Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
2195/14.7TBMTS.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: MANUEL DOMINGOS FERNANDES
Descritores: INCOMPETÊNCIA EM RAZÃO DA MATÉRIA
CONTRATOS PÚBLICOS
CONTRATO DE EMPREITADA
TRABALHOS A MAIS
TRIBUNAIS ADMINISTRATIVOS
Nº do Documento: RP201511162195/14.7TBMTS.P1
Data do Acordão: 11/16/2015
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Indicações Eventuais: 5ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - O actual ETAF, aprovado pelo art.º 1º da Lei nº 13/2002 de 19.02, veio ampliar o âmbito da jurisdição dos tribunais administrativos e fiscais.
II - A alínea e) do nº 1, do artigo 4.º do ETAF abstrai da natureza das normas que materialmente regulam o contrato, colocando-o na órbita dos tribunais administrativos, desde que a lei preveja a possibilidade da sua submissão a um procedimento pré-contratual de direito público, sendo o acento tónico indiciador da natureza administrativa da relação jurídica as regras de procedimento pré-contratuais potencialmente aplicáveis e não o conteúdo do contrato ou a qualidade das partes.
III - Os trabalhos a mais a que se se refere o artigo 370.º do Código dos Contratos Públicos devem ser objecto de contrato celebrado na sequência de procedimento adoptado nos termos do disposto no título I da parte II, ou seja, também esse contrato pode estar sujeito a um procedimento pré-contratual de direito público (nº 5 daquele inciso) e, por assim ser, as questões relativas à validade e execução desse contrato são da competência do tribunal administrativo [alínea e) do nº 1 do artigo 4.º do ETAF].
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo nº 2195/14.7TBMTS.P1-Apelação
Origem-Comarca do Porto Matosinhos-Inst. Local-Secção Cível-J2
Relator: Manuel Fernandes
1º Adjunto Des. Rita Romeira
2º Adjunto Des. Caimoto Jácome
5ª Secção
Sumário:
I- O actual ETAF, aprovado pelo art.º 1º da Lei nº 13/2002 de 19.02, veio ampliar o âmbito da jurisdição dos tribunais administrativos e fiscais.
II- A alínea e) do nº 1, do artigo 4.º do ETAF abstrai da natureza das normas que materialmente regulam o contrato, colocando-o na órbita dos tribunais administrativos, desde que a lei preveja a possibilidade da sua submissão a um procedimento pré-contratual de direito público, sendo o acento tónico indiciador da natureza administrativa da relação jurídica as regras de procedimento pré-contratuais potencialmente aplicáveis e não o conteúdo do contrato ou a qualidade das partes.
III- Os trabalhos a mais a que se se refere o artigo 370.º do Código dos Contratos Públicos devem ser objecto de contrato celebrado na sequência de procedimento adoptado nos termos do disposto no título I da parte II, ou seja, também esse contrato pode estar sujeito a um procedimento pré-contratual de direito público (nº 5 daquele inciso) e, por assim ser, as questões relativas à validade e execução desse contrato são da competência do tribunal administrativo [alínea e) do nº 1 do artigo 4.º do ETAF].
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I-RELATÓRIO
Acordam no Tribunal da Relação do Porto:
B…, S.A., sociedade comercial anónima, pessoa colectiva n.º ………, com sede na Rua …, …, concelho de Penafiel, intentou a presente acção declarativa com processo comum contra, C…, S.A., sociedade comercial anónima, pessoa colectiva n.º ………, com sede na Av. …, Ap. …, …, Matosinhos, pedindo a sua condenação no pagamento da quantia de 35.080,14 € (trinta e cinco mil e oitenta euros e catorze cêntimos), acrescida de juros vincendos desde a propositura da acção até efectivo e integral pagamento sobre a quantia de 31.459,50 €.
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Devidamente citada contestou a Ré onde, além do mais, pediu a intervenção provocada acessória da D…, SA, E…, Companhia de Seguros SA, e Companhia de Seguros F…, SA.
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Na contestação que apresentou, a interveniente acessória D…, SA, veio invocar a excepção dilatória de incompetência do tribunal em razão da matéria, sustentando, em síntese, que, por se verificar a hipótese prevista na al. e) do n.º 1 do artigo 4.º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, a competência para o conhecimento do objecto da presente acção cabe aos tribunais Administrativos e Fiscais.
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Pronunciando-se sobre esta excepção, veio a Autora pugnar pelo indeferimento da mesma, sustentando, em síntese, que o objecto do presente litígio se prende com a realização de serviços cuja contratação não foi precedida de qualquer procedimento administrativo, não tendo sido contemplados pela adjudicação proveniente de um qualquer concurso público, não se verificando qualquer das hipóteses previstas no artigo 4.º do ETAF, designadamente a contemplada nas als. e) e f) do n.º 1 da citada norma.
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O Sr. juiz lavrou, então despacho onde, julgando procedente a excepção dilatória de incompetência absoluta do tribunal, absolveu a Ré da instância.
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Não se conformando com o despacho assim proferido veio a Autora interpor o presente recurso concluindo as suas alegações nos seguintes termos:
A - Os trabalhos em apreço nos presentes autos, não foram precedidos de nenhum procedimento administrativo para o efeito, pelo que, não estão contemplados pela adjudicação decorrente de qualquer concurso público;
B - A situação em apreço nos presentes autos, não se pode enquadrar na segunda parte da alínea f) do art. 4.º, n.º 1 do ETAF, que pressupõe que as partes tenham, expressamente, submetido o contrato a um regime supletivo de direito público, pela razão de que, como vimos, quanto aos trabalhos em apreço na presente acção, não foram objecto de qualquer contrato resultante de concurso público;
C - Não é aplicável, igualmente, a primeira parte da alínea f) do art. 4.º, n.º 1 do ETAF, segundo a qual, compete aos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal a apreciação de litígios que tenham por objecto questões relativas à interpretação, validade e execução "de contratos de objecto passível de acto administrativo”, porquanto a relação comercial estabelecida entre a Recorrente e a Ré C…, não é regulada pelo direito administrativo, pressuposto fundamental da sua qualificação como contrato administrativo, enquanto definido pelo art. 178.º do Código do Procedimento Administrativo;
D - Estamos, assim, no domínio de um litígio que está fora da competência dos Tribunais Administrativos, integrando-se na competência dos Tribunais Judiciais, pelo que, o despacho recorrido, viola o disposto no com manifesta violação do disposto no art. 4.º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais e no art. 370.º do Código da Contratação Pública.
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Devidamente notificada contra-alegou a interveniente D…, SA, concluindo pelo não provimento do recurso.
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Após os vistos legais cumpre decidir.
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II- FUNDAMENTOS
O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente, não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso-cfr. artigos 635.º, nº 4, e 639.º, nºs 1 e 2, do C.P.Civil.
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No seguimento desta orientação é apenas uma a questão a decidir:
a)- saber se para a presente acção é, ou não, materialmente competente o tribunal recorrido.
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A)-FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

Os factos a considerar provados para a decisão do presente recurso são os que constam do presente relatório, que aqui se dão por reproduzidos.
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III- O DIREITO
Face à factualidade supra descrita apreciemos então única questão que vem posta no recurso:
a)- saber se para a presente acção é, ou não, materialmente competente o tribunal recorrido.
Conforme supra referido, o tribunal recorrido entendeu que, para a presente acção, competente era o tribunal administrativo, decisão com a qual a apelante não concorda por considerar que materialmente competente para a acção são os tribunais comuns, in casu, o tribunal onde acção foi instaurada.
Vejamos então, se a razão está do lado da apelante ou se, pelo contrário, a decisão recorrida não merece censura ao decidir como decidiu.
A Constituição da República Portuguesa, estabelece que “os tribunais judiciais são os tribunais comuns em matéria cível e criminal e exercem jurisdição em todas as áreas não atribuídas a outras ordens judiciais” (artigo 211.º, nº 1) e que “compete aos tribunais administrativos e fiscais o julgamento das acções e recursos contenciosos que tenham por objecto dirimir os litígios emergentes das relações jurídicas administrativas ou fiscais” (artigo 212.º, nº 3).
Na sequência destes princípios programáticos, também o legislador ordinário, nos artigos 64.º e ss. do CPCivil e 40º, nº 1 da Lei 62/2013, de 26.08, estabeleceu que são da competência dos tribunais judiciais as causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional.
Assim, a competência material dos tribunais comuns é aferida por critérios de atribuição positiva e de competência residual. Segundo o critério de atribuição positiva, pertencem à competência do tribunal comum todas as causas cujo objecto é uma situação jurídica regulada pelo direito privado, civil ou comercial. Segundo o critério da competência residual, incluem-se na competência dos tribunais comuns todas as causas que, apesar de não terem por objecto uma situação jurídica fundamentada no direito privado, não são legalmente atribuídas a nenhum tribunal judicial não comum ou a nenhum tribunal não judicial. Isto é: os tribunais judiciais são os tribunais com competência material residual e, no âmbito dos tribunais judiciais, são os tribunais comuns aqueles que possuem essa competência residual.
Constituem, pois, os tribunais judiciais a regra dentro da organização judiciária e, por isso, gozam de competência não discriminada (competência genérica), enquanto os restantes tribunais, constituindo excepção, têm a sua competência limitada às matérias que lhes são especialmente atribuídas.
Será, portanto, através da consulta das disposições determinativas da competência dos tribunais administrativos e da verificação do enquadramento ou não da situação em apreço no âmbito dessa competência, que se há-de concluir pela afirmação positiva da competência dos tribunais administrativos ou pela negativa competência residual dos tribunais comuns.
Por outro lado, conforme ensina Manuel de Andrade[1], para se decidir qual a norma de competência aplicável “deve olhar-se aos termos em que foi posta a acção seja quanto aos seus elementos objectivos (natureza da providência solicitada ou do direito para o qual se pretende a tutela judiciária, facto ou acto donde teria resultado esse direito, bens pleiteados, etc.), seja quanto aos seus elementos subjectivos (identidade das partes)”.
Depois de salientar que a competência do tribunal “se determina pelo pedido do Autor”, acrescenta que “é ponto a resolver de acordo com a identidade das partes e com os termos da pretensão do Autor (compreendidos aí os respectivos fundamentos), não importando averiguar quais deviam ser as partes e os termos dessa pretensão”.
Seguindo estes ensinamentos, ter-se-á de perscrutar os termos em que a acção foi proposta e a causa de pedir que lhe serve de substrato fáctico.
Como afirma o Prof. Alberto dos Reis[2] “a petição inicial é um verdadeiro acto jurídico, pois que é uma declaração de vontade tendente a obter, e susceptível de produzir, determinado efeito jurídico. O que está realmente na base e na essência da petição inicial é uma declaração de vontade do autor; este quer que o tribunal tome conhecimento da sua pretensão e que sobre ela pronuncie decisão favorável ao seu interesse. O acto de vontade expresso na petição inicial, desde que se verifiquem certos pressupostos, é suficiente para operar determinado efeito jurídico: obrigar o tribunal a exercer a sua actividade, em ordem à emissão duma sentença de mérito. Estamos, por isso, em presença dum autêntico acto jurídico”.
Ora, lendo a petição inicial no sentido defendido pelo ilustre mestre, o que a apelante pretende é, pois, ser paga do valor referente aos trabalhos que a Ré lhe adjudicou, referentes à remoção de equipamento e materiais, limpeza dos pavimentos, construção de estruturas metálicas para a preservação do G… acidentado.
E, sendo estes os contornos do pedido e da causa de pedir, vejamos então se o tribunal recorrido é ou não competente materialmente para a presente acção.
Reproduzindo a norma do nº 3 do artigo 212.º da CRP, acima citada, diz o artigo 1.º, nº 1 do ETAF (Lei 13/2002, de 19/02) que os tribunais da jurisdição administrativa e fiscal são os órgãos de soberania com competência para administrar a justiça em nome do povo nos litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais.
Nesse quadro, compete aos tribunais da jurisdição administrativa a apreciação de litígios que tenham nomeadamente por objecto as questões enunciadas nas diversas alíneas do nº 1 do artigo 4.º do ETAF.
Ora, estabelecem as alíneas e) e f) do artigo 4.º do novo ETAF que cabe aos tribunais da jurisdição administrativa a apreciação dos litígios que tenham por objecto: “Questões relativas à validade de actos pré-contratuais e à interpretação, validade e execução de contratos a respeito dos quais haja lei especifica que os submeta, ou que admita que sejam submetidos, a um procedimento pré-contratual regulado por normas de direito público”- al. e); “Questões relativas à interpretação, validade e execução de contratos de objecto passível de acto administrativo, de contratos especificamente a respeito dos quais existam normas de direito público que regulem aspectos do respectivo regime substantivo, ou de contratos que as partes tenham expressamente submetido a um regime substantivo de direito público”- al. f).
Como referem Mário Esteves de Oliveira e Rodrigues Esteves de Oliveira[3] “(...) A opção tomada nesta alínea e), que constitui a grande revolução do Código na matéria, traduziu-se na adição à jurisdição dos tribunais administrativos do conhecimento dos litígios relativos a contratos precedidos ou precedíveis de um procedimento administrativo de adjudicação, independentemente da qualidade das partes nele intervenientes, de intervir aí uma ou duas pessoas colectivas de direito público ou apenas particulares e independentemente de, pela sua natureza e regime (ou seja, pela disciplina da própria relação contratual), eles serem contratos administrativos ou contratos de direito privado (civil, comercial, etc.)”.[4]
Assim, os contratos cuja interpretação, validade ou execução pertence à jurisdição dos tribunais administrativos, nos termos da citada alínea e), são quaisquer contratos administrativos ou não, com excepção dos de natureza laboral, por força da alínea d) do art. 4º nº 3 que uma lei específica submeta, ou admita que sejam submetidos, a um procedimento pré-contratual regulado por normas de direito administrativo.
O que significa que para esses litígios contratuais ficarem sujeitos à jurisdição administrativa não é necessário que o respectivo contrato seja celebrado na sequência de uma pré-contratação administrativa, desde que haja uma lei que admita que sejam submetidos, a um procedimento pré-contratual regulado por normas de direito administrativo.
A competência contratual da jurisdição administrativa vale, portanto, quer no caso do procedimento prévio do contrato ter assumido a forma (fosse ou não obrigatória) de procedimento administrativo pré-contratual, quer no caso da entidade administrativa contratante por não ser tal forma obrigatória (só permitida) ter optado legalmente por uma forma de pré-contratação de natureza privatista.
Portanto, nesta previsão legal cabem não só os contratos administrativos que vinham previstos no artigo 178.º do Código de Procedimento Administrativo[5], mas todos os contratos públicos, na acepção constante do artigo 1º, nº 2, do Código dos Contratos Públicos.
Ora, sendo os contratos públicos todos aqueles que, independentemente da sua designação e natureza, sejam celebrados pelas entidades adjudicantes referidas no Código dos Contratos Públicos, é bom de ver que tal categoria legal abarca contratos de direito privado. Por isso, afirma Mário Aroso de Almeida[6],O legislador não quis, portanto, estender a jurisdição administrativa a todos os contratos celebrados pela Administração Pública, mas apenas aos tipos contratuais em relação aos quais há leis específicas que submetem a respectiva celebração, por certas entidades (públicas ou equiparadas), à observância de determinados procedimentos pré-contratuais– paradigmaticamente, aos contratos de locação e aquisição de bens móveis e serviços, abrangidos pelo regime do Decreto-Lei nº 197/99, de 8 de Junho.”
Por sua vez a citada alínea f) do artigo 4° do ETAF, atribui competência aos tribunais administrativos e fiscais em três situações distintas:
a)-contratos de objecto passível de acto administrativo;
b)-contratos especificamente a respeito dos quais existam normas de direito público que regulem aspectos específicos do respectivo regime substantivo;
c)-determinados contratos que as partes tenham expressamente submetido a um regime de direito público.[7]
O DL n.º 18/2008, de 29.1, (na versão da Lei n.º 64-B/2001, de 30.12) que aprovou o Código dos Contratos Públicos, estabelece a disciplina aplicável à contratação pública e o regime substantivo dos contratos públicos que revistam a natureza de contrato administrativo aprovando o novo regime jurídico de realização de obras públicas e da contratação pública relativa à locação e aquisição de bens móveis e serviços.
Aquele diploma é aplicável às pessoas colectivas que, independentemente da sua natureza pública ou privada, “(…) tenham sido criadas especificamente para satisfazer necessidades de interesse geral, sem carácter industrial ou comercial, entendendo-se como tal aquelas cuja actividade económica se não submeta à lógica do mercado e da livre concorrência”- al. a) ii, do n.º 2 do artigo 2.º do DL n.º 18/2011, de 29.11).
A concessão de obras públicas pelas entidades mencionadas no citado artigo 2.º do DL 197/99 pode obedecer a um dos procedimentos previstos naquele diploma legal, referidos no seu artigo 16.º, entre eles o concurso público al. b) do nº 1.
Ou seja, sendo a concessão de obras feita por um dos procedimentos previstos no citado artigo 16.º, nº 1 do Código de Contratação Colectiva, designadamente por concurso público, existe lei específica que submete os contratos, ou que admite que sejam submetidos, a um procedimento pré-contratual regulado por normas de direito público, que são as do mencionado Código da Contratação Colectiva.
No caso, decorre da dos elementos juntos aos autos que a Autora é uma sociedade anónima de capitais exclusivamente públicos, cujo objecto é a administração …, visando a sua exploração económica, conservação e desenvolvimento e abrangendo o exercício das competências e prerrogativas de autoridade portuária que lhe estejam ou venham a estar cometidas, conforme o DL n.º 335/98, de 3.11. É, assim, indubitavelmente, uma entidade adjudicante nos termos e para os efeitos previstos no citado artigo 2.º, n.º 2, al. a) ii do Código dos Contratos Públicos.
Resulta também dos mesmos elementos documentais que a Autora celebrou com a Ré um contrato de empreitada designado de “Elaboração do projecto de Execução Relativo à Relocalização e beneficiação do G…” (cf. documento de fls. 86), o qual foi precedido de concurso público, no caso o procedimento administrativo relativo ao anúncio n.º 4840/2011, publicado no DR n.º 189, de 30 de Setembro de 2011 (cf. fols. 491 e segs.)
O referido contrato foi, pois, submetido a um procedimento pré-contratual regido pelas normas de direito público do DL 18/2008, de 29.11, pelo que as questões relativas à sua execução competem ao foro administrativo, por força do disposto no artigo 4.º, nº 1, al. e) atrás transcrita.
Acontece que, tal como vem estruturada a acção e, portanto, recortada a causa de pedir, o objecto da presente lide prende-se, como acima já se referiu, com a realização de trabalhos de estabilização da contra-lança acidentada, remoção das auto-gruas danificadas, remoção da parede de pedra do contra-peso, movimentação e transporte da contra-lança e limpeza da zona acidentada, cujo pagamento a Autora apelante pretende.
Ora, por assim ser, diz a recorrente que esses trabalhos não foram precedidos de nenhum procedimento administrativo para o efeito, pelo que, não estão contemplados pela adjudicação decorrente de qualquer concurso público e, como tal, a presente situação não se pode enquadrar na parte final da alínea f), do art. 4º, nº 1, do ETAF, que pressupõe que as partes tenham, expressamente, submetido o contrato a um regime supletivo de direito público.
Não se pode sufragar semelhante entendimento.
Desde logo, importa que se diga, que é a própria apelante, contrariando o agora alegado em sede de recurso, que afirma, a propósito da nulidade contratual invocada pela Interveniente, que “os valores reclamados pela A., dizem respeito a trabalhos extras que surgiram no decurso do contrato e que, embora não previstos, não deixam de estar a ele intrinsecamente e necessariamente ligados”.
Significa, portanto, que no próprio dizer da apelante estamos perante trabalhos extra (cfr. artigos 12º e 13º da petição inicial).
Na definição do artigo 370.º do Código da Contratação Pública, são trabalhos a mais aqueles cuja espécie ou quantidade não esteja prevista no contrato e que:
a) Se tenham tornado necessários à execução da mesma obra na sequência de uma circunstância imprevista; e
b) Não possam ser técnica ou economicamente separáveis do objecto do contrato sem inconvenientes graves para o dono da obra ou, embora separáveis, sejam estritamente necessários à conclusão da obra.
Refere, porém, a apelante, agora em sede recursiva, que não estão em causa “trabalhos a mais”, para os efeitos do disposto no artigo 370.º do CCP, pois que, muito embora tenham surgido na sequência das obras adjudicadas à apelante, apenas se vieram a mostrar necessárias em consequência de um grave acidente que se veio a verificar no decurso daquelas, pelo que se tratou, assim, de assegurar a reposição do local intervencionado, de forma a tornar possível a continuação das obras.
Esta asserção, não corresponde, contudo, aos fundamentos vertidos na petição inicial.
Com efeito, a obra inicial tinha como objecto a desmontagem e transporte do G… (facto descrito em 3º daquela peça processual).
Ora, no decurso da obra verificou-se um acidente, resultado da queda de parte da lança, do guindaste, sobre as condutas de combustíveis existentes no muro do molhe sul, seguido de explosão e incêndio (facto descrito em 4º).
Decorrente do acidente, resultaram um conjunto de danos ao longo de uma área significativa, que atingiram uma série de estruturas e equipamentos que ali se encontravam, danificando parcialmente ou destruindo os mesmos, bem assim como uma situação de perigosa insegurança, quer para a circulação de pessoas ou viaturas, quer ainda para a preservação do guindaste acidentado (facto descrito em 5º).
Para além disso, foi suspensa a obra em curso, para que fossem criadas as condições de segurança para as pessoas e demais equipamentos atingidos, foi necessário proceder à remoção de equipamento e materiais, limpeza dos pavimentos, construção de estruturas metálicas para a preservação do G… acidentado (factos descritos em 6º e 7º).
Da alegação deste quadro factual, decorre, sem qualquer margem para dúvida, que a realização dos referidos trabalhos se mostrava imprescindível para que pudessem ser, pela apelante, retomados os trabalhos de desmontagem e transporte do guindaste.
Aliás, esse quadro factual preenche a factie species quer da alínea a) quer da alínea b) do citado artigo 370.º do CCP, pois que, os referidos trabalhos tornaram-se necessários à execução da obra na sequência de uma circunstância imprevista (acidente com o guindaste) e, embora pudessem ser separáveis do contrato inicial, eram estritamente necessários àquela conclusão.
E, sendo trabalhos extra nos termos sobreditos, também eles estão sujeitos ao regime da contratação pública.
Efectivamente, como estipula o nº 5 do citado artigo 370.º “Caso não se verifique alguma das condições previstas no n.º 2, os trabalhos a mais devem ser objecto de contrato celebrado na sequência de procedimento adoptado nos termos do disposto no título I da parte II”- (negrito e sublinhados nossos) (procedimentos para formação dos contratos a que se refere o já citado artigo 16.º do CCP).
Portanto, também para estes (trabalhos a mais), existe lei específica que os submete ou que admite que sejam submetidos, a um procedimento pré-contratual regulado por normas de direito público.
O que significa que para esses litígios contratuais ficarem sujeitos à jurisdição administrativa não é necessário que o respectivo contrato seja celebrado na sequência de uma pré-contratação administrativa, desde que haja uma lei que admita que sejam submetidos, a um procedimento pré-contratual regulado por normas de direito administrativo.
Como já noutro se referiu, o critério de delimitação de competência em matéria de actividade contratual é o da sujeição a normas de direito público, quer relativas à execução do contrato, quer ao procedimento pré-contratual, independentemente da natureza jurídica das entidades contratantes.[8]
O que releva, neste domínio, é a natureza jurídica do procedimento anterior à celebração do contrato, independentemente da qualidade das partes contratantes e da natureza e regime do contrato, ou seja, independentemente de nele intervirem uma ou duas pessoas colectivas ou apenas particulares e de se tratar de contratos administrativos ou de contratos de direito privado.[9]
O critério é, assim, o do contrato submetido a regras de contratação pública, ou seja, o do contrato “submetido a regras procedimentais de formação de Direito Administrativo”. [10]
Verificado este critério, caberá à jurisdição administrativa a apreciação dos litígios emergentes de quaisquer contratos, “mesmo que puramente privados”[11] “celebrados entre sujeitos de direito privado e com um regime substantivo de direito privado” [12]
Este entendimento, em correspondência com um pretendido alargamento do âmbito da jurisdição administrativa em matéria contratual sai, aliás, reforçado pela norma do artigo 100.º, nº 3 do CPTA, que expressamente inclui no contencioso pré-contratual os actos de sujeitos privados inseridos num procedimento pré-contratual de direito público.[13]
Como assim, a alínea e) do nº 1, do artigo 4.º do ETAF abstrai da natureza das normas que materialmente regulam o contrato, colocando-o na órbita dos tribunais administrativos, desde que a lei preveja a possibilidade da sua submissão a um procedimento pré-contratual de direito público, sendo o acento tónico indiciador da natureza administrativa da relação jurídica as regras de procedimento pré-contratuais potencialmente aplicáveis e não o conteúdo do contrato ou a qualidade das partes.
A circunstância de a contratação/adjudicação pela Ré à apelante, relativa aos referidos trabalhos, não ter obedecido às normas do Código dos Contratos Públicos pode por, eventualmente, em causa a validade dessa contratação, mas não afasta, nem podia afastar, a submissão ao foro administrativo de qualquer litígio que oponha ambas as partes tendo como fundamento a referida relação negocial.
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Do exposto, resulta pois, que o pagamento dos trabalhos em causa se prende, com a execução de um contrato sujeito às regras dos contratos públicos, razão pela qual, no caso em apreço, está verificada a hipótese estatuída na al. e) do nº 1 do artigo 4.º do ETAF.
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Destarte, competente para a presente acção são os tribunais administrativo e, como tal, improcedentes são as conclusões recursivas formuladas pela Autora apelante.
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IV-DECISÃO
Pelos fundamentos acima expostos, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação em julgar improcedente a apelação confirmando-se, assim, a decisão recorrida.
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Custas pela apelante (artigo 527.º, nº 1 do C.P.Civil).
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Porto, 16 de Novembro de 2015.
Manuel Domingos Fernandes
Rita Romeira
Caimoto Jácome
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[1] Noções Elementares de Processo Civil, 1963, pág. 89.
[2] Código de Processo Civil Anotado, Volume II, 3.ª Ed. 1948, Reimpressão, Coimbra, Coimbra Editora, 2005, pp. 340-341.
[3] In CPTA e ETAF Anotados, vol. I, 2004, pág. 48 e segs., em anotação ao art 4º al e) do ETAF
[4] Entendimento doutrinal que, aliás, não é pacifico, v.g. José Carlos Vieira de Andrade in A Justiça Administrativa, 8ª edição, Almedina 2006, página 124, nota 180, refere que “No entanto, parece-nos que tais questões de interpretação, validade e execução do contrato têm de resultar ou de algum modo estarem associadas à adjudicação ou, em geral, ao procedimento–na realidade, a razão de ser desta norma foi pôr fim à incongruência de, por exemplo, o tribunal competente para anular o contrato (privado) poder ser de ordem diferente do tribunal competente para conhecer os vícios do procedimento (público) que geraram a invalidade.” Em crítica relativamente a esta leitura restritiva veja-se Manual de Processo Administrativo, Almedina 2010, Mário Aroso de Almeida, página 166, nota 98.
[5] Normativo revogado pelo artigo 14º do decreto-lei nº 18/2008, de 29 de Janeiro, rectificado pela declaração de rectificação nº 18-A/2008, de 28 de Março, diploma que aprovou o Código dos Contratos Públicos. O normativo que presentemente lhe corresponde é o artigo 1º, nº 6, do Código dos Contratos Públicos.
[6] In “O Novo Regime do Processo nos Tribunais Administrativos, 2ª edição revista e actualizada, Almedina 2003, página 98.
[7] Cfr. a este propósito Digo Freitas do Amaral e Mário Aroso de Almeida in “Grandes Linhas da Reforma do Contencioso Administrativo, 2ª Ed. Pág. 101/102.
[8] Cfr. Maria João Estorninho, A Reforma de 2002 e o Âmbito da Jurisdição Administrativa, Justiça Administrativa, nº 35, pág. 6.
[9] Cfr. Mário Esteves de Oliveira/Rodrigo Esteves de Oliveira, Código de Processo nos Tribunais Administrativos, Vol. I, Almedina, 2004, Coimbra, pp. 48 e 50.
[10] Cfr. Mário Aroso de Almeida, Manual de Processo Administrativo, Coimbra, 2010, pág. 166.
[11] Cfr. José Carlos Vieira de Andrade, A Justiça Administrativa, 5ª edição, Almedina, 2004, Coimbra, pág. 122.
[12] Cfr. Sérvulo Correia, Direito do Contencioso Administrativo, Lex, Lisboa, 2005, pág. 716.
[13] Cfr. Mário Aroso de Almeida/Carlos Alberto Fernandes Cadilha, Comentário ao Código de Processo nos Tribunais Administrativos, Almedina, 2005, Coimbra, pág. 507.