Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
1537/14.0T8MAI.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: JERÓNIMO FREITAS
Descritores: PROCESSO EMERGENTE DE ACIDENTE DE TRABALHO
AUTO DE (NÃO) CONCILIAÇÃO
FACTOS SOBRE OS QUAIS HOUVE ACORDO
Nº do Documento: RP202204041537/14.0T8MAI.P1
Data do Acordão: 04/04/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: RECURSO IMPROCEDENTE ; CONFIRMADA A SENTENÇA
Indicações Eventuais: 4. ª SECÇÃO (SOCIAL)
Área Temática: .
Sumário: I - Conforme estabelece o art.º 112.º 1, do CPT, não se obtendo o acordo, no auto da tentativa “(..) são consignados os factos sobre os quais tenha havido acordo, referindo-se expressamente se houve ou não acordo acerca da existência e caracterização do acidente, do nexo causal entre a lesão e o acidente, da retribuição do sinistrado, da entidade responsável e da natureza e grau da incapacidade atribuída”, exigência legal que visa circunscrever o litígio na fase contenciosa às questões em relação às quais não tenha havido acordo.
II - Em coerência com o fim visado pelo art.º 112.º, nos termos do art.º 131.º n.º1, al. c), ambos do CPT, o juiz deve “[C]onsiderar assentes os factos sobre que tenha havido acordo na tentativa de conciliação e nos articulados”.
III - A seguradora sempre teve ao seu dispor os elementos essenciais para formular uma avaliação segura sobre a existência e qualificação do acidente como de trabalho, bem assim quanto à verificação do nexo de causalidade entre o acidente de trabalho e as lesões, designadamente, o conhecimento sobre o facto participado como acidente de trabalho e o subsequente resultado de todo o processo de acompanhamento médico, iniciado pelos seus serviços clínicos após a participação daquele facto com vista a assegurar o tratamento ao sinistrado, durante o qual foram realizados exames complementares de diagnóstico e aquele foi observado em várias consultas médicas, podendo asseverar-se que no acto de tentativa de conciliação estava habilitada a tomar posição sobre existência e caracterização do acidente e do nexo causal entre a lesão e o acidente.
VI - Retira-se do auto de tentativa de conciliação que a recorrente tomou posição concreta sobre factos e não sobre conclusões: o acidente consta descrito com suficiência, o mesmo acontecendo quanto ao nexo causal entre o acidente e as lesões, sendo que quanto a estas, a remissão para o auto de exame médico dispensava a descrição exaustiva das lesões nele mencionadas.
V - Por conseguinte, quando a representante da seguradora declarou que “[..] aceita a existência e caracterização do acidente como de trabalho, aceita o nexo de causalidade entre as lesões e o acidente”, essa posição traduz uma aceitação expressa e inequívoca quer do acidente de trabalho descrito naqueles termos, quer da existência de nexo causal entre o mesmos e as lesões referidas no auto de exame médico singular, provocando-lhe, em consequência, “cervicalgia, com irradiação para a região escapular e para o membro superior esquerdo”.
VI - Concluindo-se que houve aceitação expressa e reportada a factos concretos, quanto à existência e caracterização do acidente e ao nexo causal entre a lesão e o acidente, atento o disposto nos artigos 112.º n.º1 e 131º n.º1, al c) do CPT, ao proceder ao saneamento do processo, não podia o Tribunal a quo deixar de ter considerado assente a matéria das alíneas E e F e, por decorrência lógica, com as razões que invoca no despacho recorrido cumpria-lhe decidir, como bem decidiu, indeferindo a reclamação.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: APELAÇÃO n.º 1537/14.0T8MAI.P1
SECÇÃO SOCIAL


ACORDAM NA SECÇÃO SOCIAL DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DO PORTO


I. RELATÓRIO
I.1 Iniciou-se a fase litigiosa dos presentes autos emergentes de acidente de trabalho, em que é autor AA e são rés X ... - Companhia de Seguros, SA e Instituto Português ..., EPE, mediante a apresentação de petição inicial pelo sinistrado, nos termos do artigo 117.º n.º1, do CPT, em razão de não ter sido obtido acordo na tentativa de conciliação realizada no termo da fase conciliatória, a qual finaliza pedindo a condenação das rés no seguinte:
1) A reconhecerem que o autor foi vítima de um acidente de trabalho em 23 de abril de 2014 quando exercia a sua atividade de médico especialista em otorrinolaringologia sob as ordens, direção e fiscalização da 2ª ré empregadora, mediante a retribuição anual de €72.483,10 (salário base – 3.277,90x14, subsídio de alimentação - €93,94x11, média mensal a título de outras remunerações regulares, designadamente trabalho suplementar realizado em cirurgias (SIGIC) e urgências - €2.129,93x12);
2) A pagar ao autor, na medida das suas responsabilidades, a pensão anual e vitalícia, tendo por base a retribuição anual do ponto anterior e a IPP que vier a ser fixada em exame pela Junta Médica em sede de IPP, que no entendimento do autor não deve ser inferior a 10%, pelo que a pensão anual ascende a €5.073,82, com início em 18 de outubro de 2014;
3) A pagar ao autor, na medida das suas responsabilidades, a quantia de €9.266,90 de diferenças de indemnização pelos períodos de incapacidade temporária;
4) A pagar ao autor, na medida das suas responsabilidades, a quantia de €25,00, a título de despesas de deslocação ao tribunal e ao GML;
5) A pagar ao autor, na medida das suas responsabilidades, juros de mora vencidos e vincendos sobre as quantias supracitadas, calculados à taxa legal de 4% e que contados desde os respetivos vencimentos até 5-02-2018, ascendem a €1.563,95.
Na petição inicial, alegou, em síntese, o seguinte:
- foi admitido ao serviço da 2ª ré empregadora, em 1-11-2007, para, mediante retribuição, sob a sua direção e integrado na sua organização, exercer as funções de médico especialista em otorrinolaringologia;
- no âmbito das suas funções profissionais, o autor, em representação da 2ª ré empregadora e por sua determinação, deslocou-se ao Chipre, a fim de participar numa reunião EORTC (European Organisation for Research and Treatmante of Cancer);
- no decurso da viagem, efetuada a 23-04-2014, a bordo do avião da “Lufthansa”, foi vítima de um acidente, sendo que cerca das 23horas e 50 minutos, a aeronave atravessou uma zona de elevada turbulência tendo o autor sofrido instabilidade de postura; em consequência padeceu de cervicalgia, com irradiação para a região escapular e para o membro esquerdo superior;
- em consequência necessária e direta das aludidas lesões sofreu períodos de incapacidade temporária parciais – 40% entre 24-04-2014 a 17-10-2014, 40% entre 18-02-2015 a 23-06-2015 e 20% entre 27-09-2016 a 28-11-2016; como consequência direta e necessária do acidente o autor sofreu, para além das restantes, as lesões descritas no auto de perícia médica do INML de fls. 109 e ss.;
- a data da consolidação médico-legal das lesões foi fixada em 17-10-2014;
- na mesma data teve alta e foi considerado afetado por uma IPP de 5%; nos doze meses anteriores à data do sinistro, o autor auferiu a retribuição base mensal ilíquida de €3.277,90, acrescida de subsídio de alimentação de €93,94 e de uma média mensal de €2.129,93 a título de outras remunerações regulares, designadamente trabalho suplementar realizado em cirurgias (SIGIC) e urgências; a 2ª ré empregadora transferiu para a 1ª ré seguradora a responsabilidade civil emergente de acidente de trabalho ocorrido com o autor, mediante a celebração de um contrato de seguro de acidentes de trabalho, titulado pela apólice nº ...;
- a 1ª ré seguradora já pagou ao autor a quantia de €9.332,46 pelos períodos de incapacidades temporárias; o autor despendeu em despesas de deslocações a quantia de €25,00.
Sustenta que está em causa um acidente de trabalho, porquanto preenche os requisitos legais.
Refere que, como se alcança da tentativa de conciliação da fase conciliatória, esta gorou-se, porquanto a 2ª ré empregadora entendeu que “(…) procedeu à transferência integral das remunerações abonadas ao sinistrado e devidas a título de retribuição da prestação de trabalho, pelo que não se concilia com o sinistrado nos termos acima propostos”, sendo que a 1ª ré seguradora aceita pagar apenas pelas consequências do sinistro até ao limite do salário para si transferido, e que no seu entendimento corresponde, tão-somente, ao salário base e ao subsídio de alimentação.
Argumenta que, independentemente da “querela” entre as rés acerca da responsabilidade pelas consequências do sinistro, a verdade é que nos termos do nº 4 e 5 do artigo 79º da Lei 98/2009 de 4 de setembro, o autor jamais poderá ser prejudicado, na justa medida em que no caso de se verificar que o empregador declarou, para o efeito de prémio de seguro, retribuição inferior à real, responderá pela diferença.
Mais sustenta que as sequelas confirmadas pela perícia médica evidenciam um quadro de dor com irradiação para a região interescapular e braço esquerdos pelo que tipificam um quadro clínico de radiculalgia/nevralgia que se enquadra no capítulo III, nº 7 da TNI (IPP de 10 a 20%).
Citadas, as rés apresentaram contestação.
A ré seguradora alegou, em síntese, que analisada a documentação clínica e nosológica relativa aos factos em discussão nos autos, constata que, ao contrário do que chegara a admitir, o autor não terá sido vítima de qualquer acidente de trabalho na data de 23-04-2014. Defende que sofrer uma instabilidade de postura – designadamente por turbulência num voo – não é sofrer um acidente e, de todo modo, ser afetado momentaneamente de instabilidade da postura não é causa adequada para as patologias e sequelas que o autor apresenta.
Invoca que o contrato de seguro que vigorava entre as rés era na modalidade de prémio variável, sendo que como resulta das folhas de remunerações juntas aos autos a ré patronal transferiu para a ré seguradora a sua responsabilidade infortunística-laboral, relativamente à pessoa do autor unicamente pela retribuição de €3.277,90x14 (retribuição base)+€4,27x242 (subsídio de alimentação) num total anual de €46.923,94.
Argumenta que, caso se venha a apurar que o autor auferia ou deveria auferir efetivamente a retribuição anual invocada – ou qualquer outra superior à declarada e transferida para a contestante – tem inteira aplicabilidade à situação dos autos o vertido nos nºs 4 e 5 do artigo 79º da Lei 98/2009 – a seguradora só é responsável em relação à retribuição que lhe foi declarada respondendo a ré patronal em relação à retribuição que lhe foi declarada, por todas as prestações devidas ao mesmo ou a efetuar.
Conclui, defendendo que a presente ação deve ser julgada improcedente por não provada.
Por seu turno, a ré empregadora sublinha que o acidente foi reconhecido como tal pela ré seguradora, sem oposição da empregadora, tendo o acidente ocorrido aquando da realização de uma viagem aérea, que por ser uma viagem patrocinada pela empregadora ficou a coberto, sob o âmbito da apólice.
Quanto à remuneração anual relevante, refere não aceitar que os pagamentos realizados em contrapartida das prestações do autor no domínio do SIGIC (Sistema de Gestão de Inscritos para Cirurgia) fiquem abrangidos pela cobertura inerente à responsabilidade emergente de acidente de trabalho. Invoca que a atividade de SIGIC, atualmente regulada pela Portaria nº 207/2017, de 11 de julho, constitui uma atividade médica e de saúde, abrangendo outros profissionais, vg de enfermagem e assistentes operacionais, de natureza voluntária, em que os profissionais de saúde aderem, querendo, e se voluntariam para, espontaneamente, fora do seu horário de trabalho, do seu período normal de trabalho, e fora de qualquer sujeição às diretivas do empregador, mas antes às das próprias equipas por si organizadas (uma equipa cirúrgica), sem qualquer controlo biométrico. Os profissionais em causa são pagos segundo tabelas fixadas pelo Ministério da Saúde, sem qualquer conexão com as remunerações de emprego, vg as tabelas salariais, os IRCT ou outros acordos e são ainda pagas, não por tempo de trabalho ou por atividade prestacional, mas sim por ato médico, por ato cirúrgico, por esse ser o próprio critério do preço pago, ou seja, pelo resultado obtido. Apela ainda ao Despacho nº 6263/2004 de 23 de março.
Defende que a prestação do SIGIC não é trabalho subordinado, não é obrigatório, não é realizado nem em tempo (PNT) nem fora de tempo de trabalho, a título suplementar, nem reunindo o preço pago as caraterísticas e natureza de remuneração de trabalho. Reconhece que é a entidade empregadora a processar esses pagamentos e que os mesmos são inseridos no recibo de remunerações mensais (porque não tem outro modo de o fazer), mas que esses serão os únicos pontos de contato com a relação.
Invoca que o autor foi abonado pela ré seguradora ao longo da sua situação clínica de ITP e foi ainda abonado pela entidade empregadora pela remuneração integral correspondente à atividade do autor, incluindo o pagamento da intervenção do autor na produção do SIGIC.
Concluiu pedindo a sua absolvição da instância.
Com a contestação, formulou pedido reconvencional, peticionando a condenação do autor a reembolsar a 2ª ré do montante de ilíquido de €11.130,00.
O tribunal a quo proferiu decisão não admitindo tal pedido reconvencional.
Foi proferido despacho saneador e selecionada a matéria de facto assente e controvertida.
A 1ª ré seguradora apresentou reclamação contra a seleção da matéria de facto constante do despacho saneador, pugnando pela exclusão das alíneas E) e F) da matéria assente e pelo aditamento de quesitos à base instrutória, sendo que tal reclamação foi indeferida conforme despacho com a refª citius 400876715.
I.2 Com a prolação do despacho saneador foi determinado o desdobramento do processo com vista à fixação da incapacidade. Cumprida a sua tramitação, no âmbito do respectivo apenso foi proferida decisão fixando em 5% o coeficiente de desvalorização que afeta o autor – IPP de 5% -, em consonância com o parecer unânime emitido pelos senhores peritos médicos em junta médica.
I.3 Procedeu-se a julgamento e, subsequentemente, o Tribunal a quo proferiu sentença, concluída com o dispositivo seguinte:
Pelo exposto, julga-se a ação procedente nos termos acima explanados e, em consequência, reconhecendo-se que o autor AA foi vítima de um acidente de trabalho do qual lhe resultou uma incapacidade permanente parcial para o trabalho de 5% (IPP de 5%), decide-se:
a – Reconhecer ao autor o direito ao capital de remição correspondente a uma pensão anual de €2.536,91, a pagar na proporção da responsabilidade das rés entidades responsáveis, sendo da responsabilidade da seguradora o capital de remição correspondente à pensão anual de €1.640,34 e da responsabilidade da entidade empregadora o capital de remição correspondente à pensão anual de €894,57;
b - Condenar a ré X ... - Companhia de Seguros, SA, a pagar ao autor o seguinte:
b.1- O capital de remição correspondente a uma pensão anual de €1.640,34 devida desde 18-10-2014, acrescido de juros de mora à taxa legal de 4% ao ano, desde a referida data de vencimento até integral e efetivo pagamento;
b.2 - A quantia de €2.708,36, a título de diferenças de indemnização pelos períodos de incapacidade temporária, acrescida de juros de mora, à taxa legal de 4% ao ano, desde o fim do mês em que cada uma das parcelas deveria ter sido liquidada e até efetivo e integral pagamento.
b.3 - A quantia de €25,00 a título de despesas com deslocações a tribunal e INML, acrescida de juros de mora à taxa legal desde 15-01-2018 até integral e efetivo pagamento;
c – Condenar a ré Instituto Português ..., EPE, a pagar ao autor o seguinte:
c.1- O capital de remição correspondente a uma pensão anual de €894,57 devida desde 18-10-2018, acrescido de juros de mora à taxa legal de 4% ao ano, desde a referida data de vencimento até integral e efetivo pagamento;
c.2 - A quantia de €6,558,54 a título de indemnização pelos períodos de incapacidade temporária, acrescida de juros de mora, à taxa legal de 4% ao ano, desde o fim do mês em que cada uma das parcelas deveria ter sido liquidada e até efetivo e integral pagamento.
d - Absolver as rés do demais peticionado e que exceda o determinado nas alíneas antecedentes.
*
Oportunamente, calcule-se o capital de remição nos termos do artigo 149º do Código de Processo do Trabalho.
Remuneração dos Srs. Peritos Médicos nos termos da Portaria nº 685/2005, de 18-08, ex vi artigo 17º, nº 7, do RCP.
Fixa-se à causa o valor de €46.493,15 (artigo 120, nº 1, do Código de Processo do Trabalho).
Custas pelas rés, na respetiva proporção de responsabilidade face aos termos da condenação - artigo 527º/1 e 2 do Código de Processo Civil e artigo 17º, nº 8 do Regulamento das Custas Processuais.
(..)».
I.3.1 Verificando-se ocorrer um lapso de escrita no ponto c.1. da parte decisória da sentença, onde se escreveu a data de 18-10-2018, por despacho foi o mesmo rectificado para passar a constar 18-10-2014.
I.4 Inconformada com a sentença, a Ré Seguradora apresentou recurso de apelação, o qual foi admitido com o modo de subida e efeito adequados. As alegações foram sintetizadas nas conclusões seguintes:
1. O despacho de 2019/02/07, Refª 400876715, pelo qual se desatende a reclamação da Apelante à Matéria de Facto Assente e à Base Instrutória é infundado e, como tal, ilegal.
2. De facto, a Apelante nem sequer aceitou qualquer facto ou realidade concreta mas apenas expressou a aceitação de abstrações conceptuais, generalidades conclusivas como a ocorrência do acidente e sua qualificação como de trabalho.
3. Aceitar a existência e qualificação de um acidente como um acidente de trabalho é algo de perfeitamente conclusivo. Não se refere com tal declaração – e como a lei exige para que se possa ter, em tese, como matéria assente – este ou aquele facto em concreto.
4. Tal não passa de uma abstração, de uma mera generalidade conclusiva, que não permite sustentar e muito menos fazer operar o regime dos Arts. 112º nº 1 e 131º nº 1 al. c) do CPT.
5. Neste sentido, crf. por todos, o Douto Ac. do S.T.J. de 14/12/2006, documento SJ20061214007894 in www.dgsi.pt, em que se diz: irado por unanimidade, do qual se retiram os seguintes ensinamentos:
I - O acordo ou desacordo dos interessados que deve constar do auto na tentativa de conciliação realizada perante o Ministério Público na fase conciliatória do processo emergente de acidente de trabalho é o que incide sobre factos, e não sobre juízos de valor, conclusões ou qualificações jurídicas (arts. 111.º e 112.º do CPT).
II - A mera aceitação, na tentativa de conciliação, da qualificação de um sinistro como acidente de trabalho, não obsta a que se discuta a caracterização do acidente na fase contenciosa do processo.
6. No mesmo sentido, o Acórdão do mesmo Supremo Tribunal de Justiça de 11-05-2017 em que, por unanimidade, se decidiu que:
3 – Nos termos do disposto no art. 112º do CPT, no auto de tentativa de conciliação presidida pelo Ministério Público na fase conciliatória do processo devem constar os factos sobre que tenha havido acordo ou divergência e não juízos de valor, conclusões ou conceitos jurídicos, e apenas os factos em que tenha havido acordo devem ser considerados assentes no despacho saneador, nos termos do art. 131º, nº 1, al. c) do CPT.
7. O que este Tribunal da Relação do Porto secunda, como a generalidade para não dizer a totalidade da Jurisprudência, vg, no Acórdão de 28-03-2011 votado por unanimidade e em que se declarou o seguinte:
I - Na fase conciliatória do processo emergente de acidente de trabalho, o acordo ou desacordo dos interessados que deve constar do auto de tentativa de conciliação é o que incide sobre factos e não sobre juízos de valor, conclusões ou qualificações jurídicas.
II - Assim, nada obsta a que, na fase contenciosa do processo, se discuta a caracterização do acidente, se, no auto de tentativa de conciliação, constar apenas a referência de que as recorrentes aceitaram o acidente como de trabalho, bem como o nexo causal entre o acidente, as lesões e a morte do sinistrado.
8. Assim sendo, como é, ruiu a fundamentação de tal despacho, pelo que deve a reclamação apresentada à matéria de facto assente à base instrutória ser deferida.
9. E, consequentemente, porque de matéria com enorme relevância para o exame e decisão da causa se trata, deve a Douta Sentença em crise ser anulada, mandando-se repetir o julgamento, aditando-se à Base Instrutória tantos pontos quantos necessários para que se proceda à indagação da matéria alegada na contestação da Apelante quanto à ocorrência do alegado acidente e quanto à existência de patologias prévias e sua dolosa omissão por parte do Apelado, quer das partes quer do Tribunal.
10. Ou seja, deve ordenar-se a repetição do julgamento, com ampliação da Base Instrutória nos moldes propostos, o que se requer, ao abrigo do disposto nos Arts. 596º nº 1 CPCiv. (antigo 511º nº 3) e 662º nº 2 al c) CPCiv. (antigo 712º nº 4 do Cód. Proc. Civil.).
11. Ao decidir como decidiu o Mmo. Juiz “a quo” interpretou erradamente a declaração do representante da Apelante e violou os Arts. 238º Cód. Civil, 121º, 122º, alíneas c) e d) do 131º do Cód. Proc. Trabalho.
12. Pelo que, atento o exposto, deve a Douta Sentença em crise ser anulada, assim como o despacho de 2019/02/07, Refª 400876715, que indeferiu a reclamação à Matéria de Facto Assente e à Base Instrutória, ampliando-se esta última de modo a que sejam objecto de prova e apreciação pelo Tribunal todos os factos atinentes à verificação e dinâmica do alegado acidente assim como relativos à existência de predisposição patológica ou até de patologia prévia e sua dolosa omissão pelo sinistrado.
Nestes termos, nos mais de Direito e sempre com o mui Douto suprimento de V. Exas., deve a Douta Sentença assim como o Douto despacho de fls. que indeferiu a reclamação à Matéria de Facto Assente e à Base Instrutória ser revogados e substituídos por outro que, deferindo esta última, anule a decisão proferida, ordenando repetição do julgamento com ampliação da matéria de facto, a qual deve abranger tudo quanto se alegou na contestação relativamente à ocorrência do alegado acidente e à existência de patologias prévias e sua dolosa omissão por parte do Apelado, quer das partes quer do Tribunal.
I.5 O recorrida autor apresentou contra alegações, mas sem que as tenha sintetizado em conclusões. No essencial, refere o seguinte:
- Contrariamente ao pretendido pela apelante, a verdade é que aceitou factos expressos e não conclusões ou qualificações jurídicas, como se retira do auto de tentativa de conciliação.
- Aceitou expressamente factos e a sua responsabilidade pelas consequências desses actos, ainda que uma responsabilidade no âmbito e dentro dos limites do contrato de seguro que celebrou.
- Ao contrário do que quer fazer crer a apelante, a mais recente jurisprudência não autoriza a posição que pretende sustentar; indica os acórdãos seguintes: do TRP de 29 de Maio de 2019, Proc.º 907/10.7TTMTS.P2; do TRC de 25 de Outubro de 2019, Proc.º Processo n.º 5068/17.8T8LRAA.C1; do TRP de 22 de Junho de 2020, Proc.º n.º 2453/17.9T8VFR.P1.
- Nas conclusões 9.º, 10.º e 12.º, a recorrente pede a anulação da Sentença “mandando-se repetir o julgamento, aditando-se à Base Instrutória tantos pontos quantos necessários para que se proceda à indagação da matéria alegada na contestação da Apelante quanto à ocorrência do alegado acidente e quanto à existência de patologias prévias e sua dolosa omissão por parte do Apelado, quer das partes quer do Tribunal”, não indicando quais os pontos ou factos que pretende ver incluídos na ampliação da base instrutória, quedando-se por uma generalização inconsequente, não cumprindo os requisitos formais de admissibilidade da impugnação da decisão de facto, estatuídos nas alíneas a), b) e c) do n.º1 do artigo 640.º do Código de Processo Civil.
Conclui pedindo a improcedência do recurso, confirmando-se a sentença.
I.6 O Digno Procurador- Geral Adjunto junto deste tribunal de recurso emitiu o parecer a que alude o art.º 87.º n.º 3 do CT, pronunciando-se pela improcedência do recurso, referindo no essencial:
-«[..]
3. 1. Na tentativa de conciliação cujo auto consta de fls. 151 e segs, a Recorrente participou nesta diligência através da sua representante com procuração arquivada no Tribunal.
A representação voluntária tem origem no negócio unilateral designado procuração, a que se refere o art.º 262º do CC.
E, diz-se procuração o acto pelo qual alguém atribui a outrem, voluntariamente, poderes representativos – n.º 1, do citado preceito do CC.
Assim, como ensinam Pires de Lima e Antunes Varela, (Código Civil anotado, vol. I, Coimbra Editora, p. 223), a representação traduz-se na realização de negócios jurídicos em nome de outrem, em cuja esfera jurídica se produzem directamente os respectivos efeitos.
Na tentativa de conciliação realizada, e referida, é como se estivesse presente, portanto, a própria Recorrente.
3. 2. Para além disso, estando a representante presente em muitas (inúmeras tentativas de conciliação), vai esta recebendo instruções da Seguradora, representada, sobre a posição a tomar em cada uma delas.
Posição que dependerá do estudo jurídico que esta fará de cada acidente que lhe for participado, pois, terminando a tentativa de conciliação em acordo, em conciliação (como seria o caso em apreciação, não fora a posição assumida pelo sinistrado e entidade empregadora), esta é uma posição definitiva com base na qual o juiz, por sentença, homologa o acordo – art.º 114º, 1, do CPT.
Assim, exige-se que seja rigorosa; e, sendo ditada, a posição assumida, pela própria representante, só ela é responsável pelas declarações que ficam a constar da acta, declarações que controla e pode corrigir, antes de assinar o auto.
Neste caso a Recorrente aceitaria tudo, pois que, como referido, “se conciliaria com o sinistrado.”
4. É certo que, tal como o texto da lei o refere, também, do auto hão de constar factos e não conclusões ou conceitos jurídicos.
Com efeito dispõe o artigo 112º, n.º 1, do CPT que “se se frustrar a tentativa de conciliação, no respectivo auto são consignados os factos sobre os quais tenha havido acordo, referindo-se expressamente se houve ou não acordo acerca da existência e caracterização do acidente, do nexo causal entre a lesão e o acidente, da retribuição do sinistrado, da entidade responsável e da natureza e grau da incapacidade atribuída.”
Mas só caso a caso e mediante o auto de tentativa de conciliação é possível aferir do cumprimento deste preceito.
Na verdade, na jurisprudência encontram-se decisões que apoiam posições diversas, como os citados nas alegações da Recorrente e Recorrido, que aqui se dão como transcritas.
Neste caso, cremos que será de considerar que tal normativo foi cumprido. Pois, como se disse, a Recorrente deixou dito que se conciliaria com o sinistrado.
E, em caso de conciliação, como disposto no art.º 111º do CPT, dos autos devem constar, além da identificação completa dos intervenientes, a indicação precisa dos direitos e obrigações que lhes são atribuídos e ainda a descrição pormenorizada do acidente e dos factos que servem de fundamento aos referidos direitos e obrigações.
Ora esta descrição pormenorizada do acidente e demais factos necessários a atribuição de direitos e obrigações constam do auto de tentativa de conciliação.
E foi perante esta descrição e estes factos que a Recorrente tomou a posição de aceitar a conciliação.
Quem a não aceitou foi o sinistrado e a entidade empregadora, razão pela qual o processo passou à fase contenciosa, com a propositura da acção.
Salvo sempre diferente e melhor opinião, entende-se que, neste caso, não merece censura o douto despacho, e sentença, em recurso.
5. Refere agora, a Recorrente, factos que antes não referiu, como a inexistência de acidente e que o Recorrido sofria já de patologias anteriores que ocultou à entidade empregadora.
Porém não refere que só agora tenham chegado ao seu conhecimento estes factos.
No artigo 4º da contestação diz a Recorrente que “De facto, analisada a documentação clinica e nosológica relativa aos factos em discussão nos autos constata a R. que, ao contrário do que chegara a admitir, o mesmo não terá sido vítima de qualquer acidente de trabalho em tal data.”
Parece, antes uma alteração de posição, mas com base nos mesmos elementos que já possuía à data da tentativa de conciliação.
Além disso no processo não se indiciam tais factos. Com efeito os exames referidos foram realizados, embora antes de participar o acidente, depois do evento relatado como acidente.
6. Quanto ao mais, pondo em causa a matéria de facto dada como provada, cremos que, não foi devidamente cumprido o disposto no art.º 640º do CPC, nomeadamente o triplo ónus de, obrigatoriamente, indicar os “concretos pontos de facto” que “considera incorrectamente julgados” - (al. a), especificar os “concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos de facto impugnados diversa da recorrida” - (al. b) – e, especificar “a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas” - (al. c) - sob pena de rejeição do recurso de facto.
E à mesma rejeição imediata conduz a falta de indicação exacta “das passagens da gravação em que se funda” o recurso, se for o caso, sem prejuízo de poder optar pela apresentação da “transcrição dos excertos” relevantes.
Só cumpridos os requisitos assim definidos para a delimitação e fundamentação da impugnação da decisão de facto, caberá à Relação julgar o recurso.
[..]»
I.7 Cumpriram-se os vistos legais e determinou-se que o processo fosse inscrito para ser submetido a julgamento em conferência.
I.8 Delimitação do objecto do recurso
Sendo o objecto do recurso delimitado pelas conclusões das alegações apresentadas, salvo questões do conhecimento oficioso [artigos 87.º do Código do Processo do Trabalho e artigos 639.º, 635.º n.º 4 e 608.º n.º2, do CPC, aprovado pela Lei n.º 41/2013, de 26 de Junho] as questões suscitadas para apreciação são as seguintes:
I) Se o despacho de 2019/02/07, que desatendeu a reclamação da Apelante à Matéria de Facto Assente e à Base Instrutória é infundado e ilegal, devendo ser deferido;
II) E, consequentemente, se deve a Sentença ser anulada, mandando-se repetir o julgamento, aditando-se à Base Instrutória “tantos pontos quantos necessários para que se proceda à indagação da matéria alegada na contestação da Apelante quanto à ocorrência do alegado acidente e quanto à existência de patologias prévias e sua dolosa omissão por parte do Apelado, quer das partes quer do Tribunal”.
II. FUNDAMENTAÇÃO
II.1. MOTIVAÇÃO DE FACTO
O Tribunal a quo fixou o elenco factual que se passa a transcrever, ao qual se acrescenta, no final dos factos provados, o conteúdo do auto de tentativa de conciliação:
Factos provados:
1 – O autor AA nasceu no dia .../.../1969, conforme certidão de assento de nascimento junta a fls. 47 dos autos [alínea A) dos factos assentes].
2 - O autor é licenciado em Medicina e encontra-se inscrito na Ordem dos Médicos – Seção Regional ... – desde 22-11-1993, sob o nº 35207 [alínea B) dos factos assentes].
3 - O autor é Médico Especialista em Otorrinolaringologia e encontra-se inscrito no respetivo Colégio da Especialidade desde 21-05-2001 [alínea C) dos factos assentes].
4 - Na qualidade de Médico Especialista em Otorrinolaringologia, o autor foi admitido ao serviço da ré Instituto Português ..., EPE, em 1-11-2007, para, mediante retribuição, sob a sua direção e integrado na sua organização, exercer as funções de Médico Especialista em Otorrinolaringologia [alínea D) dos factos assentes].
5 - No dia 23-04-2014, pelas 23:50 horas, quando o autor se encontrava, sob as ordens, direção e fiscalização da Ré Instituto Português ..., EPE, em viagem aérea entre Portugal e Chipre, realizada no âmbito das suas funções profissionais, o avião passou em zona de turbulência e o autor sofreu instabilidade de postura, da qual resultou para o autor cervicalgia, com irradiação para a região escapular e para o membro superior esquerdo [alínea E) dos factos assentes].
6 - Como consequência do evento referido em 5 (E), resultaram para o autor os seguintes períodos de incapacidade temporária parcial (correspondente ao período durante o qual foi possível o autor desenvolver a sua atividade profissional, ainda que com certas limitações):
- Incapacidade temporária parcial de 40% (ITP de 40%) desde 24-04-2014 até 17-10-2014;
- Incapacidade temporária parcial de 40% (ITP de 40%), por agravamento temporário, desde 18-02-2015 até 23-06-2015;
- Incapacidade temporária parcial de 20% (ITP de 20%), por agravamento temporário, desde 27-09-2016 até 28-11-2016 [alínea F) dos factos assentes].
7 - O autor teve alta clínica no dia 17-10-2014, data da consolidação médico-legal das lesões [alínea G) dos factos assentes].
8 - O autor despendeu a quantia de €25,00 em despesas de deslocação ao Instituto de Medicina Legal e ao tribunal, na fase conciliatória dos presentes autos [alínea H) dos factos assentes].
9 - O autor auferia da ré Instituto Português ..., EPE pelo menos o salário anual de € 46.923,94 (€ 3.277,90x14 meses +€93,94x11 meses – salário base e subsídio de alimentação, respetivamente) [alínea I) dos factos assentes].
10 - À data de 23-04-2014, a ré Instituto Português ..., EPE, tinha já celebrado e em vigor com a ré seguradora um contrato de seguro do ramo acidentes de trabalho de trabalhadores por conta de outrem, na modalidade de prémio variável, titulado pela apólice n.º ... cujas condições particulares se mostram juntas a fls. 21 a 23 dos autos e que aqui se dão como reproduzidas, mediante o qual e na indicada data tinha transferido para a seguradora a responsabilidade infortunística relativa a acidentes em que fosse interveniente o autor relativamente à retribuição anual de €46.923,94 [alínea J) dos factos assentes].
11 - A ré entidade empregadora efetuou à ré seguradora a participação de acidente de trabalho datada de 6-05-2014, conforme participação junta a fls. 18-19 dos autos cujo teor se dá aqui como reproduzido [alínea k) dos factos assentes].
12 - A ré seguradora pagou ao autor a quantia global de 9.332,46 a título de indemnização pelas incapacidades temporárias parciais sofridas pelo autor [alínea L) dos factos assentes].
13 - Durante os períodos de incapacidade temporária parcial para o trabalho o autor auferiu da ré entidade empregadora o seu salário integral [alínea M) dos factos assentes].
14 - A deslocação do autor ao Chipre aludida em 5 (E) teve como finalidade a participação do autor numa reunião da EORTC (European Organizations for Research and Treatmant of Cancer), em representação da ré Instituto Português ..., EPE [resposta ao artigo 1. da base instrutória].
15 - Como consequência do evento referido em 5 (E) o autor sofreu agravamento por raquialgia cervical, tendo resultado daquele evento cervicalgia, o que lhe determina uma incapacidade permanente parcial para o trabalho de 5% (IPP de 5%) [resposta ao artigo 3. da base instrutória e quanto ao grau de incapacidade decisão de fls. 38 do apenso de fixação de incapacidade – refª citius 413989662].
16 – O autor como consequência do evento em referência apresenta cervicalgia, sem evidência clínica de radiculalgia [resposta ao artigo 4. da base instrutória].
17 - Em consequência do evento em referência, o autor padeceu de recaídas [resposta ao artigo 5. da base instrutória].
18 - Nos doze meses anteriores à data de 23-04-2014, o autor, para além da retribuição referida em 9 (I), auferiu da ré entidade empregadora uma média mensal de €2.129,93 a título de outras remunerações, designadamente trabalho realizado para além do horário em cirurgias (SIGIC) e urgências [resposta ao artigo 6. da base instrutória].
19 - Naquele período, para além da retribuição base e subsídio de alimentação aludidos em 9 (I), o autor desempenhou mensalmente funções médicas em cirurgia no âmbito do SIGIC, fora do seu período normal de trabalho, remunerados mensalmente por ato e horas extraordinárias, nas quais auferiu uma média mensal de €2.129,93, sendo que essa atividade do autor nas cirurgias do SIGIC é feita mediante autorização do Conselho de Administração da ré empregadora e sob a coordenação e validação do serviço em questão daquela ré [resposta aos artigos 7. e 8. da base instrutória].
20 - O autor presta a sua atividade no SIGIC dentro do horário definido pela ré empregadora, que no caso era às quartas-feiras entre as 16h00 e as 20h00 [resposta ao artigo 9. da base instrutória].
21 - A atividade em referência é realizada nas instalações da ré, nos blocos operatórios [resposta ao artigo 10. da base instrutória].
22 - Com a utilização dos instrumentos cirúrgicos e materiais médicos e de farmácia da ré, colocados à disposição do autor pela ré [resposta ao artigo 11. da base instrutória].
[23] No auto de tentativa de conciliação da fase conciliatória constante a fls. 151 a 153 dos autos, ficou expressamente consignado relativamente a pressupostos e prestações legais o seguinte:
- No dia 23-04-2014, pelas 23:50 horas, em viagem aérea entre Portugal e Chipre, quando sob as ordens, direção e fiscalização de “Instituto Português ..., EPE”, (…) desempenhava as funções de médico, o sinistrado foi vítima de um acidente que consistiu no seguinte:
Quando se encontrava no exercício das suas funções, o avião passou em zona de turbulência e sofreu “instabilidade de postura”.
Como consequência resultou-lhe cervicalgia, com irradiação para a região escapular e para o membro superior esquerdo.
Auferia o salário anual total para estes efeitos, de €72.483,10 (€3.277,90x14 meses+€93,94x11 meses+€2.129,33x12 meses – salário base, subsídio de alimentação e outras remunerações, respetivamente), sendo que a Companhia de Seguros assume a responsabilidade das consequências do acidente pelo salário anual de €46.923,94 (€3.277,90x14 meses+€93,94x11 meses – salário base e subsídio de alimentação), correspondendo a 64,7377% do total, e a Entidade Patronal não assume a diferença no valor de €25.559,16, correspondente a 35,2622%.
As lesões resultantes do acidente encontram-se descritas no auto de perícia médica de fls. 109 a 112 dos autos (…) e no qual se determinou encontrar-se o sinistrado curado em 17-10-2014 mas afectado com uma IPP de 5%.
Assim sendo tem o sinistrado direito a uma pensão anual de €2.536,91 calculada com base no salário acima referido e no coeficiente global de incapacidade (IPP) de 5%, obrigatoriamente remível, devida nos termos do disposto nos artigos 48º, nº 3, alínea c), e 75º da Lei nº 98/2009 de 04 de Setembro, sendo da responsabilidade da Companhia de Seguros a pensão anual de € 1.642,37 (64,7377%) e da responsabilidade da Entidade Patronal a pensão anual de €894,57 (35,2622%).
Pelos períodos de incapacidades temporárias que sofreu o sinistrado recebeu da Companhia de Seguros a quantia de €9.332,46, tendo ainda a reclamar €9.266,90, dos quais €2.708,35 da companhia de seguros e €6.558,55 da entidade patronal.
O sinistrado gastou em despesas de deslocações a este Tribunal e ao GML a quantia de €25,00.
Pelo sinistrado foi dito que não aceita o grau de desvalorização fixado pelo perito médico pelo que não se concilia nos termos acima propostos e vai interpor ação de acidente de trabalho por intermédio do seu advogado.
Pela representante da Companhia de Seguros foi dito que a sua representada aceita a existência e caracterização do acidente como de trabalho, aceita o nexo de causalidade entre as lesões e o acidente, aceita a sua responsabilidade pelas consequências do sinistro até ao limite do salário para si transferido e acima definido, aceita pagar pelos períodos de incapacidades temporárias a quantia de €2.708,35 em dívida, aceita pagar as despesas com deslocações a este Tribunal e ao GML no valor de €25,00 e aceita o grau de incapacidade fixado pelo perito médico do INML pelo que se conciliaria com o sinistrado.
Pela legal representante da Entidade Patronal foi dito que a sua representada aceita a existência e caracterização do acidente como de trabalho, aceita o nexo de causalidade entre as lesões e o acidente, aceita o grau de incapacidade atribuído pelo INML, não aceita qualquer responsabilidade pelas consequências do sinistro por entender que procedeu à transferência integral das remunerações abonadas ao sinistrado e devidas a título de retribuição da prestação de trabalho, pelo que não se concilia com o sinistrado nos termos acima propostos.
Factos não provados:
a) O estado do autor referido em 5 (E) foi-se agravando, atingindo uma intensidade elevada de dor desde 5-05-2014 [artigo 2. da base instrutória].
b) Como consequência do evento referido em 5 (E) resultou para o autor: em C5-C6 - protrusão posterior do disco de base larga - que indenta o espaço subaracnóideu anterior, sem contatar a medula -, uncartroses bilaterais que diminuem a amplitude foraminal com ligeiro predomínio esquerdo e consequentemente o espaço útil às raízes emergentes; em C6-C7 - hérnia discal póstero-lateral esquerda que condiciona a moldagem de medula e se estende à vertente medial do buraco da conjugação deste lado, e ligeira desnervação crónica inativa de sofrimento radicular C7 esquerda [atenta a resposta dada ao artigo 3. da base instrutória].
c) As recaídas do autor aludidas em 17 estiveram relacionadas com agudização da radiculalgia, com dor e défice de sensibilidade no braço e mão esquerdos [atenta a resposta dada ao artigo 5. da base instrutória].
II.2 Impugnação do despacho que desatendeu a reclamação sobre a seleção dos factos assente e fixação da base instrutória
Notificada do despacho saneador, com a selecção dos factos assentes e fixação da base instrutória, a Ré Seguradora apresentou reclamação, defendendo, no essencial, o seguinte:
i) Na alínea E) da MFA foi dada como assente que “No dia 23-04-2014, pelas 23:50 horas, quando o autor se encontrava, sob as ordens, direção e fiscalização da Ré Instituto Português ..., EPE, em viagem aérea entre Portugal e Chipre, realizada no âmbito das suas funções profissionais, o avião passou em zona de turbulência e o autor sofreu instabilidade de postura, da qual resultou para o autor cervicalgia, com irradiação para a região escapular e para o membro superior esquerdo”, matéria alegada nos artigos 5.º e 7.º da PI, mas impugnada no artigo 2.º da contestação.
ii) Na alínea F) da MFA deu-se como provado que “Como consequência do evento referido em E), resultaram para o autor os seguintes períodos de incapacidade temporária parcial (correspondente ao período durante o qual foi possível o autor desenvolver a sua atividade profissional, ainda que com certas limitações):
- Incapacidade temporária parcial de 40% (ITP de 40%) desde 24-04-2014 até 17-10-2014;
- Incapacidade temporária parcial de 40% (ITP de 40%), por agravamento temporário, desde 18-02-2015 até 23-06-2015;
- Incapacidade temporária parcial de 20% (ITP de 20%), por agravamento temporário, desde 27-09-2016 até 28-11-2016.
Essa matéria foi alegada no art.º 11.º, da PI, mas foi igualmente impugnada no mesmo art.º 2.º da contestação.
iii) A ré reclamante alegou no art.º11º da sua contestação que ser afectado momentaneamente por instabilidade da postura não é causa adequada para as patologias e sequelas que apresenta o A.; e, nos art.ºs 12.º e 13.º, que o A. nada relatou à sua entidade patronal senão em Maio de 2014; e, alegou no 14.º que até Maio de 2014, o A. prestou o seu trabalho deforma normal, sem qualquer queixa ou limitação; alegou, ainda, no art.º 17.º que já muito antes de Abril de 2014 o A. sofria de graves problemas raquidianos, em especial cervicais, concretizando no art.º18,º, que aquele efectuou uma RM no dia 02/05/2014, no Hospital ..., a qual revelou que o A. padecia já do seguinte: rectilinização da curvatura cervical ...; discreta desidratação discal em C5-C6 e C6-C7; Em C5-C6 protusão discal posterior de base larga a moldar discretamente a face ventral da medula espinal; Uncartroses a contribuírem para a redução da amplitude foraminal, com estenose à esquerda mas sem compromisso da permeabilidade; Em C6-C7 protusão discal posterior de base larga, na qual se destaca hérnia posterior esquerda extrusada, a moldar a vertente esquerda da medula espinal sem alteração de sinal associado e comprimindo a porção pré-foraminal medial da raiz C7esquerda – provável radiculopatia; - Uncartroses a contribuírem para a redução da amplitude foraminal; Discreta hipertrofia das apófises unciformes, buracos de conjugação permeáveis.
iv) Mais alegou no art.º 21.º que a desidratação discal em C5-C6 e C6-C7 é uma patologia degenerativa, com meses ou anos de evolução; e, no art.º 22.º, que as protusões ou hérnias discais posteriores são, igualmente, patologias com meses e meses de evolução, muito anterior a Abril de 2014 e de etiologia não traumática; e, o a art.º 23.º que uma uncoartrose é o desgaste nos processos unciformes das vértebras cervicais, o qual se dá pelo conjunto de alterações provocadas pela artrose da coluna cervical, levando à diminuição do diâmetro dos forames intervertebrais (espaços por onde passam as raízes nervosas) sendo causado, as mais das vezes, por factores genéticos e hereditários, sendo que, quando resulta de factores mecânicos, nos referimos usualmente a esforços ou traumas repetitivos na região.
v) Alegou também, nos art.º 24.º, 25.º e 26.º, que todas estas patologias são muito anteriores ao alegado evento de 23/04/2014, não têm qualquer relação, muito menos causal com o mesmo e não resultaram ou foram agravadas por uma situação em que tenha vivenciado instabilidade postural, sendo antes de causa natural e de lenta evolução, muito anteriores ao dia 23/04/2014.
vi) Alegou, por último, nos seus 28.º a 30.º, que o A. sabia antes de 23/04/2014 que padecia de graves problemas raquidianos, em especial, a nível cervical, tendo padecido diversas vezes de dores na região escapular e nos membros superiores, em especial esquerdo, patologias que lhe haviam já determinado tratamentos conservadores e medicação muito antes de Abril de 2014, mas jamais o deu a conhecer à R. Patronal e oculta agora nos presentes autos tais factos, os quais constituem predisposição patológica por si conhecida e que nunca revelou à R. Patronal nem à ora contestante.
Concluiu, alegando que por se tratar de “matéria essencial para a descoberta da verdade material e para a boa decisão da causa, de acordo com as várias soluções de Direito plausíveis, deve a presente reclamação ser atendida e, consequentemente, devem ser eliminadas as Al. E) e F) da MFA, pois que foi matéria impugnada, mais devendo ser aditados à BI quesitos em que se indague toda a matéria supra referida, designadamente, da ocultação pelo sinistrado da predisposição patológica de que padecia”.
O sinistrado respondeu à reclamação, defendendo não assistir razão à reclamante, contrapondo, no essencial, que a matéria das alíneas E e F está correctamente assente por resultar expressamente aceite na acta de tentativa de conciliação (art.º 112.º 1 do CPT). A restante matéria cuja inclusão a reclamante pretende na base instrutória, visa pôr em causa aquela aceitação expressa por isso não podendo ser levada à base instrutória.,
Pronunciando-se sobre a reclamação, a Senhora Juíza proferiu o despacho seguinte:
-«Veio a seguradora reclamar contra a seleção da matéria de facto constante do despacho saneador, com os fundamentos melhor discriminados no primeiro dos identificados requerimentos, pugnando pela exclusão das alíneas E) e F) da matéria assente e pelo aditamento de quesitos à base instrutória.
Notificada a reclamação o sinistrado pronunciou-se nos termos constantes do segundo dos identificados Diremos, desde já adiantando a conclusão, que salvo o devido respeito por opinião divergente, é de indeferir a reclamação apresentada.
No que respeita à matéria de facto considerada assente e vertida nas alíneas E) e F) da matéria assente resultou expressamente aceite por todas as partes, incluindo a ré reclamante, no auto de tentativa de conciliação da fase conciliatória e como expressamente ordena o artigo 112.º do Código de Processo de Trabalho.
Como tal, e no que respeita à matéria vertida nas alíneas em referência, o tribunal limitou-se a dar cumprimento ao disposto no artigo 131º, no 1, alínea c), do citado diploma, uma vez que sobre esses factos houve acordo na tentativa de conciliação da fase conciliatória (cfr. fls. 151 a 153 dos autos).
Sobre esta matéria poderão ver-se, entre outros, os Acórdãos da Relação do Porto de 29-05-2017, processo no 907/10.7TTMTS.P2, e de 5-01-2017, processo no 261/13.5 TTPNF.P1, disponíveis in www.gde.mj.pt.
Já quanto à restante matéria alegada e cuja inclusão na base instrutória a seguradora reclama, trata-se de matéria que visa pôr em causa a aceitação expressa do que se encontra vertido na matéria de facto assente em consonância com a respetiva aceitação pela seguradora aquando da tentativa de conciliação.
Nesta conformidade, tal matéria não pode ser introduzida na base instrutória, por configurar uma insanável contradição com a matéria de facto já considerada assente.
Não é, pois, de atender à reclamação apresentada pela seguradora.
Termos em que se indefere à reclamação apresentada».
Sustenta a recorrente, no essencial, que sendo certo que na tentativa de conciliação a sua representante até referiu que se conciliaria e aceitava a existência e caracterização do acidente como de trabalho, ainda assim, tal não pode ter o efeito preclusivo da possibilidade de discutir a ocorrência e os factos consubstanciadores do alegado acidente.
Mais refere que, não pode ser acolhido o fundamento de que a matéria dada como assente resultou expressamente aceite por todas as partes no auto de tentativa de conciliação da fase conciliatória, nos termos do artigo 112º do CPT, e de que o Tribunal se limitou a dar cumprimento ao artigo 131º, nº 1, alínea c) CPT. Aceitar a existência e qualificação de um acidente como um acidente de trabalho é algo de perfeitamente conclusivo. Não se refere com tal declaração. A lei exige que se devem consignar os factos acerca dos quais houve acordo, não se bastando, por isso, com meras abstracções conceptuais ou conclusões de direito.
Em abono da sua posição invoca os Acórdãos do o S.T.J. de 14/12/2006 e 11/05/2017, e deste TRP de 28/03/2011.
Conclui, defendendo que por se tratar de matéria com enorme relevância para o exame e decisão da causa se trata, deve o despacho ser anulado e por consequência também a Sentença, mandando-se repetir o julgamento, aditando-se à Base Instrutória tantos pontos quantos necessários para que se proceda à indagação da matéria alegada na contestação da Apelante quanto à ocorrência do alegado acidente e quanto à existência de patologias prévias e sua dolosa omissão por parte do Apelado, quer das partes quer do Tribunal.
Contrapõe o recorrido, também no essencial, que contrariamente ao pretendido pela apelante, a verdade é que, como se retira do auto de tentativa de conciliação, aquela aceitou factos expressos e não conclusões ou qualificações jurídicas. Ao contrário do que a recorrente quer fazer crer, a jurisprudência não autoriza a posição que pretende sustentar.
II.2.1 Em jeito de enquadramento, começamos por deixar umas breves notas que nos parecem essenciais para melhor compreensão do percurso a seguir na apreciação da questão.
O processo para efectivação de direitos resultantes de acidente de trabalho, regulado nos artigos 99.º a 150.º do CPT, compreende duas fases distintas: uma primeira, chamada fase conciliatória, de realização obrigatória e sob a direcção do Ministério Público; e, uma segunda, a fase contenciosa, de realização eventual e sob a direcção do Juiz.
Através da primeira, como a sua própria denominação o indica, procura-se alcançar a satisfação dos direitos emergentes do acidente de trabalho para o sinistrado através da composição amigável, embora necessariamente sujeita a regras legais imperativas (direitos indisponíveis), atendendo aos interesses de ordem pública envolvidos. Para possibilitar aquele objectivo, a tramitação desta fase compreende, por sua vez, três fases, uma primeira, de instrução, que tem em vista a recolha e fixação de todos os elementos essenciais à definição do litígio, de modo a indagar sobre a“(..) veracidade dos elementos constantes do processo e das declarações das partes”, habilitando o Ministério Público a promover um acordo susceptível de ser homologado (art.ºs 104.º 1, 109.º e 114.º); uma segunda, que consiste na realização do exame médico singular, devendo este no relatório “deve indicar o resultado da sua observação clínica, incluindo o relato do evento fornecido pelo sinistrado e a apreciação circunstanciada dos elementos constantes do processo, a natureza das lesões sofridas, a data de cura ou consolidação, as sequelas e as incapacidades correspondentes, ainda que sob reserva de confirmação ou alteração do seu parecer após obtenção de outros elementos clínicos ou auxiliares de diagnóstico” (art.ºs 105.º e 106.º); e, finalmente, a tentativa de conciliação presidida pelo Ministério Público, com a finalidade primordial de obtenção de acordo susceptível de ser homologado pelo Juiz (art.º 109.º) [Cfr. João Monteiro, Fase conciliatória do processo para a efectivação do direito resultante de acidente de trabalho – enquadramento e tramitação, Prontuário do Direito do Trabalho, n.º 87, CEJ, Coimbra Editora, pp. 135 e sgts.].
Conforme estabelece o art.º 112.º 1, do CPT, não se obtendo o acordo, no auto da tentativa “(..) são consignados os factos sobre os quais tenha havido acordo, referindo-se expressamente se houve ou não acordo acerca da existência e caracterização do acidente, do nexo causal entre a lesão e o acidente, da retribuição do sinistrado, da entidade responsável e da natureza e grau da incapacidade atribuída”.
Como observa Albino Mendes Baptista, “Esta exigência legal visa circunscrever o litígio na fase contenciosa às questões em relação às quais não tenha havido acordo” [Código de Processo do Trabalho Anotado, Quid Juris, Lisboa, 2000, p. 204]. Não devendo olvidar-se, que face ao disposto no n.º2, daquele mesmo artigo, o interessado que se recuse a tomar posição sobre cada um daqueles factos e esteja habilitado para esse efeito, é, a final, condenado como litigante de má fé. Ou seja, desde que esteja habilitada a tomar posição, a parte está vinculada a esse dever.
Como decorre do art.º 117.º, do CPT, não tendo sido alcançado o acordo, o início da fase contenciosa depende da apresentação de petição inicial ou o requerimento a que se refere o n.º2, do art.º 138.º do CPT. A apresentação de requerimento é o meio processual próprio quando o interessado “se não conformar com o resultado da perícia médica realizada na fase conciliatória do processo, para efeitos de fixação da incapacidade para o trabalho” [art.º 138.º2 do CPT]; e, como se retira a contrario sensu do mesmo normativo, a apresentação de petição inicial é necessária quando a discordância entre as partes na tentativa de conciliação vá para além da questão da incapacidade.
Importa ter bem presente que em coerência com o fim visado pelo art.º 112.º , nos termos do art.º 131.º n.º1, al. c), ambos do CPT, o juiz deve “[C]onsiderar assentes os factos sobre que tenha havido acordo na tentativa de conciliação e nos articulados”.
No caso concreto, a Ré seguradora participou o sinistro em 23-10-2014, tendo logo feito a junção de um conjunto de documentos médicos que foram tidos em conta no exame médico singular. A conclusão daquela perícia envolveu três sessões, em razão de ter havido recaída do sinistrado após lhe ter sido dada alta clínica e, também, por terem sido solicitados pelo Senhor perito médico que a seguradora juntasse outros elementos documentais, designadamente, registos clínicos e outra documentação até à data da alta definitiva e a indicação dos períodos de incapacidade.
No relatório final do auto de exame médico singular, no que aqui releva, consta o seguinte:
i) Sob o título A. HISTÓRIA DO EVENTO
-«[..]
Recorreu a consulta informal com DR. BB no H ... que solicitou RMN que fez no mesmo hospital em início de Maio. Tal exame terá mostrado discopatia de raíz C7.
Foi depois seguido nos serviços clínicos da seguradora F..., pelo Dr. CC. Terá repetido RMN e electromiografia.
[..]».
ii) Sob o título “B. DADOS DOCUMENTAIS”:
Da documentação clínica que nos foi facultada consta cópia de registos dos:
- serviços clínicos da seguradora F..., da qual se extrai o seguinte:
Sofreu acidente de trabalho em 23-04-2014 do qual resultou traumatismo cervical. Iniciou queixas de cervicobraquialgia esquerda.
Primeira consulta em 06-05-2014 com cervicobraquialgia esquerda, parestesias de territórios da C7 esquerda.
Fez RMN cervical em 21-05-2014; em C5 –C6 apresenta protusão posterior do disco de base larga, que “identa” o espaço subaracnóideu anterior, sem contactar a medula.
Coexistem uncartroses bilateriais que diminuem a amplitude foraminal com ligeiros predomínio esquerdo e consequentemente o espaço útil às raízes emergentes. Em C6-C7 apresenta hérmia discal póstero – lateral esquerda que condiciona moldagem da medula e se estende à vertente media do buraco de conjugação deste lado, onde, com toda a probabilidade interessa a raiz C7 esquerda (“radiculopatia”). Sem outras alterações relevantes.
Recebeu tratamento conservador.
Fez electromiografia resumida em consulta de 17-06-2014 : “ligeira desnervação crónica inactiva de sofrimento radicular C7 esquerda não recente.~
Foi considerado:
Sem incapacidade de 06-05-2014 a 13-05-2014
ITP de 40% de 14-05-2014 a 17-10-2015
Alta em 17-10-2014 com IPP de 5,00% (Cap. I; 1.1.1.1.b)
Sem incapacidade de 18-02-2015 a 20-02-2015
ITP de 40% de 21 -02-2015 a 5-03-2015
ITP de 30% de 26-03-2015 a 16-06-2015
ITP de 40% de 17-06-2015 a 23-06-2015
Sem incapacidade de 27-09-2016 a 28-11-2016
(Repetiu RMN em 3-11-2016; protusão discla paramediana esquerda ocupando espaço epidural anterior em C5-C6, hérnia discal para mediana esquerda com extensão foraminal em C6 – C7 com evidente compressão da raiz C7 na sua emergência)
Alta em 28-11-2016 com raquialgia residual mantendo a IPP anterior».
ii) Sob o título “DISCUSSÃO”
-[..]
1. Os elementos disponíveis permitem admitir o nexo de causalidade entre o traumatismo e o dano […].
2. A data de consolidação médico legal das lesões é fixável em 17-10-2014, tendo em conta os seguintes aspectos: a data da alta clínica, o tipo das lesões resultantes e o tipo de tratamentos efectuados.
3. Considera-se que após essa data de consolidação teve dois períodos de agravamento temporário, com necessidade de tratamentos e findos os quais retomou o estado apresentado em 17-10-2014 e que abaixo motiva atribuição de incapacidade permanente parcial.
[..]».
O Senhor perito médico conclui no final do relatório o seguinte:
A data de consolidação médico-legal das lesões é fixável em 17-10-2014.
- Incapacidade temporária parcial fixável num período total de 366 dias.
- Incapacidade permanente parcial fixável em 5,00% ».
Retira-se deste auto que a perícia médica singular serviu-se essencialmente da documentação clínica – registos clínicos e exames complementares – que resultaram do acompanhamento médico proporcionado ao sinistrado pelos serviços clínicos da seguradora, com vista à sua recuperação, bem assim que não se desviou da avaliação feita por esses serviços, quer quanto aos períodos de incapacidade temporária, quer quanto às sequelas decorrentes das lesões provocadas pelo sinistro - também descrito no mesmo auto -, quer ainda quanto ao enquadramento das mesmas face à TNI, para atribuir ao sinistrado a IPP de 5,00%.
Visto noutro ângulo, significa isto, também, que a seguradora sempre teve ao seu dispor os elementos essenciais para formular uma avaliação segura sobre a existência e qualificação do acidente como de trabalho, bem assim quanto à verificação do nexo de causalidade entre o acidente de trabalho e as lesões, designadamente, o conhecimento sobre o facto participado como acidente de trabalho e o subsequente resultado de todo o processo de acompanhamento médico, iniciado pelos seus serviços clínicos após a participação daquele facto com vista a assegurar o tratamento ao sinistrado, durante o qual foram realizados exames complementares de diagnóstico e aquele foi observado em várias consultas médicas.
Note-se, que do conteúdo dessa documentação decorre que nunca colocou em causa quer a sua a existência e caracterização do acidente, quer o nexo causal entre a lesão e o acidente. Acresce assinalar, que tão pouco a seguradora veio em algum momento, inclusive na contestação, alegar a eventual existência de conhecimento superveniente de algum facto novo. Na verdade, como bem assinalou o Digno Magistrado do Ministério Público no seu parecer, o que veio alegar na contestação foi que [art.º 4.º], “De facto, analisada toda a documentação clínica e nosológica relativa aos factos em discussão nos autos constata a R. que, ao contrário do que chegara a admitir, o mesmo não terá sido vítima de qualquer acidente de trabalho em tal data”, ou seja, uma alteração de posição, mas com base nos mesmos elementos que já possuía à data da tentativa de conciliação.
Pode, pois, asseverar-se que no acto de tentativa de conciliação a recorrente estava habilitada a tomar posição sobre existência e caracterização do acidente e do nexo causal entre a lesão e o acidente.
Ora, contrariamente ao que pretende sustentar, retira-se do auto de tentativa de conciliação que a recorrente tomou posição concreta sobre factos e não sobre conclusões.
O acidente consta descrito com suficiência nos termos seguintes:
- No dia 23-04-2014, pelas 23:50 horas, em viagem aérea entre Portugal e Chipre, quando sob as ordens, direção e fiscalização de “Instituto Português ..., EPE”, (…) desempenhava as funções de médico, o sinistrado foi vítima de um acidente que consistiu no seguinte:
Quando se encontrava no exercício das suas funções, o avião passou em zona de turbulência e sofreu “instabilidade de postura”.
E, no que concerne ao nexo causal entre o acidente e as lesões, lê-se o seguinte:
Como consequência resultou-lhe cervicalgia, com irradiação para a região escapular e para o membro superior esquerdo.
[…]
As lesões resultantes do acidente encontram-se descritas no auto de perícia médica de fls. 109 a 112 dos autos (…) e no qual se determinou encontrar-se o sinistrado curado em 17-10-2014 mas afectado com uma IPP de 5%.».
Para que não subsista dúvidas, a remissão para o auto de exame médico dispensava a descrição exaustiva das lesões nele mencionadas, não podendo esquecer-se que o Senhor Perito médico sustentou-se nos dados clínicos com origem nos serviços clínicos da própria seguradora, mas também que o seu conteúdo foi notificado às partes.
Por conseguinte, quando a representante da seguradora declarou que “[..] aceita a existência e caracterização do acidente como de trabalho, aceita o nexo de causalidade entre as lesões e o acidente”, essa posição traduz uma aceitação expressa e inequívoca quer do acidente de trabalho descrito naqueles termos, quer da existência de nexo causal entre o mesmos e as lesões referidas no auto de exame médico singular, provocando-lhe, em consequência, “cervicalgia, com irradiação para a região escapular e para o membro superior esquerdo”.
Sublinha-se, ainda, que só essa clara aceitação explica que a recorrente não só tenha pago no decurso do acompanhamento para tratamento, “Pelos períodos de incapacidades temporárias que sofreu o sinistrado [..] a quantia de €9.332,46”, como também que naquele acto tenha expressamente declarado que “aceita a sua responsabilidade pelas consequências do sinistro até ao limite do salário para si transferido e acima definido, aceita pagar pelos períodos de incapacidades temporárias a quantia de €2.708,35 em dívida, aceita pagar as despesas com deslocações a este Tribunal e ao GML no valor de €25,00 e aceita o grau de incapacidade fixado pelo perito médico do INML pelo que se conciliaria com o sinistrado”.
Por este conjunto de razões, a jurisprudência invocada pelo recorrente – os Acórdãos do S.T.J. de 14/12/2006 e de 11-05-2017; e, desta Relação do Porto, de 28-03-2011 [Conclusões 5 a 7]- que, refira-se, merece a nossa inteira concordância, não tem aplicação ao caso concreto. Em qualquer dos casos objecto de apreciação nesses arestos a aceitação não incidiu sobre factos concretos. Diversamente acontece aqui, pelo que neste caso, pela similitude das situações, aplicam-se antes os arestos desta Relação, invocados pelo recorrido e pelo Tribunal a quo na fundamentação da decisão recorrida, nomeadamente, os que se passam a indicar, em cujos sumários consta o seguinte: [todos disponíveis em www.dgsi.pt]:
- de 05-01-2017 [proc.º 261/13.5TTPNF.P1, Desembargador Domingos Morais] - no qual o aqui relator interveio como adjunto:”I - Em processo acidente de trabalho devem considerar-se assentes os factos admitidos por acordo em tentativa de conciliação”.
- de 29-05-2017 [proc.º 907/10.7TTMTS.P2, Desembargadora Paula Leal de Carvalho] - no qual o aqui relator interveio como adjunto: “III - Tendo a Ré/Seguradora aceite, na tentativa de conciliação que teve lugar na fase conciliatória do processo especial emergente de acidente de trabalho, a ocorrência do acidente aí alegado pelo A., tal facto fica assente, não podendo vir a ser posteriormente discutida a sua existência”.
-de 22 de Junho de 2020 [Proc.º n.º 2453/17.9T8VFR.P1] – relatado pelo aqui relator e com intervenção dos também aqui excelentíssimos adjuntos: “I - Face à aceitação expressa da seguradora na tentativa de conciliação, isto é, ao acordo sobre o nexo causal entre o acidente e as lesões, essa questão ficou definitivamente assente e, logo, estava fora de discussão saber se o acidente de viação, simultaneamente de trabalho, foi a causa adequada para despoletar um quadro clínico com natureza psiquiátrica, caracterizado por insónias e depressão”
Concluindo-se que houve aceitação expressa e reportada a factos concretos, quanto à existência e caracterização do acidente e ao nexo causal entre a lesão e o acidente, atento o disposto nos artigos 112.º n.º1 e 131º n.º1, al c) do CPT, ao proceder ao saneamento do processo, não podia o Tribunal a quo deixar de ter considerado assente a matéria das alíneas E e F e, por decorrência lógica, com as razões que invoca no despacho recorrido cumpria-lhe decidir, como bem decidiu, indeferindo a reclamação.
Assim sendo, o recurso sobre esse despacho improcede.
Consequentemente, sucumbindo o fundamento que sustenta o pedido de anulação da sentença, para se “repetir o julgamento, aditando-se à Base Instrutória tantos pontos quantos necessários para que se proceda à indagação da matéria alegada na contestação da Apelante quanto à ocorrência do alegado acidente e quanto à existência de patologias prévias e sua dolosa omissão por parte do Apelado, quer das partes quer do Tribunal”, fica prejudicada a necessidade de outras considerações, improcedendo o recurso sobre a sentença.
III. DECISÃO
Em face do exposto, acordam os Juízes desta Relação em julgar os recursos improcedentes, confirmando a decisão e a sentença recorrida.

Custas do recurso a cargo da recorrente, atento o decaimento (art.º 527.º do CPC).

Porto, 4 de Abril de 2022
Jerónimo Freitas
Nelson Fernandes
Rita Romeira