Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
0452315
Nº Convencional: JTRP00035942
Relator: FONSECA RAMOS
Descritores: DEPÓSITO BANCÁRIO
DIREITO DE PROPRIEDADE
DOAÇÃO
Nº do Documento: RP200405100452315
Data do Acordão: 05/10/2004
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO.
Decisão: CONFIRMADA A SENTENÇA.
Área Temática: .
Sumário: I - A faculdade de qualquer dos contitulares de depósito bancário, sem a autorização dos demais, poder levantar a totalidade da quantia depositada exprime um regime de solidariedade activa.
II - O que, sociologicamente, está na base da opção por este tipo de contas solidárias é, normalmente, a relação de confiança que existe entre os seus titulares, que de modo tácito se consentem, reciprocamente, a faculdade ou o direito de procederem a levantamentos por sua exclusiva vontade, não carecendo do consentimento dos demais.
III - Os titulares de conta bancária solidária têm o direito de crédito de poder exigir do Banco a restituição integral do depósito, nem sempre coincidindo o direito real de propriedade, ou compropriedade sobre o dinheiro depositado; dono é, no caso, aquele que puder afirmar o seu direito de propriedade, ou compropriedade, sobre o dinheiro.
IV - Não obsta à doação de depósitos bancários o facto de a doadora, por mera cortesia das donatárias, que já eram com ela contitulares da conta, continuar a figurar como contitular, se estas em vida daquela aceitaram a doação, passando a agir como se fossem donas exclusivas do dinheiro depositado, com o conhecimento da doadora.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação do Porto

B..............., e;

C..............., instauraram em, 8.10.1999, pelo Tribunal Judicial da Comarca de ............. – actualmente .. Vara Mista – acção declarativa de condenação com processo ordinário, contra:

D............ e F.............. .

Alegando em síntese que:

- as rés procederam, abusivamente, ao levantamento de importâncias, pertencentes à herança aberta por óbito de E.............., de que todas são interessadas, e que as fizeram suas.
Em consequência, pedem que as Rés sejam condenadas a:

1. Reconhecer que a propriedade dos dinheiros depositados nas contas referidas no artigo 7º da petição inicial – 8.636.896$40 – de que eram contitulares, pertencia exclusivamente à sua primeira titular E.............

2. Restituir à herança aberta por óbito de E.............. as importâncias por si levantadas posteriormente à morte da primeira titular, no montante global de 8.636.896$40, acrescido dos juros dos depósitos a prazo aplicáveis pelas instituições de crédito que, se não tivesse ocorrido tal levantamento, os depósitos teriam vencido, desde as datas dos levantamento até á sua adjudicação em inventário.

Contestaram as Rés, invocando sucintamente que:

- as contas em que figuram as Rés são de sua exclusiva propriedade;

- para compensar as Rés pelo carinho e apoio que lhe prestaram, a E........... constituiu a favor delas os referidos depósitos bancários, onde ao longo dos anos as Rés foram depositando quantias em dinheiro próprias, dispondo desses depósitos segundo o seu livre arbítrio.

Concluíram pela improcedência da acção.

As Autoras replicaram, impugnando a factualidade alegada na contestação, concluindo como na petição inicial.

Foi proferido o despacho saneador e elaborados os Factos Assentes e a Base Instrutória, que não sofreram quaisquer reclamações.

Realizou-se a audiência de discussão e julgamento, dentro do formalismo legal, após o que se respondeu à matéria da base instrutória, conforme despacho de fls. 95 e 96, sem reclamações.

Foi proferida sentença que julgou totalmente procedente a acção, da qual foi interposta recurso por parte das Rés.

Por acórdão do Tribunal da Relação do Porto ordenou-se a repetição do julgamento para ampliação da matéria de facto.

Na sequência de tal Acórdão ordenou-se o aditamento à Base Instrutória de vários quesitos, que não sofreram quaisquer reclamações.

Realizou-se nova audiência de discussão e julgamento, dentro do formalismo legal, após o que se respondeu aos quesitos aditados, conforme despacho de fls. 308 e 309, sem reclamações.
***

A final foi proferida sentença que julgou a acção improcedente e absolveu as Rés dos pedidos.
***

Inconformadas recorreram as AA. que, alegando, formularam as seguintes conclusões:

1. Em 2 de Fevereiro de 1988, a 1ª Ré, então cabeça-de-casal do inventário facultativo aberto por óbito de E.............., prestou declarações, perante o M.mo Juiz do processo e registadas em acta, tendo sido consignado:

a) “que desde a falecida E.......... ficou impedida de sair de casa, e a pedido desta, que existe uma conta colectiva em nome das duas”; e

b) “A tia deixou os 2.400 contos para dividir pelas irmãs. Tal pedido foi feito à cabeça de casal logo que aquela ficou doente e um tempo antes da sua morte.
A mesma referia-se expressamente aos 2.400 contos e que os mesmos só seriam distribuídos à sua morte, por não se saber se com a sua doença iria precisar deles, intenção que mantinha aos restantes depósitos com titularidade”.

1.1. A constituição de depósito bancário plural solidário, destina-se a permitir que qualquer dos contitulares possa, por si só, movimentar e gerir a respectiva conta.
1.2. No caso, as contas bancárias da falecida (octogenária doente e acamada) foram contituladas justamente para que as RR. as pudessem movimentar em função das necessidades da sua doença – o que nada tem a ver com “doação”.

1.3. Na constituição de depósito bancário plural solidário o dinheiro é entregue ao banco depositário e não ao continuar da conta.

1.4. A constituição de depósito bancário plural solidário não se confunde com a doação ao co-titular, nem – muito longe disso - a presume.

1.5. As RR., contitulares dos depósitos bancários em causa na presente acção, arrogaram-se a propriedade dos dinheiros depositados, afirmando serem próprios e não da falecida, os dinheiros depositados.

1.6. Provado ficou, porém, que os dinheiros depositados eram, afinal, da exclusiva propriedade da falecida E................

1.7. O “animus domini” (o de quem se arroga ser o titular do direito sobre o bem) é incompatível com o “animus donandi” (o de quem reconhece que o seu direito advém de uma liberalidade de terceiro).

1.8. Sem má-fé processual, ou abuso de direito, não é possível pretender-se, em simultâneo, que um bem lhe pertence por direito próprio e que lhe foi doado pelo seu efectivo proprietário!…

2. Como é evidente, um bem doado, não tem que ser partilhado.

2.1. Porém, as Rés impuseram aos herdeiros assinar uma “Declaração” (em papel selado), onde se diz:

“Nós, abaixo assinados, interessados na partilha de bens deixados por óbito de E............, acordamos todos em partilhar o dinheiro existente, reconhecendo ser esse o total e único que à falecida pertencia. Declaramos ainda ter recebido a parte a que temos legalmente direito, pela forma seguinte”:

2.2. Tal documento é, por si, demonstrativo da intenção das RR., de formalizarem a apropriação, que sabiam indevida;

2.3. Porquanto, mesmo que tivesse havido doação verbal – o que se não concede e tão só para exposição se refere – sabiam que se destinava a produzir efeitos apenas após a morte da “doadora” e que, na falta de escrito, não tinha qualquer validade.

2.4. Por isso, ocultaram dos herdeiros a existência dos depósitos tentando convencê-los que com a divisão de 2.400 contos, ficava feita a partilha extrajudicial de todo o acervo da herança, “a que legalmente tinham direito”.

2.5. Voluntária e intencionalmente omitiram qualquer referência à existência dos depósitos – à pretensa doação – ao testamento – e à casa que a cabeça-de-casal simulou vender, já após a morte da inventariada…

2.6. A ilação que há que necessariamente retirar é que o teor deste documento, nunca impugnado, está em manifesta oposição à resposta dada ao quesito 10º da base instrutória.

2.7. Resposta essa dada com base em testemunhos parciais, descredibilizados, e sem que se justifique a referida contradição.

2.8. A sentença em apreço não teve em consideração a prova documental produzida, ignorando-a, sem qualquer tipo de justificação.

2.9. Não teve em atenção as declarações comprovadamente prestadas no inventário, prestadas nos termos referidos em 1, nem o documento referido em 2.1.

2.10. Mas também não teve em atenção que a inventariada fez testamento e não se referiu aos depósitos bancários, nem às Rés.

2.11. E que, pouco tempo antes da morte, outorgou procuração a favor da 1ª Ré onde expressamente lhe conferia poderes para movimentar todas as contas bancárias (dela mandante).

2.12. Dos autos ressalta que além dos depósitos em litígio, nenhuns outros existiam na titularidade da inventariada.

2.13. Daí que não seja legítima qualquer dúvida acerca da consciência que a mesma mantinha – à data da sua outorga – sobre a plenitude da propriedade dos dinheiros que (ela mandante) tinha depositados no banco.

2.14. Tal ilação, que não pode deixar de ser retirada da prova documental, contraria frontalmente a resposta dada ao quesito 16º da base instrutória, com fundamento na prova testemunhal.

3. A sentença de que ora se apela decidiu de forma frontalmente oposta à que fundamentara anterior decisão do mesmo Juízo.

3.1. Sem que, na realidade, as respostas dadas aos quesitos formulados de novo, por imposição do Acórdão deste Tribunal da Relação, tenham trazido alteração substancial aos termos da questão.

Com efeito,

3.2. A resposta dada ao quesito 11º está em flagrante contradição com as respostas dadas aos quesitos 1º, 2º e 3º e só faz sentido no âmbito da contestação das RR., segundo as quais os dinheiros depositados eram de sua exclusiva propriedade.

3.3. As respostas dadas aos quesitos 12º, 13º 14º e 15º provam tão só que, no caso, as contas bancárias da falecida (octogenária doente e acamada) foram contituladas justamente para que as RR. as pudessem gerir e movimentar em função nomeadamente das necessidades da sua doença.

3.4. De nenhuma das respostas dadas aos quesitos, é possível concluir que a inventariada, titular das contas bancárias e dona dos dinheiros depositados, fez entrega às RR. de qualquer importância monetária.

3.5. De nenhuma das respostas dadas aos quesitos, é possível concluir ter havido doação dos dinheiros depositados, da inventariada às RR., pois que para além dos efeitos típicos da constituição de depósito bancário plural solidário (gestão e mobilização dos fundos), nada mais de concreto se mostra comprovado.

3.6. De onde se afigura que a alteração de julgado por que a M.ª Juiz de Direito se decidiu, carece de fundamentação factual e legal, porquanto se mantém válidos os argumentos que primeiramente utilizou para dar provimento à acção.

4. Ao fazê-lo, violou o disposto no art. 946º, nº2, e 947º, nº2, ambos do Código Civil, na medida em que aceitou prova testemunhal para prova de doação destinada a ter efeitos após a morte da doadora tal como aceitou prova testemunhal para dispensar o documento escrito.

4.1. A interpretação do nº2 do art. 947º do Código Civil, segundo a qual a tradição (quando não há entrega física do bem), se pode fazer por testemunhas, viola frontalmente a letra e o espírito da lei que obriga a que tais actos constem pelo menos de documento escrito; tal interpretação destina-se “a fazer entrar pela janela o que o legislador proibiu que entrasse pela porta”.

4.2. Tal prova é por isso nula e como tal deverá ser reavaliada (art. 712º do Código de Processo Civil).

5. Ou, caso assim se não entenda, em alternativa, ser declarada nula, nos termos da alínea c) do nº1 do art. 668º do Código de Processo Civil.

Em suma, a sentença de que ora se apela deu como provados – com base em prova testemunhal frágil, suspeitosa e inadmissível – factos que se encontram em flagrante contradição com a prova documental (nunca impugnada e que nos autos abunda), sem qualquer justificação que a fundamente.

Deve, por isso, ser revogada e substituída por outra que, fazendo criteriosa apreciação e julgamento da matéria de facto, a sujeite à correcta e justa a aplicação do Direito.
Tudo para que, deste modo, uma vez mais, como sempre, aqui seja feita, a costumada e esperada Justiça.

As RR. contra-alegaram pugnando pela confirmação da sentença.
***

Colhidos os vistos legais cumpre decidir, tendo em conta a seguinte matéria de facto:

1. E............. faleceu em 10 de Junho de 1986 - (Al. A) dos Factos Assentes).

2. Por seu óbito procedeu-se a inventário, que corre termos no .. Juízo Cível desta comarca sob o nº.... - (Al. B) dos Factos Assentes).

3. Autoras e Rés foram habilitadas como herdeiras nesse inventário, sendo as funções de cabeça de casal desempenhadas pela Ré D............ - (Al. C) dos Factos Assentes).

4. À data do óbito da inventariada existiam os seguintes depósitos bancários:

a) depósito n.º .. (a prazo) da conta n.º 0001, em nome da inventariada e D..........., do montante (com juros) de 1.232.151$00;
b) depósito n.º .. (a prazo) da conta n.º 0001, em nome da inventariada e D..........., do montante (com juros) de 512.942$10;
c) depósito n.º .. (a prazo) da conta n.º 0001, em nome da inventariada, E....... e D.........., no montante (com juros) de 1.483.643$00;
d) depósito n.º .. (a prazo) da conta n.º 0001, em nome da inventariada e D........., do montante (com juros) de 1.173.772$60;
e) depósito n.º .. (a prazo) da conta n.º 0001, em nome da inventariada e D.........., do montante (com juros) de 564.180$00;
f) depósito à ordem da conta n.º 0001, em nome da inventariada e D.........., do montante (com juros) de 414$00;
g) depósito à ordem da conta n.º 0002, em nome da inventariada e de F..........., do montante (com juros) de 409$00;
h) depósito n.º .. (a prazo) da conta n.º 0002, em nome da inventariada e F........., do montante (com juros) de 1.167.243$30;
i) depósito n.º .. (a prazo) da conta n.º 0002, em nome da inventariada e F..........., do montante (com juros) de 2.502.139$70 - (Al. D) dos Factos Assentes).

5. D........... procedeu ao levantamento dos depósitos referidos em 4. a), 4. b), 4. c), 4. d), 4. e), 4. f) em, respectivamente, 08.08.1986, 13.11.1986, 30.06.1986, 01.09.1986, 12.11.1986 e 12.11.1986 - (Al. E) dos Factos Assentes).

6. F............, procedeu ao levantamento dos depósitos referidos em 4. g), 4. h) e 4. i) em, respectivamente, 13.11.1986, 13.11.1986 e 13.11.1986 - (Al. F) dos Factos Assentes).

7. A D............. e a F............. omitiram à instituição bancária o falecimento da inventariada quando procederam aos levantamentos - (Al. G) dos Factos Assentes).

8. Os valores dos depósitos referidos em 4. foram obtidos pela E............ através do seu trabalho e de um casamento bem sucedido - (Resposta aos quesitos 1º e 2º da Base Instrutória).

9. As Rés tinham conhecimento dos factos referidos em 8. e, apesar disso, actuaram conforme consta dos n.ºs 5 a 7, e esconderam a existência daqueles depósitos das Autoras (Resposta aos quesitos 3º, 4º e 5º da Base Instrutória).

10. Em sinal de agradecimento pelo carinho e apoio que as Rés lhe prestaram, a inventariada E.............. constituiu, inicialmente, depósitos a favor daquelas nas contas referidas em 4. (Resposta aos quesitos 7º e 8º da Base Instrutória).

11. Nessas contas, ao longo dos anos, as Rés foram creditando os juros remuneratórios das quantias depositadas (Resposta ao quesito 9º da Base Instrutória).

12. A E............. deu a entender às Rés que pretendia que do montante que constava dos depósitos referidos em 4. fosse retirada a quantia de 2.400.000$00 e que esta fosse distribuída pelos herdeiros de todos os seus 6 irmãos, de modo a caber 400.000$00 a cada ramo (Resposta ao quesito 10º da Base Instrutória).

13. A dita E........... apenas figurava nas contas referidas em 4. por mera deferência das sobrinhas Rés (Resposta ao quesito 11º da Base Instrutória).

14. Sendo cada uma destas quem autonomamente geria as respectivas contas, constituindo e renovando contratos de depósito, efectuando levantamentos e recebendo os atinentes juros ou simplesmente capitalizando-os (Resposta ao quesito 12º da Base Instrutória).

15. As Rés dispunham do dinheiro e juros livre e exclusivamente (Resposta ao quesito 13º da Base Instrutória).

16. As Rés figuravam como titulares das contas referidas em 4. (Resposta ao quesito 14º da Base Instrutória).

17. A correspondência era lhes endereçada pela entidade bancária (Resposta ao quesito 15º da Base Instrutória).

18. Procedendo a tais depósitos como sendo suas proprietárias exclusivas, que sempre consideraram coisa exclusivamente sua e como tal era considerado pelos parentes mais próximos e mormente pela desditosa E.......... (Resposta ao quesito 16º da Base Instrutória).

Fundamentação:

Sendo pelo teor das conclusões do recorrente, que afora as questões de conhecimento oficioso, se delimita o objecto do recurso, importa saber:

- se existe contradição entre a resposta ao quesito 11º e as dadas aos quesitos 12º, 13º e 14º, e se destas apenas se pode concluir que as Rés apenas podiam gerir as contas bancárias que continuavam a pertencer à E...........;

- se o Tribunal recorrido se socorreu, indevidamente, de prova testemunhal para dar como provada a existência de doação em vida, de dinheiro existente nas contas bancárias movimentadas pelas RR.- contitulares.

Vejamos:

Na sequência de decisão transitada em julgado que relegou para os meios comuns a discussão acerca da propriedade do dinheiro existente em contas bancárias em que figuravam como titulares E.............. - falecida em 10.6.1986 – e as Rés, suas sobrinhas, as AA. intentaram a acção declarativa de onde promana o recurso, pedindo que as Rés fossem condenadas a reconhecerem que, apesar de nas contas bancárias em causa figurar o nome das Rés, o dinheiro nelas depositado é propriedade, exclusiva, da inventariada e, como tal, devem restituir esse dinheiro à herança para partilha pelos herdeiros.

As Rés contrapuseram que tal dinheiro lhes foi doado em vida, pela falecida E.........., em sinal de reconhecimento pela ajuda prestada na sua velhice e na doença, e que a falecida E............ as “encarregou” de distribuir pelos seis herdeiros/sobrinhos 2.400.000$00 (400 contos a cada um ) o que elas fizeram.

Ademais, as quantias existentes nas contas foram incrementadas com depósitos feitos por elas com o seu dinheiro.

Em suma, Rés alegaram ser proprietárias exclusivas do dinheiro e que só não o levantaram, em vida da E..........., por disso não carecerem.

Em relação à titularidade do dinheiro são duas as questões em debate: uma, a de saber a quem pertencia o dinheiro depositado nas contas bancárias identificadas no processo; outra saber se houve válida doação, em vida, sendo doadora a E........... e donatárias as Rés.

Vejamos acerca da 1ª questão:

A abertura de conta num Banco e os depósitos pecuniários nela efectuados, exprimem a existência de um contrato de depósito bancário que é um contrato real, cuja perfeição só se objectiva através da prática material da entrega de dinheiro, não sendo suficiente o mero acordo entre os depositantes e o banco depositário.

“O depósito bancário é um contrato unilateral, uma vez que dele só resultam obrigações para o banco.
Este tem como obrigação a restituição da quantia depositada e, em alguns casos, a obrigação de pagamento de juros, e a estas não se contrapõe qualquer obrigação a cargo do depositante”- cfr. “O Contrato de Depósito Bancário”, de Paula Ponces Camanho, 1998, pág.117-118.

Os depósitos podem ser singulares, se apenas uma pessoa é a sua titular, ou plurais se tal titularidade pertencer a mais que uma pessoa ou entidade.

Estes – os plurais – podem ser conjuntos ou solidários.

Como se refere na obra citada - pág. 131:

Depósito solidário é “Aquele em que qualquer dos credores (depositantes ou titulares da conta), apesar da indivisibilidade da prestação, tem a faculdade de exigir, por si só, a prestação integral, ou seja, a o reembolso de toda a quantia depositada (acrescida dos respectivos juros, se os houver) e em que a prestação assim efectuada libera o devedor (o banco depositário) para com todos eles (art. 512º do Código Civil)”.

A faculdade de qualquer dos co-titulares do depósito bancário, sem a autorização dos demais, poder levantar a totalidade da quantia depositada exprime um regime de solidariedade activa.

O que sociologicamente está na base da opção por este tipo de contas solidárias é, as mais das vezes, a relação de confiança que existe entre os seus titulares, que de modo tácito se consentem, reciprocamente, a faculdade ou o direito de procederem a levantamentos por sua exclusiva vontade, não carecendo do consentimento dos demais.

Tão pouco o Banco depositário pode opor ao co-titular, o facto de o depósito “pertencer” a vários, para lhe frustar o levantamento da totalidade depositada.

Os titulares de conta bancária solidária têm o direito de crédito de poder exigir do Banco a restituição integral do depósito, nem sempre coincidindo tal direito, com o direito real de propriedade, ou compropriedade sobre o dinheiro depositado. [Cfr. Ac. do STJ, de 5.11.98, in CJSTJ, Tomo III, 1998, pág.95]

Por isso, não é legitimo afirmar-se que qualquer co-titular da conta solidária é dono do dinheiro.

Dono do dinheiro é aquele que puder afirmar o seu direito de propriedade, ou compropriedade, sobre ele.

Por isso, também, o facto de um co-titular depositar dinheiro numa conta solidária não significa que esteja a fazer uma doação aos demais co-titulares, pelo facto de poder, livremente, recuperar tal quantia, através de ulterior levantamento.

O art. 516º do Código Civil estabelece que “nas relações entre si se presume que os devedores ou credores solidários comparticipam em partes iguais na dívida ou no crédito, sempre que da relação jurídica entre eles existente não resulte que são diferentes as suas partes, ou que um só deles deve suportar o encargo da dívida ou obter o benefício do crédito”.

Como se sentenciou no Ac. do STJ, de 17.6.99, in CJSTJ, 1999, II, 152:

“I – A situação das chamadas “contas conjuntas” ou “contas colectivas”, tituladoras de depósitos bancários efectuados em nome de duas ou mais pessoas, ficando qualquer delas com a faculdade de, isoladamente e sem necessidade de intervenção do seu co-titular, fazer levantamentos e outros movimentos, é um caso de solidariedade activa.
II – Por consequência, por força art. 516º do Código Civil, se por exemplo duas pessoas fizerem um depósito bancário nesse regime presume-se, enquanto se não fizer prova em contrário, que cada um dos depositantes é titular de metade da conta”.

À luz dos princípios enunciados temos de concluir que, desde logo, aquele que pretende afirmar a propriedade exclusiva de dinheiro depositado em contas bancárias solidárias, tem de ilidir a presunção constante do art. 516º do Código Civil, ou seja, que os valores pecuniários pertencem em partes iguais aos co-titulares.

Esse ónus probatório impende sobre quem se propõe demonstrar que, não obstante a existência de contas solidárias, o montante pecuniário nelas existentes é apenas de um dos seus titulares.

No caso tal ónus impendia sobre as Rés – art. 342º, nº1, do Código Civil.

Mas as Rés, visando arredar de todo tal presunção, alegaram serem donas exclusivas do dinheiro admitindo, no entanto, que em vida da E............, ela lhes tinha doado os valores constantes das contas – excepto a parte em que “recomendou” que fosse dividida pelos demais herdeiros seus sobrinhos – como sinal de reconhecimento pelo tratamento por elas prestado na velhice e doença.

Quanto à doação:

O art. 940º do Código Civil define doação nos seguintes termos:

“1. Doação é o contrato pelo qual uma pessoa, por espírito de liberalidade e à custa do seu património, dispõe gratuitamente de uma coisa ou de um direito, ou assume uma obrigação, em benefício do outro contraente.
2. Não há doação na renúncia a direitos e no repúdio de herança ou legado, nem tão pouco nos donativos conformes aos usos sociais”.

Nos termos do art. 954º do mesmo diploma, a doação produz os seguintes efeitos essenciais:
a) A transmissão da propriedade da coisa ou da titularidade do direito;
b) A obrigação de entregar a coisa;
c) A assunção da obrigação, quando for esse o objecto do contrato”.

Consigna o nº2 do art. 947º do Código Civil - “A doação de coisas móveis não depende de formalidade alguma externa, quando acompanhada de tradição da coisa doada; não sendo acompanhada de tradição da coisa, só pode ser feita por escrito”.

A doação é um contrato pelo, qual o doador “à custa do seu património, aumenta o activo do outro contraente, atribuindo-lhe um direito”- cfr. Galvão Telles, in “Direito das Obrigações” – 6ª edição, pág. 81.

Com efeito, a doação é um meio translativo da propriedade da coisa ou do direito doados – art. 964º a) do Código Civil.

Normalmente, com a doação o doador pretende beneficiar terceiros, que sente na obrigação moral de recompensar, por motivação ligados a sentimentos de gratidão e afectividade.

“As doações, são, na grande maioria, contratos pelos quais um dos sujeitos, à custa do seu património, aumenta o activo do outro contraente, atribuindo-lhe um direito.
Em sentido amplo são todas as liberalidades (directas ou indirectas) para além das deixas testamentárias.
Em sentido restrito são as liberalidades “mortis causa” de estrutura contratual e as liberalidades “inter vivos” que vão enriquecer, sem intervenção de terceiro, o activo do beneficiário” - (Galvão Telles, obra e local citados).

A proposta de doação caduca se não for aceita em vida do doador – nº1 do art. 945º do Código Civil – que, no seu nº2, estabelece que vale como aceitação a tradição para o donatário, em qualquer momento, da coisa móvel doada, ou do seu título representativo.

As AA. sustentam que, mesmo que tivesse havido doação, ela seria inválida porquanto, por se tratar de coisa móvel, a sua validade dependeria de haver “traditio” ou, não havendo, teria a liberalidade de ser formalizada por escrito – art. 947º, nº2, do Código Civil, o que não aconteceu.

Mas será que se pode considerar que houve, “in casu”, tradição?

No Acórdão desta Relação, de fls.186 a 195, de 10.1.2002 que anulou a sentença – que julgou a acção procedente – determinando a ampliação da matéria de facto, precisamente, para que fosse objecto de discussão e julgamento a alegação das Rés, que houvera tradição, com inclusão na Base Instrutória do por elas alegado nos arts. 2º a 7º e 31º da contestação, afirmou-se, analisando a sentença revogada, que não tinha sido provada factualidade que suportasse a tradição dos depósitos.

A fls. 194 e verso, dessa decisão, pode ler-se: “O facto de constar da conta bancária referente ao depósito doado, também o nome do doador, desde que isso não signifique a sua intenção de manter a disponibilidade sobre o depósito, não impedirá, na nossa óptica, a tradição do dinheiro depositado para o donatário, sendo certo que a tradição assim caracterizada pode provar-se por via testemunhal”.

Repetido o julgamento, dos factos provados pode concluir-se que os depósitos existentes nas contas eram da propriedade da E..........., fruto do seu trabalho e de casamento bem sucedido – respostas aos quesitos 1º e 2º.

Das respostas aos quesitos 7º, 8º e 11º, pode concluir-se ter havido doação feita pela E............. às Rés – “em sinal de agradecimento pelo carinho e apoio que as Rés lhe prestaram, a inventariada E............., constituiu inicialmente, depósitos a favor daquelas nas contas referidas em 4.” (7º e 8º).
“A dita E............. apenas figurava nas contas referidas em 4. por mera deferência das sobrinhas Rés” (11º).

Que houve aceitação da doação, ao menos tacitamente, e em vida da doadora está o facto de se ter provado que as Rés dispunham livremente do dinheiro e dos juros, que eram elas que geriam tais contas, constituindo e renovando depósitos, efectuando levantamentos e recebendo juros ou capitalizando-os – respostas aos quesitos 12º e 13º mas, sobretudo, o ter-se provado que “as Rés procediam a tais depósitos como sendo proprietárias exclusivas, que sempre consideraram coisa exclusivamente sua e como tal era considerado pelos parentes mais próximos e mormente pela desditosa E...........” – resposta ao quesito 13º.

Este facto é decisivo para demonstrar que, não obstante a E......... continuar como co-titular das contas, ela, ao saber que as Rés actuavam como se fossem donas exclusivas do dinheiro, reconheceu serem as Rés as titulares do direito de propriedade sobre os valores constantes dessas contas.
Ademais, e como se provou, a E........... só continuou a figurar nas contas por deferência das Rés.

Temos assim à luz dos factos provados que houve doação em vida das contas em causa e que tal doação, pese embora não haver documento escrito, foi validamente aceita pelas donatárias, como revelam os actos concludentes de disposição do dinheiro e não contestação pela E.......... da utilização que era feita pela Rés.

Estes factos excluem que fosse intenção da E........... fazer às Rés doação por morte, em regra, proibida e nula, como decorre do nº1 do art. 946º do Código Civil.

Analisando mais de perto as razões invocadas pelas recorrentes:

Desde logo, cumpre referir que o recurso a prova testemunhal para determinar a vontade negocial da doadora não acarreta a sua não consideração; no Acórdão desta Relação a que aludimos diz-se, expressamente, que a tradição da doação do depósitos bancários se pode provar testemunhalmente.

As recorrentes censuram a decisão por não ter tomado em conta a existência de outras provas – nomeadamente, uma procuração emitida pela E.......... (conclusão 2.11) e a existência de um testamento (conclusão 2.10).

Ora tais provas não constam dos autos, pelo que não poderiam ter sido consideradas na decisão recorrida, não sendo legítimo invocá-las para alegar contradição com os factos provados, ou pedir alteração da matéria de facto.

Por tal as conclusões referidas em 2.10 a 2.14 são inócuas.

Não existe qualquer contradição entre as respostas aos quesitos 1º - onde se considerou provado que os valores das contas foram obtidos pelo trabalho da E......... e por ter tido um casamento bem sucedido – e as que constam dos quesitos 12º a 15º.

Importa, naturalmente, situar os factos no seu tempo próprio.

Se os depósitos foram, inicialmente, feitos à custa dos créditos da E........., portanto, com dinheiro seu, ulteriormente, foram doados às Rés – sendo esse o sentido das referidas respostas.
O facto de, mesmo após a doação, a E.......... figurar como co-titular das contas é irrelevante, quando se provou que, apenas por deferência das Rés, o nome dela ali constava e, sobretudo, quando se provou que a própria E......... e outros parentes das Rés sabiam que estas actuavam como se fossem donas exclusivas do dinheiro titulado nessas contas bancárias.

Como antes se disse são realidades distintas a titularidade das contas bancárias e a propriedade dos depósitos nelas existentes.

Aludem as recorrentes à “prova testemunhal frágil, suspeitosa e inadmissível”.

Ora, não tendo a prova testemunhal e os depoimentos de parte, sido objecto de gravação não pode este Tribunal sindicar tal prova pelo que não se verificando os requisitos do art. 712º, nº1, do Código de Processo Civil permanece imodificada matéria de facto em que assentou a decisão.

A sentença não merece censura.

Decisão:

Nestes termos, acorda-se em negar provimento ao recurso, confirmando-se sentença recorrida.

Custas pelas apelantes.

Porto, 10 de Maio de 2004
António José Pinto da Fonseca Ramos
José da Cunha Barbosa
José Augusto Fernandes do Vale