Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
235/22.5T8VCL.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: JOÃO RAMOS LOPES
Descritores: AÇÃO DE REIVINDICAÇÃO
REGISTO PREDIAL
POSSE
IMPUGNAÇÃO DA DECISÃO DA MATÉRIA DE FACTO
REAPRECIAÇÃO DA PROVA
ATO INÚTIL
Nº do Documento: RP20240305235/22.5T8VCL.P1
Data do Acordão: 03/05/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA EM PARTE
Indicações Eventuais: 2. ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - Se a matéria impugnada pelos recorrentes não interfere de modo algum na solução do caso, por ser alheia à sorte da acção ou extravar o objecto do processo, não deverá a Relação sequer conhecer da pretendida alteração, sob pena de estar a levar a cabo actividade inútil, infrutífera, vã e estéril - se os factos impugnados não forem relevantes para decidir da pretensão formulada no recurso, extravasando o necessário a tal decisão, é de todo inútil a reponderação da correspondente decisão da 1ª instância quanto a eles.
II - A presunção legal relativa estabelecida no art. 7º do CRP (presunção de que o direito de propriedade existe e é da titularidade do titular inscrito) não abrange elementos da descrição do prédio, tais como áreas, limites e confrontações, exorbitando do seu âmbito o que com os elementos identificadores do prédio se relacione.
III - Não gozando os autores, relativamente a uma parcela ou trato de terreno, da presunção derivada do registo, incumbe-lhes, em vista de lhes ser reconhecido o domínio, demonstrar a sua posse sobre a mesma, seja para que em atenção à sua qualidade de possuidores possam beneficiar da presunção da titularidade do direito resultante da posse (art. 1286º, nº 1 do CC), seja em vista de demonstrar a aquisição originária do domínio sobre a mesma, através da usucapião (art. 1287º do CC).
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Apelação nº 235/22.5T8VLC.P1
Relator: João Ramos Lopes
Adjuntos: Lina Castro Baptista
    Alexandra Pelayo





Acordam no Tribunal da Relação do Porto

RELATÓRIO

Apelantes: AA e BB (réus).
Apelados: CC e DD (autores).

Juízo de competência genérica de Vale de Cambra – Tribunal Judicial da Comarca de Aveiro


*

Demandando os réus AA e BB, intentaram os autores CC e DD a presente acção comum pedindo se declare serem donos e únicos proprietários de prédio que identificam no artigo 1º da petição inicial, no qual se inclui parcela/trato de terreno que mencionam no artigo 6º da mesma peça processual, e se condenem os réus a reconhecerem tal direito, a procederem à restituição da identificada parcela/trato de terreno que ocupam sem o seu consentimento, livre e desimpedida de bens e pertenças, a proceder à retirada de rede malhasol e troncos de madeira, placares, tábuas em madeira e fios referidos e tudo o mais que na parcela venham a colocar, a demolirem quaisquer obras que em tal parcela/trato de terreno venham a edificar, restituindo-a à sua primitiva configuração e, ainda, a absterem-se de praticar quaisquer actos ofensivos do exercício do seu (autores) direito de propriedade sobre os identificados prédio e parcela/trato de terreno.

          Contestada a acção, observada a legal tramitação e realizado o julgamento, foi proferida sentença que, julgando a acção procedente:

          - declarou os autores donos e legítimos proprietários do prédio rústico identificado nos autos, com a ‘configuração e localização constantes da planta topográfica junta aos autos a folhas 44’ (ou seja, com a identificação e limites descritos nos factos provados 4 e 5) e condenou os réus a reconhecerem tal direito e a restituírem-lhes ‘a parte do prédio situada a norte da Rua ...’ identificada no facto provado número 5 e a ‘absterem-se de praticar quaisquer actos ofensivos do exercício do direito de propriedade’ dos autores no futuro,

- condenou os réus a ‘retirarem a rede malhasol e os troncos de madeira colocados na parte do prédio situada a norte da Rua ...’ identificada no facto provado número 5 ‘para vedar a parcela, e, também, os placardes afixados na mesma, e a demolirem as obras, entretanto, edificadas, restituindo a parcela sem as mesmas.’

          Irresignados, apelam os réus, pretendendo a sua absolvição dos pedidos, terminando as suas alegações com a formulação das seguintes conclusões:

1.ª Relativamente aos factos provados n.ºs 4 e 5, o Tribunal “a quo” baseou-se única e exclusivamente num levantamento topográfico mandado fazer pelos autores para juntar aos autos e expressamente impugnado pelos Réus, para referir os metros quadrados que indica quer no facto provado 4 quer no 5, uma vez que não decorre da restante prova, nomeadamente da testemunhal e/ou da inspecção ao local (onde nenhuma medição foi feita como é possível verificar da ata dessa inspecção), qualquer indicação de áreas.

2.ª Se analisarmos a sentença recorrida a mesma apoia-se, essencialmente, quer nas confrontações dos prédios tal como inscritas no registo (apesar de, com o devido respeito, fazer uma grande confusão relativamente às mesmas), quer no levantamento topográfico junto pelos Autores à sua petição inicial (fls. 44), “encomendado” pelos mesmos.

3.ª Acontece que as inscrições matriciais não fazem prova plena da localização, da área, da composição, dos limites e das confrontações dos prédios a que se referem, pois que nenhum desses elementos concernentes à identificação física destes é atestado pela autoridade ou funcionários competentes com base nas suas percepções,

4.ª E os levantamentos topográficos apenas provam que foram feitas as declarações aí documentadas, mas já não que corresponda à verdade o seu conteúdo, constituindo documentos sujeitos, nessa parte, à livre apreciação do julgador.

5.ª O Tribunal “a quo” não explica o porquê de dar tanta credibilidade ao levantamento junto pelos AA à P.I., impugnado pelos RR e não ter levado na mesma linha de conta o que foi mandado fazer pelo Sr. EE, que se encontra junto a folhas 81, que não foi mandado elaborar para instruir à acção (até porque aquele EE nem é parte no processo), mas sim para anexar à declaração Modelo 1 do IMI. O tribunal aproveita este levantamento para referir que nele já constava a existência do caminho que segue na diagonal, mas não retira mais nenhuma conclusão do quanto vem no mesmo indicado.

6.ª A sentença é também omissa no que respeita ao depoimento prestado pelo Senhor Eng. Topógrafo FF, ouvido na audiência de 08/03/2023, por decisão oficiosa do Tribunal.

7.ª Se analisarmos a declaração Modelo 1 do IMI constatamos que a testemunha EE, antepossuidor dos Recorrentes, identificou devidamente os artigos rústicos ...74 (com 150m2) e ...81 (com 1350m2), os quais totalizam 1500m2 e confrontam do norte com o rego; do nascente com o próprio EE; do sul com a Estrada e do poente com GG e HH.

8.ª E de acordo com o levantamento topográfico anexo à declaração Modelo 1 do IMI extrai-se a representação correta dos 1500m2 dos dois prédios rústicos (...74 e ...81), que deram lugar ao prédio urbano ...74, atualmente propriedade dos Recorrentes.

9.ª A conclusão retirada pelo Tribunal “a quo” sobre as confrontações do artigo 3374 e do

artigo 3370, que pertencia a HH, cuja certidão matricial foi junta a folhas 77, é incompreensível, porque o facto de tais prédios serem paralelos numa das confrontações, não impede (até reforça) que o prédio inscrito na matriz sob o artigo ...74 corresponda à parcela identificada em 5.

10.ª O prédio n.º ...81 pertencia a II (depoimento da Testemunha EE - encontra-se no CD, dos minutos 11:47:47 aos 13:07:11, do dia 15/02/2023, em concreto minutos 05:22 aos 06:25), o que demonstra e reforça que o prédio n.º ...74 não pode corresponder a outro terreno se não o triângulo que se discute nos presentes autos.

11.ª Se analisarmos as confrontações reais do triângulo em discussão, temos que as mesmas correspondem exatamente às confrontações do prédio n.º ...74, propriedade dos Recorrentes: confronta a norte e a nascente com o prédio ...81 (que antigamente, era propriedade de II), a sul com a estrada (que à data das matrizes – - ...67 – era um caminho) e a poente com o prédio da testemunha JJ (que anteriormente pertencia ao seu pai, HH).

12.ª O prédio n.º ...69, propriedade dos Recorridos, confronta a norte com caminho, a sul com KK, a nascente com LL e a poente com MM, o que implica que não possam ser proprietários da parcela em litígio, dado que a mesma não confronta com qualquer caminho do lado norte.

13.ª O Tribunal “a quo” parte da premissa de que existia um caminho/carreiro que dava acesso aos prédios da parte norte da estrada, sem ter tido o cuidado e a diligência de apurar a que caminhos/carreiros as várias testemunhas se estavam a referir.

14.ª As testemunhas JJ e NN, nas quais o Tribunal “a quo” se faz valer, apesar de referirem a existência de um caminho na diagonal, que dava acesso aos seus terrenos, não identificaram o local concreto do mesmo, referindo apenas que se iniciava na estrada e que ia até ao rego.

15.ª Resulta da prova produzida que antigamente havia um caminho de acesso aos prédios que hoje, na sua maioria, são propriedade da testemunha EE, no entanto, tal caminho/carreiro não era junto à parcela aqui em litígio como, aliás, foi confessado pelo Autor (declarações do Autor CC - encontra-se no CD, dos minutos 14:52:09 aos 15:35:32, do dia 01/03/2023, em concreto dos minutos 17:30 aos 19:00, 19:20 aos 20:12, 22:46 aos 22:55 e 25:21 aos 25:42).

16.ª Daquelas declarações decorre que o caminho/carreiro, ao qual se referem as testemunhas, tinha início no prédio de OO, que hoje pertence à testemunha EE. Logo o dito triângulo nunca poderia confrontar de norte com um caminho, porque o mesmo originalmente não passava por ali.

17.ª Foi a testemunha EE quem desviou o caminho para aquele local aquando da aquisição do terreno a PP (em 2001), colocando terra para nivelar o terreno (depoimento desta testemunha dos minutos 15:08 aos 19:48, 53:30 aos 56:13, 58:24 aos 01:01:02, 01:03:45 aos 01:04:30).

18.ª As perguntas dirigidas a EE foram sempre no sentido de saber se o caminho em que a testemunha colocou entulho existia ou não previamente e, como confessado pelo Autor, não existia.

19.ª Situação diversa é quando esta mesma testemunha é questionada sobre o modo pelo qual o senhor QQ acedia ao seu prédio, em que explica, tal como o Autor, a existência deste tal caminho/carreiro que tinha início não no local em que foi feito o aterro, mas sim no terreno do senhor OO, consequentemente, este caminho não confrontava com o trato de terreno em discussão nos presentes autos.

20.ª A testemunha RR (filho de PP – antepossuidor do prédio n.º ...74 que, na versão dos Recorrentes, corresponde à parcela em litígio) confirmou que o terreno do seu pai não era atravessado por qualquer caminho (encontra-se no CD, dos minutos 10:46:45 aos 11:46:10, do dia 15/02/2023, em concreto minutos 19:50 aos 20:12, 27:03 aos 29:35).

21.ª Não pode o Tribunal “a quo” dar como provado que o prédio dos Autores termina num caminho alegadamente identificado nas plantas topográficas de fls. 44 e 81, uma vez que este caminho não existia nesse local, tendo sido a testemunha EE a «desviá-lo», pelo que o caminho em causa nunca poderia ser o limite do prédio dos Autores.

22.ª Para além das confrontações do prédio ...74 demonstrarem que o mesmo corresponde ao triângulo em discussão nos autos, a prova testemunhal corrobora o mesmo.

23.ª A testemunha SS (filho de PP) afirmou que o terreno que pertencia ao seu pai se encontrava da parte de baixo da Rua ... (o seu depoimento encontra-se no CD, dos minutos 14:59:15 aos 15:37:50, do dia 01/02/2023, em concreto minutos 30:00 aos 32:00), e, aquando da inspecção judicial, esclareceu que o prédio n.º ...74, que era propriedade do seu pai e que foi vendido a EE, se iniciava após o declive e continuava para baixo do caminho (cf. ata de audiência de discussão e julgamento de 03/02/2023).

24.ª A mesma configuração foi dada pelo seu irmão, RR (o seu depoimento encontra-se no CD, dos minutos 10:46:45 aos 11:46:10, do dia 15/02/2023, em concreto dos minutos 01:38 aos 04:28, 07:55 aos 09:11, 10:00 aos 11:24, 24:40 aos 25:30, 35:50 aos 36:17, 48:16 aos 51:12).

25.ª Ao longo de todo o seu depoimento a testemunha RR sempre se referiu ao caminho de bois como sendo a atual Rua ..., explicando todo o processo de abertura da estrada, bem como os terrenos que a mesma atravessou, nomeadamente o do senhor TT (que hoje é o prédio em que a testemunha EE tem a casa) e, possivelmente, o do senhor HH, que tinha um terreno maior. Diz que não atravessou o prédio do ... (anterior proprietário do prédio dos AA), tendo apenas sido cortado um eucalipto do mesmo.

26.ª Resulta deste depoimento que PP vendeu o prédio n.º ...74 a EE e que tal trato de terro correspondia à parcela agora em litígio. A testemunha explica as confrontações que a parcela tinha, nomeadamente que confrontava com o caminho de bois de terra batida que deu origem à estrada Rua ..., não tendo quaisquer dúvidas relativamente a isso.

27.ª A testemunha UU, irmã daquelas e filha de PP, confirma que o terreno do seu pai confrontava com aquela que é hoje a Rua ... e que o mesmo não era atravessado por qualquer caminho (o seu depoimento encontra-se no CD, dos minutos 09:47:11 aos 10:45:37, do dia 15/02/2023, minutos 02:08 aos 04:37, 11:00 aos 12:53, 16:19 aos 17:52).

28.ª O Perito FF (encontra-se no CD, dos minutos 09:07:40 aos 10:23:14, do dia 08/03/2023, dos minutos 03:08 aos 18:00 e 18:00 a final) corrobora aqueles depoimentos.

29.ª Para dar os factos n.ºs 6, 7, 8 e 9 como provados baseou-se o Tribunal nas declarações dos Autores e no depoimento da testemunha VV, bem como nas fotografias do Google Maps juntas a fls. 56 a 58.

30.ª Do depoimento da testemunha EE (dos minutos 13:00 aos 15:02, 18:20 aos 19:29, 24:28 aos 32:50, 01:04:36 aos 01:06:41, 01:09:54 aos 01:12:34, 01:13:12 aos 01:14:30) resulta que o mesmo adquiriu o trato de terreno em litígio a PP, em 2001, ano em que fez o primeiro corte e limpeza desse prédio, sendo que esteve sempre na posse do mesmo desde essa data até ao momento em que o doou aos aqui Recorrentes; cortou ainda eucaliptos, em 2010 e em 2018; todos estes cortes foram realizados sem qualquer oposição de terceiro, nomeadamente o corte em 2018.

31.ª Das fotografias retiradas do Google maps, juntas aos autos a fls. 56 a 58 resulta que o prédio localizado «na área norte do muro» não integra nem a parcela em litígio, nem o prédio n.º ...81, corresponde ao prédio rústico propriedade de EE, que não está em discussão nos presentes Autos. Ou seja, apenas existiam eucaliptos no triângulo em litígio e no prédio n.º ...81, que não corresponde ao prédio imediatamente a norte do muro nas fotografias a fls. 56 a 58.

32.ª A testemunha EE referiu que cortou a madeira de dois terrenos (o triângulo em litígio e o prédio n.º ...81, que adquiriu a QQ), isto é, o corte foi feito apenas nos terrenos que EE doou aos aqui Réus e não «em todos os seus prédios localizados naquela área».

33.ª No levantamento topográfico junto em audiência, a 08/03/2023, ref.ª citius 126355929, é possível observar que o poste de baixa tensão se encontra junto ao caminho de terra batida aberto pela testemunha EE.

34.ª O mesmo se retira do documento junto com o Requerimento dos ora Recorrentes, de 21/02/2023, ref.ª citius 14189050, no qual é retratado o prédio dos RR, após ter sido cortado, na totalidade, pela testemunha EE, em 2018. Ou seja, o caminho/carreiro a que se fez referência durante todo o julgamento tem o seu início encostado ao poste de baixa tensão e prolonga-se em linha reta, estando o triângulo em litígio para sul desse mesmo caminho e o prédio n.º ...81 dos RR, para norte. Isto é, o caminho faz parte integrante do prédio dos RR.

35.ª Estas fotografias reportam ao ano de 2009 e mostram eucaliptos com uma média de entre 7 a 10 anos. Tendo em conta que, como refere a própria sentença, os Autores, alegadamente, não cortaram a totalidade da madeira no terreno (nomeadamente eucaliptos) desde a altura da sua aquisição, em 1985, até 2011, não é crível que árvores com 26 anos apresentassem apenas aquele tamanho. Eucaliptos com 26 anos teriam que ser, necessariamente, muito mais robustos.

36.ª A dimensão daqueles eucaliptos é, no entanto, coerente com a versão trazida aos autos pela testemunha EE, que afirma ter cortado as árvores todas daquela parcela de terreno quando o adquiriu, em 2001, a PP o que, até 2009, totaliza 8 anos.

37.ª As testemunhas SS (encontra-se no CD, dos minutos 14:59:15 aos 15:37:50, do dia 01/02/2023, em particular minutos 12:25 aos 12:49; 15:00 aos 16:00), RR (encontra-se no CD, dos minutos 10:46:45 aos 11:46:10, do dia 15/02/2023, minutos 11:43 aos 12:50; 14:40 aos 16:31; 17:48 aos 18:19; 30:07 aos 30:38; 35:10 aos 35:45; 45:54 aos 46:08; 51:56 aos 54:50) e UU (encontra-se no CD, dos minutos 09:47:11 aos 10:45:37, do dia 15/02/2023, minutos 04:42 aos 06:50; 07:24 aos 09:44; 10:15 aos 10:40; 16:40 aos 17:17) descrevem os atos praticados pelos mesmos e pelo seu pai, PP, quando a parcela de terreno ainda se encontrava na sua posse.

38.ª Estas três testemunhas, filhas do antepossuidor do prédio n.º ...74 (PP), adquirido por EE que, na versão dos RR, corresponde à parcela em litígio, afirmaram que utilizavam o terreno à vista de toda a gente, sem qualquer oposição, nele cortando madeira, plantando árvores e cortando o mato/tojo para os animais.

39.ª Descreveram, ainda, que para retirar a madeira do terreno era necessário o recurso a uma grua, dado o declive do mesmo e o facto de não existir o caminho que EE construiu. Mais referiram que RR construiu um «murete» para evitar que a terra resvalasse para as árvores pequenas que lá tinha plantado, «murete» esse que, hoje, ainda é visível (e aliás vê-se na foto nº. 1 tirada pelo próprio Tribunal aquando da inspeção do local).

40.ª Para além destas testemunhas, os próprios Recorrentes descreveram os atos levados a cabo por EE enquanto proprietário daquela parcela e pelos próprios, a partir do momento em que o terreno lhes foi doado - Réu BB (encontra-se no CD, dos minutos 10:22:51 aos 10:53:32, do dia 01/02/2023, em concreto minutos 05:45 aos 06:07, 08:25 aos 10:02, 10:54 aos 10:32, 19:58 aos 20:30, 23:17 aos 26:00) e Ré AA (encontra-se no CD, dos minutos 09:44:52 aos 10:21:53, do dia 01/02/2023, em concreto dos minutos 19:56 aos 22:14 e minutos 28:05 aos 28:35).

41.ª O Autor CC refere que nunca foi falar com os RR, apesar de saber que os mesmos se encontravam na posse do trato de terreno em litígio, o que não é uma atitude consentânea com uma pessoa que acredita ser proprietário de um prédio, que se encontra a ser utilizado por terceiros (minutos 23:08 aos 23:40, 27:45 aos 28:35 e 29:14 aos 29:50).

42.ª Relativamente à única testemunha na qual o Tribunal se apoia para considerar que os AA lograram provar a prática de atos de posse e, assim, adquiriram a parcela por usucapião - VV (encontra-se no CD, dos minutos 15:40:22 aos 16:12:04, do dia 01/02/2023, e concreto dos minutos 09:15 aos 10:52; 24:17 aos 28:30), para além do mesmo confundir o senhor WW com o Autor, não se sabendo, em muitas partes do seu depoimento, sobre quem se está a referir, quando questionado relativamente ao lapso temporal em que viu o Autor naquele terreno, esta testemunha não soube responder, afirmando apenas que o via sempre na parcela de terreno em litígio, apesar de não viver sequer perto do local em apreço, ou de ter alguma ligação com o mesmo.

43.ª Relativamente aos actos de posse as declarações dos AA são contraditórias entre si. O Autor afirma que fez um corte a varrer (dos minutos 45:48 aos 44:55), enquanto a Autora mulher refere apenas que cortavam alguns pinheiros secos, fetos para um bezerro e, pontualmente, alguns eucaliptos.

44.ª Não existe uma versão coerente entre a testemunha VV, o Autor e a Autora, que permita concluir pelos atos de posse dos AA e, bem assim, as fotografias em que o Tribunal “a quo” se baseou para tomar a sua decisão foram mal analisadas e interpretadas, pelo que houve um erro notório do Tribunal “a quo” na apreciação da prova produzida e, consequentemente, nas conclusões que retirou.

45.ª Contrariamente, a prova produzida demonstra que os factos não provados a), b), c), d) e e) foram mal julgados, uma vez que o caminho que limita o terreno em litígio do prédio n.º ...81, pertencente aos RR, é aquele que se encontra junto do poste de baixa tensão (fotografias juntas a fls. 56 a 58), pelo que é notória a existência de eucaliptos exatamente nas mesmas dimensões quer na parcela em litígio, quer no prédio n.º ...81. Aliás, a semelhança é tanta que fez com que o Tribunal “a quo” considerasse que aqueles eucaliptos estavam todos implantados na parcela em litígio, quando não é assim.

46.ª Tendo em conta tudo o que foi dito, outra não pode ser a conclusão senão a de que o prédio n.º ...74 corresponde à parcela em litígio e vem sendo utilizada pelos RR e antepossuidores, que dela vêm cuidando, nomeadamente, roçando, fazendo queimadas e cortando a lenha, tudo à vista de todos e sem a oposição de quem quer que fosse, sempre na convicção de que faziam uso de algo seu.

47.ª Pelo exposto, nos termos da al. c), do n.º 1, do art. 640.º do CPC, devem-se ter como provados os factos a), b), c), d), e) e f) e, consequentemente, terem-se como não provados os factos n.ºs 6, 7, 8 e 9.

48.ª Os AA não fizeram qualquer prova de que tenham ali praticado atos de posse, sendo que é o próprio Autor que reconhece que os RR andaram no triângulo a limpar mato e a roçar e nada lhes disse, o que sempre seria uma atitude incompreensível por parte de alguém que tenha o animus possidendi. Esta inação dos AA perante atos que seriam lesivos da sua posse só pode significar que, claramente, os mesmos nunca atuaram como se de proprietários daquela faixa de terreno se tratassem.

49.ª O facto provado 18 acaba por entrar em contradição com os factos provados 6 e 8, uma vez que, por um lado, ficou provado que, em 2018, EE cortou a madeira do trato de terreno em litígio e, por outro, não resulta dos factos provados que este corte tenha sido alvo de qualquer oposição por parte de terceiros. Ou seja, nunca poderia o Tribunal “a quo” concluir a posse ininterrupta dos Autores sobre a parcela em litígio quando, ao mesmo tempo, admite atos de posse sobre a mesma parcela por parte de um terceiro, EE, sem oposição dos AA.

50.ª Analisando a fundamentação do Tribunal “a quo” parece que o mesmo dá como provado que os RR adquiriram a dita parcela em bico descrita em 5. por usucapião, pelo facto de os RR não terem (alegadamente) feito prova de tal aquisição da sua parte. Mesmo que tal fosse verdade, daí nunca resultaria que a mesma tinha sido adquirida por esta via pelos AA.

51.ª Apesar das considerações de direito que faz em abstrato sobre a aquisição por usucapião, nomeadamente a necessidade de se provar o “corpus” possessório e o “animus possidendi”, a sentença recorrida não concretiza depois em concreto o preenchimento de tais pressupostos por parte dos AA.

52.ª Os RR provaram os atos de posse, por si (reconhecidos pelo próprio Autor) e pelos seus antepossuidores (quer pela testemunha EE, quer pelo anterior proprietário, cujos filhos depuseram e reconheceram tais atos) sobre a dita parcela, com uma descrição detalhada, que apenas é possível a quem, de facto, praticou tais atos.

53.ª A sentença recorrida, com a decisão proferida, violou o princípio da livre apreciação da prova, demonstrando uma apreciação arbitrária da mesma, bem como o disposto nos artigos 1287.º e 1293.º e seguintes, todos do C.Civil.

          Contra-alegaram os autores pela manutenção da decisão apelada e improcedência da apelação.


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            Colhidos os vistos, cumpre decidir.

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            Delimitação do objecto do recurso.

Considerando, conjugadamente, a sentença recorrida e as conclusões das alegações dos apelantes (por estas se delimita o objecto dos recursos, sem prejuízo do que for de conhecimento oficioso - artigos 608º, nº 2, 5º, nº 3, 635º, nºs 4 e 5 e 639, nº 1, do CPC), as questões a decidir reconduzem-se a:

- apreciar da censura dirigida à decisão da da matéria de facto,

- apreciar do mérito da causa – da demonstração da aquisição, pelos autores apelados, do direito de propriedade sobre a parcela de terreno referida nos factos provados 4 e 5 por usucapião e sua ocupação pelos réus, com o consequente direito dos autores a ver resposta a situação anterior à ocupação.


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FUNDAMENTAÇÃO

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            Fundamentação de facto

            A sentença recorrida considerou:

            Factos Provados

1. Por escritura pública denominada ‘Justificação Notarial’, datada de 24 de Março de 2006, outorgada no Cartório Notarial ... XX

, em ..., em que foram identificados como primeiros outorgantes CC e mulher DD, casados na comunhão de adquiridos, estes declararam:

‘Que são donos e legítimos possuidores com exclusão de outrem, do prédio rústico

composto por pinhal, sito em ..., freguesia ..., concelho de

..., com a área de mil quatrocentos e quarenta metros quadrados, a confrontar do Norte com caminho, do Sul com KK, Herdeiros, do Nascente com LL (Dr) e do Poente com MM, inscrito na matriz em nome do antepossuidor adiante referido sob o artigo ...69 (…).

Que adquiriram a posse sobre o referido imóvel em Dezembro de mil novecentos e oitenta e cinco, já no estado de casados como declararam, sendo por isso um bem comum do casal, por compra verbal não titulada feita a RR, que também usava e era conhecido por RR, e mulher YY, já falecidos, residentes que foram no lugar e freguesia ..., concelho ....

Que não são detentores de qualquer título formal que legitime o seu domínio ou posse, não obstante, possuem o referido imóvel há mais de vinte anos, nele praticando os normais actos correspondentes ao direito de propriedade, usufruindo-o, gozando todas as utilidades por ele proporcionadas, nomeadamente roçando o mato, cortando as árvores e recolhendo a lenha, sem a menor oposição de quem quer que seja, desde o seu início, posse que sempre exerceram e vêm exercendo, ininterrupta e ostensivamente, com o conhecimento da generalidade das pessoas da referida freguesia ..., lugares e freguesias vizinhas, traduzida em actos materiais de fruição e defesa, sendo por isso uma posse pacífica, contínua e pública, pelo que, na impossibilidade de poderem comprovar a aquisição de tal prédio pelos meios normais, justificam a sua posse por usucapião, que invocam.’

2. Encontra-se descrito na Conservatória do Registo Predial de Vale de Cambra sob o nº ...16 da freguesia ..., o prédio rústico, situado em ..., composto de terreno a pinhal, com 1.440m2, a confrontar do norte com   caminho, do sul com herdeiros de KK, do nascente com LL e do poente com MM, inscrito na matriz sob o artigo ...69.

3. Sobre a descrição identificada em 2., incide a seguinte inscrição: AP. ... de 2006/06/16 – Aquisição a favor de CC e mulher DD casados na comunhão de adquiridos, tendo como causa da aquisição a usucapião.

4. O prédio identificado em 1. e 2. tem a configuração constante da planta de folhas 44 sendo atravessado pela Rua ... para a qual foram cedidos 177m2 ao domínio público.

5. Na parte situada a norte da Rua ..., o prédio identificado em 1. e 2. termina no caminho identificado quer na planta topográfica de folhas 44 quer na planta

topográfica de folhas 81 e faz um bico com 174m2 entre a Rua ... e o referido caminho.

6. Os autores por si e antepossuidores há mais de 35 anos que usam o prédio identificado em 1. e 2. com a configuração constante em 4. e 5., roçando mato, cortando a sua vegetação espontânea, apanhando lenha e pinhas, cortando e vendendo árvores.

7. À vista de toda a gente.

8. Sem oposição de quem quer que seja.

9. Na convicção de serem seus donos e ignorando ao adquiri-lo que lesavam o direito de outrem.

10. Por escritura pública denominada ‘Compra e Venda’, datada de 11 de Dezembro

de 1998, outorgada no Cartório Notarial do Licenciado ZZ, em ..., em que foram identificados como primeiros outorgantes QQ e mulher AAA, casados na comunhão geral de bens e como segundo outorgante EE casado com BBB, declararam os primeiros:

          ‘Que, pela presente escritura (…) vendem ao segundo outorgante, o seguinte: Prédio rústico, constituído por terreno a pinhal e mato com carvalhos, denominado “...”, sito no lugar ..., freguesia ..., concelho de Vale de Cambra, a confrontar do norte com rego, do sul com PP, do nascente com CCC e do poente com GG, inscrito na matriz respectiva sob o artigo número ...81 (…) com a área de mil trezentos e cinquenta metros quadrados, omisso no registo.

(…)

Disse o segundo outorgante que aceita o presente contrato nos termos exarados (…).’

11. Por escritura pública denominada ‘Compra e Venda’, datada de 30 de Novembro

de 2001, outorgada no Cartório Notarial do Licenciado DDD, em Vale de

..., em que foram identificados como primeiros outorgantes PP e mulher EEE, casados na comunhão geral de bens e como segundo

outorgante EE casado com BBB, declararam os primeiros:

‘Que, pela presente escritura (…) vendem ao segundo outorgante, o seguinte:

Prédio rústico, constituído por terreno a pinhal, denominado “...”, situado no lugar ..., freguesia ..., concelho de Vale de Cambra, descrito na Conservatória do Registo Predial de Vale de Cambra sob o número .../freguesia ..., sem qualquer inscrição em vigor, inscrito na matriz predial respectiva sob o artigo número ...74 (…).

Disse o segundo outorgante que aceita o presente contrato nos termos exarados.’

12. Por documento de casa pronta n.º 7391/2020 denominado ‘Título de Doação’ datado de 5 de Março de 2020 outorgado na Conservatória do Registo Predial de Vale de Cambra em que foram identificados como primeiros intervenientes EE e

BBB e como segunda interveniente AA casada com BB, no regime de adquiridos, foi identificado o objecto do negócio como:

Natureza: urbana.

Destino: terreno para construção.

Situação: Rua ..., lugar de ..., freguesia ... de

..., concelho de Vale de Cambra.

Inscrição matricial: ...3.

(…)

Situação Registral

Prédio descrito sob o número sete mil novecentos e noventa e oito – freguesia ..., na Conservatória do Registo Predial de Vale de Cambra (…).

Os primeiros doam à segunda, o prédio acima identificado, no valor de mil e quinhentos euros (…).

Os primeiros intervenientes declaram que a presente doação é feita para entrar na

comunhão do casal da donatária.

(…)

A segunda interveniente declara aceitar a doação nos termos exarados.

(…).’

13. Encontra-se descrito na Conservatória do Registo Predial de Vale de Cambra sob o nº ...17 da freguesia ..., o prédio rústico, situado em ..., Rua ..., composto de terreno não destinado a construção, com 1.500m2, a confrontar do norte com rego, do sul com estrada, do nascente com EE e do poente com GG e HH, inscrito na matriz sob o artigo ...63.

14. Sobre a descrição identificada em 13., incide a seguinte inscrição: AP. ...71 de 2020/03/05 – Aquisição a favor de AA casada com BB na comunhão de adquiridos, por doação de EE e mulher BBB para entrar na comunhão conjugal.

15. Os réus vedaram o trato/parcela de terreno identificada em 5. na confrontação com a Rua ... delimitando-a em toda a extensão com rede malhasol com cerca de 2m de altura suportada por troncos de madeira assentes no solo com cimento impedindo o acesso e a utilização pelos Autores.

16. Os réus afixaram na rede malhasol um placar com os dizeres: ‘A... Lda’; ‘Alvará ...56; Telems ...45/...28’; ‘Email: ...’; ‘... ... ...’ e um placar dando conta de que foi emitido alvará de licenciamento de obras n.º ...2 para o prédio identificado em 13.

17. No local onde os réus haviam colocado tábuas em madeira e fios para marcar o

local onde ia ser edificada uma construção, hoje existem blocos em cimento e pilares com

cimento e ferro, em parte na parcela identificada em 5.

18. EE cortou a madeira existente na parcela identificada em 5. em

2018.

Factos não provados

a) Os réus, por si e antepossuidores, há mais de 20 anos que usam a parcela identificada em 5., limpando-a, roçando o mato, cortando as suas madeiras.

b) À vista de toda a gente.

c) Sem oposição de quem quer que seja.

d) Na convicção de serem seus donos e ignorando ao adquiri-lo que lesavam o direito de outrem.

e) O primeiro corte de madeira na parcela identificada em 5. foi efectuado pelos antepossuidores dos réus por volta de 2001 e o segundo por volta de 2009.


*

            Fundamentação de direito
A. Da impugnação da decisão sobre a matéria de facto.
A.1. Do cumprimento dos ónus prescritos no art. 640º do CPC.
Censuram os apelantes a decisão sobre a matéria de facto sustentando que a correcta valorização da prova produzida nos autos (documentos sem força probatória plena quanto à matéria, declarações e depoimentos de parte e depoimentos testemunhais) impõe julgamento diverso de factos julgados provados (factos 6, 7, 8 e 9) e não provados (factos a), b), c), d) e)[1]) que identificam, argumentando ainda mostrar-se a matéria de um facto provado (o facto 18) em contradição com outros (factos 6 e 8).

Acolhe-se a suscitada impugnação nos art. 662º e 640º do CPC – pretendem os apelantes a reapreciação de elementos probatórios sujeitos à livre apreciação do juiz (art. 607º, nº 5, 1ª parte, do CPC – v. g., documentos particulares sem valor probatório pleno, declarações e depoimentos de parte e depoimentos testemunhais) –, mostrando-se cumpridos os ónus de impugnação prescritos no art. 640º do CPC: além de devida e adequadamente delimitado o objecto do recurso (estão identificados os concretos pontos de facto considerados incorrectamente julgados e indicado o resultado pretendido para eles (alíneas a) e c) do nº 1 do art. 640º do CPC), são também especificados (tanto nas conclusões quanto na motivação  - e, tal qual como a propósito da indicação do sentido da decisão pretendida para cada um dos factos impugnados, tal especificação não tem de constar nas conclusões)[2] os meios probatórios (documentos, declarações e depoimentos de parte e testemunhais) que determinam, em seu juízo, decisão diversa da tomada pelo tribunal recorrido (alínea b) do nº 1 do art. 640º do CPC), tendo não só procedido à indicação das passagens da gravação dos depoimentos que entendem pertinentes como até transcrevendo as passagens de tais depoimentos nos segmentos considerados relevantes (nº 2 do art. 640º do CPC).

Constata-se, assim, terem os apelantes cumprido os ónus de impugnação prescritos no art. 640º do CPC ao recorrente que impugna a decisão sobre a matéria de facto.

A.2. Da abstenção de conhecimento da impugnação dirigida a matéria indiferente e irrelevante à decisão.

          Patente a desnecessidade de apreciar da suscitada impugnação em toda a sua extensão – melhor e com mais rigor: impõe-se à Relação o dever de rejeitar a apreciação da impugnação, abstendo-se de a conhecer, no segmento em que respeita a matéria desnecessária a apreciar da apelação.

A apreciação da modificabilidade da decisão de facto é actividade reservada a matéria relevante à solução do caso, devendo a Relação abster-se de conhecer da impugnação cujo objecto incida sobre factualidade que extravase o objecto do processo – sendo propósito precípuo da impugnação da decisão de facto o de possibilitar à parte vencida a obtenção de decisão diversa (total ou parcialmente) da proferida pelo tribunal recorrido quanto ao mérito da causa, a sua justificação fica circunscrita à matéria que tem interferência na solução do caso, ou seja, fica a impugnação limitada àquela cuja alteração/modificação se mostre relevante para a decisão a proferir.

Sendo a matéria dela objecto indiferente e alheia à sorte da apelação, ou extravasando ela o objecto do processo (traçado por pedido e causa de pedir – e sendo certo que no caso não há matéria de excepção), consubstanciando versão dos factos que consubstancia matéria constitutiva de direito que os réus não pretendem ver reconhecido na acção, não deverá a Relação conhecer da impugnação que lhe seja dirigida, sob pena de estar a levar a cabo actividade inútil, infrutífera, vã e estéril – se os factos impugnados não forem relevantes para decidir da pretensão formulada no recurso, extravasando o necessário a tal decisão, é de todo inútil a reponderação da correspondente decisão da 1ª instância quanto a eles[3].

Tal é, precisamente, o que ocorre no caso dos autos relativamente à factualidade julgada não provada na decisão recorrida, que os apelantes pretendem se julgue provada.

Considerando a pretensão de tutela jurisdicional formulada pelos autores apelados – o pedido de reconhecimento do direito de propriedade sobre o prédio e parcela ou trato de terreno identificado no artigo 6º da petição inicial e demais pedidos com ele relacionados –, concedida na sentença apelada (atenta a procedência da acção), é manifesto que à procedência da apelação tão só releva, directa e necessariamente, a impugnação da matéria dos factos provados 6 a 9, pois neles assentou a demonstração da aquisição do domínio por parte dos autores apelados, ou seja, a comprovação da aquisição originária do direito (factos demonstrativos da aquisição do direito por usucapião), sendo certo que a matéria das alíneas a) a e) dos factos provados não se apresenta como matéria de excepção, pois que não gozando os autores (quanto à parcela ou trato de terreno em questão) de presunção de titularidade do direito, seja presunção registral, seja presunção derivada da posse, não competirá aos apelantes demonstrar qualquer factualidade que a afaste (não impendendo sobre eles o ónus de demonstrar serem eles os titulares do domínio sobre a parcela em causa para, assim, afastar presunção de que beneficiassem os autores).

Assim, impendendo sobre os autores apelados [porque não gozam de presunção da titularidade do direito resultante do registo relativamente à parcela de terreno em causa – a presunção legal relativa estabelecida no art. 7º do CRP (presunção de que o direito de propriedade existe e é da titularidade do titular inscrito) não abrange elementos da descrição do prédio (não cobre os elementos identificadores ou configuradores do prédio, como a área e as confrontações ou os limites)[4]; a presunção derivada do registo não abrange factores descritivos, tais como áreas, limites e confrontações[5], exorbitando do seu âmbito o que com os elementos identificadores do prédio se relacione[6], até porque nada garante, quanto a tais elementos, a sua exactidão[7]] o ónus de prova dos factos necessários a demonstrar a sua posse sobre a parcela em questão (seja para demonstrar facto donde resulte a presunção de titularidade do direito resultante da posse – art. 1286º, nº 1 do CC –, seja para demonstrar a aquisição originária do domínio – usucapião, nos termos do art. 1287º do CC), à impugnação da decisão apelada bastará a censura dirigida aos factos constitutivos do direito invocado (e reconhecido), quais sejam os factos provados 6 a 9, mostrando-se redundante e supérflua a demonstração da factualidade vazada nas alíneas a) a e) dos factos não provados – a matéria das alíneas a) a e) dos factos não provados, considerando por um lado que não é matéria de excepção ao pedido formulado pelos autores e, por outro lado,  que os réus apelantes não formularam reconvenção pedindo lhes fosse reconhecido o direito de propriedade, é desnecessária à decisão.

Assim, atenta a sua manifesta redundância – à sorte da apelação basta a matéria dos factos provados 6 a 9, pois o sentido da decisão depende do que for decidido a propósito do julgamento deles (se provados, procederá a acção, se não demonstrados improcederá a causa) –, tem a Relação de abster-se de conhecer a impugnação que tem por objecto a factualidade vazada nos factos não provados.

A.3. Da impugnação da decisão sobre a matéria de facto – a censura dirigida aos factos provados 6 a 9.

A impugnação da decisão sobre a matéria de facto determina que a Relação proceda à reponderação dos elementos probatórios produzidos nos autos, averiguando se os mesmos conduzem, com estribo racional, à conclusão pretendida pelos apelantes para deles ou, antes, a julgamento idêntico ao da primeira instância.

Tarefa em que a Relação deve empregar os poderes que lhe são atribuídos enquanto tribunal de segunda instância que garante um duplo grau de jurisdição em matéria de facto, procedendo a uma autónoma apreciação crítica das provas produzidas (em vista de, a partir delas, expressar a sua convicção com total autonomia, formar uma convicção autónoma[8]), alterando a decisão se em face dessa autónoma apreciação dos elementos probatórios a que há-de proceder adquirir uma diversa convicção[9].

Apreciação crítica que se consubstancia na análise de todos os elementos probatórios, na sua valorização lógica e racional – a decisão da matéria de facto não se reconduz ao resultado duma acrítica certificação do declarado por depoentes ou testemunhas, do constante em documentos particulares, antes assentando numa convicação objectivável e motivável, a que a se acede por via da razão, alicerçada em elementos de lógica e racionalidade (à luz das regras do bom senso, das regras da normalidade, da experiência da vida).

As provas (art. 342º do CC) têm por função a demonstração da realidade dos factos, buscando-se através delas não a certeza absoluta – ‘se a prova em juízo de um facto reclamasse a certeza absoluta da verificação do facto, a actividade jurisdicional saldar-se-ia por uma constante e intolerável denegação de justiça’[10] –, mas antes produzir o que para a justiça é imprescindível e suficiente – um grau de probabilidade bastante, face às circunstâncias do caso e às regras da experiência da vida. A prova como demonstração efectiva (segundo a convicção do juiz) da realidade de um facto ‘não é certeza lógica mas tão-só um alto grau de probabilidade suficiente para as necessidades práticas da vida (certeza histórico-empírica)’[11].

A questão de facto subjacente à impugnação concerne a apreciar se também na parcela de terreno identificada nos factos 4 e 5 (parcela situada a norte da Rua ..., que faz um bico com 174 metros que se encontra entre a Rua ... e um caminho) os autores e seus antecessores actuaram como referido nos factos 6 a 9 – isto é, se também sempre usaram essa parcela, nela roçaram o mato e cortaram a vegetação, a lenha e as árvores, à vista de todos, sem oposição e na convicção de serem donos da mesma.

Em sustento da versão alegada na petição (julgada provada pela sentença apelada) encontram-se os depoimentos e declarações de parte dos autores e os depoimentos das testemunhas JJ, NN e VV:

- os autores afirmaram que o prédio que adquiriram há mais de trinta anos a RR era atravessado pela estrada e que na ‘parte de baixo’ da estrada (a norte da estrada – Rua ...) o prédio vai até caminho de servidão ou consortes, parcela de terreno na qual (no seguimento do que fazia o RR) sempre limparam e cortaram madeira (pinheiros secos e eucaliptos), até que em 2018 o EE lá cortou madeira (altura em que o autor o confrontou por estar a cortar madeira em terreno seu, sendo por ele ameaçado, retirando-se então do local até porque a esposa do EE, que também lá se encontrava, lhe disse para ir embora e que mais tarde o contactaria e que, cada um munido dos respectivos documentos, tratariam a questão, sendo certo que nunca mais foi contactado);

- a testemunha JJ, proprietária de terreno confinante com a parcela discutida nos autos, afirmou que o terreno que era propriedade do RR, comprado pelos autores, se situava dos dois lados da estrada; que depois de adquirir a propriedade o autor sempre tratou da mesma (limpou e cortou árvores), incluindo o trato de terreno que, a norte da estrada, se configura num triângulo que se desenvolve entre a estrada e caminho de consortes; que por estar emigrada o autor se ofereceu para lhe cuidar da sua propriedade e tratava de ambas (sua e dele), cuidando também do trato de terreno situado a norte da estrada; admitiu, porém, nunca ter visto ninguém a tratar da parcela de terreno em questão (e, mormente, nunca ter visto os autores a cortar árvores ou  limpar tal terreno): enquanto esteve emigrada (até há cerca de dezanove anos) passava lá apenas uma vez por ano a ver o seu terreno e depois, apesar de aí passar com mais frequência, passa de carro;

- o NN, co-herdeiro de propriedade situada nas imediações do terreno objecto dos autos, afirmou que o terreno adquirido pelos autores ao RR se situava dos dois lados da estrada e que da parte norte da estrada o mesmo ia confrontar com caminho de consortes, tendo uma configuração triangular; afirmou que sempre lhe foi dito pelo seu pai que as ‘courelas’ iam até ao caminho de consortes, incluindo a ‘courela’ comprada pelos autores (o caminho de consortes traçava o limite entre as courelas de ‘cima’ e de ‘baixo’ – isso sempre lhe foi referido pelo seu pai); que nunca presenciou os autores a cuidar e/ou tratar (roçar ou cortar madeira) da parcela de terreno situada a norte da estrada, tendo porém visto que cortavam a madeira da parte situada a sul da estrada verificando também então que o terreno da parte de baixo da estrada também apresentava a madeira cortada; admitiu não saber quem cortava o quê e onde, referindo que o conhecimento que tem é que o caminho de consortes é o limite dos terrenos e daí afirmar que o trato de terreno (triângulo) situado a norte da estrada pertence aos autores; por fim, referiu saber (por as ‘pessoas’ o afirmarem) que PP era proprietário de terreno no local, mas a norte do caminho, não sabendo porém onde o mesmo se situava;

- o VV afirmou ser o seu pai quem tratava dos terrenos pertencentes a RR, emigrante; afirmou ajudar o seu pai na tarefa; referiu que o terreno do RR (que viria a ser adquirido pelos autores) se situava dos dois lados da estrada e que do lado de ‘baixo’ da estrada (a norte da estrada) confrontava com um caminho de servidão ou consortes, tendo uma configuração triangular; que no tempo em que a sua família cuidava dos terrenos, o depoente cortou uma vez alguns (dois ou três) pinheiros nessa parte do terreno, voltando a fazê-lo outra vez (no final de década de setenta do século passado); os limites da propriedade foram explicados por um primo do proprietário; viu o autor a tratar do terreno (a limpar e cortar lenhas), duas ou três vezes; que quando foi construída a estrada, no início da década de 70, no trato de terreno em discussão nos autos foi feito um murete para ‘segurar a estrada’ (murete que, ‘com certeza’, terá sido construído pelo responsável pela construção da estrada, admitindo não saber quem o construiu); que o PP teria uma propriedade no local, mas que se situaria do caminho de consortes para ‘baixo’, nunca tendo visto o PP ou os filhos na parcela, de configuração triangular, situada entre a estrada, a norte, e o caminho de consortes, a sul; referiu também que no local onde hoje existe a estrada não existia antes qualquer caminho.

Tal versão foi negada pelos réus e demais testemunhas inquiridas em audiência de discussão e julgamento[12], com excepção da testemunha FF (topógrafo que a pedido de EE - a pessoa que efectuou aos réus a doação referida no facto 12 -, fez levantamento topográfico e que revelou não ter conhecimento sobre a matéria aludido nos factos impugnados – efectuou o levantamento atendendo aos limites dos terrenos que lhe foram referidos pelo EE, sendo que se deslocou ao local, nele constatando a existência dum murete no talude a norte da estrada):

- a ré mulher, afirmou que desde que se conhece que a estrada existe no local (foi aberta antes de nascer), sendo-lhe desde sempre dito que a norte da estrada o terreno seria seu, que sempre viu o EE (seu padrinho, que lhe doou o prédio) a tratar e usufruir do terreno situado entre a estrada e o caminho de consortes (trato de terreno que ela e seu marido vêm também usando como donos desde a doação feita pelo EE); afirmou nunca lá ter visto os autores a praticar quaisquer actos; que o terreno (a parcela de terreno com cerca de 150 metros situada entre a estrada e o caminho de consortes) se apresenta em declive e tem um murete de suporte que terá sido erigido por um filho do PP, o proprietário anterior ao EE;

- o réu varão afirmou que sempre viu o EE a cuidar da parcela de terreno (parcela situada entre a estrada, a norte, e o caminho de consortes, a sul), sendo ele quem cortava as austrálias e o eucaliptal (desde que começou a namorar com a ré mulher, afilhada do EE, sempre o viu no terreno);

- a testemunha SS referiu conhecer a propriedade em discussão nos autos por ter pertencido ao seu pai (PP), que a vendeu ao EE; que tal propriedade se situa do lado direito da estrada (a norte da estrada); que cortou madeira em tal terreno (a madeira cortada caía já parcialmente na estrada e era retirada com a grua do veículo); que o seu irmão RR por ocasião da abertura da estrada (antes ainda do 25 de Abril), construiu uma parede (murete) na ribanceira e a partir daí já era terreno dos seus pais; não assistiu à construção do murete (sabe que foi o seu irmão a construí-lo por ele o afirmar); que a estrada foi aberta no local onde existia um caminho antigo (foi alargado). De notar que a testemunha acompanhou o tribunal na inspecção ao local, aí esclarecendo que o terreno que pertenceu ao seu pai se iniciava logo após o declive que, com cerca de quatro metros de altura, se situa a norte da estrada (declive observado pelo tribunal), como da acta ficou a constar;

- a UU (irmã do SS) referiu que o EE comprou o terreno que era dos seus pais (terreno herdado pela sua mãe), situado à ‘entrada do lugar’, e que confrontava com a estrada; que a esse terreno os seus pais iam buscar lenha e tojo; que o seu irmão mais velho (RR), segundo o mesmo afirma, construiu um murete no terreno; que desde que a estrada foi aberta sempre (até o venderem) os seus pais cuidaram do terreno até à estrada, nunca tendo tal terreno sido cuidado por outras pessoas (fosse o FFF e filhos, como o VV, fossem os autores); eram os seus irmãos quem tratava da madeira, juntamente com o pai (a depoente não os acompanhava nessa tarefa) e a partir da venda foi o EE quem passou a tratar do terreno, tendo-o a depoente visto no local a cortar mato e lenha; que nunca viu os autores a cortar mato ou madeira no terreno que era dos seus pais, sendo certo que os presenciou a tratar do terreno situado no lado oposto da estrada; que a sua mãe e irmãos lhe referem a existência dum caminho antigo, cujo alargamento deu lugar à estrada que actualmente lá se encontra (caminho antigo com o qual então confrontava o prédio dos seus pais, com cerca de 150 metros);

- o RR (o irmão mais velho do SS e da UU, filho do PP) afirmou que os seus pais venderam ao EE o prédio, um ‘triangulozito’ que confrontava com a estrada (antes da estrada existia um caminho de carros de bois, e com esse caminho antigo confrontava o terreno dos seus pais; que por altura da abertura da estrada, ainda antes da mesma ser alcatroada, construiu um murete (pedra sobre pedra) para segurar a terra, no declive (terreno dos seus pais); que nesse terreno ia apanhar o mato (a ‘cama para o gado’) e plantou mesmo uns dois ou três eucaplitos e dois pinheiros, sendo a sua família quem aí cortava a madeira; que no terreno em questão nunca lá andou mais ninguém, designadamente os autores (via-os no terreno do outro lado da estrada, mas não no terreno situado a norte da estrada, pertença dos seus pais); que depois da venda do terreno ao EE nunca mais foi ao terreno; o terreno dos seus pais confrontava directamente com o (‘chegava’ até ao) caminho velho, que passou a ser a estrada (o murete foi construído por si em terreno que pertencia aos seus pais);

- a testemunha EE, que fez aos réus a doação aludida no facto provado 12, referiu ter adquirido (em 2001) a PP o prédio que constitui a parcela com cerca de 150 metros que se situa a norte da Rua ... e que, em vista de fazer doação aos réus (a ré mulher sua afilhada), em vista destes aí edificarem a sua habitação, solicitou a um topógrafo os respectivos serviços para que tal prédio fosse junto a outro (que também adquirira, já em 1998) e que lhe ficava adjacente, o que foi feito, dando o prédio resultante dessa junção aos réus; que o prédio que adquiriu a PP (e mulher) era pequeno e confrontava com a estrada (antes da abertura desta, em 1974, confrontava com o caminho que aquela veio a dar lugar); que depois de adquirir tal terreno, em 2001, nele limpou o mato todos os anos e cortou madeiras por três vezes (uma vez logo no ano que comprou, outra em 2010 e a terceira em 2018 ou 2019); que em tal terreno (que tem a configuração dum triângulo, com a base a confrontar com a estrada), depois de o ter adquirido e de dele tomar conta, nunca mais ninguém fez lá nada: os autores nunca lá fizeram nada e antes de si quem tratava do terreno era o PP e os filhos; que o autor (com quem desde há 35 anos não troca qualquer palavra – desentenderam-se por questões alheias à definição da titularidade do terreno discutido nos presentes autos) nunca o interpelou insurgindo-se contra o facto de o deponente se encontrar a cortar madeira na parcela de terreno em questão; que antes de a si a vender, sempre foi o PP quem tratou e cuidou da parcela de terreno situada a norte da Rua ... (limpando mato e cortando madeira) e ele, depois de adquirir os terrenos que viria a doar aos réus, sempre os limpou do mato e neles cortou a madeira (árvores), até à estrada (o limite do prédio adquirido ao PP); que nunca ninguém, por conta do RR, limpou mato e/ou cortou madeira no trato de terreno em questão.

A reapreciação destes elementos probatórios conduz-nos a convicção diversa da formada pelo tribunal a quo, porquanto deles não pode concluir-se, racionalmente, pela demonstração dos factos 6 a 9 da matéria provada – os depoimentos e declarações de parte dos autores e das testemunhas JJ, NN e VV não podem ter-se por preponderantes nem podem ser valorizados em detrimento dos depoimentos de parte dos réus e demais testemunhas, pois que nenhum elemento objectivo (que se possa ter por seguro e indiscutido) conforta e empodera aqueles relativamente a estes: pelo contrário, o que se constata é que os depoimentos das testemunhas JJ e NN são marcados por intrínseca fragilidade, pelo perfunctório ou mesmo insuficiente conhecimento que da matéria demonstraram (a primeira admitiu ter tido pouco contacto com os terrenos, aí se deslocando muito esporadicamente, não tendo presenciado nunca ninguém a tratar da parcela de terreno em questão, mormente os autores; também a segunda admitiu não ter presenciado ninguém a tratar do terreno, estribando a sua convicção de que o terreno dos autores tem também uma parcela a norte da estrada no que, a esse propósito, lhe referia o seu pai) e que o depoimento da testemunha da testemunha VV, no mínimo, não merece mais aceitação que os das testemunhas arroladas pelos réus (atente-se que referiu a existência do murete a segurar a estrada, admitindo que o mesmo terá sido erigido pelos responsáveis pela abertura da mesma, mas não pode deixar de notar-se que se era a testemunha e o seu pai quem então cuidavam do terreno a solicitação daquele que seria o seu proprietário, o RR, certamente que não se teriam alheado da construção de tal muro e antes teriam tido o cuidado de saber quem o erigia e até as condições em que o mesmo estava a ser/fora erigido) e nem os depoimentos de parte dos autores se mostram prevalentes, pois não só foram contraditados pelas testemunhas arroladas pelos réus e testemunha SS como não encontram suficiente suporte, apoio e corroboração nas testemunhas que arrolaram.

A análise crítica destes elementos probatórios (que as fotografias e plantas topográficas juntas aos autos nem corroboram nem desmentem) revela, assim, a sua insuficiência para fundar convicção positiva sobre a factualidade julgada provada nos factos 6 a 9 – deles não pode concluir-se, com o grau de probabilidade bastante, face às concretas circunstâncias do caso e às regras da experiência da vida, que os autores, por si e antecessores, há mais de 35 anos (ou pelo menos há mais de 20 ou até de 15 anos), à vista de toda a gente, sem oposição de quem quer que seja e na convicção de serem seus donos e de não lesarem o direito de outrem, usam a parcela referida no facto 5 e situada a norte da Rua ..., entre essa via e o caminho aí aludido, nela roçando mato, cortando a vegetação, apanhando lenha e cortando a madeira.

Procede, pois, a impugnação tendo de considerar-se, quando aos factos 6, 7, 8 e 9, provado tão só (na parte restante tem de considerar-se não provado) que (note-se que relativamente à parte do prédio situado do lado sul da Rua ... não foi questionado serem os autores quem deles trata e cuida, desde há mais de trina e cinco anos):

Factos 6 a 9 – os autores, por si e antepossuidores, há mais de 35 anos usam a parte situada a sul da Rua ... do prédio identificado em 1 e 2, roçando mato, cortando a sua vegetação espontânea, apanhando lenha e pinhas, cortando e vendendo árvores, à vista de toda a gente, sem oposição de quem quer que seja e na convicção de serem seus donos e ignorando ao adquiri-lo que lesavam o direito de outrem.

A.4. Da censura dirigida à decisão sobre a matéria de facto – a existência de matéria contraditória.
Considerando a procedência da impugnação deduzida pelos apelantes à decisão sobre os factos 6 a 9, torna-se evidente não existir qualquer contradição (qualquer inconciliabilidade ou incompatibilidade lógica) entre o facto provado 18 e qualquer outro.

B. Do mérito da causa.
Ponderando a procedência da impugnação da decisão sobre a matéria de facto, é de linear clareza a procedência da apelação no que concerne à parcela de terreno situada a norte da Rua ... e referida nos factos 4 e 5 (parcela situada a norte da Rua ..., que configura bico com 174m2 entre a Rua ... e o caminho aí aludido), pois não demonstram os autores os factos necessários para se poder concluir serem eles os titulares do domínio sobre a ela.
Como acima referido, não gozando os autores, relativamente a tal parcela ou trato de terreno, da presunção derivada do registo (a presunção não abrange a área, as confrontações ou os limites dos prédios), incumbia-lhes demonstrar a sua posse sobre a mesma, fosse para que em atenção à sua qualidade de possuidores pudessem beneficiar da presunção da titularidade do direito resultante da posse (art. 1286º, nº 1 do CC), fosse em vista de demonstrar a aquisição originária do domínio sobre a mesma, através da usucapião (art. 1287º do CC).
Não tendo logrado provar o exercício de poderes de facto sobre a parcela em questão, em termos de exercer sobre ela poder jurídico-real (vontade de domínio), não pode aos autores ser reconhecida, relativamente a ela, a qualidade de possuidores – o que arreda não só a possibilidade de relativamente a ela beneficiarem da presunção de titularidade (art. 1286º, nº 1 do CC) como também a faculdade de se valerem da usucapião.
Improcedência da pretensão dos autores apelados (no que ao reconhecimento do domínio sobre tal parcela concerne) a que não obsta o facto de se referir nos factos provados 4 e 5 que o prédio identificado nos factos 1 e 2 tem a configuração constante da planta de folhas 44, que é atravessado pela Rua ... e que na parte situada a norte dessa Rua ..., o prédio termina no caminho identificado nas plantas topográficas de folhas 44 e 81, fazendo um bico com 174 m2 entre a Rua ... e o caminho aí referido.
Desde logo, porque é manifestamente conclusiva a afirmação de que o prédio termina no caminho identificado nas plantas de folhas 44 e 81 (tal afirmação conclusiva da sentença admitia-se porque concretizada na factualidade que considerou provada nos factos 6 a 9; porque estes factos são retirados da matéria provada, aquela afirmação perde sustentação e suporte, aparecendo agora como uma inócua afirmação conclusiva – a presente acção é uma acção real, constituindo questão a decidir serem ou não os autores os titulares do domínio sobre a referida parcela); depois, como se disse, relativamente à parcela de terreno em questão não beneficiam os autores da presunção da titularidade do direito resultante do domínio; por fim, não pode afirmar-se resultar da matéria provada qualquer ligação pertenencial entre tal parcela e o terreno situado na parte oposta da estrada (imóvel referido nos factos 1 e 2), não podendo concluir-se que tal parcela ou trato de terreno seja parte do imóvel dos autores, que o conjunto (trato de terreno situado a norte da estrada e restante terreno situado do outro lado da estrada) se apresente como uma unidade predial estável (não pode afirmar-se existir qualquer ligação, muito menos exclusiva ou dominante, entre a parte do terreno situada sua da estrada e a parcela ou trato situada a norte da mesma estrada, nada permitindo vislumbrar que entre aquele terreno e esta parcela exista qualquer nexo material e funcional)[13].
Do exposto resulta que – e sem prejuízo de lhes ser reconhecido o direito de propriedade sobre a parte situada a sul da Rua ... do prédio identificado em 1 e 2, direito que os réus, mormente na apelação, não questionam  – não pode reconhecer-se aos autores o direito de propriedade sobre a parcela de terreno situada a norte da Rua ... e referida nos factos 4 e 5 (parcela situada a norte da Rua ..., que configura bico com 174m2 entre a Rua ... e o caminho aí aludido), o que acarreta, necessariamente, a improcedência dos demais pedidos que tinham o reconhecimento de tal direito de propriedade como necessário pressuposto.
C. Síntese conclusiva

Considerando tudo o exposto, procede a apelação, com manutenção da sentença recorrida na parte em que reconhece aos autores o direito de propriedade sobre a parte situada a sul da Rua ... do prédio identificado em 1 e 2 e condena os réus a tal reconhecer, e sua revogação na parte restante (julgando-se improcedentes os demais pedidos, deles se absolvendo os réus), podendo sintetizar-se a argumentação decisória (nº 7 do art. 663º do CPC) nas seguintes proposições:

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………………………

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DECISÃO

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Pelo exposto, acordam os Juízes desta secção cível, na procedência da apelação:

- em manter a sentença apelada na parte em que reconhece aos autores apelados o direito de propriedade sobre a parte situada a sul da Rua ... do prédio identificado nos factos 1 e 2 e condena os réus apelantes a tal reconhecer,

- em revogar, no mais, a sentença apelada e, em consequência, em julgar improcedentes as demais pretensões formuladas, delas absolvendo os réus apelantes.

As custas são da responsabilidade dos autores apelados


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Porto, 5/03/2024
João Ramos Lopes
Lina Baptista
Alexandra Pelayo


(por opção exclusiva do relator, o presente texto não obedece às regras do novo acordo ortográfico, salvo quanto às transcrições/citações, que mantêm a ortografia de origem)
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[1] Na conclusão 47ª os apelantes indicam também como incorrectamente julgada a matéria da alínea f) dos factos não provados, mas tal indicação só pode assentar em manifesto lapso, pois que a decisão apelada identifica apenas em cinco alíneas (alíneas a) a e) a matéria que considerou não provada.
[2] Abrantes Geraldes, Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, 2018, 5ª Edição, Recursos, pp. 165/166 e 168/169 e Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, Código de Processo Civil Anotado, Vol. I, 2018, p. 771 (identificando jurisprudência do STJ a propósito). [3] Neste sentido, o acórdão da Relação de Coimbra de 14/01/2014 (Henrique Antunes) e os acórdãos do STJ de 19/05/2021 (Júlio Gomes) e de 14/07/2021 (Fernando Baptista), todos no sítio www.dgsi.pt.
[4] Por mais recentes, vejam-se, a propósito, os acórdãos do STJ de 4/07/2019 (Catarina Serra) e de 14/07/2021 (Fernando Batista), no sítio www.dgsi.pt.
[5] Acórdão do STJ de 30/09/2004 (Oliveira Barros), no sítio www.dgsi.pt.
[6] Acórdão do STJ de 28/06/ 2007 (Pereira da Silva), no sítio www.dgsi.pt.
[7] Acórdão do STJ de 11/05/1993 (Santos Monteiro), no sítio www.dgsi.pt.
[8] Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, 5ª Edição, 2018, p. 290.
[9] Abrantes Geraldes, Recursos em Processo Civil, Novo Regime, 2ª edição revista e actualizada, pp. 283 a 286, Amâncio Ferreira, Manual dos Recursos em Processo Civil, 9ª edição, p. 227, Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil (…), pp. 286/287, 298 a 303 (maxime 302 e 303) e, por mais recentes, os acórdãos do STJ de 8/01/2019 (Ana Paula Boularot), de 25/09/2019 (Ribeiro Cardoso), de 16/12/2020 (Tomé Gomes), de 1/07/2021 (Rosa Tching) e de 29/03/2022 (Pedro de Lima Gonçalves), no sítio www.dgsi.pt.
[10] A. Varela, RLJ, Ano 116, p. 339.
[11] Manuel de Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, 1979, pp. 191/192.
[12] Esclarece-se que se procedeu à audição integral de todos os depoimentos e declarações (depoimento de parte do autor, declarações de parte da ré e depoimentos testemunhais) prestados em audiência de discussão e julgamento.
[13] Cfr., a propósito da noção/conceito de ligação pertenencial e destes nexos material e funcional, o acórdão do STJ de 4/07/2019 (Catarina Serra), no sítio www.dgsi.pt.