Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
3585/22.7T8PRT.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: JOAQUIM MOURA
Descritores: POSSE
USUCAPIÃO
PROPRIEDADE
CONSTITUIÇÃO DA PROPRIEDADE HORIZONTAL
FRACÇÃO AUTÓNOMA
Nº do Documento: RP202310093585/22.7T8PRT.P1
Data do Acordão: 10/09/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Indicações Eventuais: 5. ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - Posse titulada é a que se funda num modo legítimo de adquirir o direito real a que a posse corresponde, independentemente do vício substancial que possa afectar o negócio aquisitivo (artigo 1259.º do CC);
II - A posse só pode considerar-se titulada se o título de aquisição se referir (também) à coisa possuída;
III – Não pode considerar-se como tal (posse titulada) a que é exercida pelos réus sobre parte determinada (cave) de um prédio em propriedade vertical que, reconhecidamente, pertence à autora;
IV - É orientação uniforme da jurisprudência que o exercício de posse, mesmo que usucapível, sobre parte determinada de um prédio não constituído em propriedade horizontal (ou sobre parte determinada de uma fracção autónoma de um prédio em propriedade horizontal) não pode levar à aquisição originária de um direito de propriedade singular sobre essa parte, sem a prévia constituição do prédio nesse regime.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo n.º 3585/22.7 T8PRT.P1
Comarca de Porto
Juízo Local Cível do Porto (Juiz 5)



Acordam na 5.ª Secção do Tribunal da Relação do Porto


IRelatório
1. Configuração da acção
Em 22 de Fevereiro de 2022, “A..., S.A.” intentou no Juízo Local Cível do Porto acção declarativa de condenação com processo comum (que qualificou como “reivindicação de propriedade”) contra AA e mulher BB, alegando, em síntese, o seguinte:
É «dona e legítima proprietária» do prédio urbano composto por edifício de cave, rés-do-chão e seis andares e logradouro sito na Avenida ..., ..., e Rua ..., ... da cidade do Porto, descrito na Conservatória do Registo Predial do Porto sob o n.º ...37 e inscrito na respectiva matriz sobre o artigo ...12.º.
Sucede que os réus estão a ocupar indevidamente parte da cave da loja (assinalada a traço amarelo na planta que junta) com entrada pelo rés-do-chão do n.º ...83 da mencionada Rua ..., a qual é parte integrante desse seu prédio.
Apesar de interpelados, os réus recusam-se a «entregar a posse da fração autónoma em causa» e daí a presente acção.
Concluiu o seu articulado inicial formulando os seguintes pedidos:
«a) deverá a presente acção ser julgada procedente por provada e, consequentemente, ser declarado que a A. é a única legítima proprietária do direito de propriedade do prédio urbano identificado no artigo 1º deste petitório;
b) e, em consequência, serem os R.R. compelidos a entregar de imediato a posse, à A., da parte da cave por estes indevidamente ocupada no predito prédio, totalmente livre de pessoas e bens;
c) Serem os R.R. condenados a pagar à A. de indemnização de €: 50,00 (cinquenta euros) por cada dia de atraso, a partir da citação da presente lide, na entrega do espaço em causa.»

2. Oposição
Citados, os réus vieram apresentar contestação, defendendo-se por excepção e por impugnação.
Por excepção, invocam ilegitimidade passiva, com o seguinte fundamento: são proprietários do prédio sito na Avenida ..., cidade do Porto, da freguesia ..., inscrito e descrito na matriz predial sob o nº ...03 da União de freguesias ..., ..., ..., ..., ... e ..., que adquiriram por compra e venda precisamente à aqui autora “A... S.A.” , em 08.12.2011, e que depois deram de arrendamento a “B..., L.da”, que explora o Hotel ...; a eventual procedência desta acção repercutir-se-á na esfera jurídica desta sociedade, que assim tem interesse em contradizer; seria caso de litisconsórcio necessário.
Na defesa por impugnação, aceitam como verdadeiros os factos descritos sob os artigos 1.º, 3.º e 4.º (titularidade da autora do direito de propriedade sobre o supra identificado prédio e recusa dos réus a entregar à autora a parte do prédio que esta reivindica) e impugnam os demais.
Alegam que a inscrição e a descrição do prédio da autora estão erradas, uma vez que, segundo essa descrição, o rés-do-chão com entrada pelo nº ...83 teria cave (a que a autora reivindica), mas de facto não tem cave, nem nunca teve.
O rés do chão com entrada pelo n.º ...89, esse sim, tem cave; ou seja, há uma troca na descrição das fracções do rés-do-chão do número ...83 e do número ...89.
O prédio dos réus, adquirido à autora em 28.12.2011, inscrito na matriz urbana sob o artigo ...52.º, é composto por um edifício de rés do chão, sobreloja, quatro andares, e mansarda, dependência com quintal e é esta dependência com quintal, precisamente, a área que agora a autora reivindica.
Era nessa dependência que, até Fevereiro de 2018, funcionava a agência de viagens “C...” e agora funcionam a lavandaria, arrumos e vestiários do pessoal do Hotel ..., explorado pela B..., L.da
Alegam factos materiais de posse tendentes a demonstrar a aquisição, por usucapião, da propriedade sobre essa dependência.
Imputam à autora litigância de má-fé e pedem a sua condenação em multa e em indemnização a seu favor.
*
Instada a pronunciar-se sobre a matéria da excepção, a autora veio fazê-lo, defendendo que não ocorre a invocada ilegitimidade passiva e juntou duas certidões emitidas pela Câmara Municipal do Porto que, na sua perspectiva, contrariam a factualidade alegada pelos réus nos artigos 10.º a 23 da sua contestação; logo, não ocorreu a invocada usucapião e falece a acusação de litigância de má-fé.
3. Saneamento e condensação
Com a anuência das partes, foi dispensada a realização da audiência prévia e, em 13.07.2022, foi proferido despacho saneador, em que se conheceu da excepção de ilegitimidade passiva, julgada improcedente, fixou-se o valor da causa (em €22.280,00); fixou-se o objecto do processo e foram enunciados os temas de prova, sem reclamações;
Foram admitidos os requerimentos probatórios e programados os actos da audiência final, designada para o dia 23.11.2022.
4. Audiência final e sentença
A audiência final iniciou-se em 29.11.2022 e decorreu em duas sessões, após o que, com data de 26.01.2023, foi proferida sentença[1] com o seguinte dispositivo:
«Face ao exposto,
a) julgo a presente ação improcedente, por não provada, sendo os réus AA e BB absolvidos do pedido.
b) julgo improcedente, por não provado, o pedido de condenação da autora A..., SA, como litigante de má fé, sendo absolvida desse pedido.
Por ter ficado vencida, as custas correm pela autora (artigos 527.º, 1, do CPC).
Por os réus terem ficado vencidos no pedido de condenação da ré como litigante de má fé, condeno-os em custas, cuja taxa de justiça, como incidente, fixo em 2 UC, respondendo por os réus por estas custas em partes iguais (artigos 527.º, 1, e 528.º, 1, do CPC).»

5. Impugnação da sentença
Irresignada, almejando a revogação da sentença absolutória, dela apelou a autora em 06.03.2023, com os fundamentos explanados na respectiva alegação, que “condensou” nas seguintes conclusões:
«A) O ponto 6 da matéria de facto tem de ser alterado face ao depoimento da testemunha CC, Diretora Regional do Norte das Lojas D..., prestado no dia 29 de Novembro de 2022 - CC, Diretora Regional do Norte das Lojas D..., registado no sistema Habilus Media Studio com início às 15:33 e terminus às 15:45.Entre o 00:00 e 06:00 resulta o seguinte:
Adv – Sabe até que altura esteve arrendada à A...?
Testemunha – Eu ainda lá estava, portanto eu saí da E... em 2014, deve ter sido 2011, mais ou menos. (…)
Adv – Até que data a E... saiu daquele prédio?
Testemunha - Eu sai em 2014, portanto deve ter sido em 2015/2016, não sei.
Adv – Foi numa data posterior?
Testemunha - Foi depois sim (06:00)
B) Do depoimento supra transcrito impõe-se assim alterar o predito ponto 6 da matéria provada, nos termos seguintes:
6) Por contrato de arrendamento, celebrado 24 de maio de 1963, a F..., SARL, deu de arrendamento à G..., SARL, a loja com o n.º ...10 do prédio sito na Avenida ..., da freguesia ..., no Porto, inscrito na matriz sob o artigo ...4, tudo conforme termos do documento 6 junto com a contestação, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido, o que terminou os seus efeitos e terminado entre 2015 e 2016
C) Em consequência do exposto, o ponto 9 da matéria provada também tem de ser alterado nos termos seguintes:
9) A cave do prédio referido em 1) está a ser ocupada pelos réus desde 2015/2016, quando foi rescindido o contrato de arrendamento anteriormente celebrado com a “G..., SARL”.
D) Conforme decorre do ponto 1 da matéria provada, a Recorrente é dona e legítima proprietária do prédio urbano sito em ..., no Porto, inscrito na matriz sob o artigo ...97 e descrito na Conservatória do Registo Predial do Porto com o n.º ...30 mostra-se registada a seu favor pela ap. 3 de 1947/07/30.
E) Conforme decorre ainda do ponto nº 8 da matéria provada, deste mesmo prédio, cuja entrada é pelo n.º ...83 da Rua ..., faz parte integrante a cave cuja reivindicação de propriedade a Recorrente peticionou.
F) Para tal conclusão, da Douta Sentença ora recorrida decorre que “constando a cave do prédio com entrada pelo número ...83 da Rua ... da planta do projeto de arquitetura do prédio da autora, sendo mencionada expressamente a existência de cave na memória descritiva desse prédio e percebendo-se que os réus reivindicam um espaço que não se localiza por baixo do seu prédio, mas por baixo do prédio vizinho, ou seja, do prédio da autora, permite ao tribunal concluir que a cave em discussão faz parte integrante do prédio da autora.
G) Como elementos de suporte desta conclusão, será ainda de considerar que da certidão do registo predial do prédio da autora consta que se trata de um edifício com cave, o que também consta da caderneta predial desse prédio, ao passo que da certidão do registo predial do prédio dos réus e da respetiva caderneta predial não se refere qualquer cave, mas apenas uma dependência.”
H) Apesar desta matéria ter sido dada como provada, o Tribunal “a quo” não deu provimento à pretensão da Recorrente em que fosse declarada como dona e legítima proprietária do prédio descrito no ponto 1 supra mencionado, cave incluída, pois teria existido a usucapião de tal cave, entendimento este que a Recorrente não pode aceitar.
I) Com efeito, os Recorridos na sua contestação à reivindicação peticionada pela Recorrente limitam-se a referir que a cave em causa pertence ao seu prédio e, mesmo que tal não fosse, adquiriram tal dependência por usucapião, porém esta usucapião não legalmente possível.
J) o prédio descrito no ponto 1 da matéria provada e conforme dele resulta, encontra-se constituído em propriedade vertical.
K) É Jurisprudência unânime dos Tribunais Superiores que num prédio em propriedade vertical não é possível determinar a usucapião de determinada parte “sem a prévia ou, pelo menos, simultânea constituição do imóvel em propriedade horizontal”, conforme bem resulta do Douto Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 04.10.2017 pesquisável em www.dgsi.pt.
L) Ainda é referido neste Douto Aresto que “Embora se admita que, em determinados casos, a simples posse de parte de um prédio possa conduzir à constituição indirecta da propriedade horizontal sobre todo o edifício, por usucapião, para que tal suceda é necessário demonstrar que dessa situação possessória resultou a divisão do prédio em fracções autónomas que sejam distintas e isoladas entre si, com saída própria para uma parte comum do prédio ou para a via pública e que cumpram os requisitos para a aprovação de tal divisão pela entidade pública competente- requisitos a que mais à frente voltaremos.
M) Nada do exposto foi alegado pelos Recorridos, conforme resulta aliás da própria Douta Sentença ora recorrido.
N) Rtornando ao mesmo Douto Acórdão supra transcrito, “No caso concreto, nenhuma das partes alegou, nem consequentemente demonstrou, que dessa posse- exercida por cada um deles na respectiva casa de habitação- tenha resultado uma divisão do prédio que satisfaça aquelas exigências da propriedade horizontal não se encontrando demonstrada, em termos factuais, uma prévia ou, pelo menos, simultânea constituição da propriedade horizontal do prédio urbano em causa, a posse de parte desse prédio, não pode determinar a aquisição por usucapião de cada uma daquelas partes do prédio urbano, uma vez que, como já vimos, não são susceptíveis de um domínio autónomo partes componentes de uma coisa- sem que verifique uma daquelas situações excepcionais atrás mencionadas (em que se inclui a constituição da propriedade horizontal).
(…)
O) “Como já se referiu, é certo que a propriedade horizontal, embora seja, em regra, o resultado de uma declaração unilateral do proprietário ou dos comproprietários do prédio, pode ser constituída, também, por usucapião- cfr. art. 1417º do CC.
No entanto, nesta situação é necessário demonstrar que, da situação possessória que conduziria à constituição da propriedade horizontal, resultou a divisão do prédio em fracções autónomas que sejam distintas e isoladas entre si, com saída própria para uma parte comum do prédio ou para a via pública e que cumpram os requisitos para a aprovação de tal divisão pela entidade pública competente.”
P) E, transcrevendo novamente o mesmo Douto Acórdão, “Na verdade, além dos requisitos enunciados no art. 1415º do CC, a constituição da propriedade horizontal deve ainda obediência às regras administrativas impostas pelas Câmaras Municipais para as operações urbanísticas (v. arts. 62º, nº1, 66º, 67º e 77º do RJUE; cfr. também o art. 59º, nº1 do Código do Notariado).”
Q) Este Acórdão remete ainda para um outro do Supremo Tribunal de Justiça de 26.1.2016 é referido que, “… c) Em simultâneo com o instituto da usucapião - de natureza privatística - coexistem no nosso ordenamento jurídico disposições de natureza jurídico-administrativa – de direito público - que disciplinam o ordenamento do território e condicionam a utilização dos solos, estendendo-se os seus efeitos aos actos e negócios jurídicos que os particulares praticam relativamente a bens imóveis.
R) O diálogo entre o direito civil e o direito do urbanismo e o objectivo de aplicação uniforme e coerente do ordenamento jurídico como um todo implicam que as normas de cariz administrativo respeitantes ao fraccionamento, ao loteamento e ao destaque de imóveis sejam atendidas aquando do reconhecimento das formas de aquisição da propriedade, mormente da usucapião.
S) Os tribunais judiciais não podem manter-se como espaços de aplicação exclusiva do direito civil ignorando as intersecções deste com o direito do urbanismo, sendo cada vez mais urgente, face à natureza imperativa e aos interesses públicos que este último prossegue, abandonar este estado “monocromático” das relações entre ambos estes ramos do direito.
T) Na ausência de demonstração do cumprimento das limitações impostas pelas normas administrativas de ordenamento do território relativas à validade das operações urbanísticas como o loteamento ou o destaque (artigos 3.º, alínea a), 5.º, 53.º, n.º 1 e 56.º, n.º 1, do Regime Jurídico dos Loteamentos Urbanos, republicado pelo Decreto-Lei n.º 334/95, de 28-12, aplicáveis na data da celebração da escritura), não podem os actos de posse baseados num facto proibido por essas leis permitir uma aquisição por usucapião na medida em que contrários a uma disposição de carácter imperativo (artigo 294.º do Código Civil), sendo nula a escritura de justificação que a titula…”.
U) Mais recentemente e nesta mesma sequência, o Supremo Tribunal de Justiça, por Acórdão de 04.10.2018, relativo ao processo 4080/16.9T8BRG-A.G1.S1, também ele pesquisável em www.dgsi.pt enuncia que:
- A aquisição originária de um bem imobiliário por usucapião só é legalmente possível se a posse recair sobre coisa móvel ou parte de coisa móvel[2] suscetível de constituir objeto de direito real.
- A usucapião, enquanto ato jurídico de aquisição originária de direitos reais, não opera validamente sobre coisa que, nesse domínio, se traduza em objeto legalmente impossível, nos termos do artigo 280º, aplicável por via do artº 295º, ambos do CC.
- O exercício de posse usucapível sobre parte delimitada de uma fração autónoma em regime de propriedade horizontal não conduz, por si só, à aquisição de um direito de propriedade singular sobre essa parte, destacável daquela fração, já que essa parte não é suscetível, no quadro daquele regime, de constituir unidade independente, nos termos do artigo 1414º e 1415º do CC.”
V) Face ao exposto, a Douta Sentença ora recorrida ao não dar provimento ao pedido de reivindicação de propriedade peticionado pela Recorrente pelo facto de, alegadamente, os Recorridos deterem posse usucapível sobre cave pertencente ao prédio em regime de propriedade vertical que à Recorrente inelutavelmente pertence, está a admitir a aquisição originária de direitos reais sobre um objeto legalmente impossível, pelo que tem a mesma de ser, forçosamente, revogada e substituída por outra que dê integral provimento ao pedido formulado pela Recorrente.
W) Mesmo que tal se não entenda, o que unicamente por mera cautela e dever de patrocínio se admite, a verdade é que tão pouco se encontra transcorrido o prazo legalmente previsto para que a predita cave pudesse estar sujeita ao regime da usucapião.
X) Com efeito, para justificar o preenchimento dos requisitos relativos à usucapião, o Tribunal recorrido refere que a posse é titulada desde a data da celebração da escritura pública de compra e venda de 20 de dezembro de 2011 e que “ à luz do artigo 1294.º, a), do CC, conclui-se que os réus terão adquirido a cave por usucapião, por a posse durar há mais dez anos, sabendo que a presente ação deu entrada em juízo em 22 de fevereiro de 2022.”
Y) Porém, o Tribunal olvida que, nos termos do disposto no artigo 1292º do Código Civil, são aplicáveis à usucapião, com as necessárias adaptações, as disposições relativas à suspensão e interrupção da prescrição, bem como o preceituado nos artigos 300º, 302º, 303º e 305º, do mesmo diploma.
Z) E assim, que tal prazo de prescrição esteve suspenso entre os dias 9 de Março e 2 de Junho de 2020, (86 dias) e os dias 22 de Janeiro e 5 de Abril de 2021, (74 dias), num total de 160 dias, por força das medidas excecionais e temporárias de resposta à situação epidemiológica provocada pelo coronavírus SARS-CoV-2 e da doença COVID-19 – cfr. art. 7.º nº 3 da Lei nº 1-A/2020 de 19/03, art. 6.º nº 2 da Lei nº 4-A/2020 de 6/04 e art 8.º da Lei nº 16/2020 de 29/05, art. 6.º-B nº 3 da Lei nº 1-A/2020 de 19/03, aditado pelo art. 2.º da Lei nº 4- B/2021 de 1/02 e art. 6.º da Lei nº 13-B/2021 de 5/04.
A.A.) Face ao exposto, os dez anos relativos à usucapião nunca foram atingidos em 20.12.2021 mas sim a 30.05.2022!!!
A.B.) Ora, tendo a ação dado entrada a 22.02.2022 suspendendo assim o prazo de prescrição nos cinco dias seguintes, evidente se torna a impossibilidade de estar preenchido o disposto no artigo 1294º al. a) do CC.
A.C.) Conforme supra se invocou e resulta do ponto 12 da matéria provada, aquando da compra do prédio por parte dos Recorridos a 20.12.2011, a cave em questão era ocupada pela inquilina “G..., SARL” até à data em que terminou tal arrendamento em 2015/2016 que nela instalou os seus arquivos e um cofre forte.
A.D.) Desta forma, evidente se torna que os Recorridos não adquiriram a posse de tal cave no dia da escritura pública de compra mas sim quando terminou o arrendamento da mencionada inquilina.
A.E.) De facto, outra conclusão não se pode retirar do disposto no artigo 1263º al. a) do CC quando este refere que a posse se adquire “pela prática reiterada e com publicidade dos atos materiais correspondentes ao exercício do direito”.
A.F.) Assim, sendo certo que o arrendamento terminou entre os preditos anos de 2015/2016 também aqui não se alcançaram os 10 anos previstos no artigo 1294º al. a) do CC.
A.G.) Face ao exposto, parece inelutável que o Tribunal recorrido violou o disposto nos artigos 294º, 300º, 302º, 303º, 305º, 1251º, 1263º al. a), 1287º, 1292º e 1294º al. a) e, finalmente, o artigo 1311º, todos do C.C.»
Contra-alegaram os réus, defendendo a confirmação do julgado.
O recurso foi admitido como apelação (com subida nos próprios autos e efeito devolutivo) por despacho de 12.04.2023.
Colhidos os vistos, cumpre apreciar e decidir.

Objecto do recurso
São as conclusões que o recorrente extrai da sua alegação, onde sintetiza os fundamentos do pedido, que recortam o thema decidendum (cfr. artigos 635.º, n.º 4, e 639.º, n.º 1, do Código de Processo Civil) e, portanto, definem o âmbito objectivo do recurso, assim se fixando os limites do horizonte cognitivo do tribunal de recurso. Isto, naturalmente, sem prejuízo da apreciação de outras questões de conhecimento oficioso (uma vez cumprido o disposto no artigo 3.º, n.º 3 do mesmo compêndio normativo).
O inconformismo da recorrente visa, quer a decisão sobre matéria de facto, quer a subsunção dos factos provados ao direito.
São, assim, questões a apreciar e decidir:
- se o tribunal a quo fez incorrecta apreciação e valoração da prova, assim incorrendo em erro de julgamento quanto aos concretos pontos de facto impugnados, impondo-se uma alteração da decisão;
- se, seja em resultado de uma alteração factual que se imponha, seja em face dos factos considerados provados, deverá ser outra a solução jurídica do litígio. Concretamente, há que determinar a titularidade do direito de propriedade sobre a cave em disputa e especialmente se foi adquirida por usucapião pelos réus, como se decidiu na primeira instância.

IIFundamentação
1. Fundamentos de facto
Delimitado o thema decidendum, atentemos na factualidade que a primeira instância deu por assente, bem como o que considerou não provado.
Factos provados[3]
1) A aquisição do prédio urbano sito em ..., no Porto, inscrito na matriz sob o artigo ...97 e descrito na Conservatória do Registo Predial do Porto com o n.º ...30 mostra-se registada a favor da autora (ap. 3 de 1947/07/30).
2) Da caderneta predial urbana do prédio urbano sito na Avenida ..., ... e Rua ..., ..., em ..., no Porto, inscrito na matriz sob o artigo ...12, que teve origem no artigo …97, consta que se trata de uma casa com 8 pavimentos, com 5 divisões na cave, 4 no rés do chão, 4 no 1.º andar, 5 no 2.º, 5 no 3.º, 10 no 4.º, 10 no 5.º, 6 no 6.º e ainda logradouro.
3) Por escritura pública de compra a venda, celebrada a 20 de dezembro de 2011, a fls. 86 e seguintes, do Livro ...70, do Cartório Notarial ..., no Porto, apenas para o que aqui interessa, a autora declarou vender e os réus declararam comprar o prédio urbano, composto por um edifício de rés do chão sobreloja, quatro andares e mansarda, dependência com quintal, sito na Avenida ... e ..., no Porto, descrito na Conservatória do Registo Predial do Porto sob o número ...35, inscrito na matriz sob o artigo ...4.
4) Da caderneta predial urbana do prédio urbano sito na Avenida ... e …, em ..., no Porto, inscrito na matriz sob o artigo ...52, que teve origem no artigo 54, consta que se trata de uma casa com 7 pavimentos, com loja e 2 divisões no rés do chão, 2 divisões na sobreloja, 7 no 1.º andar, 5 no 2.º, 6 no 3.º, 4 no 4.º e 2 na mansarda, ainda quintal e dependência.
5) A aquisição do prédio urbano sito em ..., no Porto, inscrito na matriz sob o artigo ...52 e descrito na Conservatória do Registo Predial do Porto com o n.º ...03 mostra-se registada a favor dos réus (ap. ...19 de 2011/12/29).
6) Por contrato de arrendamento, celebrado 24 de maio de 1963, a F..., SARL, deu de arrendamento à G..., SARL, a loja com o n.º ...10 do prédio sito na Avenida ..., da freguesia ..., no Porto, inscrito na matriz sob o artigo ...4.
7) Por contrato de arrendamento, celebrado a 1 de fevereiro de 2005, os réus deram de arrendamento à B..., Lda., o 1.º, 2.º, 3.º e 4.º e AF (mansarda) com entrada pelo número ...14, da Avenida ..., no Porto, descrito na Conservatória do Registo Predial do Porto com o n.º ...35, inscrito na matriz sob o artigo ...52, que teve origem no artigo 54.
8) Do prédio referido em 1), cuja entrada é pelo n.º ...83 da Rua ..., faz parte integrante uma cave.
9) A cave do prédio referido em 1) está a ser ocupada pelos réus desde que compraram o prédio à autora.
10) Atualmente, nessa cave funciona a lavandaria, arrumos e vestiários do Hotel ..., explorado pela B..., Lda.
11) Em data não concretamente apurada, mas pelo menos assim já acontecendo durante a vigência do contrato de arrendamento referido em 6), a cave do prédio referido em 1) deixou de ter ligação à restante parte do prédio cuja entrada é pelo n.º ...83 da Rua ....
12) Sendo no período de vigência do contrato de arrendamento referido em 6) ocupada pela G..., SARL, que nela instalou os seus arquivos e um cofre forte.
13) Não existindo acessos, por escadas ou outro meio, da cave à loja do piso cuja entrada é pelo n.º ...83 da Rua ..., sendo os acessos existentes provenientes do prédio sito no número ...10 da Avenida ....
14) Estando a energia elétrica, água e o saneamento dessa cave ligados e sendo abastecidos pelo edifício propriedade dos réus, mencionado em 3) e 5).
15) Sendo os réus que usufruem dessa cave, dela retiram todas as suas utilidades em seu proveito e considerando-se e sendo considerados como seus donos.
16) O que têm feito à vista, sem oposição e na firme convicção de que não lesam direitos de outrem.

Factos não provados:
17) A energia elétrica, água e saneamento estiveram sempre ligados e abastecidos pelo edifício propriedade dos réus e nunca à loja da autora.
18) Nunca a loja com entrada pelo n.º ...83 da Rua ..., no Porto, teve acesso à cave, por escadas ou por outro meio.
19) A autora intentou levianamente, esta ação contra os réus, sem a mínima consistência bem sabendo que não tem nem nunca teve a propriedade da cave que reivindica
20) A autora falseou factos, alterou e omitiu outros, pretendendo com isso exercer um direito que sabe não lhe assistir e sem qualquer causa ou fundamento, bem sabendo que tem a descrição das frações do seu imóvel ao nível do rés do chão erradas, mas procura tirar vantagem ilícita desse erro à custa dos réus, ao invés de o corrigir.
*
O recorrente que pretenda impugnar, com sucesso, a decisão sobre matéria de facto com fundamento em erro de julgamento, tem de cumprir (“sob pena de rejeição”)[4] vários ónus de especificação, previstos no artigo 640.º, n.º 1, do Código de Processo Civil.
O ónus fundamental[5] consiste na especificação dos concretos pontos de facto que considera terem sido incorrectamente julgados pelo tribunal recorrido, obrigação que só se satisfaz com a indicação do facto individualizado que consta da sentença recorrida[6].
A delimitação precisa dos pontos de facto controvertidos constitui um elemento determinante na definição do objecto do recurso em matéria de facto e para a consequente possibilidade de intervenção do tribunal de recurso, sendo este um ónus que decorre dos princípios, considerados estruturantes do processo civil, da cooperação e da lealdade e boa-fé processuais.
Os concretos pontos de facto que a recorrente considera erradamente julgados são os vertidos nos n.os 6 e 9 do elenco dos provados, que, para uma melhor compreensão do que pretende, vamos pô-los aqui em destaque:
6) Por contrato de arrendamento, celebrado 24 de maio de 1963, a F..., SARL, deu de arrendamento à G..., SARL, a loja com o n.º ...10 do prédio sito na Avenida ..., da freguesia ..., no Porto, inscrito na matriz sob o artigo ...4.
9) A cave do prédio referido em 1) está a ser ocupada pelos réus desde que compraram o prédio à autora.
Antes, porém, de entrarmos na apreciação da impugnação dos concretos pontos de facto enunciados, importa atentar no ponto 7 do elenco de factos provados (sobre o qual a recorrente nada disse) que é do seguinte teor:
«7) Por contrato de arrendamento, celebrado a 1 de fevereiro de 2005, os réus deram de arrendamento à B..., Lda., o 1.º, 2.º, 3.º e 4.º e AF (mansarda) com entrada pelo número ...14, da Avenida ..., no Porto, descrito na Conservatória do Registo Predial do Porto com o n.º ...35, inscrito na matriz sob o artigo ...52, que teve origem no artigo 54.»
Acontece que, em 2005, ainda o prédio dado de arrendamento pertencia à autora, que só o vendeu aos réus em 28.12.2011 (é esta a data de outorga da escritura pública e não 20.12.2011, como, certamente por lapso, se indica no ponto 3).
Na realidade, como resulta do escrito que formalizou aquele contrato (junto pelos réus com a contestação), o arrendamento é bem mais recente, data de 1 de Fevereiro de 2015.
Assim, ao abrigo do disposto no artigo 662.º, n.º 1, do CPC, altera-se as datas mencionadas naqueles pontos, nos seguintes termos:
- no ponto 3, em vez de “20 de dezembro de 2011”, passará a constar a data de 28 de Dezembro de 2011;
- no ponto 7, em vez de “1 de fevereiro de 2005”, passará a constar a data de 1 de Fevereiro de 2015”.
Prosseguindo, outro importante ónus que recai sobre o recorrente é o de indicar as concretas provas (constantes do processo ou que nele tenham sido registadas) que impõem decisão diversa da recorrida, ónus que se cumpre com a indicação do conteúdo específico do meio de prova ou de obtenção de prova que impõe outra decisão[7].
Além disso, o recorrente tem de expor a(s) razão(ões) por que, na sua avaliação, as provas impõem decisão diversa da recorrida. Exige-se-lhe que relacione o conteúdo específico do meio de prova que impõe decisão diversa da recorrida com o facto individualizado que considera incorrectamente julgado e que explicite os motivos dessa imposição. É essa explicitação que constitui o cerne do dever de especificação.
Ainda um outro ponto se mostra pertinente assinalar: a impugnação da decisão sobre matéria de facto não pode revelar-se «mera manifestação de inconsequente inconformismo»[8], antes tem de servir para suportar uma solução jurídica diversa daquela que foi adoptada na decisão recorrida fundada em determinada realidade factual e, portanto, reverter a seu favor essa decisão ou modificá-la. Se assim não for, não deve, sequer, conhecer-se da impugnação porque seria um exercício cognitivo inútil.
A recorrente considera a alteração por que pugna relevante para a boa decisão da causa. Não concretiza nem diz em que termos as pretendidas alterações aos pontos 6 e 9 relevam para a decisão de direito, mas não é difícil perceber onde pretende chegar.
A recorrente, como já se aludiu, pretende o reconhecimento do direito de propriedade sobre o prédio identificado no ponto 1 do elenco de factos provados (prédio inscrito na matriz sob o artigo ...12.º e que antes era o artigo ...97.º), do qual fará parte integrante uma cave que vem sendo ilegitimamente ocupada pelos réus e por isso pedem a sua restituição; os réus/recorridos, por seu turno, alegam que o prédio da recorrente não tem (nunca teve) cave e aquela que ocupam desde 2011 é parte integrante do seu prédio, aliás, adquirido, por compra e venda, à autora e invocam, também, a sua aquisição por usucapião.
Ocorreria, assim, um facto impeditivo da pretensão da autora e na primeira instância foi reconhecida razão aos réus, pois concluiu-se que, fazendo a cave em disputa parte integrante do prédio da autora, os réus ocupam-na desde 2011 e adquiriram-na por usucapião. A recorrente não aceita que possa considerar-se assente que essa ocupação se verifique desde 2011, já que era a “E...” (anteriormente, “G..., SARL”) quem utilizava a cave (tendo aí o seu arquivo) e aí se manteve até à cessação do contrato de arrendamento referido no ponto 6, que ocorreu já em 2015 ou 2016.
Daí propor que a esse n.º 6 se acrescente que o contrato de arrendamento terminou em 2015 ou 2016 e, para tanto, indica o depoimento da testemunha CC.
Foram os réus quem invocou na contestação a existência desse arrendamento (que tinha por objecto a loja ao nível do rés-do-chão com o n.º ...10 do prédio que compraram à autora – prédio inscrito na matriz sob o artigo ...52.º, que teve origem no artigo 54.º) e a ocupação da cave pela arrendatária. Tudo isso para afirmar uma posse boa para usucapião sobre essa cave (que dizem ser a “dependência com quintal” a que se refere a descrição predial n.º ...03 e onde, actualmente, funcionam a lavandaria, arrumos e o vestiário do pessoal do “Hotel ...”).
No depoimento que prestou, a testemunha CC confirmou que a referida cave foi utilizada pela “E...” até 2015 ou 2016 e falou com conhecimento directo dos factos, pois era aí o seu local de trabalho quando trabalhava para essa agência de viagens. E embora tenha saído em 2014 para ir trabalhar para a “D...”, é do seu conhecimento que a “E...” aí se manteve até 2015 ou 2016. Aliás, os réus alegam que a utilização dessa “dependência” pela arrendatária “G..., SARL S.A.R.L.” (que depois passou a ser a “E...”) «se estendeu até Fevereiro de 2018, data em que a agência de viagens C... entregou a loja definitivamente aos R.R.» (artigos 18.º e 19.º da contestação). E na sua resposta à motivação do recurso afirma que «a G..., SARL SARL usou a cave como arquivo ao longo dos anos, fazendo parte do seu contrato de arrendamento até este ter cessado em 2016, data em que entregou o locado livre de pessoas e bens aos recorridos seus senhorios em que se incluía a dita cave».
Em suma, embora com duas versões quanto ao ano em que isso aconteceu, são os próprios réus a alegar que quem ocupava e utilizava a cave em causa era a arrendatária da loja ao nível do rés-do-chão e que essa situação só terminou com a cessação do contrato de arrendamento, pelo menos, em 2016.
Por isso, merece acolhimento a pretensão da recorrente de que seja feito aquele acrescento ao ponto 6.
Quanto ao ponto 9, entende a recorrente que deve ser alterado e passar a ter o seguinte conteúdo:
9) A cave do prédio referido em 1) está a ser ocupada pelos réus desde 2015/2016, quando foi rescindido o contrato de arrendamento anteriormente celebrado com a “G..., SARL”.
Alteração que será uma decorrência necessária do novo teor do n.º 6. De resto, também neste ponto, são os réus/recorridos a dar razão à recorrente, pois alegaram (artigo 20.º da contestação) que, após a saída da “G..., SARL”/E..., na cave passou a funcionar a lavandaria, arrumos e vestiários do pessoal do Hotel ....
Alteração que se impõe, também, para harmonizar o conteúdo do ponto 9 com o teor do ponto 12.
Concluindo, na procedência da impugnação da decisão sobre matéria de facto, são alterados os pontos 6 e 9 que passam a ter o seguinte conteúdo:
6) Por contrato celebrado em 24 de maio de 1963, a “F..., SARL”, deu de arrendamento à “G..., SARL”, a loja com o n.º ...10 do prédio sito na Avenida ..., da freguesia ..., no Porto, inscrito na matriz sob o artigo ...4, contrato que deixou de vigorar, cessando os seus efeitos, pelo menos, em 2016.
9) Desde que cessou o contrato de arrendamento referido no ponto 6, a cave do prédio identificado em 1) está a ser ocupada pelos réus.

2. Fundamentos de direito
Na sentença recorrida, em face do aglomerado factual apurado, a acção foi julgada totalmente improcedente, apesar de se afirmar na motivação probatória da sentença que o tribunal não ficou com quaisquer dúvidas de que a cave cuja propriedade aqui se disputa é parte integrante do prédio da autora.
A tese dos réus resume-se no seguinte:
A inscrição e a descrição do prédio da autora estão erradas, uma vez que, segundo esses documentos, o rés-do-chão com entrada pelo n.º ...83 teria cave (a que a autora reivindica), mas de facto não tem, nem nunca teve.
O rés do chão com entrada pelo n.º ...89, esse sim, tem cave; ou seja, há uma troca na descrição das fracções do rés-do-chão do número ...83 e do número ...89.
O prédio dos réus, adquirido à autora em 28.12.2011, inscrito na matriz urbana sob o artigo ...52.º, é composto por um edifício de rés do chão, sobreloja, quatro andares, mansarda e “dependência com quintal” e é esta dependência, precisamente, a área que agora a autora reivindica.
No entanto, o juízo probatório do tribunal é taxativo e importa aqui reproduzi-lo:
«Decisiva foi a certidão emitida pela Câmara Municipal do Porto de 14 de abril de 2022, junta com a resposta (requerimento de 19/05/2022), relativa ao prédio da autora.
Note-se que desse articulado constam duas certidões, considerando o tribunal que a primeira é que será decisiva porque se reporta ao próprio pedido de construção do prédio (de todo o prédio da autora, sito na Avenida ..., ... e na Rua ..., ...), datando a respetiva licença de construção de 1948.
Nesta certidão consta a memória descritiva e a planta do projeto de arquitetura do prédio da autora, resultando expressamente da memória descritiva que se trata de um prédio composto por cave, rés do chão e seis pisos.
Acresce que do projeto de arquitetura junto com a certidão consta mesmo a própria planta da cave a construir, sendo a planta que nesse documento se situa em cima, do lado direito.
E na planta desta cave o espaço delimitado mais à esquerdo não é outro senão a cave do prédio com entrada pelo n.º ...83 da Rua ..., conforme acabou por reconhecer a testemunha DD, arquiteto e que trabalha para o hotel que arrendou o prédio dos réus e que hoje ocupa a cave com uma lavandaria, que apontou precisamente para o espaço delimitado mais à esquerda da planta da cave quando lhe foi perguntado se naquele documento se fazia referência à cave que existiria no prédio com a entrada pelo número ...83 da Rua ....
O depoimento desta testemunha tirou qualquer dúvida que pudesse existir quanto à existência ou não de uma cave no prédio com a entrada pelo número ...83 da Rua .... Existe essa cave, que consta do projeto de arquitetura do prédio, datado de 1948, e é mencionada (em conjunto com outras) na memória descritiva desse prédio.
E não só a testemunha DD tirou essa dúvida, como esclareceu outro ponto que até então se mostrava nebuloso. Apenas com o depoimento de DD é que ficou claro para o tribunal que a cave, que a autora diz pertencer ao seu prédio e que os réus dizem pertencer ao prédio deles, fica por baixo do prédio pertencente à autora, ou seja, fica imediatamente por baixo da loja com entrada pelo n.º ...83 da Rua ..., não fica por baixo do prédio pertente aos réus, cuja entrada é pelos números … e … da Avenida ..., o que a testemunha explicou claramente.
Na verdade, o depoimento prestado por DD permitiu este esclarecimento ao tribunal, que não o havia devidamente compreendido pelos depoimentos prestados pelas anteriores testemunhas ouvidas ou pela consulta dos documentos.
Este esclarecimento e constatação motivou até que se perguntasse à testemunha DD se era comum do ponto de vista arquitetónico e do planeamento que uma cave pertencesse não ao prédio que se desenvolve na sua vertical, ou seja por cima dessa cave, mas ao prédio vizinho desse, tendo a testemunha referido que não era comum.
Saber a que prédio pertence a cave onde funciona atualmente a lavandaria do hotel e onde anteriormente funcionava o arquivo da agência de viagens é a questão fulcral que nesta ação se discute.
Ora, em face do acima exposto, constando a cave do prédio com entrada pelo número ...83 da Rua ... da planta do projeto de arquitetura do prédio da autora, sendo mencionada expressamente a existência de cave na memória descritiva desse prédio e percebendo-se que os réus reivindicam um espaço que não se localiza por baixo do seu prédio, mas por baixo do prédio vizinho, ou seja, do prédio da autora, permite ao tribunal concluir que a cave em discussão faz parte integrante do prédio da autora.
Como elementos de suporte desta conclusão, será ainda de considerar que da certidão do registo predial do prédio da autora consta que se trata de um edifício com cave, o que também consta da caderneta predial desse prédio, ao passo que da certidão do registo predial do prédio dos réus e da respetiva caderneta predial não se refere qualquer cave, mas apenas uma dependência.
Não se ignora que a presunção prevista no artigo 7.º, do Código do Registo Predial (CRegPredial), não abrange a descrição predial, atuando apenas relativamente ao facto inscrito, ao objeto e aos sujeitos da relação jurídica emergente do registo, mas já não no que toca aos elementos da descrição do prédio, que tem por finalidade apenas a identificação física, económica e fiscal do imóvel.
Ainda assim, não existindo um valor probatório vinculativo nestes elementos, não deixam de ficar sujeitos à livre apreciação do Tribunal, que nesta medida os considera como de suporte e confirmativos da conclusão de que a cave em discussão pertence ao prédio da autora.
Note-se ainda que da escritura pública de compra a venda celebrada a 28 de dezembro de 2011, pela qual foi transmitida a favor dos réus a propriedade do prédio urbano sito em ..., no Porto, inscrito na matriz sob o artigo ...52 e descrito na Conservatória do Registo Predial do Porto com o n.º ...03, não consta que do prédio vendido/comprado faça parte uma cave, aqui se mencionando a dependência com quintal. E os contratos de arrendamento acima reproduzidos também não especificam que do locado fazia parte uma cave, sequer do arrendamento celebrado em 1963 entre a F..., SARL (que se percebeu ser a anterior denominação social da autora) e a G..., SARL (que, pelos depoimentos das testemunhas ouvidas se percebeu ter igualmente alterado a sua denominação social para H...), que refere ser dado de arrendamento a loja com o número ...10 do prédio sito na Avenida ..., da freguesia ...».
Importa, pois, dar a conhecer aqui a justificação para o decaimento da pretensão da autora.
Depois de uma exposição em que se faz a caracterização da acção de reivindicação e se enunciam os requisitos necessários para que o reivindicante seja bem sucedido, fez-se notar que a autora se limitou a invocar a presunção de propriedade derivada do registo, correndo o risco de a parte a quem reivindica a coisa invocar, com sucesso, a usucapião, modo de aquisição originária da propriedade que afasta aquela presunção. Assim teria acontecido neste caso e a conclusão do tribunal a quo está assim justificada:
«Não há dúvida que os réus têm a posse da cave que aqui se discute, na medida em que a ocupam desde que compraram à autora o prédio urbano sito na Avenida ... e …, no Porto, descrito na Conservatória do Registo Predial do Porto sob o número ...35, nessa cave funcionando a lavandaria, arrumos e vestiários do Hotel ..., explorado pela B..., Lda., a quem os réus arrendaram o prédio que tinham comprado à autora. E são os réus que usufruem dessa cave, dela retiram todas as suas utilidades em seu proveito e considerando-se e sendo considerados como seus donos, o que têm feito à vista, sem oposição e na firme convicção de que não lesam direitos de outrem, tanto que permitem a sua utilização pelo Hotel ..., a que acresce o facto da energia elétrica, água e o saneamento dessa cave estarem ligados e serem abastecidos pelo edifício hoje propriedade dos réus e não pelo prédio cuja entrada é pelo n.º ...83 da Rua ..., não existindo igualmente acesso desta cave a este prédio, mas sim ao prédio dos réus.
Desta forma, os réus praticam atos materiais sobre a cave e fazem-no na convicção de os puderem fazer por serem seus donos, tendo então a sua posse desde 20 de dezembro de 2011, data em que adquiriram o prédio à autora.
E, salvo sempre melhor opinião, esta posse é titulada, na medida em que assenta na escritura pública de compra a venda, celebrada a 20 de dezembro de 2011, a fls. 86 e seguintes, do Livro ...70, do Cartório Notarial ..., no Porto.
Note-se que este é o instrumento que permite aos réus aceder ao prédio sito na Avenida ..., que tem comunicação à cave que aqui se discute, pelo que se trata de um modo legítimo de adquirir.
Considerando estas caraterísticas, à luz do artigo 1294.º, a), do CC, conclui-se que os réus terão adquirido a cave por usucapião, por a posse durar há mais dez anos, sabendo que a presente ação deu entrada em juízo em 22 de fevereiro de 2022.
Uma nota para referir que os réus não formulam pedido reconvencional, invocam a usucapião apenas como exceção ao pedido formulado pela autora, daí que o tribunal não declare a propriedade da cave, apenas a improcedência da ação.»
Dando de barato que os factos provados permitem afirmar que os réus vêm praticando sobre a (ou em relação à) cave em disputa actos materiais susceptíveis de configurar uma posse usucapível, a questão que logo se coloca é a de saber se essa posse se prolongou pelo tempo legalmente necessário e, para tanto, é fundamental determinar se é uma posse titulada ou não titulada, uma vez que, na primeira hipótese, tratando-se de imóveis e verificados os demais requisitos do artigo 1294.º, o lapso de tempo exigido para a usucapião é de 10 anos e no segundo é de 15 anos.
Como expressamente resulta do trecho da fundamentação que reproduzimos, na decisão recorrida considerou-se que a posse dos réus é titulada «na medida em que assenta na escritura pública de compra e venda, celebrada a 20 de dezembro de 2011» (mais exactamente, a 28 de Dezembro de 2011) e, sendo ainda de boa-fé, pública e pacífica, o prazo da usucapião seria de 10 anos, já decorrido. Daí a improcedência da pretensão da autora.
Com ressalva do respeito devido, tal afirmação é motivo de alguma perplexidade porquanto aquela compra e venda é o título de aquisição do prédio identificado no ponto 3 do elenco de factos provados e desse prédio não faz parte a cave em causa. Como se assinalou, o tribunal afirmou, taxativamente, que a cave é parte integrante do prédio da autora identificado no ponto 1 (descrição n.º ...37) e não do prédio (descrição n.º ...35) adquirido pelos réus à autora em 28 de Dezembro de 2011.
Posse titulada é a que se funda num modo legítimo de adquirir o direito real a que a posse corresponde, independentemente do vício substancial que possa afectar o negócio aquisitivo (artigo 1259.º do CC).
Ora, «o fundamento da aquisição por usucapião é a regularização da posição jurídica daquele que efectivamente usa a coisa, agindo como se fosse titular de um direito real sobre a mesma»[9]. Por isso, a posse só pode considerar-se titulada se o título de aquisição se referir (também) à coisa possuída. No entanto, não foi por terem adquirido o prédio através da compra e venda titulada pela escritura pública de 28.12.2011 que os réus se tornaram possuidores da cave em litígio, mas porque, de acordo com a factualidade apurada, a partir de certo momento, vêm praticando actos materiais de posse sobre ela, como se fossem proprietários.
Por isso o prazo para adquirir por usucapião, neste caso, é de 15 anos e não de 10 anos, como se considerou na decisão recorrida.
Mas, mesmo que fosse de 10 anos, a posse dos réus não se teria prolongado por este período de tempo. Na primeira instância, para o cômputo do prazo legal da usucapião parece ter-se partido do pressuposto de que, com a referida compra e venda, os réus tornaram-se, ipso facto, possuidores da cave, como se esta viesse como “apêndice” do prédio comprado. É o que se depreende do teor do ponto 9 que, relembra-se, na sentença recorrida está assim formulado: «9) A cave do prédio referido em 1) está a ser ocupada pelos réus desde que compraram o prédio à autora.». No entanto, também se deu como provado que essa mesma cave, no período de vigência do contrato de arrendamento referido no ponto 6, esteve ocupada pela “G..., SARL”, que nela instalou os seus arquivos e um cofre forte (ponto 12) e sabemos que esse contrato de arrendamento cessou (e a arrendatária deixou o locado), se não depois, pelo menos, em 2016.
A conclusão sobre esta questão é, claramente, a de que está(va) longe de se completar o prazo legalmente necessário para que a posse exercida sobre a cave leve à sua aquisição por usucapião.
Mas há outra razão fundamental para afastar a conclusão da primeira instância da aquisição, por usucapião, da cave pelos réus.
Quer o imóvel dos réus (descrição n.º ...35), quer o imóvel da autora (descrição n.º ...37), apesar de constituídos por vários pisos (ou pavimentos), são prédios em propriedade vertical (ou, como se diz na respectiva inscrição matricial, em propriedade total). Por conseguinte, a cave cuja propriedade se disputa é uma parte integrante do prédio da autora, mas não é uma fracção autónoma de um prédio em propriedade horizontal.
A recorrente alega que é jurisprudência unânime dos tribunais superiores que num prédio em propriedade vertical não é possível determinar a usucapião de determinada parte desse prédio “sem a prévia ou, pelo menos, simultânea constituição do imóvel em propriedade horizontal”, citando, em abono, o Ac. TRG de 04.10.2017 (acessível em www.dgsi.pt)[10] e a afirmação é inteiramente fundada e correcta.
Com efeito, constitui orientação uniforme da jurisprudência que o exercício de posse, mesmo que usucapível, sobre parte determinada de um prédio não constituído em propriedade horizontal (ou sobre parte determinada de uma fracção autónoma de um prédio em propriedade horizontal) não pode levar à aquisição de um direito de propriedade singular sobre essa parte, sem a prévia constituição do prédio nesse regime.
O reconhecimento da aquisição, por usucapião, de uma parte determinada de um imóvel não constituído em propriedade horizontal depende necessariamente do prévio reconhecimento da constituição dessa parte como fracção autónoma.
Da fundamentação do citado aresto, com a devida vénia, citamos o seguinte trecho (que subscrevemos sem qualquer reserva)[11]:
«Como é sabido, em face do regime geral do direito de propriedade sobre imóveis, qualquer edifício incorporado no solo só pode, em princípio, ser objecto de um único direito de domínio, o qual abrangerá toda a construção, o solo em que esta assenta e os terrenos que lhe servem de logradouro, como se infere do disposto no art. 204º, nº 1, al. a) e nº 2 do CC , das regras sobre acessão industrial imobiliária e ainda do disposto no art.º 1344º do CC.
Trata-se de uma manifestação do princípio da especialidade ou da individualização que rege os direitos reais, na vertente segundo a qual, incidindo o direito de propriedade sobre a totalidade das coisas que constituem o seu objecto, não podem as suas partes integrantes ou componentes serem objecto de direito de propriedade de titular diferente, sendo o destino jurídico da coisa unitário (subprincípio da totalidade ou da autonomização).
No entanto, importa atender que o regime da propriedade horizontal constitui uma das excepções a estes princípios, uma vez que permite que sobre o mesmo edifício de estrutura unitária se constituam distintos direitos de propriedade, com diferentes titulares, que incidem sobre fracções independentes desse prédio - arts. 1414º e ss.. do CC. Daí que, tendo em consideração, por um lado, as limitações impostas pelo princípio da individualização (na referida vertente) e, por outro lado, o regime excepcional da propriedade horizontal, os tribunais têm vindo a concluir que a posse, em termos de direito de propriedade, de parte de um prédio não sujeito ao regime da propriedade horizontal, não pode determinar a aquisição por usucapião dessa parte, sem a prévia ou, pelo menos, simultânea constituição do imóvel em propriedade horizontal, a qual pode ocorrer, também, por usucapião. Na verdade, o art. 1417º do CC admite que uma das formas de constituição da propriedade horizontal seja uma situação possessória correspondente a esse direito específico (“novo direito”), com as características e pelo tempo necessário à sua aquisição por usucapião.
A constituição da propriedade horizontal, por usucapião, resulta directamente da situação possessória correspondente ao exercício de um direito de propriedade sobre fracção autónoma de um edifício em propriedade horizontal e de um direito de compropriedade sobre as partes comuns e da sua invocação pelo possuidor – arts. 1287º e 1288º do CC -, tendo a sentença que a venha a reconhecer eficácia meramente declarativa.
A posse correspondente ao exercício deste direito de propriedade específico deve revelar as particularidades deste direito real, devendo os possuidores do prédio em questão agir como se este estivesse constituído sob o regime da propriedade horizontal.
Como escreveu Rui Vieira Miller, há que que distinguir, porém, a usucapião como forma de constituição da propriedade horizontal, da usucapião como meio de adquirir o direito de propriedade sobre a fracção autónoma de um prédio já sujeito a tal regime, situações que divergem relativamente ao conteúdo da respectiva posse.
Assim, no primeiro caso são todos os condóminos que têm de actuar sobre o prédio, por eles parcelado em fracções susceptíveis de corresponderem às exigências da sua utilização em regime de propriedade horizontal, como se efectivamente este regime estivesse regularmente constituído, usando, pois, cada um a sua fracção autónoma com exclusão dos demais e fruindo todos, como comproprietários, mas com as limitações inerentes a essa especial forma de compropriedade as partes comuns do prédio, todos contribuindo também, na proporção de valor das suas fracções, ou apenas aqueles que de tais coisas se servem, para as despesas com a conservação e fruição das partes comuns que alguns utilizem exclusivamente, todos ainda se constituindo em assembleia para administrarem as partes comuns através de um administrador que nesta elegerem, todos enfim, actuando pela mesma forma que actuariam como se fossem co-titulares de um direito de propriedade horizontal regularmente constituído sobre o prédio.
Embora se admita que, em determinados casos, a simples posse de parte de um prédio possa conduzir à constituição indirecta da propriedade horizontal sobre todo o edifício, por usucapião, para que tal suceda é necessário demonstrar que dessa situação possessória resultou a divisão do prédio em fracções autónomas que sejam distintas e isoladas entre si, com saída própria para uma parte comum do prédio ou para a via pública e que cumpram os requisitos para a aprovação de tal divisão pela entidade pública competente- requisitos a que mais à frente voltaremos.»
No mesmo sentido, por mais recente, citamos o acórdão desta Relação de 14.09.2021[12], publicado com o seguinte sumário:
«I - Revela-se juridicamente inviável a invocação da usucapião de uma fração autónoma sem que seja invocada a prévia constituição da propriedade horizontal.
II - Concluindo-se pela inexistência de título constitutivo da propriedade horizontal, não poderá proceder a execução específica de um contrato promessa em que se prometeu vender e comprar uma ‘fração autónoma’ inexistente, bem como, subsidiariamente, a aquisição por usucapião e a divisibilidade dessa mesma ‘fração’.
III - A constituição da propriedade horizontal implicando, não só os requisitos enumerados no art.º 1415º do CC, mas também os concretizados pelas competentes autoridades camarárias, de acordo com as normas que regem as construções urbanas, que são de interesse e ordem pública, terá de ser um momento prévio à reivindicação de qualquer fração autónoma, porque a mesma, como unidade jurídica, só existe após procedimento legal constitutivo».
Esta orientação jurisprudencial está em sintonia com a doutrina que se tem pronunciado sobre a matéria (cfr. Comentário ao Código Civil, Direitos Reais, UCE, nota 5 da anotação ao artigo 1417.º da autoria de Ana Taveira da Fonseca; Rui Vieira Miller, A Propriedade Horizontal no Código Civil, Almedina, 3.ª ed., pp. 96-97; Aragão Seia,Propriedade Horizontal – Condóminos e Condomínios, Almedina, 2001, p. 34).
Requisito incontornável da constituição da propriedade horizontal é o de que as fracções que dela sejam objecto constituam unidades independentes, sejam distintas e isoladas entre si, com saída própria para uma parte comum do prédio ou para a via pública (artigo 1415.º do CC), mas os réus não demonstraram, sequer alegaram, os factos pertinentes que permitam considerar verificado esse requisito.
Além disso, a constituição da propriedade horizontal tem de submeter-se a regras de natureza administrativa relativas às edificações urbanas, que compete aos municípios fazer cumprir, mas cuja observância também o tribunal tem de exigir quando a constituição desse regime de propriedade é submetido a apreciação judicial, pois de normas de interesse e ordem públicos se trata, como se fez notar no Ac. STJ de 04.10.2018[13], cujo sumário importa aqui reproduzir:
«I. A aquisição originária de um bem imobiliário por usucapião só é legalmente possível se a posse recair sobre coisa imóvel ou parte de coisa imóvel suscetível de constituir objeto de direito real.
II. A usucapião, enquanto ato jurídico de aquisição originária de direitos reais, não opera validamente sobre coisa que, nesse domínio, se traduza em objeto legalmente impossível, nos termos do artigo 280.º, aplicável por via do art.º 295.º, ambos do CC.
III. O exercício de posse usucapível sobre parte delimitada de uma fração autónoma em regime de propriedade horizontal não conduz, por si só, à aquisição de um direito de propriedade singular sobre essa parte, destacável daquela fração, já que essa parte não é suscetível, no quadro daquele regime, de constituir unidade independente, nos termos dos artigos 1414.º e 1415.º do CC.
IV. Face ao disposto do artigo 1417.º, n.º 1, do CC, a propriedade horizontal pode ser originariamente constituída por usucapião, mas tal constituição tem de assentar em exercício de posse usucapível sobre prédio urbano, ou porventura parte dele, que reúna, desde logo, as características exigidas pelos artigos 1414.º e 1415.º do CC, mormente sobre frações em condições de constituírem unidades independentes, distintas e isoladas ente si com saída própria para uma parte comum do prédio ou para a via pública.
V. Só assim poderão ficar a constar da sentença de reconhecimento da constituição da propriedade horizontal por usucapião as especificidades obrigatórias a que se refere o artigo 1418.º, n.º 1, do CC.
VI. A ação em que se vise o reconhecimento da constituição da propriedade horizontal por usucapião terá de correr entre todos os condóminos para que a respetiva sentença possa ter eficácia de caso julgado material em relação a todos eles.
VII. No âmbito das pretensões de reconhecimento da constituição da propriedade horizontal por usucapião, a causa de pedir deverá integrar duas vertentes essenciais, a saber:
i) - a factualidade respeitante ao exercício da posse usucapível do prédio urbano ou parte dele sobre que se pretende o reconhecimento da propriedade horizontal;
ii) – a descrição das características quer físicas, estruturais e funcionais, quer técnicas do objeto sobre que incide essa posse em termos de corresponder ao que é legalmente exigível para o reconhecimento de uma situação factual de propriedade horizontal, em especial no que se refere à concreta individualização e especificação das frações autónomas, de harmonia com o disposto nos artigos 1414.º e 1415.º do CC e ainda com a regulamentação aplicável das edificações urbanas.
VIII. Num caso como o dos autos, em que os A.A. pretendem a constituição da propriedade horizontal por usucapião sobre duas partes de uma fração autónoma já constituída, mas pedem que os R.R. realizem obras numa dessas partes para que possa ser destacável, chegando mesmo a admitir a possibilidade do não fracionamento, uma tal pretensão contradiz a necessária verificação de pré-existência de uma situação de facto inerente ao regime da propriedade horizontal.
IX. Nestas circunstâncias alegatórias, o suprimento de uma tal contradição implicaria a reformulação da causa de pedir, num segmento essencial, muito para além do aperfeiçoamento em sede de factos complementares ou concretizadores dos já alegados.
X. Em tal situação, não se mostra útil um convite ao aperfeiçoamento para o adequado aproveitamento da pretensão deduzida de modo tão insuficiente, em termos de justificar que o tribunal use do poder-dever conferido pelo artigo 590.º, n.º 2, alínea b), e n.º 4, do CPC.»
Ora, também neste conspecto, os réus nem sequer alegaram os factos necessários para se aferir do cumprimento das disposições de natureza jurídico-administrativa, pelo que o tribunal não podia concluir, como concluiu, que os réus adquiriram, por usucapião, a cave que é parte integrante do prédio da autora.
Quer isto dizer que, ao contrário do que se decidiu na primeira instância, os réus não lograram ilidir a presunção, decorrente do registo (artigo 7.º do C.R. Predial), de que a autora é legítima titular do direito de propriedade sobre o prédio urbano identificado nos pontos 1 e 2 do elenco de factos provados, no qual se integra a cave em disputa. E estando essa cave a ser ocupada pelos réus sem que disponham de título que legitime essa ocupação, tem a autora direito à sua restituição.
Não pode, assim, manter-se a decisão recorrida, pois procedem as conclusões do recurso.

III - Dispositivo
Pelo exposto, acordam os juízes desta 5.ª Secção Judicial (3.ª Secção Cível) do Tribunal da Relação do Porto em julgar procedente a apelação de A..., S.A. e, em consequência,
1) revogar a sentença recorrida;
2) julgar a acção procedente e reconhecer à autora “A..., S.A.” a titularidade do direito de propriedade sobre o prédio urbano sito na Avenida ..., ..., e Rua ..., ..., em ..., cidade do Porto, constituído por casa com 8 pavimentos, com 5 divisões na cave, 4 no rés do chão, 4 no 1.º andar, 5 no 2.º, 5 no 3.º, 10 no 4.º, 10 no 5.º, 6 no 6.º e ainda logradouro, inscrito na respectiva matriz sob o artigo ...12, que teve origem no artigo ...97, descrito na Conservatória do Registo Predial do Porto sob o n.º ...30 e registada a favor da autora pela Apresentação 3 de 1947/07/30, condenando os réus a reconhecer-lhe esse direito de propriedade, no qual se inclui a cave em litígio;
3) condenar os réus a restituir à autora, livre de pessoas e coisas, a cave do seu prédio, que ocupam sem título que legitime a ocupação.

Por terem decaído totalmente, as custas da acção e do do recurso ficam a cargo dos réus/recorridos (artigo 527.º, n.os 1 e 2, do Cód. Processo Civil).
(Processado e revisto pelo primeiro signatário).


Porto, 9/10/2013
Joaquim Moura
Ana Paula Amorim
Manuel Domingos Fernandes
_________________
[1] Notificada às partes por expediente electrónico elaborado no dia seguinte.
[2] Como é de primeira evidência, há um erro na reprodução do sumário do aresto citado: em vez de «coisa móvel ou parte de coisa móvel» deve ler-se «coisa imóvel ou parte de coisa imóvel».
[3] Apenas se eliminou a menção dos documentos que serviram de prova dos factos descritos.
[4] Como se decidiu no Ac. STJ de 30.06.2020 (processo n.º 1008/08.3 TBSI.E1.S1), «III - A cominação para a falta de especificações constantes das als. a), b) e c) do n.º 1 do art. 640.º do CPC é a rejeição da impugnação da decisão de facto, não havendo lugar a qualquer despacho de aperfeiçoamento nos termos do n.º 3 do art. 639.º do CPC».
[5] No Ac. STJ de 16.12.2020 (processo n.º 8640/18.5 YIPRT.C1.S1) fala-se em dois ónus que recaem sobre o recorrente que impugna a decisão sobre matéria de facto: «Um ónus principal, consistente na delimitação do objecto da impugnação (indicação dos pontos de facto que considera incorrectamente julgados) e na fundamentação desse erro (com indicação dos meios probatórios, constantes do processo ou do registo ou gravação que impunham decisão diversa e o sentido dessa decisão) – Art.º 640º nº 1 do CPC; e
Um ónus secundário, consistente na indicação exacta das passagens relevantes dos depoimentos gravados – art.º 640º nº 2 al. a) do CPC.».
[6] Sendo certo que, em casos-limite, a impugnação pode implicar toda a matéria de facto, nem por isso o recorrente está desobrigado de especificar os concretos pontos de facto por cuja alteração se bate (cfr. A.S. Abrantes Geraldes, “Recursos no Novo Código de Processo Civil”, Almedina, 5.ª edição, pág. 163, em nota de pé de página).
Esta especificação serve para delimitar o objecto do recurso e por isso tem de constar das conclusões.
[7] O Sr. Conselheiro Abrantes Geraldes (ob. cit., pág. 170, nota de pé de página) afirma ser «infundada a rejeição do recurso da matéria de facto com fundamento na falta de indicação, nas conclusões, dos meios probatórios ou dos segmentos da gravação em que o recorrente se funda. O cumprimento desses ónus no segmento da motivação parece suficiente para que a impugnação da decisão da matéria de facto ultrapasse a fase liminar, passando para a apreciação do respectivo mérito», citando jurisprudência do STJ nesse sentido.
No Código de Processo Civil Anotado, Vol. I, Almedina, pág. 771, de que é autor em conjunto com Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, precisa-se que «é objecto de debate saber se os requisitos do ónus impugnatório devem figurar apenas no corpo das alegações ou se também devem ser levados às conclusões, sob pena de rejeição do recurso» e anota-se que «o Supremo tem vindo a sedimentar como predominante o entendimento de que as conclusões não têm de reproduzir (obviamente) todos os elementos do corpo das alegações e, mais concretamente, que a especificação dos meios de prova, a indicação das passagens das gravações e mesmo as respostas pretendidas não têm de constar das conclusões, diversamente do que sucede, por razões de objectividade e de certeza, com os concretos pontos de facto sobre que incide a impugnação».
[8] A.S. Abrantes Geraldes, “Recursos no Novo Código de Processo Civil”; Almedina, 5.ª edição, 169.
[9] Pedro Eiró/Miguel do Carmo Mota, anotação ao artigo 1294 in Comentário do Código Civil, Direito das Coisas, UCE, pág. 106.
[10] Acórdão proferido no processo n.º 1197/13.5TBPTL.G1, de que foi Relator o Desembargador Dr. Pedro Damião e Cunha.
[11] Não são reproduzidas as notas de pé de página.
[12] roferido no processo n.º 442/19.8T8PVZ.P2, de que foi Relator o Desembargador Dr. Carlos Querido.
[13] Acordão proferido no processo n.º 4080/16.9T8BRG-A.G1.S1, de que foi Relator o Sr. Conselheiro Dr. Tomé Gomes, também citado pela recorrente.