Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
962/19.4T8AMT-A.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: CARLOS QUERIDO
Descritores: INSOLVÊNCIA
REVELIA
EMBARGOS À INSOLVÊNCIA
RELEVÂNCIA
OBJECTO
Nº do Documento: RP20191210962/19.4T8AMT-A.P1
Data do Acordão: 12/10/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Indicações Eventuais: 5ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - Declarada a insolvência, verificando-se a falta de citação do devedor (revelia absoluta), assistem-lhe duas possibilidades de defesa: ou alega a nulidade em apreço, em sede de recurso, requerendo a anulação de todo o processado posterior à petição – incluindo a sentença; ou deduz oposição à sentença por embargos, com a legitimidade decorrente de tal omissão de citação [art.º 40.º, n.º 1, a) do CIRE], alegando nessa sede os factos e requerendo os meios de prova suscetíveis de afastarem o juízo de insolvência, que não foram tidos em conta pelo tribunal devido ao impedimento por parte do insolvente, decorrente da falta de citação.
II - Face ao disposto no n.º 1, alínea a), do artigo 40.º do CIRE, encontrando-se em situação de revelia absoluta, não tendo sido pessoalmente citada (e só nesse caso), o insolvente pode deduzir embargos [como resulta do n.º 2 do artigo 40.º do CIRE], especificamente com vista ao afastamento dos fundamentos da declaração de insolvência, mediante a alegação de factos ou o requerimento de meios de prova que não tenham sido tidos em conta pelo tribunal, sendo tal alegação e requerimento condição de admissibilidade liminar do procedimento em causa.
III - Perante a imperatividade do disposto no n.º 2 do artigo 40.º do CIRE, o objeto dos embargos não poderá reduzir-se à apreciação de uma questão processual – nulidade da citação – a qual constitui mero pressuposto da legitimidade ativa do insolvente.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo n.º 962/19.4T8AMT-A.P1

Sumário do acórdão:
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Acordam no Tribunal da Relação do Porto

I. Relatório
Corre termos no Juízo de Comércio de Amarante - Juiz 4, do Tribunal Judicial da Comarca do Porto Este, o processo de insolvência n.º 962/19.4T8AMT, no âmbito do qual, por sentença de 17.07.2019, foi declarada a insolvência da devedora, considerando-se confessados os factos articulados na petição, por falta de oposição.
Por apenso aos referidos autos de insolvência de pessoa coletiva (requerida), veio B…, por si e em representação da C…, Lda. deduzir oposição por embargos à sentença declaratória de insolvência da dita sociedade, alegando, em suma, que ocorre falta/nulidade da citação da devedora e ainda que não se verificam os pressupostos da solvência desta.
Admitidos liminarmente os embargos, foram notificados para, querendo, contestar o Administrador da Insolvência, bem como a credora requerente da insolvência.
A credora requerente da insolvência veio contestar, alegando, em síntese: que não se verifica a alegada falta/nulidade de citação; que se verificam os pressupostos da insolvência.
Foram as partes convocadas para a audiência final, que se realizou em 19.09.2019, tendo-se consignado na respetiva ata:
«A embargante desiste do pedido formulado nos embargos no que respeita à apreciação da sua situação de solvência, requerendo que siga para apreciação do Tribunal somente a questão levantada quanto à falta/nulidade da citação.
Pede deferimento.
De seguida, dada a palavra à Ilustre Mandatária da Embargada, Dra. D…, para querendo se pronunciar, pela mesma foi dito nada ter a opor.
Seguidamente, pelo Mmº Juiz, foi proferido o seguinte:
DESPACHO
(gravado através do sistema integrado de gravação digital disponível na aplicação informática em uso neste tribunal, de 10:54:29 a 10:56:12)
Declara-se validamente prescindida pelos embargantes a questão de apreciação da solvência da embargada.
Uma vez que para apreciação da questão não é necessária a produção de qualquer prova testemunhal ou outra, dispensa-se desde já a realização do despacho saneador, e a produção de prova, concedendo-se de imediato a palavra aos Ilustres Mandatários para alegações.
Notifique.».
Em 19.09.2019 foi proferida sentença, na qual foram julgados totalmente improcedentes os embargos.
Não se conformou a embargante, e interpôs recurso de apelação, apresentando alegações, findas as quais formula as seguintes conclusões:
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Não foi apresentada qualquer resposta às alegações de recurso.

II. Do mérito do recurso
1. Definição do objeto do recurso
O objeto do recurso delimitado pelo recorrente nas conclusões das suas alegações (artigos 635.º, n.º 3 e 4 e 639.º, nºs 1 e 3, ambos do Código de Processo Civil), salvo questões do conhecimento oficioso (artigo 3.º, n.º 3, do diploma legal citado), consubstancia-se nas seguintes questões:
i) A inviabilidade posterior do procedimento de embargos, resultante da desistência da embargante;
ii) a questão do direito de defesa da insolvente.

2. Fundamentos de facto
O Tribunal de 1.ª instância considerou provada, sem impugnação, a seguinte factualidade relevante:
1 – No requerimento de insolvência, a requerente indicou como devedora a C…, com sede na Avenida …, n.º …, ..º Andar, concelho de Paredes, NIPC ………, com igual matrícula na Conservatória do Registo Predial de Paredes.
2 – A sociedade devedora tem sede na Av. …, n.º …, ..º andar, ….-…, Paredes.
3 – Em 19-06-2019 foi expedida missiva de citação da devedora para a morada identificada em 2.
4 – A referida carta de citação foi devolvida com a indicação de “Mudou-se” (cfr. documento constante do PE em 02-07-2019).
5 – No dia 03-07-2019 foram expedidas duas cartas de citação da requerida, sendo uma para a morada identificada em 2. e outra para Avenida …, …, ….-…, Penafiel.
6 – As cartas aludidas em 5. tinham, além do mais, as seguintes declarações: “Nos termos do disposto no nº 4 do art.º 246.º do Código de Processo Civil, fica V. Ex.ª citado para, no prazo de 10 dias, deduzir oposição, querendo, à presente ação de insolvência, ficando advertido(a) de que na falta de oposição consideram-se confessados os factos alegados na petição inicial, podendo a insolvência vir a ser decretada (nºs. 1 e 5 do art.º 30 do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas).
7 – A carta mencionada em 5. dirigida para a Avenida …, …, ….-…, Penafiel, foi devolvida com a indicação “inexistência de receptáculo”.
8 – A carta mencionada em 5. dirigida para a Av. …, n.º …, ..º andar, ….-…, Paredes, foi devolvida com as indicações “Desconhecido” e Endereço Insuficiente”.
9 – No dia 9 de Julho a carta mencionada em 8. ainda estava em distribuição e, no dia 11 de Julho, foi devolvida ao remetente.
10 – Por sentença de 17-07-2019 foi declarada a insolvência da devedora, considerando-se confessados os factos por falta de oposição.
11 – B… é sócio e gerente da devedora.

3. Fundamentos de direito
3.1. A inviabilidade posterior do procedimento de embargos, resultante da desistência da embargante
O recorrente restringe o objeto do recurso à questão da nulidade da citação, manifestando expressamente a sua concordância com a conclusão enunciada na sentença recorrida, de que não ocorre a falta de citação (Conclusão III).
Consta, nomeadamente, da fundamentação da sentença recorrida:
«No caso dos autos, os embargantes alegam que não foram cumpridas as formalidades previstas para a citação pessoal por via postal, ao não ter sido dirigida a carta de citação ao representante legal da requerida, preterição de formalidade que impediu, ou pelo menos contribuiu, para que o acto de citação não chegasse ao conhecimento da requerida.
Não há dúvida que não foi dirigida carta ao representante legal da devedora, mas isso por si só não significa que o alegado facto de a citação pessoal efectuada não ter chegado ao seu conhecimento não lhe seja imputável.
Com efeito, convirá não olvidar que foram enviadas duas missivas tendentes à citação da requerida, dirigidas à sua sede social registada na certidão permanente do registo comercial.
A primeira delas foi devolvida com a indicação de “Mudou-se”.
A segunda foi devolvida com a indicação “Desconhecido” e “Endereço Insuficiente”.
Ora, é ónus e dever da sociedade manter a indicação actualizada da sua sede no registo comercial.
Efectivamente, encontra-se sujeita a registo a mudança da sede da sociedade e a transferência de sede para o estrangeiro (cfr. artigos 3.º, n.º 1, al. o) e 15.º, n.º 1 do Código do Registo Comercial).
Desta forma, não pode considerar-se que o alegado desconhecimento pela devedora do acto de citação não deriva de facto que não lhe seja imputável. Aliás, este é um dos casos típicos em que se pode afirmar que o desconhecimento da citação é imputável ao citando.
Como sustentam Abrantes Geraldes/Paulo Pimenta/Luis Filipe Pires de Sousa in op. cit., p. 227, um dos exemplos em que pode verificar-se o efectivo desconhecimento do acto de citação e ainda assim afirmar-se ser isso imputável ao citando ocorre nos casos de “(…) desatualização dos elementos que, a respeito das sociedades, devem constar do registo comercial, tais como a sede e a identificação dos representantes legais, justificando-se esta solução como decorrência da autorresponsabilidade dos entes coletivos quanto ao cumprimento dos preceitos legais que impõem a publicitação dos atos que interessam a terceiros (…)”.
Vale isto por dizer que ainda que se demonstrasse o efectivo desconhecimento do acto por parte da devedora, não se poderia concluir que tal não lhe era imputável.
Não se verifica, assim, alguma das situações que o artigo 188.º faz reconduzir á falta de citação.
Relativamente à questão da nulidade da citação, refira-se que do artigo 191.º, n.º 1 do CPC resulta que é nula a citação quando não hajam sido, na sua realização, observadas as formalidades prescritas na lei.
Esta nulidade não é de conhecimento oficioso, e só pode ser arguida pelo próprio interessado, no caso, a devedora (cfr. artigos 196.º e 197.º do CPC).
In casu, tendo sido devolvido o expediente da citação efectuada nos termos do artigo 246.º, n.º 4 do CPC, sem que tenha sido cumprido o disposto 229.º, n.º 5 do mesmo código, existiam pelo menos duas hipóteses:
- Ou se procedia ao envio de nova citação nos termos do artigo 246.º, n.º 4 do CPC, devendo o distribuidor postal então dar cumprimento ao preceituado no artigo 229.º, n.º 5 do CPC;
- Ou se citava a pessoa colectiva através dos representantes legais.
Não tendo sido efectuadas tais diligências tem que se concluir que na citação não foram nela observadas as formalidades prescritas na lei, o que cai no âmbito do artigo 191.º, n.º 1 do CPC.
Tal não significa, porém, que deva ser atendida e assim declarada a nulidade daí decorrente.
Em primeiro lugar porque se entende que, como se deixou exposto, a verificação da nulidade em causa é fundamento da legitimidade da dedução de embargos pela devedora, e não fundamento da sua procedência.
Isto é, verificada a nulidade em causa considera-se poder a devedora deduzir embargos à sentença declaratória de insolvência, atacando os respectivos fundamentos com a invocação de factos ou mediante a apresentação de meios de prova novos, não acarretando ela a anulação do processado posterior à omissão cometida.
Em segundo lugar, dado que em termos substanciais e no caso, a devedora teve a oportunidade de, nos embargos à sentença apresentado, invocar factos e requerer a produção de meios de prova que não tenham sido tidos em conta pelo Tribunal e que pudessem afastar os fundamentos de declaração de insolvência (na situação dos autos a devedora invocou a sua situação de solvência, vindo a prescindir da respectiva apreciação) entende-se que a falta cometida não prejudicou na situação dos autos o seu direito de defesa.
Efectivamente, acompanha-se aqui o entendimento de Lebre de Freitas/Isabel Alexandre in op. cit., p. 373 quando afirmam: “A exigência de que a falta seja suscetível de prejudicar a defesa do citado constitui a garantia de o regime instituído ser utilizado para realizar o seu escopo (evitar a supressão prática do direito de defesa) e não para finalidades puramente formais ou dilatórias”.
Também por essa via, ao abrigo do disposto no artigo 191.º, n.º 4 do CPC, a nulidade cometida não pode ser atendida.
Ressalvado o devido respeito por opinião diversa, entende-se que as conclusões acima alcançadas não violam quaisquer preceitos ou princípios constitucionais, mormente os elencados no artigo 34.º dos embargos.
De facto, a devedora e o seu sócio-gerente tiveram, de facto, a possibilidade de atacar a sentença declaratória de insolvência mediante a dedução de embargos, como fizeram, aqui podendo alegar quaisquer factos novos e produzir meios de prova que não tenham sido considerados pelo tribunal e que pudessem afastar os fundamentos da declaração de insolvência, tendo inclusivamente prescindido do conhecimento da única questão que a tal titulo suscitaram, traduzida precisamente na invocação da solvência da requerida.
Por outro lado, não pode deixar de se notar que a invocação da violação dos princípios e preceitos constitucionais foi feito pela devedora e pelo seu sócio-gerente que não tiveram o cuidado de actualizar a sede social da sociedade de modo a permitir que ela fosse citada celeramente através das missivas expeditas para a morada constante do registo comercial.
Devem, pois, ser julgados improcedentes os presentes embargos.».
Vejamos o requisito essencial da legitimação ativa do devedor (insolvente) para a instauração de embargos, bem como o objeto dos mesmos, tal como a lei o define e restringe.
Dispõe o artigo 40.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, aprovado pelo DL n.º 53/2004, de 18 de Março[1]:
1 - Podem opor embargos à sentença declaratória da insolvência:
a) O devedor em situação de revelia absoluta, se não tiver sido pessoalmente citado;
b) O cônjuge, os ascendentes ou descendentes e os afins em 1.º grau da linha recta da pessoa singular considerada insolvente, no caso de a declaração de insolvência se fundar na fuga do devedor relacionada com a sua falta de liquidez;
c) O cônjuge, herdeiro, legatário ou representante do devedor, quando o falecimento tenha ocorrido antes de findo o prazo para a oposição por embargos que ao devedor fosse lícito deduzir, nos termos da alínea a);
d) Qualquer credor que como tal se legitime;
e) Os responsáveis legais pelas dívidas do insolvente;
f) Os sócios, associados ou membros do devedor.
2 - Os embargos devem ser deduzidos dentro dos 5 dias subsequentes à notificação da sentença ao embargante ou ao fim da dilação aplicável, e apenas são admissíveis desde que o embargante alegue factos ou requeira meios de prova que não tenham sido tidos em conta pelo tribunal e que possam afastar os fundamentos da declaração de insolvência.
3 - A oposição de embargos à sentença declaratória da insolvência, bem como o recurso da decisão que mantenha a declaração, suspende a liquidação e a partilha do activo, sem prejuízo do disposto no n.º 2 do artigo 158.º
Da alínea a) do n.º 1 do artigo 40.º do CIRE resulta, desde logo, como condição de admissibilidade de apresentação de embargos pelo insolvente, a sua falta de citação.
No que respeita ao objeto dos embargos, legalmente vinculado, tal como resulta do disposto no n.º 2 do artigo 40.º do CIRE, a sua finalidade resume-se ao afastamento dos fundamentos da declaração de insolvência, mediante a alegação de factos ou o requerimento de meios de prova que não tenham sido tidos em conta pelo tribunal.
Já o recurso, face ao disposto no n.º 2 do artigo 42.º do mesmo diploma legal – que pode ser interposto, alternativa ou cumulativamente com a oposição por embargos[2] – baseia-se na consideração de que, face aos elementos apurados, a declaração de insolvência não devia ter sido proferida[3].
Como refere Menezes Leitão[4] o devedor pode interpor recurso da sentença que declarou a insolvência, mesmo quando a interposição de embargos lhe esteja vedada (art.º 42.º, n.º 2, do CIRE), sendo, no entanto, extremamente limitadas, as possibilidades de o devedor apresentar embargos à sentença, as quais se resumem «[…] à existência de revelia absoluta, em caso de ausência de citação pessoal para a acção. Essa solução compreende-se, dado que, no caso de o devedor se ter apresentado à insolvência ou, tendo sido pessoalmente citado para a acção, não apresente oposição, confessará a sua situação de insolvência (art.ºs 28.º e 30.º, n.º 5), pelo que não fará sentido que posteriormente pudesse apresentar embargos».
Face ao disposto no n.º 1, alínea a), do artigo 40.º do CIRE, encontrando-se em situação de revelia absoluta, não tendo sido pessoalmente citada (e só nesse caso), a recorrente podia deduzir embargos [como resulta do n.º 2 do artigo 40.º do CIRE], especificamente com vista ao afastamento dos fundamentos da declaração de insolvência, mediante a alegação de factos ou o requerimento de meios de prova que não tenham sido tidos em conta pelo tribunal.
E logo aqui surge a primeira perplexidade: tendo a ora recorrente deduzido embargos com dois fundamentos [alegação de ausência/nulidade da citação, e alegação de factos que, na sua ótica, afastavam os pressupostos da insolvência[5]], na audiência final desistiu do pedido formulado nos embargos no que respeita à apreciação da sua situação de solvência, requerendo que siga para apreciação do Tribunal somente a questão levantada quanto à falta/nulidade da citação.
Em suma, a ora recorrente abandonou o fundamento de mérito - afastamento dos fundamentos da declaração de insolvência, mediante a alegação de factos ou o requerimento de meios de prova que não tenham sido tidos em conta pelo tribunal - para manter apenas o fundamento formal: ausência/nulidade da citação.
Ora, se nos abstrairmos da “desistência” formulada pela insolvente na audiência final, relativamente ao pedido de impugnação fundado na alegação de factos e indicação de meios de prova não tidos em conta pelo tribunal na decisão de insolvência, equacionando a instauração deste procedimento apenas para discussão da nulidade da citação, teríamos de concluir que tal pretensão seria liminarmente indeferida, face à inquestionável imperatividade do n.º 2 do artigo 40.º do CIRE: «apenas são admissíveis desde que o embargante alegue factos ou requeira meios de prova que não tenham sido tidos em conta pelo tribunal e que possam afastar os fundamentos da declaração de insolvência».
Em suma, os embargos foram liminarmente admitidos porque inicialmente a insolvente os formulou com o objeto previso no n.º 2 do artigo 40.º do CIRE, tendo sido, a posteriori, esvaziado o seu objeto ou, melhor dizendo, deles retirado o pressuposto que a lei elege como condição de admissibilidade.
Será possível, ainda assim, discutir nos embargos, como único objeto, a legalidade da citação?
Pensamos que não, face à imperatividade do citado n.º 2 do artigo 40.º do CIRE.
Como bem refere o Mº Juiz, a ausência/nulidade da citação constitui apenas fundamento da legitimidade ativa do devedor para o procedimento em causa [art.º 40.º, n.º 1, a) do CIRE], não constituindo o objeto dos embargos, a discussão de tal vício formal, mas antes e apenas, a discussão dos fundamentos (e provas em que estes se alicerçam) da declaração de insolvência.
É essa a única conclusão que se pode retirar do que, quanto aos embargos, determina o n.º 2 do artigo 40.º do CIRE: «apenas são admissíveis desde que o embargante alegue factos ou requeira meios de prova que não tenham sido tidos em conta pelo tribunal e que possam afastar os fundamentos da declaração de insolvência».
Para a questão da apreciação da nulidade (como atrás se referiu, a recorrente aceita expressamente que não ocorre falta de citação), e das suas consequências – anulação do processado, está vocacionado o recurso, meio processual de impugnação da sentença, ao dispor da ora recorrente[6].
Em suma, declarada a insolvência, verificando-se a falta de citação do devedor (revelia absoluta), assistem-lhe duas possibilidades de defesa: ou alega a nulidade em apreço, em sede de recurso, requerendo a anulação de todo o processado posterior à petição – incluindo a sentença; ou deduz oposição à sentença por embargos, com a legitimidade decorrente de tal omissão de citação [art.º 40.º, n.º 1, a) do CIRE], alegando nessa sede os factos e requerendo os meios de prova suscetíveis de afastarem o juízo de insolvência, que não foram tidos em conta pelo tribunal devido ao impedimento por parte do insolvente, decorrente da falta de citação[7].
O que não nos parece, salvo o devido respeito, como já se afirmou e ora se reitera, perante a imperatividade do disposto no n.º 2 do artigo 40.º do CIRE, o objeto dos embargos não poderá reduzir-se a uma questão processual que, como se refere na sentença, constitui mero pressuposto da legitimidade ativa – a falta de citação do devedor para o processo de insolvência.
Em síntese conclusiva, ao desistir do pedido formulado nos embargos no que respeita à apreciação da sua situação de solvência, requerendo que siga para apreciação do Tribunal somente a questão levantada quanto à falta/nulidade da citação, a embargante esvaziou o conteúdo e objetivo do procedimento, limitando-o a uma questão meramente formal, que não tem a ver com o mérito deste meio processual, já que se traduz em mero pressuposto da sua legitimidade.
As conclusões enunciadas bastariam para a improcedência do recurso.
Iremos, no entanto, mais longe, apreciando as objeções suscitadas nas alegações da recorrente.
3.2. A questão do direito de defesa da insolvente
Provou-se que: a sociedade devedora tem sede na Av. …, n.º …, ..º andar, ….-…, Paredes[8] (facto 2); foi expedida missiva de citação da devedora para a referida morada (facto 3); a carta de citação foi devolvida com a indicação de “Mudou-se (facto 4); posteriormente, em 03.07.2019, foram expedidas duas cartas para citação da sociedade devedora, sendo uma para a sua sede e outra para Avenida …, …, ….-…, Penafiel (facto 5); tais cartas continham, além do mais, as seguintes declarações: “Nos termos do disposto no nº 4 do art.º 246.º do Código de Processo Civil, fica V. Ex.ª citado para, no prazo de 10 dias, deduzir oposição, querendo, à presente ação de insolvência, ficando advertido(a) de que na falta de oposição consideram-se confessados os factos alegados na petição inicial, podendo a insolvência vir a ser decretada (nºs. 1 e 5 do art.º 30 do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas) – facto 6; a carta dirigida para a Avenida …, …, ….-…, Penafiel, foi devolvida com a indicação “inexistência de receptáculo” (facto 7); a carta dirigida para a Av. …, n.º …, ..º andar, ….-…, Paredes, foi devolvida com as indicações “Desconhecido” e Endereço Insuficiente” (facto 8).
No que concerne à citação de pessoas coletivas, rege o disposto no artigo 246.º do Código de Processo Civil, tendo passado a recair sobre as sociedades o ónus de garantir a correspondência entre o local inscrito como sendo a sua sede e aquele em que esta se situa de facto, atualizando-o de forma diligente, a fim de evitar que à sua citação se venha a proceder em local correspondente a uma sede anterior[9].
Como se decidiu no acórdão da Relação de Lisboa, de 17.11.2015 (processo n.º 2070/13.2TVLSB-B.L1-7), sobre a pessoa coletiva impende o ónus de garantir que chegue ao seu conhecimento, em tempo oportuno, uma citação que lhe seja enviada por um tribunal, o que poderá fazer por qualquer meio à sua escolha, como sejam, a periódica e regular inspeção do seu antigo recetáculo postal, o acordo estabelecido com o novo detentor do local das suas anteriores instalações, no sentido do aviso de recebimento ou da entrega do expediente, ou a contratação do serviço de reexpedição junto dos CTT.
Devolvido o expediente na primeira tentativa de citação, é a mesma repetida, mediante nova tentativa por via postal, com a cominação de que a citação se considera efetuada na data certificada pelo distribuidor do serviço postal, ou, se tiver que ser deixado aviso, no oitavo dia posterior a essa data (art.º 230.º, n.º 2 do CPC). Não sendo de novo possível a entrega da carta, por motivo diferente da recusa, o distribuidor postal deposita a carta em local que certifica ou, sendo isso impossível, deixa aviso nos termos do artigo 228.º, n.º 5 do CPC (art.º 229.º, n.º 5 do CPC), considerando-se feita a citação pessoal[10].
In casu, devolvida a primeira carta para citação (enviada para a sede da insolvente), foi remetida uma segunda, nos termos do n.º 4 do artigo 246.º do CPC (com a advertência da cominação prevista no citado normativo).
No entanto, e como se constata na sentença, não foi dado cumprimento ao disposto no n.º 5 do artigo 229.º do CPC – certificação pelo distribuidor do serviço postal, da data e do local exato em que depositou o expediente, remetendo de imediato certidão ao tribunal.
Ocorreu assim a omissão de uma formalidade no procedimento de citação, o que consubstancia nulidade, nos termos gerais do n.º 1 do artigo 191.º do CPC.
No entanto, como ampla e fundamentadamente se referiu, tal nulidade constitui pressuposto da legitimidade ativa para a dedução de embargos, afastando a lei a possibilidade de ser debatida neste meio processual, cujo objeto se restringe ao que imperativamente prevê o n.º 2 do artigo 40.º do CIRE.
A questão que se suscita é a de saber se, conforme alega a recorrente, a inviabilidade de discussão desta questão formal nos embargos – que, recorde-se, nem sequer seriam admissíveis se fosse a única a constar da petição[11] - é suscetível de pôr em causa os seus direitos constitucionais de defesa.
Pensamos, com todo o respeito, que a resposta terá de ser negativa.
Desde logo, porque a ora recorrente tinha ao seu dispor os meios processuais adequados a requerer a anulação do processado – recurso previsto no artigo 42.º do CIRE.
Depois, porque, como bem refere o Mº Juiz:
«De facto, a devedora e o seu sócio-gerente tiveram, de facto, a possibilidade de atacar a sentença declaratória de insolvência mediante a dedução de embargos, como fizeram, aqui podendo alegar quaisquer factos novos e produzir meios de prova que não tenham sido considerados pelo tribunal e que pudessem afastar os fundamentos da declaração de insolvência, tendo inclusivamente prescindido do conhecimento da única questão que a tal titulo suscitaram, traduzida precisamente na invocação da solvência da requerida.
Por outro lado, não pode deixar de se notar que a invocação da violação dos princípios e preceitos constitucionais foi feito pela devedora e pelo seu sócio-gerente que não tiveram o cuidado de actualizar a sede social da sociedade de modo a permitir que ela fosse citada celeramente através das missivas expeditas para a morada constante do registo comercial.».
O que temos como certo, é que a omissão de formalidades na citação permitia à insolvente, em sede de embargos, alegar e provar factos que pusessem em causa os fundamentos da sentença, assim suprindo a sua não intervenção no processo, tendo a insolvente prescindido da utilização deste meio processual, com a finalidade referida, a que acresce o facto de ter ao seu dispor uma outra via processual (o recurso), na qual a omissão de formalidade de citação não seria mera condição de admissão do procedimento, podendo aí constituir objeto do recurso.
Decorre de todo o exposto a improcedência do recurso.

III. Dispositivo
Com fundamento no exposto, acordam os Juízes desta Relação em julgar totalmente improcedente o recurso, ao qual negam provimento e, em consequência, em manter a decisão recorrida.
*
Custas do recurso pelo recorrente.
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Porto, 10.12.2019
Carlos Querido
Mendes Coelho
Joaquim Moura
_____________
[1] Doravante designado pelo acrónimo CIRE.
[2] Dispõe o artigo 42.º do CIRE:
1 - É lícito às pessoas referidas no n.º 1 do artigo 40.º, alternativamente à dedução dos embargos ou cumulativamente com estes, interpor recurso da sentença de declaração de insolvência, quando entendam que, face aos elementos apurados, ela não devia ter sido proferida.
2 - Ao devedor é facultada a interposição de recurso mesmo quando a oposição de embargos lhe esteja vedada.
3 - É aplicável à interposição do recurso o disposto no n.º 3 do artigo 40.º, com as necessárias adaptações.
[3] Vide Direito da Insolvência, Luís Manuel Teles de Menezes Leitão, Almedina, 2015, 6.ª edição, pág. 211.
[4] Obra citada, pág. 212.
[5] Alegou, nomeadamente, que: de 2017 para 2018, o passivo aumentou 600,91€, enquanto que o ativo aumentou 4.311,89€, tendo assim aumentado os meios próprios para suprir as
suas responsabilidades (art.º 43.º da petição); a autonomia financeira da requerida é superior a 1/3 pelo que a empresa apresenta um bom grau de autonomia financeira (art.º 44.º da petição); os rácios de solvabilidade são positivos (art.º 45.º da petição).
[6] Não temos notícia de recurso no apenso de embargos, o que não significa que não tenha sido interposto.
[7] Como se sumariou no acórdão da Relação de Évora, de 30.11.2016 (processo n.º 1545/12.5TBCTX-G.E1): «II. Os embargos são necessariamente fundados em razões de facto, pois, apenas são admissíveis desde que o embargante alegue factos ou requeira meios de prova que não tenham sido tidos em conta pelo tribunal e que possam afastar os fundamentos da declaração de insolvência. Em contrapartida, o recurso deve basear-se em fundamentos de direito, por inadequação da decisão à factualidade apurada por má aplicação da lei, ou seja, quando se entenda que face aos elementos apurados a decisão não devia ter sido proferida».
[8] É essa a morada que consta da Certidão Permanente junta a fls. 368 do PE.
[9] Vide acórdão da Relação de Lisboa, de 20.10.2016 (processo n.º 1243-14.5TVLSB.L1-8).
[10] José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, Código de Processo Civil Anotado, Volume 1.º, 4.ª edição, Almedina, 2018, pág. 496.
[11] Os embargos só foram liminarmente admitidos, porque na petição a insolvente alegava factos e requeria meios de prova que não tinham sido tidos em conta pelo tribunal e que poderiam ser suscetíveis de afastar os fundamentos da declaração de insolvência, vindo posteriormente a insolvente a desistir do pedido alicerçado em tais fundamentos.