Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
1873/18.6T8PVZ.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: ALEXANDRA PELAYO
Descritores: DECISÃO NO SANEADOR
DIVERSIDADE DE DECISÕES PLAUSÍVEIS
TERCEIROS DE BOA FÉ
OPONIBILIDADE AO TITULAR DO DIREITO
Nº do Documento: RP202003091873/18.6T8PVZ.P1
Data do Acordão: 03/09/2020
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - A decisão do processo na fase do saneador-sentença só pode suceder quando, segundo as várias soluções plausíveis da questão de direito, a matéria de facto não deixar dúvidas a ninguém sobre a sua procedência ou improcedência.
II - Se de acordo com as soluções plausíveis da questão e direito, a decisão final de modo algum puder ser afetada com a prova dos factos controvertidos, não existe qualquer interesse na enunciação dos temas da prova e, por isso, nada impede que o juiz profira logo decisão de mérito;
III - A proteção dos terceiros adquirentes de boa-fé estabelecida no art. 291º do C.Civil não é aplicável aos negócios gratuitos, assim como não é invocável no caso de negócio oneroso de transmissão de bens alheios, perante o verdadeiro proprietário, porquanto, perante o proprietário, aquele contrato não tem nenhum valor assumindo o cariz de inter allius acta, sendo que a ineficácia do contrato relativamente ao proprietário opera ipso iure.
IV - Não tendo o registo natureza constitutiva, mas apenas valor declarativo, os atos existem fora do registo, sendo o efeito deste simplesmente declarativo, não conferindo, por princípio, quaisquer direitos
Reclamações:
Decisão Texto Integral: 1873.18.6T8PVZ.P1

Tribunal de origem: Tribunal Judicial da Comarca do Porto-Juízo Central Cível da Póvoa de Varzim- Juiz 6

SUMÁRIO:
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Acordam os Juízes no Tribunal da Relação do Porto:

I – RELATÓRIO
B…, instaurou contra C… e D… ação declarativa de condenação com processo comum tendo formulado o seguinte pedido:
a) Seja declarada nula a doação cujo objeto foi o prédio identificado nos autos, por configurar uma doação de bens alheios;
b) Seja declarada a nulidade da mesma doação por a mesma ser contrária á lei;
c) Seja declarada a nulidade da doação do mesmo prédio por simulação.
d) Em qualquer caso, seja ordenado o cancelamento do registo efetuado com base na escritura de doação de 23.3.2018, em específico o resultante da AP- 1685 de 2019/03/26 Descrição 3045 e os subsequentes,
Subsidiariamente,
e) O reconhecimento que o A. é credor da D… e no valor de €85.480,00 (oitenta e cinco mil quatrocentos e oitenta euros).
f) A condenação da C… a tal o reconhecer bem com a pagar esse valor ao Autor.
g) O reconhecimento de que o crédito do Autor, com exceção dos danos não patrimoniais, é anterior à doação.
h) A declaração que a doação foi realizada por acordo entre os Réus e visando impedir o Autor de ser pago do seu crédito.
i) A declaração e reconhecimento que, a manter-se a doação, o pagamento do crédito do Autor se tornou impossível, pois a Ré, C… não possui qualquer outro bem imóvel, móvel ou rendimentos.
j) A declaração de que as Rés agiram para impedir o cumprimento da sentença.
k) Se declare que a donatária agiu em total má-fé, pois tinha conhecimento quer da sentença, quer da impossibilidade da sua mãe, com a doação, de pagar o crédito.
l) Se reconheça que o negócio doação foi gratuito.
m) Se declare que o Autor tem direito à restituição do bem doado, para satisfação do seu crédito, fiando, bem como o direito de executá-lo no património de quem está obrigado à entrega, ou seja, a D….
Sempre
n) A condenação da C… a pagar ao A. 85.480,00 (oitenta e cinco mil quatrocentos e oitenta euros) acrescida dos juros vencidos desde esta data, à taxa legal, e sobre valor de 75.480,00 (setenta e cinco mil quatrocentos e oitenta euros).
o) E, qualquer dos casos, seja ordenado o cancelamento dos registo efetuado com base na escritura de doação de 23.3.2018, em específico o resultante e da AP- 1685 de 2019/03/26 Descrição 3045 e os subsequentes.
Alega, para tanto em síntese, que intentou um processo comum de declaração contra a aqui Ré C… – o qual correu seus termos pelo Juízo Local Cível de Santo Tirso (Juiz 1, nº 1920/14.0TBSTS) – pedindo o reconhecimento do seu direito de propriedade sobre um terreno da Ré, por via do instituto da acessão industrial imobiliária, mediante o pagamento a esta do valor de €15.000,00, correspondente ao valor do terreno antes da construção nela identificada.
Foi, nesse processo proferida decisão, transitada em julgado, que declarou que a construção em causa foi realizada pelo Autor de boa-fé, que o valor da mesma foi de €43.000,00 e que o valor do terreno antes da sua edificação era de €15.000,00 e, consequentemente, reconheceu ao aqui Autor o direito adquirir a propriedade desse terreno contra o pagamento da quantia de €15.000,00.
Após o trânsito em julgado dessa decisão, o Autor requereu a notificação judicial avulsa da Ré C… para que indicasse a conta bancária para onde deveria ser efetuada a transferência do referido montante de €15.000,00.
Na falta de resposta, em 15 de Maio de 2018, efetuou o depósito de tal montante à ordem do aludido processo, após o que requereu ao tribunal a certificação de tal ato, bem como do trânsito em julgado da supra aludida decisão, tudo para efeitos de registo da sua aquisição na Conservatória do Registo Predial.
Verificou então que, por escritura pública de 23 de Março de 2018, a Autora declarou doar aquele mesmo imóvel à Ré D…, a qual logrou registar tal transmissão a seu favor, com isso inviabilizando o registo da aquisição a favor do Autor.
A Ré C… doou assim, um prédio que, nos termos da referida sentença, já não lhe pertencia, pelo que tal doação, de um bem alheio, sempre será nula.
De resto, as Rés acordaram entre si celebrar a escritura de doação, tendo ambas conhecimento do teor da sentença acima referida, tão só para prejudicar o Autor, impedindo-o de registar o prédio em seu nome e de tornar proprietário do mesmo, pelo que a doação também será nula por constituir um negócio simulado.
Além do mais, o objeto desse negócio jurídico, por ir contra o decidido por sentença, é contrário à lei, à ordem pública e ofensivo dos bons costumes e, também por isso, nulo.
Se assim não se entender, deve ser reconhecido ao Autor um crédito de €85.480,00, correspondente à soma do valor das benfeitorias realizadas no terreno, dos juros de mora já vencidos, do valor de €15.000,00 que depositou no processo à ordem da Ré C…, e de uma indemnização por danos não patrimoniais de valor não inferior a €10.000,00.
Por outro lado, sendo tal crédito anterior (com exceção dos danos não patrimoniais peticionados) ao ato da doação realizada entre as Rés, sempre este negócio pode ser impugnado por via do instituto da impugnação pauliana.
A Ré D… apresentou contestação, onde impugna os factos invocados na petição inicial, afirmando não ter conhecimento do teor da sentença invocada pelo Autor e que a doação em causa se destinou ao “pagamento” de empréstimos que ela própria e o seu falecido pai fizeram à Ré C…, tratando-se, assim, de um negócio de natureza onerosa.
Afirma que, por isso, está de boa-fé e beneficia da proteção consagrada no art. 291º do Código Civil.
Acresce que adquiriu o imóvel da pessoa a favor de quem o mesmo se encontrava registado na Conservatória do Registo Predial, beneficiando, por isso, da presunção de titularidade emergente do art. 7º do Código de Registo Predial
Sustenta, além do mais, que as benfeitorias invocadas pelo Autor na referida ação, ao contrário do que ali se alega, foram suportadas em partes iguais pelo Autor e pela Ré C…. Assim, a ação cuja sentença de que o Autor agora se prevalece resulta um conluio entre as partes na ação respetiva - incluindo, portanto a Ré C…, que não a contestou - para prejudicar terceiros, no caso a Ré e os demais herdeiros dos doadores, tudo para inviabilizar qualquer ação por redução de liberalidades inoficiosas. Pretende, por isso, instaurar ação judicial com vista a apreciar a dita simulação processual que, em seu entender, constitui causa prejudicial em relação a estes autos.
Termina requerendo a condenação do Autor em multa e indemnização como litigante de má-fé.
O Autor respondeu à contestação, concluindo como na petição inicial e requerendo ainda a condenação da Ré contestante como litigante de má-fé.
Foi realizada audiência prévia, na qual o tribunal comunicou às partes que se encontravam reunidos todos os elementos para proferir de imediato decisão, após o que veio a proferir Despacho Saneador, onde conheceu do mérito da causa, tendo proferido a seguinte decisão:
“Pelo exposto, julgo a ação procedente por provada e consequentemente declaro nula a doação cujo objeto do imóvel descrito na Conservatória do Registo Predial da Trofa sob o n.º 3045 (freguesia de …) e consequentemente determino o cancelamento do registo de aquisição a favor da aqui Ré D… efetuado com base na escritura de doação de 23.3.2018 (resultante da Apresentação n.º 1685 de 2018/03/26) e todos os subsequentes.
Custas da ação pelas Rés.
Após trânsito, comunique ao registo predial.”
Inconformada, D…, veio interpor o presente recurso de Apelação, pedindo a revogação da decisão, tendo formulado as seguintes Conclusões:
“A) O autor ao não ter promovido o seu registo obrigatório não pode vir opor á 2.ª ré o facto de ter havido uma alegada doação de bens alheios nos termos do art.º 956.º do Código Civil que é a lei geral para todos os tipos de doação, quando existe uma lei especial, o CRPredial, que prevê que para os imóveis a falta de registo não pode ser oposta aos interessados.
Ressalta-se aqui a diferente designação do art.º 4.º “entre as próprias partes” da “aos interessados” no artigo 5.º.
Em palavras simples o autor tinha de ter registado o seu direito não o tendo feito só o pode invocar à parte que é a 1ª Ré e já não o pode fazer à 2ª Ré que é interessada e está aberta pela previsão do n.º3, do artigo 5.º do CRPredial.
Pelo que o Tribunal a quo não podia ter declarado como procedente a ação e determinado o cancelamento do registo de aquisição a favor da aqui ré D…, ao tê-lo feito violou o previsto nos artigos 4.º e 5.º do CRPredial, pelo que deve a sentença ser revogada e a Ré D… absolvida dos pedidos.
Sem prescindir (tendo alterado a ordem relativamente à alegação por via do facto de na alegação seguia a ordem da sentença, mas na decisão terá lógica a forma com aqui está colocado.)
B) Estando nesta parte em discussão a questão de a própria doação, não ser uma doação, mas sim outro negócio jurídico com outro enquadramento e até a questão de se tratar de um negócio simulado relativamente à questão da existência de preço.
O que deveria ter sido feito e poderia ter relevância fundamental relativamente ao regime jurídico aplicável, podendo até se chegar à conclusão de que não houve doação mas sim uma dação em pagamento e por via disso nem sequer se aplicar o regime jurídico do artigo 956.º do Código Civil.
Pelo que se verificou a violação do disposto na alínea b), do nº 1, do art.º 595.º do CPC uma vez que face à posição das partes não havia a possibilidade de dar como provado o ponto 10 dos factos dados como provados designadamente que a “Ré C… declarou doar à Ré D…” e que tal negócio foi de facto uma doação e não uma dação em pagamento.
Pelo que o Tribunal a quo não podia ter declarado como provado o facto 10 da matéria dada como provada, pelo que deve a sentença ser dado como não provado o ponto 10 – da matéria dada como provada e em consequência revogada e ordenado a baixa dos autos para produção e prova e seguir os seus ulteriores termos. Ao ter declarado que houve erro na forma do processo e que a presente ação devia ter entrado como ação comum e não ação popular o tribunal “a quo” violou os artigos 193º/1/2, e o 200,º/2 do CPC, tudo porque não houve qualquer erro na forma do processo e a mesma foi corretamente intentada.”
Contra alegou o Autor B… pugnando pela improcedência do recurso, tendo concluído da seguinte forma:
“A) O Art.º 956º do C.C., apenas diz respeito à relação doador/donatário.
B) À data da outorga da escritura em que a recorrente foi donatária, a doadora não era dona desse bem.
C) Assim nunca o poderia transmitir.
D)A recorrente impugna a matéria de facto, em específico dado como em 10 da Sentença em recurso.
E) Porém, nem sequer indica os concretos meios de prova que tal o exigem, ou seja, a recorrente teria que dar cumprimento ao que dispõe o artigo 640º - 1 e 2 do C.P.C..
F) Não o tendo feito, deve o recurso ser rejeitado, quanto a tal.
G) Sempre o dado como provado em 10 da Sentença o teria de ser, pois que estamos perante documento autêntico, com força probatória plena e cuja força probatória apenas poderia ser ilidida por falsidade.
H) Não foi arguida a falsidade do referido documento.
I) Assim o mesmo teria que ser dado como provado.
J) Deve a Sentença em recurso manter-se no seu todo.”
Admitido o recurso, cumpre apreciar e decidir.

II-OBJETO DO RECURSO:
Resulta do disposto no art.º 608.º, n.º 2, do Código de Processo Civil, aqui aplicável ex vi do art.º 663.º, n.º 2, e 639.º, n.º 1 a 3, do mesmo Código, que, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, o Tribunal só pode conhecer das questões que constem nas conclusões que, assim, definem e delimitam o objeto do recurso.
São pois estas as questões a apreciar:
-se ocorreu violação do disposto na alínea b), do nº 1, do art.º 595.º do CPC devendo os autos prosseguir para julgamento, nomeadamente no que respeita á matéria constante do facto 10 do elenco dos factos provados;
-se ocorreu violação dos artigos 4º e 5º do Código do Registo Predial, sendo a falta de registo do direito de propriedade do Autor impeditiva da declaração de nulidade do negócio jurídico de doação de bens alheios.
Quanto ao último parágrafo da conclusão B) do recurso em apreço, dever-se-á a lapso de escrita, pois refere-se a matéria (a uma ação popular) que não faz parte desta ação, pelo que não será considerado.

III-FUNDAMENTAÇÃO:
O tribunal julgou provados os seguintes factos:
1- O Autor intentou contra a aqui Ré C… um processo comum de declaração e que correu seus termos pelo Juízo Local Cível de Santo Tirso – Juiz 1, nº 1920/14.0TBSTS – onde formulou os seguintes pedidos: 1) “Declarada que a construção realizada na parcela de terreno sito na Rua …, descrito na conservatória sob o número três mil e quarenta e cinco e inscrito no artigo 4486 foi realizada e paga pelo A. e em total boa-fé”. 2) “Declarado que o valor da construção é de € 43.200,00 (quarenta e três mil e duzentos euros) e que o valor do terreno antes da mesma construção era de quinze mil euros”;3) “Declarado que A. tem direito a fazer seu o terreno supra identificado, ou seja reconhecida a propriedade do mesmo contra o pagamento à R. de quinze mil euros ou do valor que vier a ser fixado”; 4) “Ainda que se na perícia a realizar resultar que o terreno tem valor superior à construção, condenada a R. a pagar o valor que for fixado para esta”.
2- A sentença proferida naqueles autos, com data de 1 de Dezembro de 2016, considerou assentes os seguintes factos:
1- A. e R. mantiveram entre si uma relação afetiva, que se iniciou no ano de 1999 e terminou no ano de 2009.
2- Durante este tempo habitaram a mesma casa, dormiam na mesma cama, comiam à mesma mesa.
3- Tinham uma relação como se marido e mulher fossem.
4- Ao longo dos referidos anos, o A. estabeleceu uma profunda relação com E… e mulher F… – Pais da R.- Doc. 1 junto com a P.I.
5- É verdade que, em específico, o Pai da R. tratava o A. como se seu verdadeiro genro fosse.
6- Sempre o incentivou a construir uma casa em terreno contiguo à sua habitação e para aí passar a viver com a R..
7- O A. de tanta insistência e porque a relação com a R. era, então, estável, tal aceitou.
8- Ele próprio (o A.) fez um desenho de uma casa, muito embora, e posteriormente, tenha solicitado a um Gabinete de Arquitetura para elaborar o projeto, mas de acordo com as suas sugestões.
9- Em consequência foi apresentada na Câmara Municipal … pedido de licenciamento para uma moradia unifamiliar composta de rés-do-chão e sótão.
10- A ser construída em terreno pertença dos Pais da R., terreno esse sito na Rua …, descrito na Conservatória sob o nº três mil e quarenta e cinco e inscrito no art.º 4486.
11- Apresentado na Câmara o pedido de licenciamento, o mesmo foi classificado como o Processo n.º …/01.
12- O licenciamento foi deferido.
13- Foram assim apresentados os projetos de arquitetura, de saneamento, de gás, de abastecimento de água, bem como o projeto elétrico.
14- Dado que o terreno ainda estava em nome do Pai da R. todos os pedidos de licenciamento, foram requeridos em nome do mesmo e as licenças em nome deste emitidas.
15- Sempre o Pai da R. afirmava ao A. que podia construir, sem risco, pois a obra a realizar era dele (A.).
16- Foi assim que ao longo dos anos, com início em 2002, o A., por vezes com ajuda dos amigos, executou toda a parte de pedreiro.
17- Comprou e pagou os blocos, tijolos, placas, vigas, ferro, pedra, cimento e areia.
18- O A. executou toda a parte de trolha, bem com a parte elétrica.
19- Executou a carpintaria.
20- Comprou a telha e colocou-a, bem como barrotes e vigas.
21- Hoje está quase construída uma habitação de rés-do-chão e sótão.
22- O rés-do-chão é constituído por cozinha, quarto de banho, sala e dois quartos.
23- O sótão destina-se a arrumos.
24- O referido prédio está inacabado, faltando a caixilharia (portas e janelas) revestimento dos pavimentos dos quartos, louças no quarto de banho e ligações de água e eletricidade.
25- Sucede que: aos 21 de Novembro de 2006 os Pais da R., a esta doaram a parcela de terreno onde a casa foi construída, ou seja doaram uma parcela de terreno destinada a construção, sita na Rua … e com a descrição e inscrição alegada em 10 desta P.I.. – Doc. 2. junto com a P.I
26- Como supra se alegou a relação afetiva entre A. e R. findou em 2009.
27- Entretanto o Pai da R. faleceu aos 05.03.2011- Doc.3 junto com a P.I .
28- A R. não aceita ou pagar a obra construída no seu terreno, ou receber o preço do terreno ficando o prédio para o A..
29- A. construiu a referida obra em terreno alheio (da R.).
30- Fê-lo em absoluta boa-fé, com conhecimento dos então e atual donos, a pedido destes.
31- Fê-lo na presença destes mesmos e sem qualquer oposição.
32- Visando definir quer o valor do terreno, quer o valor da obra construída pelo A., este solicitou uma avaliação.
33- Desta avaliação resulta que hoje:
- o terreno tem o valor de €30.260,00; e
- a construção tem o valor de €43.200,00.
34- Porém, à data da feitura das obras (início em 2002) o terreno tinha o valor de €15.000,00 (quinze mil euros).
35- Ou seja, a construção tem um valor superior ao do terreno.
36- Toda a construção foi executada pelo A., todos os materiais foram por ele adquiridos e pagos, toda a obra realizada no terreno em causa foi paga com o dinheiro do A. ou executada com o seu trabalho.
3 - E, com base neles, decidiu:
“Declara-se que a construção realizada na parcela de terreno sito na Rua …, descrita na conservatória sob o nº três mil e quarenta e cinco e inscrita no art.º 4486 foi realizada e paga pelo A. E em total boa-fé”.
“Declara-se que o valor da construção é de € 43.200,00 (quarenta e três mil e duzentos euros) e que o valor do terreno antes da mesma construção era de quinze mil euros”.
“Declara-se que o A. tem direito a fazer seu o terreno supra identificado, ou seja reconhecida a propriedade do mesmo contra o pagamento à R. de quinze mil euros”.
4 - Desta Sentença foi interposto recurso, tendo o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, confirmado a sentença de 1ª instância;
5- Esse Acórdão foi notificado às partes aos 31.10.2017 e transitou em julgado aos 04.12.2017;
6 - Em 8 de Fevereiro de 2018, o aqui Autor requereu notificação judicial avulsa da R. C…, pedindo: “Que a requerida seja notificada para no prazo de oito dias indicar conta bancária ou IBAN, onde possa ser efetuado o depósito ou transferência de quinze mil euros; “Mais requer que tal seja comunicado ao mandatário do aqui Requerente”;
“Ainda Requer que a mesma seja notificada de que decorrido o referido prazo de oito dias, o aqui requerente fará depósito autónomo na G… e do que fará prova nos autos supra identificados”;
7 - Tal notificação foi efetuada no dia 6 de Abril de 2018;
8 - Em 15 de Maio de 2018, o Autor efetuou o depósito dos quinze mil euros, por depósito autónomo;
9 - Em 17 de Maio de 2018, o aqui Autor fez um requerimento ao processo a correr seus termos no Juízo Local Cível de Santo Tirso para informar do depósito de quinze mil euros e ainda requer certidão da Sentença para efeitos de registo;
10 - Por escritura pública lavrada a 23 de Março de 2018 – cuja cópia está junta a fls. 56 e segs. com o teor que aqui se dá por integralmente reproduzido – a Ré C… declarou doar à Ré D…, “por conta da quota disponível” [1] a “parcela de terreno para construção, sita na Rua …, na União de freguesias … (…) concelho da Trofa, descrito na conservatória do Registo Predial da Trofa sob o número três mil e quarenta e cinco da extinta freguesia de …) registada a aquisição a favor da donatária pela apresentação oito de vinte e sete de Novembro de dois mil e seis (Ap. 8 de 2006/11/27) inscrito to no artigo 1201 (proveio do artigo 4486 da extinta freguesia de …) com o valor atual (CIMI) e atribuído de trinta e seis mil e oitenta euros e catorze cêntimos”;
11 - Com base nesta escritura pública, e pela apresentação n.º 1685, de 2018/03/26, a Ré D… registou a seu favor, na Conservatória do Registo Predial, a aquisição desse mesmo imóvel.
Não se consideraram provados, ou não provados, quaisquer outros factos entre os alegados pelas partes com relevo para a decisão da causa.

IV-O DIREITO APLICÁVEL
4.1 Da violação na alínea b), do nº 1, do art.º 595.º do CPC
A título de pedido principal, o autor veio pedir em Juízo a declaração nulidade da doação do imóvel composto por “parcela de terreno para construção, sita na Rua …, na União de freguesias … (…) concelho da Trofa, descrito na conservatória do Registo Predial da Trofa sob o número três mil e quarenta e cinco da extinta freguesia de …) registada a aquisição a favor da donatária pela apresentação oito de vinte e sete de Novembro de dois mil e seis (Ap. 8 de 2006/11/27) inscrito to no artigo 1201 (proveio do artigo 4486 da extinta freguesia de …)”, realizada através da escritura pública de 23 de Março de 2018, em que outorgaram como doadora e donatária, respetivamente a primeira e a segunda Rés, e com base na qual esta segunda Ré logrou registar a seu favor, na competente Conservatória do Registo Predial, a aquisição do dito imóvel.
O Tribunal a quo, tendo em consideração o alegado pelas partes e a documentação junta aos autos, decidiu que os mesmos dispunham já dos necessários elementos para ser proferida decisão de mérito, tendo preferido Saneador-Sentença, no qual julgou nula a doação efetuada, com fundamento em tratar-se de uma doação de bens alheios. Os demais pedidos não foram apreciados por manifesta desnecessidade.
Os documentos disponíveis no processo, que fundamentaram os factos julgados assentes são os seguintes, tal como consta da decisão sob recurso: a certidão da sentença e do acórdão, com nota de trânsito em julgado, proferidos no âmbito do processo n.º 1920/14.0TBSTS, do Juízo Local Cível de Santo Tirso (J1) (fls. 11 e segs); o expediente relativo á notificação judicial avulsa (fls. 43 e segs); o comprovativo do depósito do valor de €15.000,00 fixado na sentença como valor do terreno (fls. 55); a certidão da escritura pública de doação (fls. 56 e segs.) e a certidão da descrição predial relativa ao imóvel em causa nos autos (fls. 85 vs. e 86).
Considerou o tribunal a quo que se mostra inequívoco que, por decisão final transitada em julgado no dia 4 de Dezembro de 2017, no âmbito do processo que correu seus termos pelo Juízo Local Cível de Santo Tirso – Juiz 1, sob nº 1920/14.0TBSTS instaurado pelo aqui Autor contra a ora Ré C…, foi decidido que “a construção realizada na parcela de terreno sito na Rua …, descrita na conservatória sob o nº três mil e quarenta e cinco e inscrita no art.º 4486 foi realizada e paga pelo A. e em total boa-fé”; mais se decidiu “que o valor da construção é de € 43.200,00 (quarenta e três ml e duzentos euros) e que o valor do terreno antes da mesma construção era de quinze mil euros”. Consequentemente, declarou-se que o ali (e aqui) Autor “tem direito a fazer seu o terreno supra identificado, ou seja reconhecida a propriedade do mesmo contra o pagamento à R. de quinze mil euros”.
Provou-se igualmente que, por depósito autónomo realizado à ordem do mencionado processo, o aqui Autor procedeu ao pagamento do mencionado valor de €15.000,00, correspondente ao valor do terreno.
Em face do que concluiu o tribunal que, o Autor adquiriu o mencionado imóvel por acessão industrial imobiliária, (arts 1339º e ss do Código Civil) que é uma forma potestativa de aquisição originária do direito de propriedade aquisição essa reconhecida por decisão judicial transitada em julgado.
Considerou para o efeito que, o pagamento do valor do prédio funciona como condição suspensiva da sua transmissão, embora com efeito retroativo ao momento da incorporação, pelo que o autor adquiriu o seu direito na data do trânsito em julgado da sentença.
E tendo por base esta factualidade reconhecida por sentença transitada em julgado, conclui que, na data da escritura pública de doação outorgada por ambas as Rés, realizada em data posterior ao trânsito em julgado da aludida sentença, onde foi declarado o direito de propriedade do Autor, aqui Apelado, sobre o imóvel objeto do contrato de doação, contra o pagamento à ora 1ª R. de quinze mil euros, que aquele veio a pagar, que a doadora não era a proprietária do imóvel que declarou doar à segunda Ré, pelo que a doação teve por objeto um bem alheio, sendo por isso nula, por força do que dispõe o art. 956º do C.Civil.
A questão colocada neste recurso é a de saber se, tendo a Ré ora Apelante, invocado na contestação que a doação foi feita para pagamento de dívidas, de vários empréstimos feitos pela segunda Ré á primeira, estava o tribunal obrigado a produzir prova sobre essa matéria, não podendo decidir a causa, em que se pede a declaração de nulidade da doação, sem ter apurado o concreto negócio jurídico celebrado entre as Rés, ou para usar as suas palavras porque estava em “discussão a questão de a própria doação”.
A Ré alegou a este respeito, que a doação destinou-se ao pagamento de uma dívida, pelo que doação em causa não consistiu num ato gratuito mas sim oneroso, (ver artigos 7º, 8º e 12º e 15º da contestação[2]).
A Ré alegou tal factualidade na contestação, por entender que assim poderia beneficiar do regime de proteção de terceiros de boa-fé, conferido pelo art. 291º do CPC, o qual apenas é aplicável aos negócios onerosos.
Vejamos se é assim.
Dispõe o art. 595º nº1 al. b) CPC que o despacho saneador destina-se a:
“(…) b) Conhecer imediatamente do mérito da causa, sempre que o estado do processo permitir, sem necessidade de mais provas, a apreciação, total ou parcial, do ou dos pedidos deduzidos ou de alguma exceção perentória“.
Como refere Abrantes Geraldes [3] enquadram-se na previsão da norma as situações em que toda a matéria de facto se encontre provada por confissão expressa ou tácita por acordo ou documento; quando seja indiferente, para qualquer das soluções plausíveis, a prova dos factos que permanecem controvertidos, por serem manifestamente insuficientes ou inócuos para apreciar a pretensão do autor ou a exceção deduzida pelo réu; quando todos os factos controvertidos careçam de prova documental.
Contudo, naquelas situações limite, em que concluída a fase dos articulados, o juiz conclui, com recurso aos dispositivos de direito probatório material ou formal, pela existência de um leque de factos que ainda permanecem controvertidos e que, de acordo com as diversas soluções plausíveis, mostram algum relevo para a decisão cumpre atender ao critério do art. 596º nº 1 CPC, ou seja, deve orientar a decisão segundo as várias soluções plausíveis da questão de direito.
Também aqui Abrantes Geraldes [4] refere o seguinte: “apesar de o juiz se considerar intimamente habilitado a solucionar o diferendo, partindo apenas do núcleo de factos incontroversos, pode isso não ser suficiente se, porventura, outras soluções jurídicas carecidas de melhor maturação e de apuramento de factos controvertidos puderem ser legitimamente defendidas”.
Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Sousa, [5] em anotação a esta norma escrevem o seguinte: (…) A antecipação do conhecimento do mérito pressupõe que independentemente de estar em jogo matéria de direito ou de facto, o estado do processo possibilite tal decisão, sem necessidade de mais provas, e independentemente da mesma favorecer uma ou outra das partes.
Tal acontecerá quando:
a) toda a matéria esteja provada por confissão expressa ou tácita ou por acordo ou por documentos (…)
b) quando seja indiferente para qualquer das soluções plausíveis a prova dos factos que permaneçam controvertidos: se, de acordo com a soluções plausíveis da questão e direito, a decisão final de modo algum puder ser afetada com a prova dos factos controvertidos, não existe qualquer interesse na enunciação dos temas da prova e, por isso, nada impede que o juiz profira logo decisão de mérito; se o conjunto dos factos alegados pelo autor (factos constitutivos) não preenche de modo algum a as condições de procedência da ação, torna-se inútil a sua prova e por conseguinte inútil o prosseguimento da ação para a audiência final; mutatis mutandi quando se trate de apreciar de que forma os factos alegados pelo réu poderão interferir na decisão final, pois se tais factos, enquadrados na defesa por exceção, ainda que provados se revelam insuficientes ou inócuos para evitar a procedência da ação inexiste qualquer razão justificativa para o adiamento da decisão” .
A jurisprudência vem entendendo que, será prematuro o conhecimento do mérito da causa no despacho saneador quando a decisão apenas assenta numa das possíveis soluções da questão de direito. Existindo, na doutrina e na jurisprudência, soluções diferentes, no que respeita à questão em apreço, deve ser dada às partes a possibilidade de as discutirem e bem assim reunir no processo os necessários elementos para que possa ser acolhida uma ou outra das soluções plausíveis de direito.
Assim sendo, a decisão do processo na fase do saneador-sentença só poderá suceder quando, segundo as várias soluções plausíveis da questão de direito, a matéria de facto não deixar dúvidas a ninguém sobre a sua procedência ou improcedência.
Veja-se a titulo de exemplo o recente acórdão desta Relação, de 4.2.2019, [6] no qual se pode ler: “Apesar do juiz se considerar intimamente habilitado a solucionar o diferendo, partindo apenas do núcleo de factos incontroversos, pode isso não ser suficiente se, porventura, outras soluções jurídicas carecidas de melhor maturação e de apuramento de factos controvertidos puderem ser legitimamente defendidas, impedindo o conhecimento do mérito em sede de despacho saneador.”
Vejamos então se, tal como entendeu o tribunal recorrido, os factos alegados pela ré não se mostram suscetíveis de interferir na decisão final, ou se, tal como esta defende, outras soluções podiam ser legitimamente defendidas, justificando ulterior apuramento dos factos controvertidos.
O tribunal declarou a nulidade do contrato de doação celebrado entre a primeira Ré e segunda Ré, ora Apelante, na qualidade de respetivamente, de doadora e de donatária, o qual se mostra titulado por escritura pública lavrada a 23 de Março de 2018 – cuja cópia está junta a fls. 56 e segs.– no qual, a Ré C… declarou doar à Ré D…, sua única filha, “por conta da quota disponível” a “parcela de terreno para construção, sita na Rua …, na União de freguesias … (…) concelho da Trofa, descrito na conservatória do Registo Predial da Trofa sob o número três mil e quarenta e cinco da extinta freguesia de …) registada a aquisição a favor da donatária pela apresentação oito de vinte e sete de Novembro de dois mil e seis (Ap. 8 de 2006/11/27) inscrito to no artigo 1201 (proveio do artigo 4486 da extinta freguesia de …) com o valor atual (CIMI) e atribuído de trinta e seis mil e oitenta euros e catorze cêntimos”.
Defende a Ré que o Tribunal deveria ter indagado que negócio jurídico é este, já que, na contestação invocou que “A única coisa que a segunda Ré sabe é que aceitou receber através de doação o prédio em causa pelo pagamento de dívidas da primeira Ré” (sublinhado nosso) – cfr. artigo 12º da contestação - pelo que defende estamos perante um negócio oneroso, o que faz com que a Ré beneficie do regime de proteção de terceiros de boa-fé contido no art. 291º do CPC.
Vejamos qual a relevância da alegação destes factos no desfecho da ação.
Em primeiro lugar, salienta-se o facto da Apelante pretender a continuação da ação para julgamento para demonstrar que a doação – negócio jurídico titulado por escritura pública, cujo teor foi reproduzido no facto 10 dos factos assentes - cuja na nulidade foi pedida não é uma doação, mas sim um “outro negócio jurídico com outro enquadramento e até a questão de se tratar de um negócio simulado relativamente á questão do preço”, negócio jurídico que desde logo, nem sequer identifica.
E se não o faz, não há dúvida que em simultâneo e na própria contestação confessa que recebeu o imóvel dos autos através de uma doação - Ré sabe é que aceitou receber através de doação o prédio em causa pelo pagamento de dívidas da primeira Ré.
Esta declaração feita pela Ré ora Apelante que aceitou receber através de doação o imóvel supra identificado constitui confissão judicial, porque feita no processo, nos termos dos arts. 352º e 355º nº 1 e 2 e 356º do C.C. , sendo que se mostra indiferente ao desfecho da ação apurar as razões que a levaram a aceitar a doação feita pela sua mãe.
Citando as palavras de Lebre de Freitas [7] “Diz-se confissão o reconhecimento da realidade de um facto (passado, ou presente duradoiro) desfavorável ao declarante, isto é, dum facto constitutivo dum seu dever ou sujeição, extintivo ou impeditivo dum seu direito ou modificativo duma situação jurídica em sentido contrário ao seu interesse, ou, ao invés, a negação da realidade dum facto favorável ao declarante, isto é, dum facto constitutivo dum seu direito, extintivo dum seu dever ou sujeição ou modificativo duma situação jurídica no sentido do seu interesse.”
Acresce que a doação foi feita mediante escritura pública.
Sendo a escritura pública um documento exarado por notário, estamos perante um documento autêntico – de acordo com a definição que se retira do art. 369º do Código Civil.
Quanto á sua força probatória dispõe o art. 371º do C.C. que os documentos autênticos fazem prova plena dos factos que referem como praticados pela autoridade ou oficial público respetivo, assim como os factos que neles são atestados com base nas perceções da entidade documentadora, sendo que a mesma só pode ser ilidida com base na falsidade (cfr. art. 372º nº 1 do C.Civil), o que não ocorreu na presente ação.
Posto isto, em face da validade formal dos documentos em causa, o documento autêntico faz prova plena que as Rés proferiram as declarações nele constantes.
Pretende a segunda Ré abalar a veracidade das declarações ali prestadas pretendendo demonstrar que a doação ali declarada fazer pela doadora “por conta da quota disponível” foi afinal um meio que, mãe e filha utilizaram para a primeira pagar á segunda dívidas não concretizadas facticiamente.
Porém, a Ré aqui Apelante não invoca falsidade do documento nem das declarações que foram prestadas perante o Notário.
Acresce que, como vimos, além do mais a Ré confessa o recebimento do prédio por doação, que é caracterizado precisamente por ser um negócio gratuito.
Mas repare-se que, mesmo que o bem alheio em causa tivesse sido transmitido mediante negócio oneroso, também não poderia a ré, invocar o art. 291º do C.Civil, perante o verdadeiro proprietário, o aqui autor.
Em primeiro lugar, o conceito de terceiro a que se refere este artigo, sob motivação de estabilidade de situações jurídicas, pressupõe, a sequência de nulidades e o conflito entre o primeiro transmitente e o último subadquirente, pelo que é diverso do conceito de terceiros para efeito de registo predial.
Com efeito, como é comummente entendido, trata-se de um regime aplicável ao terceiro que “é necessariamente um sub-adquirente, em relação a quem tenha os bens em seu poder em consequência de ato inválido. A parte nesse ato inválido não é protegida”- Ver Oliveira Ascensão, pg 335, Direito Civil Teoria Geral, Vol II- Ações e Factos Jurídicos.
O fundamento desta norma, é a circunstância do adquirente (que não foi parte no negócio inicial inválido) beneficiar da fé pública de um registo preexistente e ter feito a aquisição confiando nesse registo.
“Por outro lado, o artigo 291º do Código Civil que consagra um sistema protetivo dos interesses de terceiros (adquirentes a titulo oneroso de boa-fé), no tocante a bens imóveis ou móveis sujeitos a registo, não se aplica em casos de ineficácia do ato aquisitivo, como sucede, em relação ao verdadeiro proprietário, com a venda de coisa alheia.” (ver entre muitos outros os Acórdãos do STJ de 06.12.2018 (relatora Maria dos Prazeres Pizarro Beleza), Acórdão do STJ 7.9.2017 (relatora Maria Graça Trigo) e Acórdão do STJ 21.6.2007 (relator Salvador da Costa), só para citar alguns dos mais recentes, todos eles disponível in www.dgsi.pt).
Na verdade, é preciso ter em consideração e isto é pacífico na doutrina e jurisprudência, que em relação ao verdadeiro proprietário, como sublinham P. de Lima e Antunes Varela, [8] citando Vaz Serra e Raúl Ventura, a venda ou a doação de bens alheios como res inter alios, é verdadeiramente ineficaz.
Sendo ineficaz em relação ao dono da coisa, a doação em relação a ele, é res inter alios acta.
Com efeito, relativamente ao verus domino, no caso o Apelado, o negócio celebrado onde ocorre a transmissão do bem de que é proprietário, é relativamente a si, pura e simplesmente ineficaz.
Não tendo o proprietário, (no caso em apreço, o autor que adquiriu o imóvel em discussão por meio de acessão imobiliária) tido qualquer intervenção no negócio de doação (ou outro negócio, mesmo de natureza onerosa), não pode juridicamente operar-se a transferência do seu direito real, e daí que o ato jurídico de outrem que vise transmitir a sua propriedade (de forma onerosa ou gratuita) em relação a si é ineficaz, ou seja é insuscetível de produzir efeitos sobre o seu património. A ineficácia do contrato relativamente ao proprietário opera ipso iure.
Daí que, sendo o negócio ineficaz em relação ao proprietário, redunda irrelevante a invocação do disposto nos arts. 291.º do CC e 17.º, n.º 2, do C Registo Predial (ver também neste sentido o Acórdão do STJ de 16 de novembro de 2010 (relator Garcia Calejo).
A verdade é que a Ré recebeu o imóvel de quem não era dono. Esse negócio é ineficaz perante o proprietário e é insuscetível de produzir efeitos sobre o seu património, isto é insuscetível de transferir a propriedade do imóvel para a Apelante.
A Ré não é pois terceira de boa-fé, para efeitos do art. 291º do CC pois ela é parte no negócio primitivo inválido, negócio que é res inter alia perante o verdadeiro proprietário, no caso o aqui autor.
É o artigo 956º do C.Civil que protege a sua eventual boa-fé, mas fá-lo no que respeita as suas relações com o doador: aquele torna-se responsável pelo prejuízo causado, desde que se verifique o circunstancialismo aí estabelecido: se o doador tiver agido com dolo ou se tiver assumido expressamente a responsabilidade por tais danos.
Conclui-se assim que torna-se inútil o prosseguimento da ação para apuramento dos factos invocados pela Ré na contestação, porque os mesmos não são suscetíveis de interferir na decisão final, inexistindo por isso razão justificativa para o adiamento da decisão, tal como entendeu o tribunal a quo.
4.2 Violação do direito registral
A questão resume-se a saber se não tendo o autor registado o seu direito de propriedade não pode opô-lo a Ré que beneficia de registo da aquisição a seu favor.
Defende a Apelante que ocorreu violação dos artigos 4º e 5º do Código do Registo Predial, sendo a falta de registo do direito de propriedade do Autor impeditiva da declaração de nulidade do negócio jurídico de doação.
Afirma que “o autor veio invocar um facto sujeito a registo, não registado que pode ser invocado entre as partes”.
Diz a Apelante que o Autor não pode vir opor á segunda ré o facto de ter havido uma doação de bens alheios, com fundamento no art. 956º do C.C., quando existe uma lei especial, o CRPredial que prevê que a falta de registo não pode ser oposta aos interessados, pelo que não podia o tribunal ter declarado procedente a ação e determinado o cancelamento do registo a favor da Apelante
Vejamos se pode ser assim.
Da certidão do imóvel junta aos autos, verifica-se que a ora Apelante registou o direito de propriedade através da AP 1685 de 2018/03/26.
Por sua vez o Apelado registou a presente ação através da AP 2427 de 2018/11/12.
A aquisição do direito de propriedade sobre imóveis está sujeita a registo (artigo 2º, nº 1, alínea a), do Código do Registo Predial).
Porém, o registo predial tem essencialmente por fim dar publicidade aos direitos inerentes às coisas imóveis (artigo 1º do Código do Registo Predial).
O registo predial, por si, não cria direitos de propriedade, apenas lhes dá publicidade.
Tem, pois, essencialmente, uma função declarativa e não constitutiva, conserva direitos mas não os cria, e não pode suprir a falta do direito nem sanar os vícios que envolvam os direitos transmitidos.
Ora o aqui Apelado adquiriu o direito por acessão imobiliária.
A acessão, segundo o art. 1325º do C.C., nas palavras de Luis A. Carvalho Fernandes, [9] consiste na união ou incorporação em coisa de que é titular certa pessoa, de outra coisa pertença de pessoa diferente.
A aquisição por acessão imobiliária, como maioritariamente é aceite pela doutrina e pela jurisprudência é uma forma potestativa de aquisição do direito de propriedade, de reconhecimento necessariamente judicial, que depende, para se concretizar, de manifestação de vontade nesse sentido por parte do respetivo titular e em que o pagamento do valor do prédio funciona como condição suspensiva da sua transmissão, embora com efeito retroativo ao momento da incorporação, conforme arts.1316.º e 1317.º, al. d), do CC.
Apesar da doação de bens alheios ser ineficaz em relação ao respetivo proprietário, este pode pedir a declaração da sua nulidade no confronto do doador/donatário (artigo 286º do Código Civil).
Na situação em apreço foi declarada a nulidade da doação efetuada por escritura publica 23.3.2018 entre as Rés, por se tratar de uma doação de bens alheios, tendo-se provado que a propriedade do imóvel pertence ao Autor que a adquiriu de forma originária através de acessão imobiliária industrial.
Ora, não tendo o registo natureza constitutiva, mas apenas valor declarativo, os atos existem fora do registo, sendo o efeito deste simplesmente declarativo, não conferindo, por princípio, quaisquer direitos.
O conceito de terceiros deve, por isso refletir e ser entendido de acordo com essa função declarativa do registo e natureza publicitária.
A aquisição do direito de propriedade está sujeita a registo – art. 2º nº 1 al a) do Código do Registo Predial.
E os factos sujeitos a registo só produzem efeitos contra terceiros depois da data do respetivo registo – art. 5º nº 1 do mesmo código.
Por sua vez, o art. 6º nº 1 proclama o princípio de que o direito inscrito em primeiro lugar prevalece sobre os que lhe seguirem relativamente aos mesmos bens, por ordem da data dos registos.
Finalmente o art. 7º preconiza que o registo definitivo constitui presunção que o direito existe e pertence ao titular inscrito, nos precisos termos em que o registo o define.
Isto posto, pretende a Ré a prevalência do seu registo por ser anterior ao do Apelado (que apenas registou esta ação).
Ou seja, há que saber em que medida a inscrição de um facto no registo predial, ou a sua não inscrição condiciona, retira ou atribui a alguém uma qualquer posição de vantagem jurídica.
A este propósito, de forma muito expressiva, referiu muito recentemente, o professor M.Teixeira de Sousa no blogue do IPPC,[10] o seguinte: “Em princípio dever-se-ia esperar que um facto registado seria oponível a qualquer pessoa que não tivesse um registo incompatível anterior. Mas estranhamente no ordenamento jurídico português não é assim: seguindo uma chamada conceção restrita de terceiros, para efeitos de registo, o artigo 5º nº 4 do CRegPredial estabelece que um facto registado só (de acordo com a tal conceção restrita) é oponível a um outro adquirente de um autor comum.
Na verdade, a conceção restrita de terceiros para efeitos de registo obriga a distinguir (isto é, no universo daqueles que não são titulares do registo) entre os terceiros aos quais o registo é oponível (que são apenas aqueles que tenham adquirido o direito registado de um mesmo transmitente ou cedente) e os terceiros aos quais o registo não é oponível, que são todos os outros). O caráter restritivo da referida conceção reside nisto mesmo: em restringir, através do referido critério, os terceiros (ou seja os não titulares do registo) aos quais o registo é oponível ”.
A questão em apreço, não tem, reconhecidamente uma resposta fácil e passa desde logo pela controversa questão de saber quem é terceiro para efeito de registo.
Sem nos queremos alongar nesta matéria, como é sabido, a jurisprudência e doutrina têm-se dividido entre a adoção de um conceito amplo de registo - aquele que considera terceiro aquele que tem a seu favor um direito que não pode ser afetado pela produção dos efeitos de um ato que não figura no registo e que com ele seja incompatível [Neste entendimento, a compra na venda judicial de um imóvel prevalece sobre qualquer venda anterior do mesmo bem mas que não tenha sido registada ou, tendo-o, o registo seja posterior ao registo da respetiva penhora.] -- e um conceito restrito [Em que não considera terceiro, por exemplo, o adquirente do imóvel na venda judicial, em processo executivo, pois entende que a aquisição não deriva do mesmo transmitente que anteriormente vendeu o bem, embora sem registo. Isto é, para estes, terceiros são apenas os supostos adquirentes de direitos incompatíveis sobre a mesma coisa de um mesmo autor comum, por isso, não considerando terceiro o exequente que nomeou o bem à penhora, ou o que nessa execução o veio a comprar, sendo-lhe oponível a aquisição anterior do mesmo bem, mesmo que não registada.
A questão veio a dar origem aos acórdãos do STJ para fixação de Jurisprudência nºs 15/97, de 20.05.1997 [Publicado no DR, I Série A, nº 152, de 4.7.1999- que considerou “terceiros para efeitos de registo predial, todos os que, tendo obtido registo de um direito sobre determinado prédio, veriam esse direito ser arredado por um qualquer facto jurídico anterior não registado, ou registado posteriormente”] e 3/99, de 18.05 [Publicado no DR I Série, de 10.07.99 - que considerou “terceiros, para efeitos do disposto no artigo 5º do Código do Registo Predial, os adquirentes de boa fé, de um mesmo direito transmitente comum, de direitos incompatíveis sobre a mesma coisa”].
Após os aludidos acórdãos uniformizadores, entra em vigor a redação do artº 5º do CRP, decorrente do Dec.-Lei nº 533/99, de 11.12, que no seu nº 4 veio dispor que “Terceiros, para efeitos de Registo, são aqueles que tenham adquirido de um autor comum direitos incompatíveis entre si”.
O regime de tutela dos terceiros de boa-fé, resultante das regras registrais, supõe aquisições sucessivas de um mesmo transmitente, tendo sido registada a segunda transmissão, mas não a primeira, pretendendo o primeiro adquirente (que não registou) invocar a invalidade do negócio de que resultou a segunda aquisição (registada), porque, à data da sua celebração, já o direito transmitido não se encontrava na esfera jurídica do transmitente, mas antes na esfera jurídica do primeiro adquirente.
Daí que, no caso em apreço, não faça sentido falar-se da prevalência das regras de registo contidas no Código de Registo Predial. Nestas, estão em causa adquirentes a quem os seus direitos foram transmitidos pelo mesmo titular, o que não é o caso dos autos, em que ocorreu uma aquisição originária do direito de propriedade sobre a coisa, por parte do autor.
Em face deste conceito, parece não haver dúvidas que Apelante e Apelado não são terceiros para efeitos de registo, já que não adquiriam o seu direito de autor comum. Não existe um transmitente comum do direito em conflito.
Com efeito, o autor adquiriu o seu direito de forma originária – através de acessão imobiliária.
A Acessão constitui causa originária de aquisição do direito real e por isso em nada é afetada pelas vicissitudes do registo que atinjam o anterior direito que se extingue por via delas (cf. Oliveira Ascensão Direito Civil - Reais 3ª Ed. Pág.309 e Menezes Cordeiro Direitos Reais III/1052).
O registo que a aqui Ré pretende fazer valer respeita assim o anterior direito que se extinguiu em consequência da aquisição por acessão do direito de propriedade do aqui Autor.
Daí que também nesta parte o recurso tenha de soçobrar.

V-DECISÃO:
Pelo exposto, acordam os Juízes que integram a 2ª secção cível do Tribunal da Relação do Porto em julgar improcedente o recurso, confirmando o saneador-sentença recorrido.
Custas pela Apelante.

Porto, 9 de Março de 2020
Alexandra Pelayo
Vieira e Cunha
Maria Eiró
______________
[1] Na sentença escreveu-se “por conta da legítima”, mas tratou-se de lapso manifesto, já que da escritura pública junta aos autos consta “por conta da quota disponível”, pelo que se procede á devida retificação do lapso manifesto, tendo em consideração o que dispõe o art. 613º do CPC.
[2] Artigos da contestação da Ré ora Apelante com o seguinte teor:
“7ºA segunda ré e seu falecido pai há já bastante tempo que vinham emprestando dinheiro á primeira Ré;
“8º- E a doação sub judice destinou-se ao pagamento das quantias em dívida;”
“12ºA única coisa que a segunda ré sabe é que aceitou receber através de doação o prédio em causa pelo pagamento das dívidas da primeira ré;”
“15ºPois como já supra referido, embora se trate de uma escritura de doação a mesma destinou-se a solver dividas que a primeira ré tinha para com a segunda ré, conforme se propõe provar em sede própria.”
[3] in Temas da Reforma do Processo Civil, vol. II, 3ª edição revista e ampliada, Almedina, 2000, pag. 138.
[4] Loc citado.
[5] In CPC anotado; Vol I, Parte Geral e Processo de Declaração.
[6] Relatora, a Desembargadora Ana Paula Amorim, encontrando-se o acórdão disponível in dgsi.pt.
[7] In Código Civil Anotado com coordenação de Ana Prata, 2017, Almedina, pág. 437
[8] P. de Lima e A. Varela, Código Civil Anotado, vol. II, 3.ª edição, revista, Coimbra Editora, pág. 189.
[9] In Lições de Direitos Reais, 6ª edição, pg.339.
[10] Jurisprudência 2019 (186) –usufruto; penhora; terceiros para efeitos de registo, disponível in https:/blogippc.blogspot.com/2020/03.