Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
2942/18.8T8PRT.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: JORGE SEABRA
Descritores: CASO JULGADO FORMAL
RESOLUÇÃO DO CONTRATO DE ARRENDAMENTO
ABUSO DE DIREITO
Nº do Documento: RP202106072942/18.8T8PRT.P1
Data do Acordão: 06/07/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Indicações Eventuais: 5ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - As decisões proferidas ao abrigo de legislação transitória, como é o caso da legislação que foi sendo aprovada no decurso da pandemia de Covid-19, não são imutáveis, podendo e devendo ser revistas e alteradas no processo sempre que exista uma subsequente alteração relevante do regime legal transitório sobre cujo domínio foram proferidas.
Destarte, neste outro contexto, essa alteração da decisão anteriormente proferida não confronta o caso julgado formado por aquela anterior decisão (não impugnada).
II - Na sentença o juiz pode, nas condições previstas no artigo 5º, n.º 2, do CPC, considerar os factos concretizadores ou complementares da causa de pedir ou da excepção, ainda que os mesmos não tenham sido oportunamente alegados pelas partes.
III - Quanto aos factos essenciais da causa de pedir ou da excepção vigora, ao invés, o princípio do dispositivo e da auto-responsabilidade das partes, tendo as mesmas que proceder à sua alegação oportuna para que esses factos possam ser levados em consideração no acto decisório, não colhendo sentido chamar à colação o princípio do inquisitório ou os deveres de gestão do tribunal, pois que os mesmos não tem por finalidade suprir a alegação de factos essenciais a cargo da parte interessada.
IV - A excepção de abuso do direito, ainda que constitua uma excepção de conhecimento oficioso, só tem de ser conhecida pelo tribunal se os autos contiverem os factos essenciais para o efeito, o que pressupõe que os mesmos tenham sido oportunamente alegados pela parte que pretende beneficiar da excepção.
V - Mantendo-se o arrendatário apartado do locado há mais de um ano (por referência à data de instauração da acção) e não ocorrendo nenhuma causa justificativa para esse não uso, tal como prevista no n.º 2 do artigo 1072º, do CC, existe incumprimento grave do contrato de arrendamento, que legitima a sua resolução, por não ser exigível ao locador, em tais circunstâncias (violação reiterada de um dever do arrendatário, que coloca em risco o estado de conservação do locado), manter o vínculo contratual existente.
VI - Não actua em abuso de direito, na modalidade de venire contra factum proprium (supressio), o locador que sabe que o arrendatário não usa o locado para habitação há mais de quatro anos e, apesar disso, pretende por termo ao contrato com esse fundamento, sendo que o mero decurso do tempo, não justifica, sem mais, à luz dos ditames da boa-fé, a expectativa do arrendatário quanto à aceitação definitiva dessa situação e consequente renúncia ao direito de resolução do contrato com esse fundamento.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo n.º 2942/18.8T8PRT.P1 - Juízo Local Cível do Porto – J9.
Relator: Jorge Seabra
1º Juiz Adjunto: Des. Pedro Damião e Cunha
2ª Juíza Adjunta: Desª. Maria de Fátima Andrade
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Sumário (elaborado pelo Relator):
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Acordam, em conferência, no Tribunal da Relação do Porto:

I. RELATÓRIO:
B…, C…, D… e E… propuseram a presente acção declarativa de condenação, sob a forma de processo comum, contra F…, pedindo, final, que seja declarado resolvido o contrato de arrendamento celebrado com a Ré e a condenação desta última na desocupação do locado, entregando-o livre de pessoas e bens.
Fundamentaram a sua pretensão no facto de a Ré não residir, não usar há mais de 4 anos o locado melhor identificado nos autos, encontrando-se internada, a título permanente, no Lar G…, sito nesta cidade.
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2. Realizadas as diligências tendentes à citação da Ré veio a ser constatado que a mesma não reunia condições para receber e entender a citação que lhe era dirigida, tendo sido, nesse enquadramento, nomeado curador ad litem, o qual, citado em representação da Ré, não deduziu contestação.
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3. Foi citado o Ministério Público, que também não contestou a acção.
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4. Foi proferido despacho saneador, dando por verificada a validade e regularidade da instância.
Foi definido o objecto do litígio, fixados os temas de prova e admitidos os meios de prova oferecidos.
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5. Realizada a audiência de julgamento, foi proferida sentença que julgou procedente a acção, declarando resolvido o contrato de arrendamento para habitação celebrado entre os Autores e a Ré, condenando esta a proceder à entrega do locado e, ainda, a efectuar o pagamento das rendas vincendas até à efectiva entrega do locado, no montante mensal de € 153, 00.
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6. Inconformada, veio a Ré interpor recurso, em cujo âmbito apresentou alegações e formulou as seguintes
CONCLUSÕES
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7. Os Recorridos contra-alegaram pugnando pela improcedência do recurso.
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8. Recebidos os autos neste Tribunal da Relação, foi proferido despacho pelo ora Juiz Relator com data de 20.03.2020 e com o seguinte teor:
“Como assim, face ao antes exposto, e atento o preceituado no artigo 7º, n.º 10, da Lei n.º 1-A/2020, de 19.03, que entrou hoje em vigor (com efeitos reportados a 14.03.2020) – cfr. artigo 10º, da Lei n.º 1-A/2020 -, declaro suspensos os presentes autos e até que seja declarada cessada a situação excepcional ora em vigor.”
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9. Notificado este despacho de 20.03.2020, nenhuma reclamação do mesmo foi apresentada por qualquer das partes.
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10. Posteriormente, face à entrada em vigor da Lei n.º 4-B/2021, de 1.02., com data de 23.02.2021, foi proferido novo despacho pelo ora Juiz Relator e com o seguinte teor:
“Conforme se evidencia dos anteriores despachos proferidos nestes autos, os mesmos têm-se mantido suspensos pelas razões que dos mesmos constam.
Sucede que, por força da entrada em vigor da Lei n.º 4-B/2021 de 1.02, em conformidade com o previsto no artigo 6º-B, n.º 5, alínea a), desta última Lei (que revogou os anteriores artigos 6º-A e 7º-A, da Lei n.º 1-A/2020, de 19.03. – vide artigo 3º desta Lei n.º 4-B/2021), a suspensão de todas as diligências e de todos os prazos para a prática de actos processuais que devam ser praticados no âmbito dos processos judiciais que corram termos nos tribunais judiciais, não obsta “à tramitação nos tribunais superiores de processos não urgentes, sem prejuízo do cumprimento do disposto na alínea c) quando estiver em causa a realização de actos presenciais;”
Por conseguinte, resulta do normativo vindo de citar (artigo 6º-B, n.º 5, alínea a), na redacção da Lei n.º 4-B/2021, de 1.02), que, nos tribunais superiores e salvo se estiverem em causa a realização de actos presenciais (o que não se verifica no caso dos autos pois que está em causa apenas a prolação de acórdão sobre a sentença proferida pelo Tribunal de 1ª instância), todos os processos (urgentes ou não urgentes) devem seguir a sua ulterior tramitação, tendo em vista a prolação de acórdão, não se justificando, por princípio, a continuação da suspensão da respectiva tramitação.
Sendo assim, como cremos, decide-se agora, ao abrigo daquele normativo, decretar a cessação da suspensão da instância nos presentes autos de acção de despejo, autos que, assim, deverão prosseguir os seus ulteriores termos.”
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11. Na sequência deste último despacho, veio a Ré/Recorrente requerer a manutenção da suspensão dos presentes autos, invocando, para tanto, que o eventual despejo do locado colocaria os seus “familiares (filha e genro)” numa situação de notória fragilidade por falta de habitação.
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12. Os Recorridos responderam a este último requerimento pugnando pela sua improcedência e consequente prosseguimento dos autos, como decretado no despacho de 23.02.2021.
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13. Nesta sequência, foi proferido novo despacho pelo ora Juiz Relator, datado de 8.03.2021, em cuja parte decisória consta o seguinte:
“Por conseguinte, atento o antes exposto e à luz dos elementos que emergem dos autos, não existindo, em nosso julgamento, no caso dos autos, risco de a Recorrente/arrendatária F… vir a ser colocada em situação de fragilidade por falta de habitação própria ou outra razão social imperiosa que justifique a suspensão dos autos e o consequente protelamento da decisão do litígio, deverão os autos prosseguir nesta instância os seus ulteriores termos, como já antes se decidiu.
Destarte, em conclusão, desatende-se a suspensão dos presentes autos como peticionado pela Recorrente e, nesta lógica, decide-se que os presentes autos de recurso deverão prosseguir os seus ulteriores termos.
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14. Notificadas as partes, veio a Recorrente/arrendatária deduzir reclamação para a conferência quanto a este último despacho de 23.02.2021, em cujo âmbito ofereceu as seguintes
CONCLUSÕES
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15. Foram cumpridos os vistos legais.
Cumpre decidir.
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II. DELIMITAÇÃO do OBJECTO do RECURSO:
O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente, não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso - artigos 635º, n.º 3, e 639º, n.ºs 1 e 2, do novo Código de Processo Civil, na redacção emergente da Lei n.º 41/2013 de 26.06 [doravante designado apenas por CPC].
No seguimento desta orientação, as questões centrais suscitadas e a decidir, segundo a sua sequência lógica, são as seguintes:
a) Violação de caso julgado – suspensão da instância (reclamação para a conferência);
b) Impugnação da decisão de facto;
c) Do mérito da sentença – Fundamentos da Resolução e Abuso de direito.
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III. FUNDAMENTAÇÃO de FACTO:
O Tribunal de 1ª instância julgou provados os seguintes factos:
1. Os Autores são donos do imóvel situado na Rua …, n.º …, correspondente a um prédio urbano composto por casa de rés-do-chão e dois andares, não constituído em propriedade horizontal, inscrito na matriz sob o artigo 153º e descrito na Conservatória do Registo Predial do Porto sob o n.º 538/20061206.
2. Tal imóvel encontra-se inscrito a favor dos autores desde 4/7/1975.
3. Já na data antes referida, o 1º andar frente do prédio descrito em 1 estava cedido à Ré, para a sua habitação, mediante o pagamento de uma quantia mensal, não existindo acordo escrito.
4. Na presente data o valor mensal da quantia devida pela ocupação do imóvel ascende ao montante de € 153,00, a entregar no primeiro dia útil do mês anterior àquele a que dissesse respeito.
5. A Ré, pelo menos, desde Janeiro de 2014 que não habita no imóvel objecto do acordo referido em 3, estando a viver, a título permanente, no Lar G… da H…, Instituição Particular de Solidariedade Social, situado na Rua …, n.º …, no Porto.
6. O imóvel identificado deixou de ser onde a Ré mantém o centro da sua vida, tendo deixado de nele pernoitar, de confeccionar e tomar refeições, de receber os amigos e visitas e de nele passar os seus momentos de descanso e lazer.
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IV. FUNDAMENTAÇÃO JURÍDICA.
IV.I. Violação do caso julgado formado pelo despacho de 20.03.2020 – Suspensão dos autos:
A primeira questão que, do ponto de vista lógico, importa conhecer refere-se à alegada violação do caso julgado formado pelo despacho 20.03.2020 (que não foi impugnado), violação essa que, segundo a Recorrente, decorreria de o despacho posterior de 8.03.2021 contrariar o sentido decisório e os fundamentos constantes daquele primeiro despacho.
É em nosso ver ostensivo que não ocorre a violação de caso julgado invocada em termos enviesados pela Recorrente, pois que esta ignora, por um lado, o caracter assumidamente transitório da Lei n.º 1-A/2020, de 19.03 (e do respectivo artigo 7º, n.º 10) e, por outro, o novo regime introduzido pela Lei n.º 4-B/2021, de 1.02, sendo certo que os despachos em apreço foram, ao contrário do que invoca a Recorrente (e como deles consta expressamente), proferidos sob circunstâncias factuais e regimes legais distintos.
De facto, o primeiro despacho de 20.03.2020 foi proferido sob a égide daquela Lei n.º 1-A/2020, de 19.03 e o segundo despacho de 23.02.2021 foi proferido sob a égide da Lei n.º 4-B/2021, de 1.02.
Por outro lado, ainda, também ao contrário do que advoga a Recorrente, as soluções legais consagradas nos dois diplomas não são iguais, nem sequer idênticas.
Vejamos.
O caso julgado tanto designa a qualidade de imutabilidade da decisão judicial que transitou em julgado, como, ainda, o conjunto dos efeitos jurídicos que têm o trânsito em julgado como pressuposto.
Neste contexto, como é consabido, a decisão transita em julgado quando já não é susceptível de reclamação nem de recurso ordinário, quer nenhuma impugnação tenha tido lugar no prazo legal, quer se tenham esgotado os meios de impugnação admissíveis e efectivamente utilizados (artigo 628º, do CPC).
Ocorridas estas circunstâncias, forma-se então o caso julgado.
Neste contexto, importa, desde logo, distinguir, em razão do sentido decisório, entre o caso julgado positivo e o caso julgado negativo. O caso julgado positivo ocorre quando a decisão julga procedente o pedido formulado pelo autor ou reconvinte; O caso julgado negativo ocorre quando, pelo contrário, a decisão julga improcedente o pedido do autor ou reconvinte. [1]
O trânsito em julgado corresponde a um expediente de estabilização dos resultados do processo, tendo em vista a segurança das relações jurídicas e do comércio jurídico em geral e a salvaguarda do prestígio dos tribunais. [2]
Essa desejada estabilização decorre, desde logo, do preceituado no artigo 613º, n.º 1, do CPC, pois que proferida a sentença ou despacho, o tribunal (que a proferiu) não os pode revogar ou alterar, por perda do respectivo poder jurisdicional.
Assim, por via desta regra, antes mesmo do trânsito em julgado, uma decisão adquire com o seu proferimento um primeiro nível de estabilidade, perante o próprio autor da decisão.
No entanto, se o conteúdo da decisão é inalterável perante o órgão que a produziu, apenas o será para as demais instâncias quando ocorrer o trânsito em julgado, nos termos do artigo 628º do CPC, ou seja, como se referiu, quando essa decisão não se mostre susceptível de recurso ordinário ou de reclamação por ter decorrido o respectivo prazo ou, ainda, por esses meios de impugnação se mostrarem utilizados e esgotados. [3]
Atingida a imutabilidade da decisão, o enunciado constante da decisão passa a ter força obrigatória dentro do processo (artigo 620º, n.º 1, sem prejuízo dos despachos previstos no artigo 630º, ressalvados pelo respectivo n.º 2, ambos do CPC) e também fora dele, quando a decisão incida sobre o mérito da causa. Trata-se da consagração da clássica distinção entre caso julgado formal e caso julgado material.
Portanto, a decisão de mérito proferida no processo tem, após o respectivo trânsito em julgado, força obrigatória formal e material no próprio processo (valor intraprocessual) e pode, ainda, verificadas determinadas condições, ter força obrigatória material fora do processo em que foi proferida (valor extraprocessual).
Destarte, o caso julgado formal tem força obrigatória apenas dentro do processo, obstando a que o juiz possa, na mesma acção, alterar a decisão proferida, mas não impede que noutra acção a mesma questão processual seja decidida em termos diferentes pelo mesmo tribunal, ou por outro entretanto chamado a apreciar a causa (artigo 620º, n.º 1, do CPC), ao passo que o caso julgado material tem força obrigatória dentro do processo e fora dele, impedindo que o mesmo ou outro tribunal, ou qualquer outra autoridade, possa definir em termos diferentes o direito concreto aplicável ao objecto do processo - artigo 619º, n.º 1 do CPC. [4]
Dito isto, a força obrigatória do caso julgado desdobra-se em duas vertentes, uma designada por efeito negativo do caso julgado e outra designada por efeito positivo do caso julgado.
O efeito negativo do caso julgado consiste numa proibição de repetição de nova decisão sobre a mesma pretensão ou questão, por via da excepção dilatória de caso julgado, regulada em especial nos artigos 577º, al. i), segunda parte, 580º e 581º, do CPC.
O efeito positivo (ou autoridade do caso julgado) exprime-se pela vinculação das partes e do tribunal a uma decisão anterior, que não pode ser posta em crise.
Assim, enquanto o efeito negativo do caso julgado leva a que apenas uma decisão possa ser produzida validamente sobre o um mesmo objecto processual, mediante a exclusão de poder jurisdicional para a produção de uma segunda decisão, o efeito positivo admite a produção de decisões de mérito sobre objectos processuais distintos mas materialmente conexos, na condição da prevalência do sentido decisório da primeira decisão.
Como se refere no AC RG de 7.08.2014 “ os efeitos do caso julgado material projectam-se no processo subsequente necessariamente como excepção de caso julgado, em que a existência da decisão anterior constitui um impedimento a decisão de idêntico objecto posterior, ou como autoridade de caso julgado material, em que o conteúdo da decisão anterior constitui uma vinculação a decisão do distinto objecto do distinto objecto posterior. “ [5]
Em idêntico sentido, refere J. LEBRE de FREITAS, que a indiscutibilidade inerente ao caso julgado manifesta-se de dois modos:
“– Entre as mesmas partes e com o mesmo objecto (isto é com o mesmo pedido e a mesma causa de pedir), não é admissível nova discussão: o caso julgado opera negativamente, constituindo uma excepção dilatória que evita repetição da causa (efeito negativo do caso julgado);
- Entre as mesmas partes mas com objectos diferenciados, entre si ligados por uma relação de prejudicialidade, a decisão impõe-se enquanto pressuposto material da nova decisão: o caso julgado opera positivamente, já não no plano da admissibilidade da acção [posterior] mas no mérito da causa, com ele ficando assente um elemento da causa de pedir (efeito positivo do caso julgado).” [6]
No mesmo sentido alinha, ainda, MIGUEL TEIXEIRA de SOUSA quando refere que o caso julgado realiza dois efeitos: - um negativo (que decorre da excepção de caso julgado) que se traduz na insusceptibilidade de qualquer tribunal (incluindo o que proferiu a decisão) se voltar a pronunciar sobre o mesmo objecto do processo, proferindo decisão oposta ou repetindo a anterior; - um positivo que resulta da vinculação do tribunal que proferiu a decisão e, eventualmente, de outros tribunais ao que na primeira decisão foi definido ou estabelecido, ainda que os objectos em ambos os processos não sejam idênticos. [7]
Dito de outra forma, como salienta RUI PINTO, enquanto com o efeito negativo do caso julgado um acto processual decisório anterior obsta a um acto processual decisório posterior (excepção de caso julgado) [8], com o efeito positivo um acto processual decisório anterior determina (ou pode determinar) o sentido de um acto processual decisório posterior (autoridade de caso julgado). [9]
Tendo presente este enquadramento, no caso dos autos, no primeiro despacho de 20.03.2020, considerou o Juiz ora Relator, a título oficioso e em face do disposto no artigo 7º, n.º 10, da Lei n.º 1-A/2020, de 19.03, que a eventual procedência da presente acção de despejo instaurada contra (e só contra) F… poderia colocar esta última (arrendatária) em situação de especial fragilidade, uma vez que a mesma poderia assim perder a sua casa de habitação (locado) e não existiam nos autos elementos que excluíssem a possibilidade de a mesma, apesar de estar a residir num Lar, poder vir a necessitar do locado ora em causa para aquele fim.
Foi esta a decisão proferida no dito despacho de 20.03.2020 e foi este o seu fundamento, tendo em atenção a interpretação que dele fez o ora Juiz Relator do preceituado no artigo 7º, n.º 10, da Lei n.º 1-A/2020, de 19.03.

Por ser assim e porque esta decisão não foi impugnada por meio de reclamação para a conferência, os autos mantiveram-se suspensos até ao despacho proferido a 23.02.2021, precisamente porque a solução consagrada no citado artigo 7º, n.º 10, da Lei n.º 1-A/2020, de 19.03 se manteve nos diplomas posteriores e, em particular, na Lei n.º 16/2020, de 29.05.
Digamos que o ora Juiz Relator, precisamente para salvaguardar e respeitar o caso julgado formal formado pelo despacho por si proferido a 20.03.2020 (evitando, no mesmo contexto legislativo, qualquer decisão contraditória com a decisão que antes tinha proferido), manteve a suspensão da instância antes decretada, pois que a solução consagrada no citado artigo 7º, n.º 10, da Lei n.º 10-A/2020, em seu ver, manteve-se intocada na Lei n.º 16/2020, de 29.05.
E que assim foi mostra-se, aliás, demonstrado, em termos expressos, pelos despachos proferidos pelo ora Relator a 3.06.2020, a 30.11.2020 e a 11.01.2021, despachos estes em que se salienta, precisamente, aquele caso julgado formal emergente do citado despacho de 20.03.2020 (que não foi impugnado), a manutenção da solução legal acolhida no já referido artigo 7º, n.º 10, da Lei n.º 1-A/2020 e, consequentemente, pela suspensão da tramitação dos autos.
Note-se que falamos de caso julgado formal para efeitos do preceituado no artigo 620º, n.º 1, do CPC (e não de caso julgado material), pois que nenhum dos despachos ora em causa se pronunciou sobre qualquer questão atinente ao mérito da causa, mas apenas sobre uma questão adjectiva ou processual, qual seja saber se ocorriam fundamentos para decretar a suspensão da instância.
Dito isto, e como se salientou devidamente no despacho de 23.02.2021, entretanto aquela Lei n.º 1-A/2020, de 19.03, foi alterada de modo radical pela Lei n.º 4-B/2021, de 1.02, estabelecendo o artigo 6º-B, n.º 5, alínea a), deste último corpo de leis, que a suspensão de todas as diligências e de todos os prazos para a prática de actos processuais que devam ser praticados no âmbito dos processos judiciais que corram termos nos tribunais judiciais, “não obsta à tramitação nos tribunais superiores de processos não urgentes, sem prejuízo do cumprimento do disposto na alínea c) quando estiver em causa a realização de actos presenciais.
Por conseguinte, como se decretou no dito despacho de 23.02.2021, em face do novo regime decorrente daquela Lei n.º 4-B/2021, de 1.02., deixaram de existir, à partida, as razões antes invocadas para manter a suspensão dos autos, pois que resultava expresso deste novo artigo 6º-B, n.º 5, alínea a) que a tramitação dos processos nos tribunais superiores deveria prosseguir, sem prejuízo do cumprimento das diligências previstas na alínea c) daquele normativo e se estivesse em causa a realização de actos presenciais.
De facto, e como se salientou no despacho de 23.02.2021, à luz desta nova Lei n.º 4-B/2021, em sentido contrário ao que previa a Lei n.º 1-A/2020, os processos nos tribunais superiores deveriam prosseguir a sua normal tramitação (cessando, pois, a sua suspensão), o que, repete-se, foi decretado no despacho de 23.02.2021 face ao novo e distinto regime que decorria desta Lei n.º 4-B/2021 e, em particular, do aludido artigo 6º-B/n.º 5, alínea a).
Como assim, não se vislumbra em que medida este último despacho de 23.02.2021 confronta o caso julgado (formal) decorrente do despacho de 20.03.2020, na estrita medida em que, por um lado, a legislação (transitória), ao abrigo do qual foi proferido este último despacho foi revogada e, ademais, a nova lei (Lei n.º 4-B/2021) consagrava, precisamente, solução oposta à anterior, qual seja fazer prosseguir os autos e os seus trâmites normais, em obediência ao preceituado no seu já citado artigo 6º-B/n.º 5, alínea a).
Na verdade, em face da nova Lei n.º 4-B/2021 estava este Tribunal da Relação obrigado a fazer prosseguir os trâmites do processo e, portanto, logicamente, a decidir em sentido contrário ao que antes tinha decidido no despacho de 20.03.2020, ao abrigo de legislação distinta e expressamente revogada (Lei n.º 1-A/2020).
No entanto, o ora Relator não ignorava que, à luz do preceituado no artigo 6º-B, n.º 11, desta nova Lei nº 4-B/2021, poderiam, ainda, os presentes autos de despejo ser suspensos se, mediante requerimento fundamentado do arrendatário e após o legal contraditório, aquele lograsse demonstrar que a entrega do locado o colocava em situação de fragilidade por falta de habitação própria ou por outra razão social imperiosa.
Digamos, pois, como aliás consta expressamente do despacho de 23.02.2021, que o Tribunal, face ao novo regime legal, não poderia decidir da suspensão do processo em termos oficiosos, como antes, mas pelo contrário essa suspensão dependia, por um lado, (i) de iniciativa do próprio arrendatário e, por outro, (ii) da alegação e prova pelo mesmo de que a eventual entrega do locado o colocava (a ele arrendatário) em situação de fragilidade por falta de habitação própria ou por outra razão social imperiosa.
Ora, o que se decidiu neste último despacho, na sequência do requerimento da arrendatária de 3.03.2021 – e que consta dos autos, podendo ser lido -, foi, por um lado, em face do requerimento deduzido pela arrendatária (e a quem competia, como se viu, a alegação dos fundamentos para a impetrada suspensão do processo), que a mesma não invocava necessidade do locado para a sua habitação (mas para outros familiares) – o que fez concluir que, ao contrário do antes admitido oficiosamente pelo Tribunal no despacho de 20.03.2020, não existe a possibilidade de a mesma regressar ao locado, pois que nem a própria arrendatária suscita essa possibilidade de regresso ao locado… – e, por outro, que a mesma continuava a residir no Lar, onde era tratada e cuidada, não se vislumbrando, pois, face à alegação da própria arrendatária, uma razão social imperiosa que justificasse a suspensão do processo.
Ora, sendo assim, é, em nosso ver, evidente, em primeiro lugar, que o despacho de 20.03.2020 não se poderia manter nos seus precisos termos pois que a legislação transitória a coberto do qual foi proferido foi revogada pela Lei n.º 4-B/2021, de 1.02, em segundo lugar, que o despacho de 23.02.2021 foi proferido sobre um enquadramento legal distinto do existente à data do despacho de 20.03.2020 e, em terceiro lugar, que o mesmo foi proferido com base em fundamentos fácticos distintos, quais sejam os fundamentos que a própria arrendatária invocou (e só a ela incumbia tal ónus de alegação) no seu requerimento de 3.03.2021 e para efeitos do preceituado no artigo 6º-B, n.º 11, da Lei n.º 4-B/2021, de 1.02.
Por conseguinte, se é indiscutido que o despacho proferido a 23.02.2021 é de sentido oposto ao despacho proferido de 20.03.2020, essa oposição decorre, por um lado, do diverso contexto legislativo em que cada um foi proferido e dos fundamentos que, nesse contexto legislativo, o Tribunal deveria ponderar numa situação e noutra para decidir da questão da suspensão ou não do processo.
Ora, se assim é, como julgamos, tal significa que o despacho de 23.02.2021 não encerra qualquer violação do caso julgado formado pelo despacho de 20.03.2020, atentos os seus distintos fundamentos fáctico-jurídicos e os distintos enquadramentos legislativos, e, ademais, não existem, em função do antes exposto, à luz do citado artigo 6º, n.º 11, da Lei n.º 4-B/2021, de 1.02., razões para suspender o presente processo que, ao invés, deve prosseguir os seus termos, como já decidido pelo ora Relator e que aqui, em colectivo, se confirma.
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IV.II. Impugnação da decisão de facto:
Devendo os autos prosseguir para conhecimento do seu mérito, a questão subsequente refere-se à impugnação da decisão de facto contida na sentença recorrida.
A impugnação da decisão de facto, enquanto garantia do duplo grau de jurisdição em matéria de facto, está subordinada à observância de determinados ónus que a lei adjectiva impõe ao recorrente.
Na verdade, a apontada garantia nunca poderá envolver, pela própria natureza das coisas, a reapreciação sistemática e global de toda a prova produzida na audiência final, impondo-se, por isso, ao recorrente, no respeito dos princípios estruturantes da cooperação e da lealdade e boa-fé processuais, que proceda à delimitação com toda a precisão dos concretos pontos da decisão que pretende questionar, dos meios de prova, disponibilizados pelo processo ou pelo registo ou gravação nele realizada, que imponham, sobre aqueles pontos, distinta decisão, e a decisão que, no seu ver, deve ser encontrada para os pontos de facto colocados em crise, deduzindo a sua (própria) apreciação crítica da prova.
Por conseguinte, à luz do preceituado no artigo 640º, do CPC, tem o recorrente, sob pena de rejeição liminar do recurso [10], que especificar os pontos de facto que pretende questionar, com enunciação na motivação do recurso e síntese nas conclusões [11], motivar o recurso através da indicação dos meios de prova constantes dos autos ou que neles tenham sido registados que imponham decisão diversa e, ainda, relativamente aos pontos da decisão de facto cuja impugnação se funde, no todo ou em parte, em provas gravadas, cumpre-lhe indicar com exactidão as passagens da gravação relevantes, sem prejuízo da transcrição de tais excertos, que é facultativa.
Dito isto, e abstraindo da circunstância de a Recorrente não indicar, em ostensiva violação do preceituado no artigo 640º, n.º 2, al. a), do CPC, as passagens das gravações dos depoimentos das testemunhas I…, J… e K… (ao menos, o seu início e o seu termo…), nem, ainda, efectuar qualquer transcrição de tais depoimentos (seja nas alegações, seja nas conclusões do recurso) – sendo que é com base nesses meios de prova gravados que a Recorrente impugna a decisão de facto -, a sua discordância centra-se nos pontos 5 e 6 do elenco dos factos provados e, ainda, no facto de não ter sido julgado como provado que os autores sabem da ausência da Ré do locado desde 2012 e nunca antes exerceram o direito de resolução, nem a interpelaram para retomar essa ocupação – vide fls. 91/93 dos autos (alegações) e conclusões A/F do recurso.
Relativamente ao ponto 5 sustenta a Recorrente que devia ter sido julgado provado que a Ré se encontra institucionalizada a título permanente no Lar G… desde o ano de 2012 e não, como consta da sentença, desde 2014.
Em sustento dessa sua discordância, invoca, por um lado, o documento de fls. 65 dos autos (informação prestada pelo Lar G…) e, ainda, o depoimento prestado pela testemunha I….
O ponto 5 do elenco dos factos provados corresponde na íntegra ao alegado pelos Autores nos artigos 9º e 10º da petição inicial, ali constando “a Ré, pelo menos, desde Janeiro de 2014, que não reside no locado” e que “está institucionalizada, a título permanente, no Lar G… …”.
Ora, esta alegação de facto mostra-se manifestamente demonstrada à luz do dito documento do Lar G… (pois que neste se refere que a Ré ali se encontra institucionalizada desde 2012) e, ainda, à luz do depoimento da testemunha I…, que referiu que a Ré começou por ir para o Lar em 2012, ainda que sem ali pernoitar numa fase inicial, sendo certo que, gradualmente a sua situação foi-se modificando, de tal ordem que, pelo menos, desde o início do ano 2014, que se encontra ali internada a tempo inteiro, nunca mais se tendo deslocado a casa, permanecendo, pois, de forma permanente (dia e noite) no Lar, onde vive, faz as suas refeições e onde é visitada com regularidade pelos seus familiares.
Portanto, como se vê, à luz dos próprios meios de prova invocados pela Recorrente, não existe qualquer razão para alterar a matéria de facto constante do dito ponto 5, pois que é indiscutível, em face de tais meios de prova, que a Ré, pelo menos, desde Janeiro de 2014, que se encontra institucionalizada, de forma permanente, no aludido Lar.
Note-se, neste âmbito, que o tribunal, em sede de julgamento de facto não deve, por princípio, ir para além da alegação da parte, no caso dos Autores (que alegaram, como se referiu, que a Ré, pelo menos, desde Janeiro de 2014 está internada em termos permanentes no aludido lar) antes tem que respeitar essa alegação em razão do princípio do dispositivo (artigo 5º, n.º 1, do CPC), sendo certo, ademais, que a Ré sempre poderia ter alegado na contestação – que não deduziu – essa distinta factualidade, ou seja, que se encontra institucionalizada, a título permanente, no Lar G…, desde 2012 e não desde 2014.
Se o tivesse feito, naturalmente, o tribunal poderia dar tal factualidade como provada; não o tendo feito, como sucede, o tribunal julgou, como devia, em face dos meios de prova produzidos, demonstrada a precisa alegação dos Autores.
Destarte, não existe, em nosso ver e no caso vertente, razão bastante para alterar o ponto 5.
Relativamente ao ponto 6 do elenco dos factos provados também nada cumpre alterar, sendo certo que se a Recorrente evidencia discordância quanto a este facto não explicita minimamente (seja nas alegações, seja nas conclusões) o que exactamente discorda quanto a essa matéria de facto, sendo certo, ademais, que, contraditoriamente, admite que, desde 2012, está institucionalizada, a título permanente, no citado lar, ou seja, que desde essa data não tem o centro da sua vida no locado, não pernoitando no mesmo, não confeccionando nem tomando ali qualquer refeição, não recebendo ali amigos ou visitas, nem ali passando os seus (dela Ré) tempos de descanso e lazer.
Improcede, assim, a impugnação dos pontos 5 e 6 dos factos provados, que se mantêm tal como constam da sentença recorrida.
Para além da impugnação destes factos, pugna, ainda, a Recorrente no sentido da demonstração dos seguintes factos:
a)- Os AA tinham conhecimento de que a Ré não habitava no locado, tendo conhecimento que o locado era, contudo, habitado por seus familiares.
b)- Os Autores não exerceram, aquando do conhecimento da não ocupação do locado por parte da Ré, o seu direito a resolver o contrato ou sequer interpelaram a Ré para retomar a ocupação.
Será linear e pacífico dizer-se que esta factualidade não foi alegada nos autos, seja pelos Autores, seja, naturalmente, pela Ré, pois que esta não deduziu contestação, tratando-se, pois, de factualidade nova.
A questão que, neste contexto, se coloca é a de saber se, não tendo esta matéria de facto sido alegada nos autos, ainda assim o tribunal a pode considerar e aproveitar para efeitos decisórios, como, no fundo, é pretensão da Ré/Recorrente, para, com base na mesma, fundar ou construir a sua defesa (ainda que apenas na fase de recurso) a pretexto do alegado abuso de direito dos Autores ao deduzirem pretensão resolutiva do contrato de arrendamento com fundamento no não uso do locado (por mais de um ano à data da instauração da acção).
Dir-se-á, em termos liminares, que temos por evidente, à luz do princípio do dispositivo, da auto-responsabilidade das partes e da ideia de que o princípio do inquisitório, apesar das suas indiscutidas virtualidades, não pode servir de panaceia para o incumprimento dos ónus das partes ao nível da alegação dos factos essenciais à causa de pedir ou à excepção.
Dito isto, afigura-se-nos que a pretensão da Recorrente não pode merecer acolhimento, por duas ordens de razões.
A primeira razão para o seu não acolhimento é, em nosso ver, óbvia.
Como resulta do preceituado no artigo 3º, n.º 1, do CPC, o tribunal não pode resolver o conflito de interesses que a acção pressupõe sem que essa resolução lhe seja pedida pelo autor (princípio do pedido) e que o réu seja chamado, através da citação (artigo 219º, n.º 1, do CPC), a deduzir oposição (princípio do contraditório).
Portanto, uma vez citado, tem o réu o ónus de contestar, ou seja de oferecer, no prazo legal, a sua oposição à pretensão do autor, expondo as razões de facto e de direito da sua oposição, expondo os factos essenciais em que se baseiam as excepções por si deduzidas e, ainda, oferecendo ou requerendo os meios de prova que julgue pertinentes à demonstração dos fundamentos de facto da sua oposição (artigo 572º, do CPC), sendo certo, ainda, neste âmbito, que toda a defesa do réu tem obrigatoriamente que ser deduzida nessa peça, salvo nas hipóteses previstas no n.º 2 do artigo 573º, do CPC.
Serve isto para dizer que, no caso vertente, não tendo a Ré deduzido, como se referiu, contestação e não tendo, pois, alegado a dita matéria de facto, não se vê, à partida, com que fundamento legal poderia a mesma ultrapassar o aludido efeito preclusivo decorrente da ausência de contestação e, portanto, ver aproveitada para efeitos decisórios matéria de facto que a mesma nunca antes alegou. Acolher-se tal pretensão seria, com o devido respeito, iludir ou contornar o aludido efeito preclusivo decorrente da falta de contestação, pois que o mesmo tornar-se-ia, a seguir-se esta perspectiva das coisas, irrelevante, o que, como cremos ser seguro, não tem fundamento legal.
Dir-se-á, no entanto, que a matéria em causa contende com a excepção de abuso de direito dos Autores e, logicamente, sendo, como é pacífico, a mesma de conhecimento oficioso pelo tribunal (isto é, independente da arguição pela parte que dela beneficia), sempre devia tal factualidade ser aproveitada pelo tribunal a quo para efeitos decisórios, conhecendo e decretando, nesse contexto, a improcedência da acção com base em abuso do direito de resolução do contrato de arrendamento por parte dos Autores.
A tese antes delineada e que estará subjacente à defesa da Recorrente nesta instância, parte no entanto de um pressuposto erróneo, pois se é indiscutido que o tribunal conhece ex oficcio da excepção de abuso de direito para tanto é suposto que a parte interessada na sua procedência alegue oportunamente, ou seja, nos articulados, a matéria de facto susceptível de ser oficiosamente subsumida pelo tribunal, ao abrigo dos poderes de indagação, interpretação e aplicação das regras de direito (artigo 5º, n.º 3, do CPC), à figura jurídica do abuso de direito.
Nesta perspectiva, como salienta MARIA LUIZA do VALE ROCHA, “É cediço que o julgador goza de liberdade para indagar. Interpretar ou aplicar as regras de direito, conforme determina o artigo 5º, n.º 3 do NCPC/PT. No entanto, frisa-se que esse poder não é absoluto, uma vez que devem ser observados os fundamentos fácticos e jurídicos apresentados (causa de pedir) pelas partes, sob pena de alteração da causa de pedir, situação repudiada pelo próprio sistema.” [12]
Na verdade, se temos por claro que o tribunal pode intervir, ao abrigo do princípio do inquisitório e dos seus deveres de gestão do processo, nos termos do artigo 6º, n.ºs 1 e 2 do CPC, além do mais, no sentido da correcção ou esclarecimento da matéria de facto e/ou de direito (artigos 7º, n.º 2 e 590º, n.ºs 2, 3 e 4, do CPC), já, em sentido contrário, quanto à alegação dos factos essenciais à procedência da pretensão ou da excepção, a mesma continua a ser estrito ónus das partes, não podendo, pois, o tribunal, sob pena de violação do dispositivo - e da própria imparcialidade ou equidistância que é suposto manter perante o litígio submetido à sua apreciação - substituir-se às mesmas, aportando aos autos factos essenciais que as mesmas, sob a égide da autonomia da vontade e da respectiva auto-responsabilidade, entenderam por bem não alegar.
Neste sentido, ainda que restrita aos factos essenciais da causa de pedir ou da excepção, pode dizer-se que se mantém plenamente actual a doutrina de MANUEL de ANDRADE, segundo o qual “a adução do material de facto a utilizar pelo juiz para a decisão do litígio só compete às partes. A estas é que corresponde proporcionarem ao juiz, mediante as suas afirmações de facto e as provas que tragam ao processo, a base factual da decisão.” [13]
Destarte, não tendo a Recorrente alegado a matéria de facto em causa na contestação, pois que nem sequer deduziu tal articulado, e estando associado à ausência de contestação um efeito preclusivo quanto à alegação posterior dos factos essenciais [14], os factos ora em apreciação não podiam ser considerados na sentença, não colhendo, pois, fundamento legal, a discordância evidenciada quanto à sua omissão no acto decisório.
Porém, avulta, ainda, uma segunda razão que conduz ao mesmo resultado e que completa, digamos assim, a razão antes avançada.
Como logo se assinalou, a impugnação deduzida contende, nesta parte, com a questão de saber de saber se na sentença devem ser oficiosamente considerados factos não alegados pelas partes e, na afirmativa, quais e sob que condições.
A resposta a esta questão reside no citado artigo 5º do CPC, artigo que corresponde, em termos fundamentais, ao previsto no artigo 264º do anterior Código.
Reza assim o artigo 5º do CPC: “1- Às partes cabe alegar os factos essenciais que constituem a causa de pedir e aqueles em que se baseiam as exceções invocadas.
2- Além dos factos articulados pelas partes, são ainda considerados pelo juiz:
a) Os factos instrumentais que resultem da instrução da causa;
b) Os factos que sejam complemento ou concretização dos que as partes hajam alegado e resultem da instrução da causa, desde que sobre eles as partes tenham tido a possibilidade de se pronunciar;
c) Os factos notórios e aqueles de que o tribunal tem conhecimento por virtude do exercício das suas funções. “ (sublinhados nossos)
Emerge do normativo vindo de citar que quanto aos factos instrumentais [15], resultantes da instrução da causa, e quanto aos factos notórios ou que o tribunal tenha conhecimento por virtude do exercício das suas funções, ainda que não alegados pelas partes, nada obsta a que os mesmos sejam tidos em consideração ex officio pelo juiz no acto decisório.
Relativamente aos factos essenciais, à luz do mesmo normativo, importa distinguir dois planos: - os factos essenciais nucleares e os factos essenciais complementares ou concretizadores da causa de pedir ou da excepção.
Quanto aos factos essenciais nucleares, ou seja, os factos que constituem o núcleo primordial da causa de pedir ou da excepção, desempenhando uma função individualizadora ou identificadora da causa de pedir ou da excepção, têm eles, para ser atendidos na sentença, que ser oportunamente alegados pelo autor ou pelo réu, não cabendo, pois, ao tribunal qualquer intervenção supletiva a esse nível, em conformidade com o disposto no n.º 1 do citado artigo 5º, do CPC.
Por conseguinte, não sendo alegados factos essenciais nucleares pela parte a quem aproveitam, a consequência será, a final, a inelutável improcedência da pretensão ou da excepção, não colhendo, pois, a esse nível, qualquer apoio legal, chamar à colação o princípio do inquisitório ou os deveres de gestão do tribunal, pois que estes não tem por fito, como se vê, suprir as omissões cometidas pelas partes, ao nível do ónus de alegação dos factos essenciais que integram a causa de pedir ou a excepção.
No que diz respeito já aos factos essenciais complementares ou concretizadores, embora integrem também a causa de pedir ou a excepção, não têm já uma função nuclear e individualizadora, pelo que a sua omissão não acarreta a improcedência da acção ou da excepção, antes impõe que o juiz enderece oportuno convite ao aperfeiçoamento do articulado (artigo 590º, n.ºs 2, 3 e 4, do CPC) para alegação de tais factos pela parte que os omitiu, ou, assim não ocorrendo, que os leve em consideração na sentença, desde que os mesmos tenham resultado da instrução da causa e as partes tenham tido a possibilidade de sobre eles se pronunciarem, ou seja, de sobre eles produzirem prova ou contraprova no contexto do julgamento perante o tribunal de 1ª instância.
Portanto, como resulta do antes exposto, a ausência de contestação ou a não alegação de tais factos complementares ou concretizadores da excepção nessa peça processual não conduz ao efeito preclusivo quanto a esses factos, nas condições antes assinaladas, podendo, pois, esses factos, apesar de não alegados, serem aproveitados no processo e para efeitos decisórios.
A este propósito e quanto ao conceito de factos complementares e concretizadores, salienta PAULO PIMENTA, op. cit., pág. 20, o seguinte: “[o]s factos complementares acrescem aos factos nucleares, preenchendo em conjunto a fatispécie normativa geradora do efeito pretendido com a ação ou com a exceção; os factos concretizadores pormenorizam, minuciam, explicitam ou particularizam factos já alegados, quer esses factos sejam nucleares, quer sejam complementares. “
Do que fica dito resulta, pois, em súmula, que o tribunal deve oficiosamente aproveitar para efeitos decisórios, sem restrições, os factos instrumentais, e deve, ainda, oficiosamente, levar em consideração os factos complementares ou concretizadores dos factos essenciais que integram a causa de pedir ou a excepção - e que têm de ser oportunamente alegados pela parte interessada na sua demonstração -, desde que esses factos resultem da instrução e as partes tenham tido a possibilidade de sobre eles produzirem prova e contraprova, ou seja, que esses factos resultem da instrução da causa em contexto de exercício pleno do respectivo contraditório.
Dito isto, e em termos apodícticos, ter-se-á de salientar que o aproveitamento de tais factos complementares ou concretizadores na sentença depende da demonstração de que esses factos assumem, na realidade, essa natureza, não sendo, pois, admissível, sob pena de subversão do dispositivo e da auto-responsabilidade das partes, pretender-se que o tribunal, sob o manto de uma pretensa natureza complementar ou concretizadora dos factos em causa, leve em consideração factos essenciais nucleares que a parte podia (e devia) ter alegado oportunamente, mas que, de facto, não alegou e com os quais, necessariamente, a parte contrária nem sequer foi confrontada no processo e, logicamente, não os acautelou na sua defesa… Seria, com todo o respeito, pretender-se ter ganho de causa ou da defesa por forma intolerável, de um ponto de vista da boa-fé e lealdade processuais (artigo 8º, do CPC) que a todos se impõem.
Ora, prosseguindo, a matéria de facto antes assinalada e que a Recorrente pretende que seja tida por provada e, como tal, considerada para efeitos decisórios (para procedência da ora alegada excepção de abuso de direito), não é complementar de qualquer excepção que a Ré tenha invocado nos autos, pois que a mesma nem sequer contestou a presente acção e, portanto, nada alegou em termos factuais que deva ser complementado, nem é, ainda, obviamente, concretizadora do que quer que seja que tenha sido antes alegado e careça de ser esclarecido ou especificado, precisamente pelas mesmíssimas razões!
Outrossim, como cremos ser patente, a factualidade que a Recorrente pretende ver demonstrada assume natureza nuclear essencial e individualizadora da excepção de abuso de direito suscitada, mas que a Ré/Recorrente não alegou, a não ser já nesta instância, pois, que, como se referiu, nem sequer deduziu contestação à presente acção.
Por conseguinte, para que tal matéria de facto pudesse ser considerada no acto decisório tinha a Ré, em primeiro lugar, que ter deduzido contestação e, logicamente, em segundo lugar, que ter alegado, nesse contexto, essa factualidade como base ou núcleo essencial da sobredita excepção de abuso de direito, o que não fez.
Não o tendo feito, resulta do antes exposto e da devida interpretação do n.º 1 do artigo 5º, do CPC que essa factualidade não podia ser tida em consideração para a sentença a proferir em 1ª instância e, logicamente, também não o pode ser para efeitos do acórdão a proferir nesta instância.
Com efeito, importa relembrar, nesta sede, como refere com inteira propriedade AMÂNCIO FERREIRA, que o direito português, ao nível dos recursos, segue o modelo do recurso de revisão ou reponderação. Daí que, como salienta o mesmo Autor, “[o] tribunal ad quem produzir um novo julgamento sobre o já decidido pelo tribunal a quo, baseado nos factos alegados e nas provas produzidas perante este. Os juízes do tribunal de 2ª instância, ao proferirem a sua decisão, encontram-se numa situação idêntica à do juiz da 1ª instância no momento de editar a sua sentença, valendo também para a 2ª instância as preclusões ocorridas na 1ª.” [16] (sublinhado nosso)
Destarte, em conclusão, em razão do exposto, improcede totalmente a impugnação da decisão de facto, que se mantém.
*
IV.III. Mérito da Sentença- Resolução do Contrato de Arrendamento – Abuso de Direito.
Delimitados os factos a atender para efeitos decisórios, cumpre conhecer do mérito da sentença recorrida, em função das questões suscitadas pela Recorrente.
A primeira questão refere-se, naturalmente, à lei aplicável ao litígio (que foi deduzido a 7.12.2018 – data da petição inicial), sendo certo que o ajuizado contrato de arrendamento para habitação foi celebrado, verbalmente, em data não apurada, mas antes de Julho de 1975, e, ainda, que a resolução se funda no facto de, à data da propositura da acção, a Ré não usar o locado há mais de um ano, mais precisamente, mais de quatro anos, à luz do preceituado no artigo 1083º, n.º 2 al. d), do Cód. Civil, na redacção introduzida pela Lei n.º 6/2006, de 27.02, que entrou em vigor a partir do dia 27.06.2006 – cfr. artigo 65º, n.º 2, da citada Lei [NRAU].
Nesta sede, preceitua o artigo 59º, n.º 1, deste diploma que “O NRAU aplica-se aos contratos celebrados após a sua entrada em vigor, bem como às relações contratuais constituídas que subsistam nessa data, sem prejuízo do previsto nas normas transitórias.”
A regra é, por isso, a de que o NRAU se aplica imediatamente às relações contratuais mesmo que constituídas antes da nova lei, ressalvado o regime transitório previsto.
Por seu turno, de acordo com o disposto nos artigos 27º e 28º do mesmo NRAU, na versão vigente à data da instauração da presente acção, aos contratos de arrendamento para habitação celebrados antes da entrada em vigor do RAU (como é o caso do presente contrato de arrendamento) é aplicável, com as necessárias adaptações, o disposto no artigo 26º.
Por conseguinte, as normas da lei nova que dispõem directamente sobre o conteúdo da relação de arrendamento (como sejam as regras atinentes aos direitos e deveres do arrendatário ou do senhorio e as que se referem aos fundamentos da resolução) abrangem as relações já constituídas e que subsistam (como é o caso) e são, pois, de aplicação imediata aos contratos de arrendamento para habitação anteriores ao RAU, ressalvadas as excepções previstas nos n.ºs 2 a 5 do referido artigo 26º.
Estas normas acompanham, pois, a regra que emerge, em termos gerais, do disposto no artigo 12º, do Cód. Civil quanto à aplicação das leis no tempo, sendo que, segundo este último normativo, a lei nova que disponha sobre o conteúdo da relação jurídica, abstraindo dos factos que lhe deram origem, é imediatamente aplicável às próprias relações jurídicas já constituídas, que subsistam à data da sua entrada em vigor, mas a que rege sobre os efeitos de um facto é a que vigorar no momento em que tal facto ocorrer.
Nestes termos, relativamente às causas de resolução do contrato de arrendamento, a lei aplicável será a vigente ao tempo em que ocorreram os factos integradores ou fundamentadores do direito de resolução do contrato. [17]
No caso vertente, situando os Autores a ausência de uso do locado por parte da Ré/Recorrente, pelo menos, a partir do ano de 2014, não sofre dúvidas, pois, que a lei aplicável ao presente litígio e quanto ao fundamento resolutivo invocado, não obstante a relação de arrendamento subsistir desde, pelo menos, 1975, é a lei nova, ou seja, o aludido NRAU.
Definido o quadro legal aplicável, preceitua o artigo 1083º, n.ºs 1 e 2, do Cód. Civil (na redacção introduzida pela Lei n.º 6/2006, com a alteração introduzida pela Lei n.º 31/2012, de 14.08) que qualquer das partes pode resolver o contrato, nos termos gerais, com base em incumprimento do contrato pela outra parte, especificando, no entanto, que apenas é fundamento de resolução o incumprimento que, pela sua gravidade ou consequências, torne inexigível à outra parte a manutenção do arrendamento.
Nesta perspectiva, a resolução, no âmbito do contrato de arrendamento urbano, pode definir-se como a declaração de vontade de um dos contraentes perante o outro, destinada a pôr termo imediato ao contrato e com eficácia ex nunc, em virtude de determinado incumprimento da contraparte que, pela sua gravidade ou consequências, lhe torne inexigível a manutenção do contrato. [18]
Trata-se, pois, em conformidade com o que é a posição da melhor doutrina, de uma cláusula geral, de justa causa subjectiva justificativa da ruptura do vínculo contratual, que não opera objectiva ou automaticamente em face da violação contratual e que, por isso, não dispensa na sua subsunção um juízo de censura dirigido ao contraente incumpridor, juízo este que pressupõe uma análise casuística que pondere ou avalie da gravidade da conduta do contraente incumpridor e das suas consequências. [19]
Com efeito, os casos de justa causa de resolução, como ora sucede, reconduzem-se, em última análise, ao princípio da boa-fé, do qual resulta que é desrazoável manter o contraente fiel vinculado ao contrato quando a outra parte violou de forma grave as suas obrigações, quebrando a confiança depositada na contraparte e destorcendo o equilíbrio contratual pré-definido pelo acordo das partes. [20]
Destarte, segundo se nos afigura, e com o devido respeito por opinião em contrário, a conduta do contraente faltoso, nomeadamente do arrendatário, para que possa servir de fundamento à resolução não pode funcionar de forma automática, outrossim há-de merecer do julgador um juízo justificativo da ruptura do vínculo contratual, ou seja, há-de relevar-se como comprometedor da confiança da parte fiel, o que resultará, à luz da cláusula geral do n.º 2 do artigo 1083º, do Cód. Civil, da gravidade da conduta do incumpridor e das suas consequências, apurada casuisticamente à luz das circunstâncias do caso concreto.
Em suma, e contra os que advogam que o objectivo preenchimento de qualquer uma das hipóteses exemplificativas previstas nas alíneas a) a e), do n.º 2 do citado artigo 1083º, deve conduzir, sem mais, à resolução do contrato de arrendamento [21], em nosso ver e em sintonia com a maioria da doutrina e da jurisprudência, não basta a estrita violação do estipulado no contrato de arrendamento para efeitos resolutivos, sendo, ainda, exigível, que essa violação seja de molde a justificar a ruptura da relação contratual, justificação que há-de encontrar-se à luz de uma justa causa, aferida em função da gravidade da conduta (enquanto violadora de um dever de especial importância na economia do contrato, seja um dever principal ou um dever acessório) - excluindo, pois, falhas de pequena importância [22] - e pelas suas consequências, de tal ordem que, no concreto contexto evidenciado, se torne inexigível, irrazoável, segundo as regras da boa-fé, exigir à parte fiel a manutenção do contrato. [23]
Só, portanto, em nosso julgamento, neste contexto e à luz dos ditames impostos pela boa-fé, se justificará a ruptura do contrato, pois que, de outro modo, tornar-se-ia inaceitável que a parte fiel tivesse que manter o contrato, a despeito da importância da sua violação pela contraparte e do relevo das consequências de tal conduta.
Dito isto, no caso dos autos, o fundamento resolutivo reporta-se ao não uso do arrendado por parte da Ré e para a sua habitação, não uso esse que se prolonga, pelo menos, desde Janeiro de 2014 e que, portanto, à data da instauração da presente acção, perdurava há mais de 4 anos.
Relativamente ao uso do locado, preceitua o artigo 1072º, n.º 1, do Cód. Civil:
[O] arrendatário deve usar efectivamente a coisa para o fim contratado, não deixando de a utilizar por mais de um ano.”
Por seu turno, reconhecendo-se a importância de tal dever no contexto do contrato de arrendamento, o seu incumprimento constitui (justa) causa de resolução do contrato, nos termos do consignado no artigo 1083º, n.ºs 1 e 2 al. d), do Cód. Civil, onde se prevê:
[É] fundamento de resolução o incumprimento que, pela sua gravidade ou consequências, torne inexigível à outra parte a manutenção do arrendamento, designadamente, quanto à resolução pelo senhorio:
(…) d) O não uso do locado por mais de um ano, salvo nos casos previstos no n.º 2 do artigo 1072º.
O relevo conferido ao cumprimento de tal dever decorre, como é consabido, de se pretender, por um lado, evitar a desvalorização do arrendado, que se vai degradando gradualmente pelo seu não uso, com o consequente prejuízo para o respectivo proprietário/senhorio e, por outro, se pretender lançar no mercado todos os espaços susceptíveis de serem ocupados por terceiros que deles efectivamente necessitam.
Trata-se, no fundo, de procurar um ponto de equilíbrio entre, por um lado, os interesses sérios do arrendatário quanto à sua habitação e, por outro, os interesses do senhorio quanto à preservação do estado do locado ou os interesses gerais associados ao mercado de arrendamento e à disponibilidade de imóveis para esse fim.
Nesta perspectiva, em nosso ver, não sendo o locado habitado pela Ré há mais de 4 anos (por referência à data da petição inicial), será seguro dizer-se que estamos em presença de um incumprimento grave e reiterado de um dever essencial atribuído ao locatário, incumprimento que, naturalmente, provoca sérios prejuízos aos Autores, enquanto proprietários do locado, que o vão vendo, de acordo com as regras da experiência comum, sucessivamente mais degradado em razão de tal não utilização regular.
Dito de outro modo, em nosso ver, está em causa um incumprimento que terá de considerar-se como imputável ao arrendatário e que se reveste de evidente gravidade, não apenas em função da violação reiterada do dever essencial de utilização do locado, como, ainda, pelas suas consequências ao nível do estado do locado.
Na verdade, mantendo-se a Ré apartada do locado, pelo menos, desde Janeiro de 2014, onde não pernoita, onde não faz e toma as suas refeições, onde não passa os seus tempos de descanso e lazer e onde não recebe quaisquer familiares ou amigos, antes permanecendo, a título permanente, no Lar G…, cremos ser seguro que não é, de um ponto de vista de razoabilidade e bom senso, ou seja, à luz dos ditames da boa-fé, de exigir aos Autores/senhorios que mantenham o vínculo contratual em causa, sendo certo que ao proprietário não releva apenas o recebimento da renda, mas, como antes se explicitou, a própria conservação e manutenção do arrendado, o que exige a sua utilização regular por parte do locatário para o fim previsto, qual seja, no caso, a habitação do locatário.
Neste sentido, não cremos que seja de apontar à sentença recorrida qualquer censura ou qualquer violação do preceituado no artigo 1083, n.º s 1 e 2 al. d), do Cód. Civil, pois que, como se evidencia do antes exposto, entendemos que, no caso dos autos e ponderando casuisticamente todas as circunstâncias que emergem da factualidade provada, se mostram preenchidos todos os pressupostos erigidos por lei para o decretamento da resolução do ajuizado contrato de arrendamento, em função da violação grave, reiterada e causadora de prejuízos à conservação do arrendado d que decorre do facto de a Ré se manter absolutamente apartada do mesmo há mais de 4 anos.
É certo, diga-se, que, como o consigna a própria alínea d) do n.º 2, do artigo 1083º, do Cód. Civil, ao remeter para as previsões do n.º 2 do artigo 1072º, casos há em que, apesar do incumprimento do dever de uso do locado para o fim previsto, ainda assim o legislador prevê, como elementos impeditivos do direito à resolução do contrato (que, como tal, têm que ser demonstrados pelo arrendatário, em conformidade com a regra do n.º 2 do artigo 342º, do Cód. Civil), factos que podem tornar aceitável ou compreensível esse incumprimento, excluindo, pois, a ilicitude da conduta do arrendatário ao não proceder à utilização do locado por mais de um ano.
Um desses casos é o previsto na alínea a) do n.º 2 do citado artigo 1072º quando nele se refere que o não uso do locado pelo arrendatário é lícito em caso de força maior ou de doença, ou, ainda, o previsto na alínea c) do mesmo normativo quando nele se prevê que o não uso pelo arrendatário é lícito quando a utilização do locado for mantida por quem, tendo direito a usar o locado, o fizer há mais de um ano. [24]
A primeira hipótese, como se refere no citado AC RL de 24.11.2015, tem em vista os casos em que o não uso é compreensível ou aceitável, em consequência de determinados factos, sejam eles exteriores à pessoa do locatário (força maior), sejam inerentes à pessoa do locatário (doença), ou seja, factos imprevisíveis, ou imprevistos, cuja força ultrapassa a vontade normal do homem e, que, assim, obstam ou impossibilitam o uso do locado.
Dir-se-á, assim, que a causa de força maior assenta na ideia de imprevisibilidade e inelutabilidade que conduz a uma situação de impossibilidade objectiva de cumprimento do dever de uso do locado, que, por isso, se mostra não imputável ao devedor/arrendatário.
Em suma, como refere J. PINTO FURTADO, citando o AC do STJ de 6.01.1983 (BMJ 323º, pág. 352), o não uso do locado pelo arrendatário, por mais de um ano, não será fundamento de resolução do contrato de arrendamento pelo senhorio se foi determinado por factos naturais, da autoridade ou de terceiros, constitutivos de impossibilidade objectiva de utilização, não imputável ao arrendatário. [25]
No caso dos autos e em face da factualidade provada, a citada alínea a) do n.º 2 do artigo 1072º, não tem, ao contrário do que sustenta a Recorrente, manifestamente, aplicação aos autos.
Com efeito, a dita factualidade não nos dá conta de qualquer evento imprevisível e inelutável que tenha impossibilitado objectivamente a Ré de utilizar o locado para sua habitação, nem dá conta também que a mesma esteja acometida de qualquer doença (e, logicamente, nada nos diz quanto ao tipo de doença de que eventualmente padece e da sua reversibilidade ou irreversibilidade [26]) que inviabilize essa utilização do locado, o que torna, em nosso ver, de todo, inviável a aplicação da previsão da citada norma.
Aliás, se bem percebemos as alegações da Recorrente, a mesma não esgrime sequer a aplicação da previsão da citada alínea a), do n.º 2, do artigo 1072º ao caso dos autos, antes invoca, alegadamente, em função da previsão da alínea c), do n.º 2 do citado artigo 1072º, do Cód. Civil, a circunstância de se manterem no locado a sua filha e o seu genro, os quais, a partir do mesmo e atenta a sua proximidade do lar onde se encontra a Ré, providenciam ao seu acompanhamento - vide alegações a fls. 92 e 95/96 dos autos.
Sobre esta matéria, os autos suscitam-nos três ideias fundamentais.
A primeira é a de que, não obstante a argumentação exposta conste das alegações do recurso interposto pela Ré, certo é que a mesma não consta das conclusões do recurso, as quais, como se vê do seu teor, se cingem à questão da impugnação da decisão de facto (conclusões A-E) e do abuso de direito através da interposição da presente acção (conclusões F-I).
Destarte, não figurando essa questão nas conclusões, as quais, como antes se salientou, definem o objecto do recurso e delimitam o âmbito da actividade jurisdicional do tribunal ad quem, em rigor, não haveria que conhecer desta questão, pois que, nestes termos, a mesma extravasa o objecto do recurso.
A segunda é que, independentemente do que antes se disse quanto ao objecto do recurso, a alegação da Ré baseia-se em factualidade que não colhe prova nos autos.
Com efeito, a dita matéria de facto (quanto à utilização do locado pelos seus familiares, filha e genro) não só não se mostra alegada nos autos, como, ainda, nem sequer na impugnação da decisão de facto se defende a demonstração de tal asserção, nos termos e para os efeitos previstos no artigo 640º, do CPC.
Por conseguinte, nem sequer se pode colocar a hipótese de aplicação da norma da alínea c) do n.º 2 do artigo 1072º, na estrita medida em que não resulta da factualidade provada que os alegados familiares da Ré/Recorrente, nomeadamente uma sua filha e o respectivo genro, se mantenham a utilizar o arrendado para, a partir do mesmo, prestarem apoio à Ré no lar onde a mesma se encontra.
Mas, ainda que assim fosse, ou seja, mesmo que se tivesse por demonstrado que os ditos familiares utilizam o locado para, a partir do mesmo, prestarem apoio à Ré, nunca essa asserção permitiria a aplicação da aludida alínea c), do n.º 2 do artigo 1072º.
Se não, vejamos, ainda que de forma breve, atento o que já se expôs quanto à manifesta improcedência desta questão.
A previsão da citada alínea c) consagra a sanação da ilicitude do não uso pelo locatário quando no locado permaneçam, à data do início do não uso do mesmo, determinados parentes ou familiares do locatário que o continuem a utilizar, suprindo a omissão daquele, evitando, pois, com essa utilização efectiva do locado, a sua degradação.
Em suma, como refere PINTO FURTADO, op. cit., pág. 342, o normativo em causa abrange os parentes, familiares e todas as pessoas que vivam em economia comum com o arrendatário no locado e que, após o arrendatário o deixar de usar, ali permaneçam, desde que, nessa data, já o façam há mais de um ano.
Não basta, pois, que as pessoas em causa tenham direito a viver no arrendado (artigo 1093º, n.º 1, alíneas a) e b), do Cód. Civil) é suposto, ainda, que, à data em que tem início a situação de não uso, vivam efectivamente no locado em economia comum com o arrendatário e o façam há mais de um ano, permanecendo, nessas condições, a utilizar o locado. [27]
Na verdade, se assim não fosse, estaria a lei a consentir, de forma ínvia, a cedência não autorizada do gozo do imóvel a terceiros e, sobretudo, a consentir a cedência a quem efectivamente não tinha, à data do início do não uso, qualquer ligação ao locado e qualquer necessidade do mesmo, pois que se assim fosse, nessa data, nele residiria em economia comum com o arrendatário.
Ora, tendo isto presente, é evidente que os ditos pressupostos, no caso dos autos, não se verificam, pois que, mesmo a demonstrar-se que os familiares da Ré usam o arrendado para lhe prestar apoio no lar, daí não decorre que os mesmos utilizassem o locado há mais de um ano à data em que teve início o não uso do locado por parte da arrendatária (pelo menos, em Janeiro de 2014) e, ainda menos, que os mesmos vivessem, em tal data, em economia comum com a arrendatária.
Ao invés, o que emerge da alegação da Ré/Recorrente é que os seus aludidos familiares terão o centro da sua vida instalado em outro prédio (que não identificam) e que utilizam, pontualmente, o locado, desde a data em que a mesma passou a residir a título permanente no lar, para lhe prestarem apoio, atenta a sua proximidade.

Porém, sendo assim, isso significa, em termos claros, que não ocorrem, manifestamente, os pressupostos que o artigo 1072º, n.º 2 al. c), do Cód. Civil erige como condição da sua aplicação, razão por que também não pode sustentar-se que a sentença viola o dito normativo.
Pelo contrário, com o devido respeito, é a pretensão da Ré/Recorrente que, à luz da factualidade provada e mesmo à luz da matéria alegada, mas não provada, não colhe, em nosso ver, fundamento legal.
Dito isto, a última questão que importa abordar refere-se ao alegado abuso de direito dos Autores e, ainda, que, como já antes se expôs em sede de impugnação da decisão de facto, não tenha procedido a alteração daquela decisão nos termos defendidos pela Recorrente.
Como resulta dos autos, a Ré encontra-se a residir, a título permanente, no Lar G… desde, pelo menos, Janeiro de 2014, não fazendo, pois, a partir dessa data qualquer utilização do locado.
Dando de barato que os Autores tenham conhecimento desse facto desde essa exacta data – o que, aliás, não resulta minimamente demonstrado dos autos, apenas sendo possível asseverar, com segurança, que à data da instauração do processo (em 2018) os Autores já teriam tido conhecimento desse facto, pois que o alegaram -, a questão que se coloca é a de saber se os mesmos, em face do alegado conhecimento desse facto e de sempre terem recebido (como é seu direito, diga-se…) as rendas do locado, ao pretenderem a resolução do contrato de arrendamento por mor desse não uso do locado, estão a agir em abuso de direito, pondo em crise, através de tal alegada conduta contraditória, a legítima confiança que criaram na Ré de que não iriam invocar esse fundamento para por termo ao contrato de arrendamento.
Decidindo.
Como é consabido, a ideia essencial que subjaz à proibição do venire contra factum proprium reside na tutela da confiança e na constatação de que o assumir de comportamentos contraditórios viola a regra da boa-fé, ideia que é pacífica na doutrina e na jurisprudência.
Assim, a proibição do venire contra factum proprium cai no âmbito da previsão do abuso de direito (artigo 334º, do Cód. Civil), através do qual se considera ilegítimo o exercício de um direito quando o seu titular exceda de forma grosseira os limites impostos pela boa-fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico.
A boa-fé, enquanto princípio normativo de actuação, tem implícito o entendimento de que as pessoas devem adoptar condutas honestas, leais, diligentes e zelosas, em termos de não comprometer o fim prosseguido pelo contrato ou defraudar os legítimos interesses ou expectativas da outra parte.
Enquanto pressuposto da imputação da consequência jurídica do abuso de direito, na modalidade de venire contra factum proprium, BAPTISTA MACHADO enuncia os seguintes pressupostos: - uma situação objectiva de confiança, baseada numa conduta que, do ponto vista externo, possa ser legitimamente entendida como uma tomada de posição vinculante em relação ao desenvolvimento futuro de certa situação; - um investimento de confiança e irreversibilidade desse investimento, ou seja, que o factor gerador da confiança tenha determinado a decisão da contraparte; - boa-fé da contraparte que confiou, ou seja, a contraparte só merecerá protecção quando esteja de boa-fé e tenha agido com a diligência e precaução usuais no tráfico jurídico. [28]

Esta posição tem merecido frequente acolhimento na doutrina e na jurisprudência, de que podem citar-se, apenas dos mais recentes, o AC STJ de 10.12.2019 e 19.09.2019, relatados, respectivamente, pelos Srs. Juízes Conselheiros Acácio Neves e Tomé Gomes, ambos disponíveis no sítio oficial já referido e com vastas referências jurisprudenciais, que nos escusamos a aqui repetir.
Dito isto, no caso vertente, não se vislumbra na factualidade que emerge dos autos nenhum comportamento dos Autores que, objectivamente, isto é, para um destinatário que use do cuidado e da prudência usuais, se mostre idóneo ou adequado a criar na Ré a aparência e a consequente convicção legítima de que os mesmos jamais viriam a exercer o seu direito de por termo ao contrato por não uso do locado.
Na verdade, e com o devido respeito, do simples facto de os Autores receberem as rendas do locado (como é seu direito) – seja ela paga pela Ré ou por outrem em seu nome e interesse – e de saberem que a Ré não habitava o locado não é possível extrair-se, sem mais, que os Autores aceitaram a permanência dessa situação sem qualquer limite temporal e que, portanto, se estavam a vincular a manter o contrato de arrendamento e, portanto, a renunciar ao direito de resolverem o contrato por não uso do locado.
Neste sentido, como bem salientam ANA e MADALENA OLIVEIRA, op. cit., pág. 49, “[a] inércia do credor só pode ser considerada como comportamento concludente de renúncia ao direito de resolução quando, avaliada de acordo com o princípio da boa-fé, seja de ordem a induzir na contraparte a convicção da legitimidade da sua actuação. Ou seja, exige-se o preenchimento dos requisitos de que depende a operatividade do princípio da tutela da confiança (situação de confiança, legitimidade da confiança, justificação da confiança e imputação da confiança).”
Ora, se assim é, como cremos, não se pode dizer que os Autores, ao aceitarem o recebimento da renda do locado e ao saberem do incumprimento do dever de uso do locado por parte da Ré, tenham criado nesta última uma situação de legítima confiança quanto ao não exercício do direito de resolução do contrato de arrendamento em apreço, pois que, a partir do mesmos, não é possível concluir-se que os mesmos iriam aceitar o protelamento indefinido da situação em causa e o consequente agravamento do estado de conservação do seu prédio arrendado e, portanto, nesse contexto, se escusavam a invocar o direito de resolução que legalmente lhes assiste.
Dito de outra forma, a Ré, ou os seus familiares mais próximos, podem até ter criado unilateralmente essa convicção, mas ela não decorre de qualquer conduta objectiva assumida pelos Autores que, segundo a boa-fé, isto é, segundo o comportamento de um bonus pater familias, lhes tivesse criado a expectativa fundada e justa de os Autores não virem a invocar o não uso do locado para efeitos resolutivos.
Neste sentido, como se colhe do decidido no AC STJ de 19.10.2017, na esteira da lição de BAPTISTA MACHADO, ao preenchimento do venire contra factum proprium, na modalidade de supressio, seria necessário: a) – que o titular de um direito deixasse passar longo tempo sem o exercer; b)- com base neste decurso do tempo e com base ainda numa particular conduta do dito titular ou outras circunstâncias, a contraparte chegasse à convicção justificada de que o direito já não será exercido; c)- movida por esta confiança, essa contraparte orientou em conformidade a sua vida, tomou medidas ou adoptou programas de acção na base daquela confiança, pelo que o exercício tardio e inesperado do direito em causa lhe acarretaria agora uma desvantagem maior do que o seu exercício atempado. [29]

Como assim, para efeitos de preenchimento da figura do abuso de direito do credor/locador, não basta, sem mais, o mero decurso do tempo após o conhecimento do cometimento do facto ilícito pelo locatário, nem, ainda, o mero recebimento das rendas, pois que, a partir destes factos, não se pode extrair, em termos razoáveis e legítimos, que o locador iria aceitar, para futuro e sem limite temporal, a manutenção da situação vigente e, portanto, jamais iria invocar esse facto ilícito (o não uso) como fundamento resolutivo.
Note-se, aliás, neste conspecto, que a figura do abuso de direito, ainda que não exija uma actuação culposa por parte do titular do direito, nem exija o propósito de causar prejuízos à contraparte, exige sempre que esteja em causa um exercício do direito manifestamente excessivo, chocante ou grosseiro, o que, com o devido respeito, não emerge da factualidade provada nos autos e quanto ao exercício do direito de resolução do ajuizado contrato de arrendamento.
E não se invoque, em contrário, o direito constitucional à habitação ou o direito à protecção na velhice.
Na verdade, residindo a Ré num lar, onde se encontra, de forma permanente, desde, pelo menos, Janeiro de 2014, não se vislumbra que esteja em causa o seu direito à habitação – pois que não usa para esse fim o locado em apreço nos autos há mais de 4 anos -, nem, ainda, o direito à sua protecção na velhice.
Neste sentido, como se refere no AC da RL de 25.06. 2013, antes citado, o direito à habitação não implica que os arrendatários possam utilizar ou não as casas sem limitações, como se fossem suas, caso contrário estar-se-ia a proteger o direito a não habitar a casa, o que, seguramente, não se integra no núcleo de protecção constitucional do direito à habitação, já que este visa assegurar o direito a habitar, não o de não habitar.
Por outro lado, como se compreende, os titulares passivos do direito à habitação ou do dever de protecção dos mais idosos, como direitos sociais, são primacialmente o Estado e as demais entidades públicas e não, naturalmente, os proprietários e senhorios, à custa do seu património pessoal, nomeadamente do imóvel de sua propriedade, sendo certo que também a propriedade privada é um direito constitucionalmente consagrado que só, em circunstâncias excepcionais, deve ser limitado ou restringido.
Como assim, não colhe sentido, exigir-se, no caso, que sejam os ora Autores a providenciar condições para a protecção da Ré em razão da sua idade avançada, quando o que está em causa é o locado que, sendo propriedade dos Autores, a própria Ré não usa há mais de 4 anos… Aliás, segundo julgamos, nesta perspectiva, também não colhe sentido invocar-se a dificuldade ou incómodos dos seus familiares por passarem a não poder utilizar o locado para lhe prestarem apoio, pois que não tendo eles – como não têm – direito ao arrendamento do imóvel, terão, naturalmente, que continuar a prestar esse apoio por meios alternativos e não, naturalmente, à custa do locado que não lhes pertence e sobre o qual, repete-se, não têm qualquer direito de gozo/utilização.
Improcede, pois, em conclusão, a apelação, confirmando-se na íntegra a sentença recorrida.
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V. DECISÃO:
À luz do antes exposto, acordam os Juízes do Tribunal da Relação do Porto em negar provimento ao recurso interposto pela Ré F…, confirmando a sentença proferida.
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Custas pela Ré/Recorrente, pois que ficou vencida – artigo 527º, n.ºs 1 e 2 do CPC.
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Porto, 7.06.2021
Jorge Seabra
Pedro Damião e Cunha
Fátima Andrade

(O presente acórdão não segue na sua redacção o Novo Acordo Ortográfico)
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[1] Cabe neste conceito de autor todo aquele que deduza um pedido perante o tribunal e que este decida, abrangendo, por isso, o exequente, o requerente, etc.
[2] Vide, neste sentido, por todos, MANUEL de ANDRADE, “Noções Elementares de Processo Civil”, 1979, pág. 306.
[3] Esta estabilidade, apesar de significativa, não é ainda definitiva, atenta a possibilidade excepcional dos recursos extraordinários (artigos 627º, n.º 2, 2ª parte, 688º e segs. e 696º e segs., do CPC), assim como a possibilidade de, em sede de oposição à execução de sentença (artigo 729º, do CPC), ser possível afastar os efeitos que, à partida, resultariam da decisão.
[4] Sobre a distinção entre caso julgado formal e material, vide, por todos, M. TEIXEIRA de SOUSA, “Estudos Sobre o Novo Código de Processo Civil”, pág. 569, A. VARELA, M. BEZERRA, S. NORA, “Manual de Processo Civil”, Coimbra Editora, 2ª edição, pág. 703-704 e RUI PINTO, “Exceção e autoridade de caso julgado – algumas notas provisórias”, Revista Julgar Online, Novembro de 2018, pág. 4.
[5] AC RG de 7.08.2014, relator Sr. Juiz Desembargador Jorge Teixeira; no mesmo sentido, AC RG de 17.12.2013, relator Sr. Juiz Desembargador Manuel Bargado ou AC RP de 24.09.2018, por nós relatado, todos disponíveis in www.dgsi.pt.
[6] JOSÉ LEBRE de FREITAS, “Um Polvo chamado Autoridade do Caso Julgado”, ROA, ano 79, III-IV, Julho/Dezembro de 2019, pág. 693.
[7] MIGUEL TEIXEIRA de SOUSA, “Estudos Sobre o Novo Código de Processo Civil”, Lex, 1997, pág. 572.
[8] Se, apesar do caso julgado prévio, o tribunal da acção posterior vier a proferir decisão de mérito sobre o mesmo objecto, aquela padecerá de nulidade processual por violação da lei do processo; Essa nulidade será fundamento de recurso ordinário garantido pelo preceituado no artigo 629º, n.º 2 al. a), do CPC.
Havendo execução dessa segunda sentença, o executado pode opor o caso julgado anterior à sentença que se executa, ao abrigo do preceituado no artigo 729º, al. f), do CPC.
Por último, se esta segunda decisão não vier a ser revogada e a respectiva nulidade se encontrar sanada, funcionará a regra essencial do artigo 625º, n.º 1, do CPC, segundo a qual perante duas decisões contraditórias sobre a mesma pretensão, será cumprida a que transitou em primeiro lugar.
[9] RUI PINTO, op. cit., pág. 7.
[10] Vide, neste sentido, por todos, A. ABRANTES GERALDES, “Recursos no Novo Código de Processo Civil”, 2ª edição, pág. 134, AC STJ de 14.07.2016, relator Sr. Juiz Conselheiro António Joaquim Piçarra, AC STJ de 27.10.2016, relator Sr. Juiz Conselheiro José Rainho, AC STJ de 27.10.2016, relator Sr. Juiz Conselheiro Ribeiro Cardoso, todos disponíveis in wwwdgsi.pt.
[11] Vide, neste sentido, A. ABRANTES GERALDES, op. cit., pág. 132 e, por todos, AC STJ de 23.02.2010, relator Sr. Juiz Conselheiro Fonseca Ramos, in www.dgsi.pt.
[12] MARIA LUIZA do VALE ROCHA, “O conhecimento oficioso do abuso de direito”, Revista de Direito Civil, ano II (2017), n.º 1, pág. 203; No mesmo sentido, A. MENEZES CORDEIRO, “Litigância de Má-Fé, Abuso do Direito de Acção e Culpa In Agendo”, pág. 133. Vide, ao nível da jurisprudência, neste sentido, AC STJ de 18.02.1997, relator Sr. Juiz Conselheiro Quinta Gomes, AC RP de 29.11.99, relator Sr. Juiz Desembargador Lázaro de Faria, AC RP de 30.06.2009, relator Sr. Juiz Desembargador Carlos Moreira, AC RP de 13.04.2010, relatora Sr.ª Juíza Desembargadora Maria do Carmo Domingues e AC RC de 2.12.2008, relator Sr. Juiz Desembargador Teles Pereira, todos disponíveis in www.dgsi.pt.
[13] MANUEL de ANDRADE, “Noções Elementares …”, cit., pág. 374-375; No mesmo sentido, vide, ainda, FRANCISCO FERREIRA de ALMEIDA, “Direito Processual Civil”, I volume, 2ª edição, pág. 78, J. LEBRE de FREITAS, “CPC Anotado”, I volume, 1999, pág. 465 e PAULO PIMENTA, “ Processo Civil Declarativo ”, 2015, pág. 15-19.
[14] Sobre o efeito preclusivo associado à ausência de contestação, vide, por todos, PAULO PIMENTA, op. cit., pág. 176 e A. VARELA, M. BEZERRA, S. NORA, “Manual …”, cit., pág. 310-314.
[15] São instrumentais os factos que, não integrando a previsão normativa, permitem a prova indiciária dos factos essenciais. A sua função é meramente probatória dos factos essenciais. Vide, neste sentido, por todos, PAULO PIMENTA, op. cit., pág. 138, A. VARELA, op. cit., pág. 474, nota 1 e J. LEBRE de FREITAS, op. cit., pág. 466.
[16] F. AMÂNCIO FERREIRA, “Manual dos Recursos em Processo Civil”, 8ª edição, pág. 147. No mesmo sentido, vide, por todos, MIGUEL TEIXEIRA de SOUSA, “Estudos sobre …”, cit., pág. 395.
[17] Vide, neste sentido, por todos, LAURINDA GEMAS, ALBERTINA PEDROSO e JOÃO JORGE, “Arrendamento Urbano, Novo Regime Anotado e Legislação Complementar”, 2ª edição, pág. 101-102, JORGE PINTO FURTADO, “Manual de Arrendamento Urbano”, II volume, 4ª edição actualizada, pág. 1013-1014; Na jurisprudência, neste sentido, por todos, AC RL de 24.04.2010, relatora Sr.ª Juíza Desembargadora Maria Amélia Ribeiro e AC RL de 27.09.2016, relatora Sr.ª Juíza Desembargadora Maria da Conceição Saavedra, todos in www.dgsi.pt.
[18] Vide, neste sentido, J. PINTO FURTADO, “Comentário ao Regime do Arrendamento Urbano”, 2019, pág. 400.
[19] Vide, neste sentido, por todos, PEDRO ROMANO MARTINEZ, “Da Cessação do Contrato”, 2ª edição, pág. 345, FERNANDO BAPTISTA de OLIVEIRA, “A Resolução do Contrato no Novo Regime do Arrendamento Urbano”, 2007, pág. 36-41, MARIA OLINDA GARCIA, “A nova disciplina do arrendamento urbano”, 2ª edição, pág. 25 e F. GRAVATO MORAIS, “Novo Regime do Arrendamento Comercial”, 2ª edição, pág. 209-210.
[20] Vide, neste sentido, ANA PERESTRELO de OLIVEIRA, MADALENA PERESTRELO de OLIVEIRA, “Incumprimento Resolutório: Uma Introdução”, 2019, pág. 69.
[21] Vide, neste sentido, por todos, L. MENEZES LEITÃO, “Arrendamento Urbano”, 2013, 6ª edição, pág. 142, J. PINTO FURTADO, op. cit., pág. 415-417 (com recensão das posições perfilhadas na doutrina e na jurisprudência) e A. MENEZES CORDEIRO, “Leis do Arrendamento Urbano Anotadas”, 2014, pág. 234, anotação 35.
[22] Como refere J. BAPTISTA MACHADO, “Pressupostos da Resolução por Incumprimento”, Obra Dispersa, I volume, Braga, 1991, pág. 21, “Será uma “justa causa” ou “um fundamento importante” qualquer circunstância, facto ou situação em face do qual, e segundo a boa-fé, não seja exigível a uma das partes a continuação da relação contratual; todo o facto capaz de fazer perigar o fim do contrato ou dificultar a obtenção desse fim, qualquer conduta que possa fazer desaparecer pressupostos, pessoais ou reais, essenciais ao desenvolvimento da relação, designadamente qualquer conduta contrária ao dever de correcção e lealdade.” Vide, neste sentido, por todos, AC RP de 20.04.2006, relator Sr. Juiz Desembargador Amaral Ferreira, AC RP de 21.02.2008, relator Sr. Juiz Desembargador José Ferraz e AC STJ de 16.01.2014, relator Sr. Juiz Conselheiro Álvaro Rodrigues, todos in www.dgsi.pt.
[23] Vide, neste sentido, por todos, além dos Autores referidos na nota 9, ao nível da jurisprudência, AC RL 27.09.2016, já citado, AC RL de 24.11.2015, relator Sr. Juiz Desembargador Roque Nogueira, AC RL de 5.03.2015, relatora Sr.ª Juíza Desembargadora Maria José Mouro, AC RP de 8.11.2016, relatora Sr.ª Juíza Desembargadora Cecília Agante, AC RP de 24.11.2015, relator Sr. Juiz Desembargador Luís Cravo, AC RG de 6.02.2020, relatora Sr.ª Juíza Desembargadora Lígia Venade e AC RG de 27.06.2019, relator Sr. Juiz Desembargador Alcides Rodrigues, todos in www.dgsi.pt.
[24] Não consideramos no texto a previsão da alínea b) do n.º 2 do artigo 1072º, pois que a hipótese nele prevista é, de todo, inaplicável ao caso, pois que não está em causa o cumprimento de deveres profissionais ou militares por parte do locatário.
[25] J. PINTO FURTADO, op. cit., pág. 335.
[26] Sobre as características da doença do arrendatário, das pessoas que com ele convivem em economia comum e, em certos casos, dos familiares a quem deva por lei assistência para efeitos de justificação do não uso do locado, vide, por todos, o citado AC RL de 24.11.2015 e a demais doutrina e jurisprudência nele referidos, AC RL de 17.05.2011, relator Sr. Juiz Desembargador António Santos e AC RL de 25.06.2013, relator Sr. Juiz Desembargador Roque Nogueira, ambos in ww.dgsi.pt.
[27] Vide, neste sentido, PINTO FURTADO, op. cit., pág. 342-343, L. MENEZES LEITÃO, op. cit., pág. 103-104 e MARIA OLINDA GARCIA, op. cit., pág. 19, e, ainda, na jurisprudência, por todos, AC RL de 17.05.2011, antes citado.
[28] J. BAPTISTA MACHADO, “Tutela da Confiança e Venire Contra Factum Proprium”, “Obras Dispersas”, op. cit., pág. 385. Vide, ainda, em sentido idêntico, A. MENEZES CORDEIRO, “Tratado de Direito Civil – Parte Geral”, Tomo IV, 2007, pág. 292.
[29] AC STJ de 19.10.2017, relatora Sr.ª Juíza Conselheira Rosa Tching, disponível in www.dgsi.pt.
Vide sobre a matéria, ainda, por todos, A. MENEZES CORDEIRO, op. cit., pág. 313-326, assim como a jurisprudência ali referida a fls. 325-326.