Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
164/17.4YRTRP
Nº Convencional: JTRP000
Relator: MARIA CECÍLIA AGANTE
Descritores: PROCESSO DE INVENTÁRIO
NÃO PAGAMENTO
PRESTAÇÃO
HONORÁRIOS NOTARIAIS
SUSPENSÃO DO PROCESSO DE INVENTÁRIO
VIOLAÇÃO
CONSTITUCIONALIDADE
ACESSO AO DIREITO
Nº do Documento: RP20170620164/17.4YRPRT
Data do Acordão: 06/20/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO, (LIVRO DE REGISTOS N.º 773, FLS.143-147)
Área Temática: .
Sumário: Viola o princípio constitucional do acesso ao direito o despacho do notário que suspende a tramitação de um processo de inventário com fundamento no não pagamento pela requerente, beneficiária de apoio judiciário, da prestação de honorários devidos pelo requerido.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo n.º 164/17.4YRTRP
Acórdão
Acordam no Tribunal da Relação do Porto:
I. Relatório
B…, Rua …, n° …, …, requerente e cabeça-de-casal no processo de inventário que move a C…, residente em Rua …, n.º …, …, …. - …, …, para partilha dos bens comuns do casal, foi notificada para proceder ao pagamento da 2.ª prestação de honorários devidos pelo requerido, por este os não ter pago.
A requerente, beneficiando de apoio judiciário nas modalidades de dispensa de taxa de justiça e demais encargos do processo e nomeação e pagamento de honorários a patrono, não procedeu ao pagamento da 2.ª prestação de honorários notariais devidos pelo requerido.
A Ex.ma Notária, por despacho de 17/02/2017, entendendo que o apoio judiciário concedido à requerente não se transfere para o requerido para pagamento da prestação de honorários que lhe era devida, determinou a suspensão o processo de inventário pelo prazo de 30 dias, após o qual, pagos os honorários, remarcaria a conferência preparatória ou, não sendo pagos os honorários, determinaria o arquivamento do processo.

Inconformada, a requerente interpôs recurso desse despacho, admitido como apelação, com subida imediata e efeito suspensivo.
Como conclusões da sua alegação, aduziu, em síntese:
1. A requerente é beneficiária de apoio judiciário.
2. O requerido, ex-cônjuge, não procedeu ao pagamento do valor liquidado como honorários notariais.
3. Foi, então, notificada para proceder a esse pagamento sob pena de suspensão e ulterior arquivamento do processo de inventário.
4. Como beneficia de apoio judiciário nas modalidades de dispensa de taxa de justiça e demais encargos com o processo e nomeação e pagamento de honorários ao defensor oficioso, não procedeu a tal pagamento.
5. A interpretação feita pela Senhora Notária é inconstitucional por lhe vedar o acesso à justiça e ao direito por insuficiência económica, em violação do artigo 20º da CRP.
6. O pagamento em falta deverá ser suportado pelo Estado, porque tem direito a ver partilhado o seu património comum com o ex-cônjuge.
7. Deve, pois, revogar-se o despacho recorrido e determinar que o inventário prossiga os seus legais termos.

O recorrido não respondeu.
II. Delimitação do objeto do recurso
Sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, o objeto do presente recurso está definido pelo teor das conclusões vertidas pela apelante na sua alegação [artigos 608º/2, 635º/4 e 639º/1 do Código de Processo Civil (CPC)]. Assim, cumpre dilucidar se existe fundamento para que o processo de inventário seja declarado suspenso enquanto não forem pagos os honorários notariais que são devidos pelo requerido.
III. O direito
Partindo dos factos e procedimentos expressos no relatório, vemos que o despacho notarial determinou a suspensão do inventário por falta de pagamento dos honorários notariais. A requerente diverge desse entendimento e defende que a interpretação normativa da Senhora Notária está ferida de inconstitucionalidade.
O Regime Jurídico do Processo de Inventário (RJPI)[1], na senda da desjudicialização, atribui aos cartórios notariais a competência para a tramitação dos processos de inventário. Foi nesse âmbito que a requerente, ora apelante, requereu inventário para partilha subsequente a divórcio, o que implica o pagamento de custas, que incluem os honorários notariais e as despesas (artigo 15º/1 da portaria n.º 278/2013, de 26 de agosto, com as alterações introduzidas pela portaria n.º 46/2015, de 23 de fevereiro). De facto, sendo o notário um profissional liberal, a sua retribuição é obtida em função dos atos notariais que pratica (artigo 17º/1 do Estatuto do Notariado)[2].
No caso de partilha de bens em consequência do divórcio, as custas inerentes ao inventário, se forem devidas, são pagas por ambos os cônjuges, na proporção de metade para cada um, salvo se algum deles não satisfizer em tempo esse pagamento. O outro cônjuge pode assumir integralmente o encargo de pagar a totalidade das custas, caso em que beneficia do direito de regresso sobre o montante que pagou a mais (artigo 80º do RJPI). Porém, ao processo de inventário é aplicável, com as necessárias adaptações, o regime jurídico do apoio judiciário e, nos casos de dispensa de taxa de justiça e demais encargos com o processo, o regime de pagamento dos honorários e a responsabilidade pelos mesmos são regulados por portaria do membro do Governo responsável pela área da justiça (artigo 84º do RJPI). E a respeito do pagamento dos honorários, plasma a dita portaria (artigo 18º/6) que os honorários devidos pelo processo de inventário devem ser pagos nos seguintes moldes:
a) 1.ª Prestação - devida no momento da apresentação do requerimento inicial, no valor de metade dos honorários devidos tendo em consideração o valor do inventário indicado pelo requerente;
b) 2.ª Prestação - devida nos 10 dias posteriores à notificação para a conferência preparatória, no valor da diferença entre o montante dos honorários devidos tendo em consideração o valor do inventário eventualmente corrigido a essa data e o montante já pago nos termos da alínea anterior;
c) 3.ª Prestação - devida nos 10 dias posteriores à notificação pelo notário para o efeito, após a decisão homologatória da partilha pelo juiz, no valor da diferença entre o montante devido a título de honorários nos termos do n.º 2 e, se for o caso, do n.º 4, tendo em consideração o valor final do processo de inventário, e o montante já pago nos termos das alíneas anteriores.
Nestes autos, notificados os interessados para o pagamento da 2.ª prestação de honorários, o requerido não satisfez a quantia que lhe foi liquidada e a Exma. Notária notificou a requerente para o fazer sob pena de suspensão do processo. Com efeito, a responsabilidade pelo pagamento de honorários devidos pelo processo de inventário cabe aos interessados e, quanto à 2.ª prestação, aqui em causa, ela é devida por ambos os interessados, embora o montante da prestação do requerente seja calculado à luz do já pago na 1.ª prestação, que lhe cabe na sua totalidade (artigo 19º/1 e 2 da indicada portaria).
Nos casos em que o responsável não proceda ao pagamento da sua percentagem da prestação nos prazos estabelecidos, o notário procede à notificação de todos os demais interessados para, querendo, efetuarem o pagamento em falta. Tramitação que foi observada nos autos e que, face ao não pagamento pela requerente da quantia devida pelo requerido, foi ordenada a suspensão do processo (n.ºs 4 a 6 do citado preceito). Solução de conformidade legal, que é abalada pela circunstância da requerente beneficiar de apoio judiciário, que opõe não ter o ónus de proceder a tal pagamento porque beneficia de apoio judiciário nas modalidades de dispensa total de custas e de nomeação e pagamento de honorários ao patrono.
Os pedidos de apoio judiciário formulados em inventário são apreciados pelas entidades competentes como se de processo judicial se tratasse, a significar que teremos de buscar a resposta a tal questão no regime do apoio judiciário (artigo 84º do RJPI).
O disposto no artigo 26º-A da identificada portaria estatui que, nos processos de inventário em que tenha sido concedido apoio judiciário, a algum ou alguns dos interessados, na modalidade de dispensa de pagamento da taxa de justiça e demais encargos com o processo, ou na modalidade de pagamento faseado de taxa de justiça e demais encargos com o processo, os honorários notariais cujo pagamento seja da responsabilidade do interessado que beneficia do apoio judiciário são suportados integralmente por Fundo a constituir pela Ordem dos Notários após a sua consagração legal, mediante afetação de percentagem dos honorários cobrados em processos de inventário. Só que tal Fundo não foi ainda constituído e os beneficiários de apoio judiciário não podem ser privados da tutela dos seus direitos em razão da sua insuficiência económica, sob pena de violação do seu direito de acesso à justiça, constitucionalmente garantido independentemente da insuficiência de meios económicos, e que vincula diretamente todas as entidades, públicas e privadas (artigos 20º/1 e 18º/da CRP)[3].
É, portanto, seguro que não pode condicionar-se o direito da requerente ao prosseguimento do processo de inventário por não ter sido constituído o Fundo que deverá garantir o pagamento dos honorários e das despesas que sejam devidas. Todavia, é igualmente certo que os notários, como profissionais liberais, têm de ser remunerados pela sua atividade, porque a Constituição não impõe a gratuitidade da utilização dos serviços de justiça. Embora o legislador disponha de uma larga margem de liberdade de conformação para repartir os custos do funcionamento dos serviços de justiça, a verdade é que não pode postergar a tutela do acesso ao direito e à justiça, tido como um direito fundamental dos cidadãos.
Por isso, o artigo 26º-B da citada portaria estatui que compete à Ordem dos Notários regulamentar os termos em que os notários requerem ao Fundo referido no artigo anterior o pagamento dos respetivos honorários, incluindo a documentação e informação que os notários devem remeter e os momentos e prazos em que deve ser efetuado o requerimento. E nos processos de inventário em que o pagamento dos honorários notariais se efetue nos termos previstos, o prosseguimento do processo não fica dependente do pagamento dos honorários pelo Fundo referido no artigo anterior.
Este preceito é claro na definição de que o prosseguimento do processo de inventário não depende ao pagamento dos honorários pelo Fundo e, inexistindo esse Fundo, o processo também não pode deixar de avançar por um dos interessados não dispor de meios económicos bastantes para suportar tais encargos. Beneficiando a requerente de apoio judiciário e sendo ela responsável pelo pagamento que cabia ao requerido, como ao processo de inventário é aplicável, com as necessárias adaptações, o regime jurídico do apoio judiciário (artigo 84º do RJPI), sempre teríamos de concluir que o adiantamento de tais encargos deve ser feito pelo Instituto de Gestão Financeira e das Infra-Estruturas da Justiça, I. P., sem prejuízo de ulterior reembolso (artigo 19º do decreto-lei n.º 34/2008, de 26 de fevereiro, que aprova o Regulamento das Custas Processuais).
Cremos que essa solução ressuma da previsão do artigo 26º-I da portaria sob destaque a propósito da aquisição pelo beneficiário do apoio judiciários de meios económicos suficientes, em virtude da decisão de partilha, para suportar as custas do processo. Por um lado, determina que se um interessado beneficiar de apoio judiciário na modalidade de dispensa de taxa de justiça e demais encargos com o processo, o notário, quando procede à remessa do processo para o tribunal para efeitos da homologação da partilha, requer ao juiz que avalie se o interessado adquire, em função da decisão homologatória de partilha, meios económicos suficientes para pagar os montantes de cujo pagamento foi dispensado em virtude da concessão de apoio judiciário, e, se for o caso, o condene no ressarcimento dos montantes despendidos pelo Fundo e pelo IGFEJ, caso em que regula o procedimento adequado ao ressarcimento dessas entidades, seja voluntário seja através de ação executiva intentada para o efeito.
Desfecho que, embora transitoriamente, foi adotado pela portaria n.º 46/2015, de 23 de fevereiro, ao estabelecer que o pagamento dos honorários notariais nos processos de inventário em que tenha sido atribuído apoio judiciário a algum dos interessados são suportados pelo Instituto de Gestão Financeira e Equipamentos da Justiça, I. P. (IGFEJ, IP). Regime transitório que é aplicável até terem decorrido 18 meses da entrada em vigor do Fundo criado, sob a designação de Caixa Notarial de Apoio ao Inventário, pelo Estatuto da Ordem dos Notários, e que, entretanto, a publicação da portaria n.º 278/2013, de 26 de agosto, ampliou, estatuindo, sob a epígrafe “responsabilidade pelo pagamento de honorários nos casos de apoio judiciário”, que, nos processos de inventário em que tenha sido atribuído apoio judiciário, a algum ou alguns dos interessados, na modalidade de dispensa de taxa de justiça e demais encargos com o processo ou na modalidade de pagamento faseado de taxa de justiça e demais encargos com o processo, os honorários notariais cujo pagamento seja da responsabilidade do interessado que beneficia do apoio judiciário são suportados pelo IGFEJ (os artigos 6º a 8º dessa portaria regulam essa matéria e o artigo 7º). Posição reiterada pela portaria n.º 117/2017, de 21 de março, que alargou o período transitório de pagamento pelo IGFEJ até 16 de março de 2018. Portanto, salvo melhor opinião, o prosseguimento do processo de inventário não pode ficar dependente do pagamento dos honorários devidos, seja diretamente seja em substituição, por interessado que beneficia do apoio judiciário.
Aceitamos que a especificidade resultante de o devedor de honorários não beneficiar de apoio judiciário cria algumas dificuldades em conceber que tenha de ser o IGFEJ a suportar tais encargos para garantir o prosseguimento do inventário. Não se trata, contudo, de uma “transferência” do apoio judiciário concedido à requerente para o devedor de honorários, mas tão só da garantia do adiantamento dos honorários devidos pela requerente, porque o devedor os não pagou, para poder assegurar o prosseguimento do inventário. É que o regime legal, como vimos, impõe à requerente o pagamento dos honorários que o requerido não pagou.
Outra interpretação normativa denegaria à requerente o direito a ver partilhado o património comum do extinto casal, em postergação do direito de acesso à justiça, independentemente da insuficiência de meios económicos, de sagração constitucional e de vinculação direta de todas as entidades, públicas e privadas (artigos 18º/1 e 20º). Tal interpretação seria também ofensiva do princípio da igualdade, plasmado no artigo 13º da Constituição, na medida em que limitaria o acesso à justiça por parte requerente em virtude da debilidade da sua situação económica.
Os honorários serão apenas adiantados pelo IGFEJ, porque serão pagos pelo devedor na pendência ou após o termo do inventário, voluntária ou coercivamente.
As considerações tecidas determinam a revogação do despacho recorrido, com a necessária tramitação ao adiantamento pelo IGFEJ dos honorários devidos pela requerente e não pagos pelo requerido e subsequente prosseguimento dos termos do inventário.
IV. Dispositivo
Na defluência do exposto, acordam os juízes do Tribunal da Relação do Porto em julgar procedente a apelação e, em consequência, revogar o despacho recorrido e determinar o adiantamento pelo IGFEJ dos honorários em falta e o subsequente prosseguimento dos legais termos do inventário.
Custas do recurso devidas em função da decisão final (artigo 527º/1 do CPC).
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Porto, 20 de junho de 2017.
Maria Cecília Agante
José Carvalho
Rodrigues Pires
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[1] Aprovado pela lei n.º 23/2013, de 05 de março.
[2] Aprovado pela lei n.º 155/2015, de 15 de setembro.
[3] In www.dgsi.pt: Acs. RP de 08/01/2015, processo 171/14.9YRPRT; RG de 02/02/2015, processo 34/14.8TBAMR.G1.