Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
6925/17.7T8VNG.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: MÁRIO FERNANDES
Descritores: COMPETÊNCIA EM RAZÃO DA MATÉRIA
INSOLVÊNCIA
ASSOCIAÇÃO SEM FINS LUCRATIVOS
Nº do Documento: RP201802216925/17.7T8VNG.P1
Data do Acordão: 02/21/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Indicações Eventuais: 3ª SECÇÃO, (LIVRO DE REGISTOS N.º125, FLS.49-51)
Área Temática: .
Sumário: Cabe ao Juízo do Comércio conhecer da declaração de insolvência de uma Associação sem fins lucrativos
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Apelação n.º 6925/17 3.ª RP
Relator: Mário Fernandes (1688)
Adjuntos: Leonel Serôdio
Amaral Ferreira.
Acordam no Tribunal da Relação do Porto:
I. RELATÓRIO.
B…, Ld.ª”, com sede na Rua …, n.º …, …, Matosinhos, veio intentar processo especial de insolvência contra “C…”, com sede na Rua …, n.º …, …, Porto, pretendendo fosse decretado o estado de insolvência da Requerida, identificada como associação privada sem fins lucrativos e de duração ilimitada, processo que deu entrada no Juízo de Comércio de Vila Nova de Gaia.

Após junção aos autos de documentação – escritura de constituição, estatutos e registo de inscrição junto do “RNPC” – em ordem a ser caracterizada a Requerida enquanto pessoa colectiva, veio a ser proferida decisão a indeferi liminarmente a petição inicial, por se ter considerado que o juízo de comércio onde a acção havia sido instaurada não era o competente em razão da matéria para conhecer do mencionado pedido de declaração de insolvência, antes essa competência estando conferida aos juízos cíveis do Porto.

Inconformada, interpôs recurso de apelação a Requerente, tendo concluído as suas alegações no termos quer se passam a transcrever:

- Nos presentes autos foi, ex officio, reconhecida incompetência em razão da matéria do pedido de insolvência da Recorrida;

- Do despacho liminar que indeferiu a pretensão da recorrente são principais fundamentos a falta de competência em razão da matéria da secção de comércio, porquanto a associação não tendo fins lucrativos e, não praticando actos de comércio, não poderá ser considerada comerciante, por conseguinte não poderá ser alvo de um pedido de insolvência;

- Tais fundamentos revelam-se, salvo douto entendimento, falaciosos e desconformes aos preceitos legais em vigor, violando os mesmos;

- Conforme o art. 2 n.ºs 1 e 2 do CIRE e art. 182, n.º 1, al. e/ do CC, as associações podem ser alvo de sentenças de insolvência;

- Assim, sendo as mesmas alvo de tais sentenças, nas áreas onde de jurisdição em que existam secções de competência especializada, como sendo as de comércio, deverão ser estas secções as competentes para o efeito;

- Não tendo o legislador consagrado outro tipo de secções para se preparar e julgar os processos de insolvências, salvo nas áreas de jurisdição em que não existam tais secções (as de comércio);

- Ao proferir tal despacho liminar, o tribunal violou, no nosso entendimento, as disposições legais constantes nos termos do art. 128, al. a/, da Lei 62/2013 de 26.8, bem como o art. 2, n.ºs 1 e 2 do CIRE e ainda art. 182, n.º 1 al. e/ do CC, porquanto as associações podem ser alvo de sentenças de insolvência e as secções de comércio são as competentes para o efeito;

- Nestes termos e nos melhores de direito do douto suprimento, requer a V.ª Ex.ª digne admitir o requerido, julgando o presente recurso procedente e, em consequência, revogar o despacho que indeferiu liminarmente a petição inicial apresentada pela recorrente, ordenando para o efeito que o tribunal a quo aprecie validamente o pedido de insolvência apresentado pela recorrente no âmbito daquelas autos.

Inexistem contra - alegações a considerar.

Corridos os vistos legais cumpre tomar conhecimento do mérito do recurso, sendo que a instância de mantém válida.
II. FUNDAMENTAÇÃO.
A realidade a atender vem enunciada no relatório supra, sendo de destacar a pretensão deduzida pela recorrente de ver declarada a insolvência da Requerida, a qual se trata de pessoa colectiva de direito privado, mais precisamente uma associação de direito privado sem fins lucrativos.

Por sua vez, a questão a dirimir nesta sede passa por saber se o juízo de comércio, no caso o de Vila Nova de Gaia, é o competente em razão da matéria para conhecer da pretensão deduzida, qual seja o da declaração do estado de insolvência da Requerida.

O Tribunal “a quo” conclui pela referida incompetência, para tanto adiantando de mais significativo a seguinte argumentação:

“… A presente acção foi instaurada em Agosto de 2017 neste Juízo de Comércio de V. N. de Gaia, constituindo objecto da acção a declaração de insolvência da Requerida.

À data da instauração da acção encontra-se em vigor a Lei 62/2013 de 26 de Agosto, a qual apenas entrou em vigor a 1 de Setembro de 2014 (art. 118 DL 49/2014 de 27 de Março).

A Requerida, “C…”, é uma associação privada, sem fins lucrativos e de duração ilimitada, como refere a própria Requerente.

Com a entrada em vigor da nova lei orgânica – Lei 62/2013 de 26 de Agosto – foi suprimido o tribunal ao qual a acção estava afecta.

O art. 128-d/, da Lei 62/2013 de 26 de Agosto mantém a mesma redacção do art. 89-d/ da anterior lei orgânica e o preceito continua a atribuir aos juízos de comércio apenas competência para preparar e julgar as insolvências de sociedades comerciais ou entidades com fins lucrativos.

Analisando os trabalhos preparatórios, a exposição de motivos – Proposta de Lei 114/XII, disponível em DR, II Série-A, n.º 41, XII/2, 30.11.2012 – constata-se que a grande preocupação do legislador recaiu sobre a estrutura judiciária, pouco se alterando em relação às primitivas competências materiais dos tribunais especializados. Em relação às secções de comércio, anota-se apenas uma alteração na al. a/ do preceito, que decorre da discussão do diploma, que passou a atribuir competência para preparar e julgar os processos especiais de revitalização.

A criação das secções de comércio visa concentrar nestes tribunais as matérias relacionadas com questões relativas ao comércio, compreendendo este os actos de interposição na circulação de bens (comércio em sentido económico), a indústria e os serviços, com fins lucrativos, que constituem a especialidade que os justificam.

A Requerida é uma associação, sem fins lucrativos; não é uma entidade que vise, como as sociedades comerciais, fins lucrativos. Não se pode considerar que tal entidade seja comerciante, pois que não se destina a praticar actos de comércio, fazendo desta actividade, tal como os comerciantes em nome individual, seu escopo principal (art. 13 do C. Comercial).

Desta forma, a Secção de Comércio não tem competência em razão da matéria para preparar e julgar a presente acção, cuja competência sempre esteve e continua atribuída aos tribunais comuns, no caso concreto e por efeito da reorganização judiciária à Comarca do Porto.

Deste modo, estando nós perante uma devedora que é uma associação, que não uma empresa, estamos em face de incompetência em razão da matéria deste tribunal para apreciar e decidir da presente acção …”.

Decorre do assim expendido que a competência dos juízos de comércio para conhecer dos processos de insolvência estaria reservada apenas em relação a devedores que fossem sociedades comerciais ou entidades com fins lucrativos, na interpretação a conceder ao prescrito no art. 128 da actual “LOSJ”, aliás no seguimento do que já vinha previsto na anterior “LOFTJ”, nessa medida e porque a Requerida devia ser qualificada como associação de direito privado, sem fins lucrativos, caindo fora da competência daqueles juízos apreciar matéria relacionada com a insolvência de tal tipo de pessoas colectivas.

Adiantando posição, não cremos ser sustentável a posição assumida pelo tribunal “a quo”, ao negar a competência dos juízos de comércio para conhecer da matéria relativa à insolvência de pessoa colectiva com a aludida qualificação.
Analisemos em breves considerações.

Nem do espírito, nem da letra da lei decorre apoio para a defesa da tese que fez vencimento na decisão impugnada, atento o alcance a atribuir nomeadamente ao prescrito nas disposições conjugadas dos arts. 81, n.º 2, al. i/ e 128, n.º 1, al. a/ da actual “LOSJ” (Lei n.º 62/2013, de 26.8) – anota-se só poder atribuir-se a evidente lapso convocar para o efeito, como vem referido na decisão impugnada, o estatuído na al. d/, do n.º 1, do cit. art. 128, quando aí se alude à competência dos juízos de comércio para as “as acções de suspensão e anulação de deliberações sociais”, o que não é configurável para o caso em apreço.

Com efeito, estando criado e instalado o juízo de competência especializada de comércio de Vila Nova de Gaia, cabe no âmbito da sua competência o conhecimento dos processos de “insolvência e de revitalização”, sem que dos citados normativos resulte alguma ressalva no respeitante ao tipo de pessoa colectiva com a qualificação que é atribuída à Requerida (associação sem fins lucrativos).

Tal ressalva, limitando a competência dos tribunais de comércio para conhecer dos processos de insolvência relativamente às sociedades comerciais ou às massas insolventes que integrassem uma empresa, vinha efectivamente contemplada no correspondente art. 89, n.º 1, al. a/, da anterior “LOFTJ” (Lei n.º 3/99, de 13.1, com a última alteração introduzida pelo DL n.º 8/07, de 17.1), mas semelhante limitação não foi transposta para a nova Lei de Organização Judiciária, sendo manifesta a intenção do legislador de atribuir aos tribunais de comércio, na área territorial pelos mesmos abrangida, o conhecimento da matéria conexionada com a insolvência das pessoas singulares ou colectivas – v. a propósito A. Soveral Martins, in “Curso de Direito da Insolvência”, 2.ª ed., pág. 100.

Ora, entre as pessoas colectivas susceptíveis de serem declaradas em estado de insolvência encontram-se as “associações” (v. neste sentido o autor em último citado, pág. 62; bem assim Meneses Leitão, in “Direito de Insolvência”, 5.ª ed., pág. 78) qualificação atribuível à Requerida, pelo que, não decorrendo qualquer limitação do aludido art. 128, n.º1, al. a/, da “LOSJ no aspecto que vimos analisando, necessário se impõe alcançar ilação distinta da extraída na decisão impugnada quando à dita matéria de competência.

Afigura-se-nos, pois, ser manifesto que ao tribunal recorrido, enquanto juízo de competência especializada, cabe tomar conhecimento do processo de insolvência instaurado contra a Requerida, posto ter cobertura na previsão contida no citado art. 128, n.º 1, al. a/, da actual Lei de Organização Judiciária.

Terá, assim, de acolher-se a pretensão deduzida pela recorrente de ver dado seguimento aos ulteriores termos do processo no tribunal onde a causa foi instaurada.
III. CONCLUSÃO.
Pelo exposto, decide-se julgar procedente a apelação e, nessa medida, revoga-se a decisão recorrida, devendo o processo prosseguir os seus ulteriores termos no tribunal recorrido, por ser o competente para conhecer da pretensão naquele deduzida.

Sem custas.

Porto, 21 de Fevereiro de 2018
Mário Fernandes
Leonel Serôdio
Amaral Ferreira