídico-penal dos factos
A factualidade provada é suscetível, em abstrato, de preencher o tipo legal de crime de difamação, p. e p. pelo art. 180.º, n.º 1, do Código Penal: «Quem, dirigindo-se a terceiro, imputar a outra pessoa, mesmo sob a forma de suspeita, um facto, ou formular sobre ela um juízo, ofensivos da sua honra ou consideração, ou reproduzir uma tal imputação ou juízo, é punido com pena de prisão até 6 meses ou com pena de multa até 240 dias».
Tal ilícito tem ínsita a proteção do bem jurídico honra e consideração, como reflexo do seu referente constitucional plasmado no art. 26.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa: o direito ao bom nome e reputação.
«A honra é tida como um bem jurídico complexo que inclui quer a auto - avaliação pelo indivíduo do seu valor pessoal e qualidades morais, radicadas na sua dignidade, quer a própria reputação ou consideração públicas» – acórdão do TRP, de 07/11/2018, proc. n.º 35/17.4PIPRT.P1, disponível em www.dgsi.pt.
Em matéria de tipicidade, o preenchimento da factualidade integradora do dito ilícito pode ser alcançado mediante a propalação de qualquer afirmação, dirigida a terceiro que não o ofendido, que implique a imputação de factos ou a formulação de juízos valorativos considerados ofensivos da honra ou consideração deste.
Revertendo para o que supra se expendeu quanto ao conteúdo da aceção de honra, dir-se-á que os factos imputados ou os juízos formulados sobre outrem terão de encerrar em si mesmos – e à luz de um determinado contexto sociocultural em que são proferidos e de acordo com o que é o sentimento comunitário da época em termos de valoração social – uma significação ou conotação, mais do que negativa, insultuosa, de modo a poder ter-se a transmissão dessas imputações ou formulações como apta a ofender a pessoa na sua dignidade ou a descreditá-la no seu meio social.
Daí que, e em concertação com o que são os limites salutares (e cada vez mais reconhecidos em termos da sua amplitude) da liberdade de expressão e informação, o patamar da dignidade penal não se atinja com o veicular a terceiro de meras críticas ou exposições mais desagradáveis.
Neste sentido tem vindo a formar-se a jurisprudência do TEDH, em matéria de limitação ao direito à liberdade de expressão, que reconhece uma maior ou menor restrição consoante o destinatário das críticas – a este propósito ver os acórdãos Lopes Gomes da Silva c. Portugal, Oberschlick c. Áustria, e Azevedo c. Portugal disponíveis em https://www.echr.coe.int/Pages/home.aspx?p=home.
Entendimento acompanhado pela jurisprudência nacional, sendo de salientar que o STJ «entende actualmente ser de exigir um juízo de prognose sobre a hipotética decisão que o TEDH adoptaria se o caso lhe tivesse sido submetido, no sentido de se verificar se é de admitir como muito provável que, se a questão viesse a ser colocada ao TEDH, tal órgão jurisdicional entenderia que a concreta afirmação/imputação extravasaria os limites toleráveis do exercício da liberdade de expressão e informação» – v. acórdão do TRL, de 14/09/2021, proc. n.º 8777/21.3T8LSB-7, disponível em www.dgsi.pt.
Assim, se o visado exercer funções de caráter público, por exemplo, a margem para escrutínio será aumentada em inversa proporção com o perímetro de punibilidade.
Será, portanto, avisado fazer assentar a legitimidade da partilha de pensamentos ou posições reprovativos ou ofensivos, em primeiro lugar, na própria natureza dos visados, no círculo em que estes se incluam, bem como no controlo a que estes devam ser sujeitos, e, posteriormente, a juízo de intensidade da ofensa.
A lesão da honra e consideração do destinatário será tão intensa e, nessa medida, punível, quando atinja contornos de gravidade tal que extravasem o campo da expressão socialmente aceitável, e passem a «constituir um comportamento com objecto eticamente reprovável, de forma a que a sociedade não lhe fique indiferente, reclamando a tutela penal de dissuasão e repressão desse comportamento. Supõe, pois, a violação de um mínimo ético-necessário à salvaguarda sócio-moral da pessoa, da sua honra e consideração» – acórdão do TRE, de 02/07/96, apud acórdão do TRE, de 10/11/2020, proc. n.º 164/17.4T9EVR.E1, disponível em www.dgsi.pt.
Ora, expressões como «Está com o […] rendimento mínimo», «Não, não trabalha. O meu filho é a minha vergonha. Não trabalha, não quer trabalhar, nunca quis trabalhar» e «Eu conheci-lhe muitos empregos, e bons empregos, mas ele ao fim de algum tempo saía, não sei porquê», não se podem dizer, à luz do que é o sentimento comunitário atual, que são aptas, objetivamente, a ofender a honra e consideração do assistente.
Embora ter pouca vontade de trabalhar e ser beneficiário do rendimento social de inserção possa ser visto como desprestigiante, não se entende como a imputação desta factualidade à pessoa do assistente transcenda o patamar mínimo de gravidade exigido pelo desvalor ínsito ao tipo.
Noutras palavras, considera-se que o exercício salutar da liberdade de expressão comporta ainda a compressão do direito à honra na medida das expressões proferidas, não ingressando aquela factualidade no tipo objetivo do ilícito em questão, por carência de dignidade penal.
Conforme já se teve oportunidade de expor, não é todo e qualquer facto que envergonhe, perturbe ou humilhe o visado que periga a ofensa ao complexo de valores protegidos pela norma (a honra, o bom-nome, a estima, a reputação).
Do mesmo modo, ser sustentado financeiramente por progenitor não configura uma imputação de facto enquadrável no tipo, por não ser também objetivamente apta a ofender a honra e bom nome de alguém.
As mesmas considerações já não são extensíveis às expressões «Ele ameaça-me, diz que me faz uma espera. Aliás, aqui há uns tempos disse-me que ia resolver o problema à pancada» e «Anda na droga, Sra. Dra. Anda aí a.... ainda no outro dia andava naqueles bairros... que ainda agora apanharam e andava lá a comprar».
O facto imputado na primeira expressão, não é um qualquer facto, mas antes um facto criminoso, porquanto se refere a facto suscetível de consubstanciar um crime de ameaça, – bem como por estar minimamente concretizado, não se resumindo a uma qualquer imputação vaga que se confundiria com uma simples ofensa tolerável – o que, por si só, acarreta um desvalor particularmente qualificado em termos de ofensa à honra.
Semelhantemente, também imputar a outrem consumos de droga não pode deixar de ter-se por ilicitamente ofensivo do bom-nome, por desprestigiante e estigmatizante.
No mesmo sentido, entendeu o acórdão do TRL, de 28/04/2004, proc. n.º 10007/2004-3, disponível em www.dgsi.pt.
Acresce que o potencial difamatório de qualquer expressão se carateriza pela sua relatividade, isto é, que o carácter injurioso ou difamatório de determinada palavra ou ato é fortemente dependente do lugar ou ambiente em que ocorre, das pessoas entre quem ocorre, do modo como ocorre.
A difusão desses factos imputados, no contexto formal em que o foram, em sede de audiência pública de julgamento, perante magistrado, era claramente adequado a melindrar o assistente na sua pessoa, mormente na sua probidade, e afetar o bom conceito social deste que se formava naquele preciso momento diante do Tribunal.
Não era, por esta razão, um ato inócuo, o que leva o Tribunal a concluir pela dignidade penal de tal comportamento, que se tem por censurável e reprovável à luz do Direito.
Além do mais, não poderá querer legitimar-se a conduta empreendida com a ideia de que o arguido agiu no cumprimento de um dever legal de falar com verdade, sendo que nem este logrou provar que os factos por si imputados correspondiam à verdade, nem o móbil do crime permite concluir que tal imputação se deu para realizar interesse legítimo, uma vez que agir com o propósito de obter, falseadamente, a procedência de uma ação é, em si, agir de má fé.
Tudo isto permite concluir que o arguido preencheu, com a sua conduta, o elemento objetivo do tipo do crime de difamação, ao contrário da arguida.
Ainda assim, julga-se não se mostrarem reunidos os pressupostos de que depende a aplicação ao arguido de uma pena, senão veja-se.
Diz-nos a doutrina geral do facto punível, tal como preconizada por Figueiredo Dias, que o facto punível ou crime se decompõe em 3 categorias dogmáticas estruturais: o tipo de ilícito (objetivo e subjetivo), o tipo de culpa e a punibilidade.
Significando que o fenómeno crime só existe quando haja uma ação (ou omissão) típica e ilícita, culposa e punível.
O que importa que o libelo acusatório contenha a narração de todos os factos que se subsumam a cada uma das categorias dogmáticas aludidas, sob pena de a sua omissão não ser suprível pelo juiz de instrução ou de julgamento, através do mecanismo previsto nos arts. 303.º e 358.º do CPP.
Na verdade, a ausência da descrição e imputação dos factos que permitem preencher os elementos do tipo de ilícito e o tipo de culpa não é integrável pelo julgador com recurso àqueles mecanismos, dado que tal se traduziria na transmutação de uma conduta impunível em punível.
É o que decorre da jurisprudência uniformizada pelo acórdão n.º 1/2015, segundo o qual «A falta de descrição, na acusação, dos elementos subjectivos do crime, nomeadamente dos que se traduzem no conhecimento, representação ou previsão de todas as circunstâncias da factualidade típica, na livre determinação do agente e na vontade de praticar o facto com o sentido do correspondente desvalor, não pode ser integrada, em julgamento, por recurso ao mecanismo previsto no art. 358.º do CPP».
Ora, não se encontra qualquer referência, ainda que imperfeitamente expressa, à consciência da ilicitude que enforma o tipo de culpa e contribui para o dolo do tipo.
Não se trata de exigir a fórmula sacramental «o arguido bem sabia que a sua conduta era proibida e punida por lei», pois que o que interessaria é que do texto acusatório resultasse, ainda que de forma imperfeita, a consciência de que o agente era conhecedor do desvalor da sua conduta e da sua proibição legal.
A consciência da ilicitude não é algo de etéreo, ínsito à factualidade objetiva e dela automaticamente presumível.
À semelhança dos elementos clássicos do dolo do tipo (intelectual e volitivo), e pese embora se refira a estados internos, o dolo da culpa é materializável em factos, tendo efetivamente de ser materializado na acusação.
Não desconhecendo a querela jurisprudencial na matéria, propende este Tribunal para posicionar-se do lado da orientação que exige a alegação positiva da consciência da ilicitude na acusação de modo a que essa prova possa ser feita, a jusante, em audiência de julgamento – neste sentido, vide acórdãos do TRP, de 22/02/2017, proc. n.º 2407/16.2T9PRT.P1, e de 08/03/2023, proc. n.º 915/21.2T9VFR.P1, e do TRG, de 16/06/2017, proc. n.º 430/15.3GEGMR.G1, todos acessíveis em www.dgsi.pt.
Na verdade, ainda que o argumento segundo o qual tal factualidade é apenas obrigatória apenas quando a conduta tenha caráter axiológico neutro e dispensada no caso em que o desvalor da conduta esteja sedimentado na consciência coletiva seja, admite-se, tentador, entende-se que o mesmo coloca questões ardilosas às quais não se tentará aqui elucubrar e, no mínimo, uma leitura habilidosa do que é a doutrina geral do crime e do disposto nos arts. 16.º e 17.º do CP e 283.º, n.º 3, do CPP.
É Figueiredo Dias que descreve os tipos de ilícito e de culpa como «pressupostos categoriais sistemáticos mínimos, enquanto expressões de dignidade penal tipificada: o primeiro como concretização central do conceito material de crime, o segundo como censurabilidade do agente referida ao ilícito tipificado» (sublinhado e negrito nosso) – cfr. Jorge de Figueiredo Dias, em Direito Penal: Questões fundamentais – A doutrina geral do crime, Tomo I, 3.ª edição, 2019, pág. 306.
A essencialidade da inclusão de factualidade enformadora do tipo de culpa deriva necessariamente da essencialidade da culpa no sistema jurídico-penal, no princípio basilar da culpa, segundo o qual esta é pressuposto e limite da pena, nas palavras do mesmo penalista, «necessário se tornando sempre que a conduta seja culposa, isto é, que o facto possa ser pessoalmente censurado ao agente, por aquele se revelar expressão de uma atitude interna juridicamente desaprovada e pela qual ele tem por isso de responder perante as exigências do dever-ser sócio-comunitário» (em ob. Cit., págs. 318-319).
Entender que a demonstração positiva da consciência da ilicitude só releva quando existe a possibilidade de o erro sobre a mesma não ser censurável significa ignorar a culpa como condição necessária da existência de crime e de punibilidade, e concebê-la, na sua fórmula negativa, como tipo justificador.
Fazendo, assim, impender sobre a defesa o ónus de demonstrar a sua falta, comportando um desvio à estrutura acusatória do processo.
Voltando ao AUJ n.º 1/2015, no mesmo pode ler-se: «Em conclusão: a acusação, enquanto delimitadora do objecto do processo, tem de conter os aspectos que configuram os elementos subjectivos do crime, nomeadamente os que caracterizam o dolo, quer o dolo do tipo, quer o dolo do tipo de culpa no sentido acima referido, englobando a consciência ética ou consciência dos valores e a atitude do agente de indiferença pelos valores tutelados pela lei criminal» (sublinhado e negrito nosso).
E reforça a ideia: «Ou seja: a exigida narração dos factos é a de todos os factos constitutivos do tipo legal de crime, sejam eles pertencentes ao tipo objectivo do ilícito, sejam ao tipo subjectivo e ainda, naturalmente, na sequência do que temos vindo a expor, os elementos referentes ao tipo de culpa. A factualidade relevante, como factualidade típica, portadora de um sentido de ilicitude específico, só tem essa dimensão quando abarque a totalidade dos seus elementos constitutivos. Não existem puros factos não valorados, como vimos a propósito, nomeadamente, das teorias do objecto do processo, e a valoração específica que aqui se reclama, consonante com um tipo de ilícito, só se alcança com a imputação do facto ao agente, fazendo apelo à representação do facto típico, na totalidade das suas circunstâncias, à sua liberdade de decisão, como pressuposto de toda a culpa, e, envolvendo a consciência ética ou dos valores, à posição que tomou, do ponto de vista da sua determinação pelo facto. Sem isso, não está definida a conduta típica, ilícita e culposa» (sublinhado e negrito nosso).
Seja qual for a posição que se tome quanto ao problema da relevância axiológica da conduta neste feixe de situações, facto é que os contornos fácticos do caso não permitem presumir, de acordo com as regras da experiência comum, conforme vem sendo defendido por aquela jurisprudência, a correta orientação da consciência ética do arguido no sentido do desvalor do facto.
Pese embora o crime de difamação pertença ao designado direito penal clássico, e, seja, em princípio, difícil equacionar que alguém impute factos ou juízos desonrosos a outrem sem ter consciência do desvalor dessa ação, o contexto em que foram praticados os factos torna duvidoso que o arguido estivesse na plena consciência da ilicitude da sua conduta, ou, melhor dizendo, que não incorresse em erro sobre um estado de coisas que, a existir, excluiria a ilicitude do facto.
Com efeito, as expressões difamatórias em questão foram proferidas pelo arguido no âmbito de prestação de depoimento de parte, durante o qual estava sujeito ao dever de falar a verdade, e ciente deste dever que se lhe impunha.
Desconhecendo se o arguido mentiu ou se falou a verdade quando imputou aqueles factos ao assistente – de notar que a mera incapacidade para provar a verdade da sua imputação não corresponde a aceitar que a imputação é falsa – é perfeitamente equacionável que o arguido aceitasse erroneamente que agia legitimamente ao abrigo de um dever legal, e, bem assim, de forma lícita.
Donde, parece ser este o perfeito exemplo de como a alegação de que o arguido sabia que a sua conduta era proibida e punida pela lei penal não é inócua e desnecessária, tendo, aliás, um conteúdo funcional relevantíssimo.
Inexistindo no libelo acusatório qualquer referência à consciência da ilicitude, e constituindo esta um elemento estrutural do crime enquanto facto punível, demonstrada que está a impossibilidade de integrar esse elemento em fase de julgamento, impõe-se a absolvição também do arguido pela prática de um crime de difamação, p. e p. pelo art. 180.º, n.º 1, do CP.
Do pedido de indemnização cível
A absolvição criminal não implica, necessariamente, a improcedência do pedido cível formulado com fundamento na prática do crime, conforme se intui do disposto no art. 377.º, n.º 1, do CP.
Com efeito, a ilicitude civil não se rege pelos mesmos pressupostos que a ilicitude penal o que permite alguns desencontros em termos de tutela.
Decorre do art. 129.º do CP que a indemnização de perdas e danos emergentes de crime é regulada pela lei civil e, bem assim, pelos arts. 483.º e sgs. e 562.º e sgs.
O Código Civil regula a responsabilidade civil por factos ilícitos no seu art. 483.º, segundo o qual «Aquele que, com dolo ou mera culpa, violar ilicitamente o direito de outrem ou qualquer disposição legal destinar a proteger interesses alheios, fica obrigado a indemnizar o lesado pelos danos resultantes da violação».
Assenta, assim a responsabilidade delitual nos seguintes pressupostos: facto voluntário dominável pela vontade humana, ilicitude, culpa, dano, e nexo causal entre o facto e o dano.
Preenchidos os referidos pressupostos, nasce para o lesante a obrigação de indemnizar.
Além deste, e subjugado ao preenchimento dos mesmos pressupostos, prescreve o art. 484.º do Código Civil que «quem afirmar ou difundir um facto capaz de prejudicar o crédito ou o bom nome de qualquer pessoa, singular ou colectiva, responde pelos danos causados».
Nesta sede, a ilicitude assume uma diferente natureza da penal, dando-se quer pela violação de uma disposição legal destinada a proteger interesses alheios, quer pela violação de um direito subjetivo, maxime um direito absoluto, tais como o direito à tutela geral da personalidade plasmado no art. 70.º, n.º 1, do CC, e o direito ao bom-nome naquele incluso.
No caso vertente, atendendo à factualidade provada, verifica-se que, com a sua conduta, ao propalar ao Tribunal que o assistente/demandante seria toxicodependente e que o teria ameaçado de moléstias físicas, o arguido/demandado violou o direito absoluto daquele ao bom nome e reputação, na sua refração de honra e consideração, direito com acolhimento quer constitucional, no art. 25.º, n.º 1, da CRP, quer infraconstitucional como integrante da tutela geral da personalidade consagrada no art. 70.º do CC.
São estas expressões que, pela sua gravidade e pelo contexto em que foram proferidas, se consideram ofensivas em medida que extrapola aquela do exercício da livre expressão.
As demais expressões inserem-se, ainda, no exercício salutar do direito à liberdade de expressão, sendo que também no domínio da responsabilidade civil tem vindo a firmar-se jurisprudência, a par daquela produzida a nível europeu, e à qual já supra se fez referência, no sentido de que a liberdade de expressão tem um escopo dilatado e deve ceder apenas perante uma criteriosa ponderação em termos de proporcionalidade.
Daí que, consultadas as demais expressões proferidas pelo demandado não se veja como fora extravasado o âmbito do exercício da liberdade de expressão.
O mesmo se diga quanto à demandada, sendo que as expressões por esta proferidas nem sequer reúnem idoneidade para se considerarem uma ofensa ao bom nome do demandante, quanto mais uma ofensa relevante.
Donde, soçobra a pretensão do demandante em relação à demandada.
Quanto ao pressuposto culpa, este traduz-se no juízo de censura dirigível ao lesante, no sentido de se poder afirmar que este «pela sua capacidade e em face das circunstâncias concretas da situação, podia e devia ter agido de outra forma» - cfr. Pires de Lima e Antunes Varela, em Código Civil Anotado, Volume I - (Artigos 1.ª a 761.º), 4.ª edição, Coimbra: Coimbra Editora, Abril, 2010, pág. 474).
A culpa há de aferir-se em função do critério bonus pater familiae, estatuído no artigo 487.º, n.º 2, do CC.
No caso em apreço, o demandado quis agir da forma ilícita como agiu, podendo agir de outro modo, pelo que não restam dúvidas que o fez com culpa.
Não obstante, não foram apurados quaisquer danos produzidos na esfera do demandante resultantes da conduta ilícita adotada pelo arguido, pelo que se impõe a improcedência do pedido cível.
A responsabilidade por custas criminais impende ao assistente, nos termos do art. 515.º, n.º 1, al. a), do CPP, corrigindo-se a respetiva taxa de justiça para 4 UC, nos termos previstos no art. 8.º, n.º 1, do Regulamento das Custas Processuais (RCP), ao qual se deverá imputar o montante já liquidado.»
O teor da acusação particular deduzida nos autos, em 6/09/2021, pelo assistente CC contra os arguidos AA, e BB é o seguinte:
«No dia 13-07-2020, durante a audiência de discussão e julgamento no processo nº3061/20.2T8MTS, referente ao procedimento cautelar de arrolamento, AA e BB, pai e madrasta do assistente, respetivamente, intervieram na qualidade de testemunhas, e, após terem prestado juramento e terem sido advertidos das consequências penais em caso de prestação de falso testemunho, declararam que pretendiam prestar declarações.
O denunciado AA, nas suas declarações, conforme o CD (que se anexa à presente peça processual), na faixa de áudio 20220713095548_15759593_2871549, afirmou:
1. (00:05:48) "Ele ameaça-me. Diz que me faz uma espera. Aliás, aqui há uns tempos disse-me que ia resolver o problema à pancada. Eu tenho medo dele"
2. (00: 10:00) "Anda na droga, Sra. Dra. Anda aí a .... ainda no outro dia andava naqueles bairros ... que ainda agora apanharam e andava lá a comprar. Eu vi com os meus olhos. Ninguém me contou"
3. (00:10:34) ''Está com o(. . .) rendimento mínimo"
4. (00:14:42) À pergunta "O Senhor CC tem hábitos de trabalho ", responde (00:14:45) "Não, não trabalha. O meu filho é a minha vergonha. Não trabalha, não quer trabalhar, nunca quis trabalhar (..)"
Ora, o aqui assistente CC não consome, nem nunca consumiu drogas, e muito menos frequenta bairros para comprar droga.
Para além disto, o assistente não beneficia do rendimento mínimo, nem no presente momento, nem em momentos anteriores, isto porque, sempre trabalhou, conforme se demonstra com a declaração da Segurança Social onde estão previstos os descontos mensais nos anos 2016, 2017, 2018, 2019 (Does. n.05 2 e 3, que se juntam e se dão por integralmente reproduzidos para os devidos e legais efeitos).
Aliás, o assistente constituiu uma Sociedade Unipessoal por quotas da qual é gerente, não se podendo, então, negar os seus hábitos de trabalho, comprovando-se a falsidade das declarações supra referidas, prestadas pelo aqui denunciado AA (Doe. n.º 4, que se junta e se dá por integralmente reproduzido para os devidos e legais efeitos).
Por sua vez, a denunciada BB, nas suas declarações, conforme o CD (cfr. CD audio que se anexa), na faixa de áudio 20200713101707_15759593_2871549,
afirmou:
1. (00:05:41) "Eu conheci-lhe muitos empregos, e bons empregos, mas ele ao fim de algum tempo saía, não sei porquê ".
2. Referiu ainda quando questionada se AA sustentava financeiramente o filho ao qual respondeu (00:05 :55) "Sim, sim".
Todos sabemos que o mundo laboral em Portugal é um mundo incerto e inconstante, que acaba por ver projetado em si mesmo as curvas inconstantes e extremas da situação financeira portuguesa.
Dito isto, justifica-se a perda de CC de alguns postos de trabalho.
Adicionalmente, é de referir que CC nunca foi sustentado na idade adulta pelo pai, AA, até porque este último não tinha condições para tal.
Ao proferir estas palavras, os denunciantes fizeram-no com o propósito de atingir o bom-nome e a reputação do ofendido.
Esta foi uma conduta adotada pelos denunciados de forma consciente com o objetivo de afetar o bom nome de CC, de forma a conseguirem "manchar" a imagem do mesmo, perante o Tribunal.
Com efeito, in casu, não nos limitamos a falar aqui de uma exposição de opiniões sobre CC, mas sim de relatos de factos falsos e difamadores que tiveram como propósito influenciar a decisão do Tribunal, querendo criar uma imagem de CC de alguém não integrado no mundo de trabalho, enquanto um adulto economicamente dependente do seu pai e toxicodependente.
Numa evidente tentativa de enganar e influenciar a decisão da Meritíssima Juíza no processo acima referido, optaram por proferir declarações que são, no seu todo falsas, ofendendo e difamando o aqui Assistente, o que realmente quiseram e conseguiram.
Com estes argumentos fictícios e totalmente fabricados, os aqui denunciados pretendiam que a decisão do Tribunal, no processo onde foram estas declarações proferidas, lhe fosse favorável, conseguindo um arrolamento provisório de bens, para o qual não tinham qualquer fundamento.
De forma inequívoca, ao proferir as expressões supra indicadas, no tom vil, mavioso e desonroso em que o fizeram, os denunciados agiram livre, propositada e deliberadamente, demonstrando querer atingir a honra, o bom nome, a reputação e auto-estima do Assistente, o que conseguiram, imputando-lhe factos e juízos ofensivos da sua honra e consideração querendo fazer crer a todos quanto ouviram no Tribunal, que o assistente recorria a drogas para consumo, não trabalhava e era um indigente e maltrapilho, com toda a carga negativa, depreciativa que tais adjectivos e características acarretam para qualquer pessoa de bem, como o assistente.
II. Do direito
Os factos que se expuseram são suscetíveis de integrar o tipo legal de crime previsto no nº 1 do artigo 180° do Código Penal- crime de difamação.»
Em 20/09/2021 o MP pronuncia-se sobre a acusação particular no sentido de não deduzir acusação pelos factos constantes da acusação particular deduzida pelo assistente.
B - Fundamentação de direito
É pacífico o entendimento de que o âmbito do recurso se define pelas conclusões que o recorrente extraiu das respetivas motivações, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso.
No caso dos autos a questão a decidir é a de saber se a acusação particular deduzida pelo nos autos continha todos os elementos necessários para conduzir à condenação do arguido, - quer em termos criminais, quer no que respeita ao pedido de indemnização civil -, já que o recurso apenas põe em causa a absolvição do arguido AA.
O Acórdão de fixação de jurisprudência n.º 1/2015, de 27 de janeiro, o qual fixou jurisprudência, no seguinte sentido: «A falta de descrição, na acusação, dos elementos subjetivos do crime, nomeadamente dos que se traduzem no conhecimento, representação ou previsão de todas as circunstâncias da factualidade típica, na livre determinação do agente e na vontade de praticar o facto com o sentido do correspondente desvalor, não pode ser integrada, em julgamento, por recurso ao mecanismo previsto no artigo 358.º do Código de Processo Penal.»
Neste Acórdão fixador de jurisprudência pode ler-se na fundamentação:
«…a acusação deve conter com a máxima precisão a descrição dos factos da vida real, os que configuram o acontecimento histórico que teve lugar e que correspondam aos elementos constitutivos do tipo legal de crime, tanto os do tipo objectivo do ilícito, como os do tipo subjectivo.
(…)
a exigida narração dos factos é a de todos os factos constitutivos do tipo legal de crime, sejam eles pertencentes ao tipo objectivo do ilícito, sejam ao tipo subjectivo e ainda, naturalmente, na sequência do que temos vindo a expor, os elementos referentes ao tipo de culpa. A factualidade relevante, como factualidade típica, portadora de um sentido de ilicitude específico, só tem essa dimensão quando abarque a totalidade dos seus elementos constitutivos. Não existem puros factos não valorados, como vimos a propósito, nomeadamente, das teorias do objecto do processo, e a valoração específica que aqui se reclama, consonante com um tipo de ilícito, só se alcança com a imputação do facto ao agente, fazendo apelo à representação do facto típico, na totalidade das suas circunstâncias, à sua liberdade de decisão, como pressuposto de toda a culpa, e, envolvendo a consciência ética ou dos valores, à posição que tomou, do ponto de vista da sua determinação pelo facto. Sem isso, não está definida a conduta típica, ilícita e culposa.»
Importa relembrar o que da acusação particular deduzida nos autos, consta relativamente aos elementos subjetivos do tipo criminal imputado ao arguido:
«Com estes argumentos fictícios e totalmente fabricados, os aqui denunciados pretendiam que a decisão do Tribunal, no processo onde foram estas declarações proferidas, lhe fosse favorável, conseguindo um arrolamento provisório de bens, para o qual não tinham qualquer fundamento.
De forma inequívoca, ao proferir as expressões supra indicadas, no tom vil, mavioso e desonroso em que o fizeram, os denunciados agiram livre, propositada e deliberadamente, demonstrando querer atingir a honra, o bom nome, a reputação e auto-estima do Assistente, o que conseguiram, imputando-lhe factos e juízos ofensivos da sua honra e consideração querendo fazer crer a todos quanto ouviram no Tribunal, que o assistente recorria a drogas para consumo, não trabalhava e era um indigente e maltrapilho, com toda a carga negativa, depreciativa que tais adjectivos e características acarretam para qualquer pessoa de bem, como o assistente.»
Resulta manifesto da alegação que a acusação particular em causa é omissa quanto à consciência da ilicitude por parte do arguido, apesar de ser consabido que a exigida narração dos factos conduz à nulidade da mesma e não pode ser colmatada em audiência de julgamento.
Temos vindo a defender que efetivamente a alegação e demonstração positiva da consciência da ilicitude do arguido aquando da prática objetiva dos factos, é essencial, porquanto, isso é algo de emocional que acresce ao conhecimento das circunstâncias do facto, e por isso, a nosso ver, integra elemento cognitivo/intelectual do dolo, o conhecimento de que o comportamento é proibido e punido por lei.
Neste sentido e com maiores desenvolvimentos sobre o tema, remetemos para o Ac. da Relação do Porto de 8/03/2023, que subscrevemos como relatora, e que se encontra disponível em www.dgsi.pt.
Entendemos que dispensar a alegação positiva da consciência da ilicitude para que possa vir a ser demonstrada em audiência, faria impender sobre a defesa o ónus de demonstrar a sua falta, se estivermos perante um caso de erro, nos termos previstos nos artigos 16 ou 17 do Código Penal, quando o ónus da prova dos factos imputados ao arguido cabe à acusação e a prova plena dos mesmos é essencial para afastar a presunção de inocência consagrada no artigo 32 n.º 2 da CRP.
Assim sendo, a acusação particular deduzida contra o arguido é nula por não conter a alegação positiva da consciência da ilicitude, nos termos do disposto no art. 283 nº3 al b) do CPP, aplicável por força do art. 285 nº3, ambos do CPP, e deveria ter sido rejeitada no momento do saneamento do processo, ao abrigo do disposto no art.º 311 nº2 al. a) e nº3 al b), também do CPP.
Tendo a acusação passado no crivo do citado art. 311, bem andou a sentença recorrida ao decidir que:
«Inexistindo no libelo acusatório qualquer referência à consciência da ilicitude, e constituindo esta um elemento estrutural do crime enquanto facto punível, demonstrada que está a impossibilidade de integrar esse elemento em fase de julgamento, impõe-se a absolvição também do arguido pela prática de um crime de difamação, p. e p. pelo art. 180.º, n.º 1, do CP.»
Pelo exposto, nada temos a censurar à sentença recorrida no que respeita à absolvição do arguido quanto ao crime de difamação que lhe foi imputado na acusação particular oportunamente deduzida nos autos pelo assistente.
No que respeita ao pedido de indemnização civil, a sentença absolutória não impede a respetiva procedência, desde que se demonstrem os pressupostos da obrigação de indemnizar. - art. 377 nº1 do CPP.
No caso concreto o assistente peticionou a título de indemnização por danos morais, sobrevindos das ofensas à sua honra, bom-nome e autoestima, a condenação do arguido a pagar-lhe quantia não inferior a € 2000.
Como tal a decisão proferida não é recorrível face ao valor do pedido que se contém nos limites da alçada do Tribunal de primeira instância nos termos do disposto no art. 400 nº2 do CPP, pelo que, nesta parte há que rejeitar o conhecimento do recurso.
Porém, e não obstante o que consta do § anterior, sempre se aduzirá que no pedido cível deduzido nos autos tão pouco foram alegados danos, porquanto, nada consta sobre os sentimentos do assistente perante as alegadas ofensas, apenas se referindo que as expressões em causa acarretariam uma carga negativa e depreciativa para qualquer pessoa de bem como o assistente.
Sendo pressuposto da obrigação de indemnizar civilmente por atos ou ações extracontratuais, o dano emergente como efeito causal da ação praticada, - artigos 483 e 484 do C. Civil -, no caso concreto em análise, não se vislumbra alegado qualquer dano concreto, já que independentemente do teor das expressões proferidas pelo arguido, não ficou demonstrado que o assistente tivesse sofrido prejuízo de qualquer natureza que fosse suscetível de ser reparado.
Em face do exposto, também nesta parte referente à matéria cível, sempre o recurso seria improcedente.
3. Decisão:
Tudo visto e ponderado, com base nos argumentos que ficaram expostos, acordam os Juízes na 1ª secção criminal do Tribunal da Relação do Porto em negar provimento ao recurso interposto pelo assistente CC e confirmam integralmente a sentença recorrida.
Custas a cargo do assistente fixando-se a taxa de justiça em 4 Ucs.

Porto, 21/2/2024
Cristina Guerreiro
Nuno Salpico
Castela Rio [com a seguinte declaração de voto:
«Subscrevo todo o antecedente Acórdão EXCEPTO os §§ com os teores «Porém, e não obstante o que consta do § anterior, sempre se aduzirá que no pedido cível deduzido nos autos tão pouco foram alegados danos, porquanto, nada consta sobre os sentimentos do assistente perante as alegadas ofensas, apenas se referindo que as expressões em causa acarretariam uma carga negativa e depreciativa para qualquer pessoa de bem como o assistente. | Sendo pressuposto da obrigação de indemnizar civilmente por atos ou ações extracontratuais, o dano emergente como efeito causal da ação praticada, - artigos 483 e 484 do C. Civil -, no caso concreto em análise, não se vislumbra alegado qualquer dano concreto, já que independentemente do teor das expressões proferidas pelo arguido, não ficou demonstrado que o assistente tivesse sofrido prejuízo de qualquer natureza que fosse suscetível de ser reparado. | Em face do exposto, também nesta parte referente à matéria cível, sempre o recurso seria improcedente», por claramente consubstanciarem apreciação do mérito do Recurso Cível cujo conhecimento ficou logicamente precludido pelo facto de se dizer no § anterior àqueles «Como tal a decisão proferida não é recorrível face ao valor do pedido que se contém nos limites da alçada do Tribunal de primeira instância nos termos do disposto no art. 400 nº 2 do CPP, pelo que, nesta parte há que rejeitar o conhecimento do recurso.»]