Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
113/22.8T8VNG.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: EUGÉNIA CUNHA
Descritores: PROCESSO DE ACOMPANHAMENTO DE MAIOR
INEPTIDÃO DA PETIÇÃO INICIAL
PRINCÍPIO DO INQUISITÓRIO
PODER VINCULADO
Nº do Documento: RP20220404113/22.8T8VNG.P1
Data do Acordão: 04/04/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Indicações Eventuais: 5. ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - O processo de acompanhamento de maior é um processo especial, de natureza formalmente contenciosa e substancialmente de jurisdição voluntaria cfr. arts nº1, do 891º, nº2, do 986º, 987º e 988º, do CPC -, com caráter urgente, que se regula pelas disposições que lhe são próprias (v. art. 891º a 905º, do CPC) e pelas disposições gerais e comuns e, em tudo que não estiver previsto numas e noutras, pelo que estabelecido se encontra para o processo comum (v. nº1, do art. 549º, de tal diploma), o que pode envolver o uso dos poderes de gestão previstos no art. 590º.
II - Gera o vício da ineptidão da petição inicial e a nulidade de todo o processo, exceção dilatória, de conhecimento oficioso a conduzir à absolvição do Réu da instância (al. a), do nº2, do art. 186º, al. b), do nº1, do art. 278º, nº2, do art. 576º e al. b), do art. 577º, todos do CPC) a falta de pedido bem como a de causa de pedir.
III - Não se verifica falta desta quando, naquele articulado, está desenhado o núcleo factual essencial integrador da causa petendi, (estando densificados e concretizados os factos essenciais a ancorar a pretensão deduzida) bem como não se verifica falta de pedido quando o pedido nele vem formulado, ainda que insuficientemente expresso na conclusão mas a pretensão que com a ação se visa obter se encontra expressamente solicitada no corpo do articulado com que se introduziu a ação em juízo, a não poder deixar de ser considerado por razões de adequação e proporcionalidade.
IV - O princípio do inquisitório, a operar no domínio da instrução do processo (v. art. 411º, do CPC, poder vinculado que impõe ao juiz, o dever jurídico de determinar, oficiosamente, as diligências probatórias complementares necessárias à descoberta da verdade e à boa decisão da causa), assume específico e reforçado afloramento no processo especial de acompanhamento de maior (v. arts. 891º, nº2 do art. 986º e nº1, do art. 897º, todos, do CPC) no que respeita aos poderes oficiosos do juiz investigar os factos e recolher os meios de prova.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Apelação 113/22.8T8VNG.P1
Processo da 5ª secção do Tribunal da Relação do Porto (3ª Secção cível)
Tribunal de origem do recurso: Juízo Local Cível de Vila Nova de Gaia – Juiz 2
Relatora: Eugénia Maria de Moura Marinho da Cunha
1º Adjunto: Maria José Simões
2º Adjunto: Abílio Costa


Acordam os Juízes do Tribunal da Relação do Porto

Sumário (cfr nº 7, do art.º 663º, do CPC):
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I. RELATÓRIO

Recorrente: AA

AA, que propôs a presente ação especial de acompanhamento de maiores, do seu cônjuge, BB, em substituição do beneficiário, nos termos do disposto no art. 138º e 141º, nº1, do Código Civil, e do art. 892º, nº2, do Código de Processo Civil, pedindo seja suprida a autorização do beneficiário para ser decretado o seu acompanhamento, por este não poder de modo livre e conscientemente prestar esse consentimento, e seja decretado o seu acompanhamento, por razões de saúde, e requerendo (cfr. fls 4 verso) a aplicação ao beneficiário da medida de acompanhamento de representação geral, por total e absoluta incapacidade, por razões de saúde, de governar a sua pessoa e os seus bens - dado padecer de inúmeras doenças, entre elas (densificando os concretos factos) demência (designadamente Alzheimer), parkinson, diabetes, cegueira, fala e equilíbrio condicionados em resultado de AVC, não se consegue movimentar sozinho, padece de anomalia psíquica e deterioração cognitiva, tendo dificuldades a responder a questões básicas como data e dia da semana, não se conseguindo vestir, alimentar nem situar no tempo e espaço -, indicando, para as funções de acompanhante, o cônjuge e a única filha (maior),
apresentou recurso de apelação do despacho liminar que, julgando verificada a exceção dilatória da nulidade de todo o processo, absolveu o beneficiário da instância e condenou a requerente nas custas, com fundamento naquela nulidade, por ineptidão da petição inicial, nos termos do previsto no n.º 1 e na alínea a) do n.º 2 do artigo 186º, do Código de Processo Civil, pugnando pela sua substituição por outro, a convidar a recorrente ao aperfeiçoamento, formulando as seguintes CONCLUSÕES:
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Não foi apresentada resposta (não sendo o beneficiário citado quando a ação é instaurada pelo cônjuge (nº1, do art. 141º, do Código Civil)[1]).
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O Tribunal a quo proferiu o seguinte despacho: “Nos termos do previsto nos n.ºs 2 e 3 do artigo 613º, do Código de Processo Civil, no despacho de indeferimento liminar, com a referência 431982701, onde se diz «Custas pela requerente.», passa a dizer: custas pela requerente, sem prejuízo de isenção.
Notifique e corrija no local próprio” e sustentou não padecer a decisão recorrida de nulidade, entendendo, ainda, que “com a redacção do n.º 1 do artigo 590º, Código de Processo Civil da Lei 41/2013, de 26.06, podem ser invocadas como fundamentos de indeferimento liminar a falta de pressupostos processuais insupríveis, a nulidade da Petição Inicial por ineptidão desta última ou a óbvia improcedência do pedido ou pedidos, com aquela causa ou causas de pedir específicas, por carência evidente de base legal mínima para a sua procedência.
António Santos Abrantes Geraldes, via Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 16.12.2015, a este respeito, diz: «Os casos de indeferimento liminar correspondem a situações em que a petição apresenta vícios formais ou substanciais de tal modo graves que permitem prever, logo nesta fase, que jamais o processo assim iniciado terminará com uma decisão de mérito ou que é inequívoca a inviabilidade da pretensão apresentada pelo autor.»
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Após os vistos, cumpre apreciar e decidir o mérito do recurso interposto.
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II. FUNDAMENTOS
- OBJETO DO RECURSO
Apontemos as questões objeto do presente recurso, tendo presente que o mesmo é balizado pelas conclusões das alegações do recorrente, estando vedado ao tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que se imponha o seu conhecimento oficioso, acrescendo que os recursos não visam criar decisões sobre matéria nova, sendo o seu âmbito delimitado pelo conteúdo do ato recorrido – cfr. arts 635º, nº4, 637º, nº2 e 639º, nºs 1 e 2, do Código de Processo Civil.

Assim, estando a questão da isenção das custas ultrapassada, por o Tribunal a quo ter retificado a decisão e decretado a isenção, a questão a decidir é, apenas, a seguinte:
- Se se verifica ou não a exceção dilatória da nulidade de todo o processo, por ineptidão da petição inicial nos termos do n.º 1 e na alínea a) do n.º 2 do artigo 186º, do Código de Processo Civil.
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II.A – FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
Os factos provados, com relevância, para a decisão constam já do relatório que antecede, tendo o despacho recorrido o seguinte teor:
“Nos termos do artigo 892º, do Código de Processo Civil, No requerimento inicial, deve o requerente, além do mais:
a) Alegar os factos que fundamentam a sua legitimidade e que justificam a proteção do maior através de acompanhamento.
b) Requerer a medida ou medidas de acompanhamento que considere adequadas;
c) Indicar quem deve ser o acompanhante e, se for caso disso, a composição do conselho de família;
e) Juntar elementos que indiciem a situação clínica alegada.
A requerente alega que é cônjuge do requerido. Não vem junto o respectivo assento de casamento.
Diga-se que nem sequer o assento de nascimento do beneficiário foi junto aos autos.
Mais, vem alegado que o beneficiário tem uma filha. Não vem junto o assento de nascimento desta.
Mais, e relativamente à alegação dos factos que justificam a medida, não vêm juntos os documentos que fazem a prova do alegado nos artigos 26º a 30º, da PI – cuja prova é documental –.
Relativamente à imposição da alínea b) do normativo referido supra verifica-se que no corpo da PI, no artigo 32º, a requerente refere que a medida a aplicar há-de ser a da representação geral.
Mas, a final, no pedido – que é onde se encontra o efeito jurídico que se pretende obter com a acção – nada diz a requerente relativamente à(s) medida(s) a aplicar.
No que à alínea c) do normativo referido supra concerne verifica-se que a requerente pretende a nomeação de dois acompanhantes ao beneficiário.
Porém, não deu cumprimento cabal ao n.º 3 do artigo143º, do Código Civil.
No que diz respeito à alínea e) do mesmo artigo que impõe ao requerente a junção aos autos dos elementos que indiciem a situação clínica alegada, a requerente junta aos autos um atestado multiusos que tem mais de quatro anos e de onde se conclui que em 2017, de um lado o beneficiário tem visão de 0,1 e do outro 0,05 e que tem diabetes regularmente equilibrada com insulina.
O que é manifestamente insuficiente como indiciação da situação clínica alegada, sobretudo porque decorreram, mais de quatro anos sobre a data daquele documento.
Vale por dizer que a PI não cumpre cabalmente as alíneas a), b), c) e e) do artigo 892º, do Código de Processo Civil.
Faltam documentos nos autos que são essenciais, nomeadamente, para a prolação do 1º despacho a proferir – o que verifica a legitimidade do requerente – e, posteriormente, para a ulterior nomeação dos acompanhantes.
Falta o pedido a final das medidas que são consideradas adequadas pela requerente.
Falta no que diz respeito à nomeação de dois acompanhantes a indicação de que poderes concretos tem cada um deles.
Em face do que vem de se dizer e havendo falta de instrução documental, falta de alegação – no que concerne à definição dos poderes de cada um dos acompanhantes – e faltando um dos pedidos na acção (o das medidas a fixar), não pode haver lugar ao convite à correcção da PI (mesmo em sede do uso do princípio da adequação imposto pela Nova Lei, porque falta a formulação de um dos pedidos da acção) que comporta apenas (n.º 4 do artigo 590º, do Código de Processo Civil) o suprimento de insuficiências ou imprecisões na exposição ou concretização da matéria de facto alegada e não a dedução de um segmento do pedido – que seria o que ocorreria no caso dos autos –.
Assim, forçoso é concluir que o incumprimento das alíneas referidas do artigo 892º, do Código de Processo Civil, e a ausência de um segmento do pedido tem como consequência a ineptidão da petição inicial e a nulidade de todo o processado, nos termos do previsto no n.º 1 e na alínea a) do n.º 2 do artigo 186º, do Código de Processo Civil.
A nulidade de todo o processo constitui uma excepção dilatória (artigo alínea b) do artigo 577º, do Código de Processo Civil), de conhecimento oficioso (artigo 578º Código de Processo Civil), que obsta a que o Tribunal conheça do mérito da causa e dá lugar à absolvição da instância (artigo n.º 1 e 2 do artigo 576º, do Código de Processo Civil).
Por tudo o exposto, conhecendo da aludida excepção, absolvo o requerido da instância.
Custas pela requerente”.
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II.B - FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO

- Do meio processual: processo especial “Do acompanhamento de maiores”

Encontramo-nos perante um processo especial - “Do acompanhamento de maiores” -, que se regula pelas disposições que lhe são próprias (artigos 891º a 905º, do Código de Processo Civil, diploma a que pertencem todos os preceitos citados sem outra referência) e pelas disposições gerais e comuns e, em tudo que não estiver previsto numas e noutras, pelo que se encontra estabelecido para o processo comum, o que pode envolver o uso dos poderes de gestão previstos no nº2, 3 e 4 art. 590º, e a prolação de despacho saneador – cfr. nº1, do art. 549º.
O referido artigo 891º, no seu nº1, determina serem aplicáveis ao processo de acompanhamento de maior, “com as necessárias adaptações, o disposto nos processos de jurisdição voluntária, no que respeita aos poderes do juiz, ao critério de julgamento e à alteração das decisões com fundamento em circunstâncias supervenientes”, o que se justifica e impõe pela “multiplicidade de circunstâncias observáveis, incompatível com uma rigidez processual, compreendendo-se, assim, a alteração do paradigma revelada pela maior aproximação ao regime dos processos de jurisdição voluntária (arts 986º a 988º)”[2].
Em matéria de critérios de julgamento os processos de jurisdição voluntária “não estão sujeitos a regras de legalidade estrita mas sim a ditames “ex-aequo et bono”.
Mas para além disso, os mesmos processos têm também outras características singulares de que se destaca a predominância do princípio do inquisitório na investigação dos factos e na obtenção das provas (art.º 986º, n.º 1 do CPC) e a alterabilidade das decisões com base em alteração superveniente das circunstâncias que as determinaram (art.º 988º, n.º 1)”[3]. E, pese embora se trate de um processo de jurisdição contenciosa[4], bem se ressalta no referido Acórdão deste tribunal a sua natureza hibrida, não sendo um típico processo de jurisdição voluntária[5], mas que contempla:
i) um reforço dos poderes inquisitórios do juiz – v. nº2, do artigo 986º, no que respeita aos poderes oficiosos do juiz na investigação dos factos e recolha de meios de prova (afloramento, reforçado até, o princípio do inquisitório genericamente consagrado no art. 411º);
ii) um fortalecimento dos poderes de direção do juiz - v. artigo 987º, no que respeita a dever o juiz decretar as medidas que considere mais adequadas ao caso concreto (alicerçando-se a decisão em razões de oportunidade ou de conveniência), com o respeito, possível, da vontade do beneficiário, e podendo limitar os meios de prova aos que considere, em concreto, necessários à boa decisão da causa;
iii) a suscetibilidade de revisão das decisões – v. art. 988º, no que concerne à possibilidade de alteração das medidas quando circunstâncias supervenientes o justifiquem e art. 155º, do CC (revisão supletiva e quinquenal das medidas de acompanhamento[6].
E quanto à instrução do processo, é obrigatória a audição de beneficiário pelo juiz (art. 139º, do CC e nº2, do art. 897º e, ainda, art. 898º), o que lhe confere imediação e, por norma, oralidade, e, em regra, é necessária prova pericial, para definir a concreta incapacidade e o seu caráter transitório ou permanente (nº1, do art. 897º e art. 899º) e dispõe o juiz de amplos poderes instrutórios (podendo investigar livremente os factos e reunir os elementos necessários), submetidos ao dever de:
i) - indagar a natureza da incapacidade imputada ao beneficiário;
ii) - apurar as concretas medidas idóneas a supri-la, com preservação do grau de autonomia possível do mesmo (cfr. nº1, do art. 897º e nº2, do art. 986º e 1ª parte, do nº1, do art. 900º), sendo que, em relação às provas que tenham sido propostas, tem de ser analisada e avaliada a sua pertinência ou necessidade, podendo o juiz não admitir provas, caso as considere desnecessárias (cfr nº2, do art. 886º) e havendo limitação legal quanto ao número de testemunhas – 5, considerando-se não escritos os nomes das que no rol ultrapasse o número legal (nº3, do art. 511º, supletivamente aplicável) - (cfr. nº1, do art. 294º, aplicável ex vi nº1, do art. 986º), sendo desnecessárias as provas que, atento o estado da causa, sejam insuscetíveis de acrescentar um elemento probatório que se repercuta no desfecho da lide, ou por dizerem respeito a factos que já se mostram devidamente comprovados, ou por respeitarem a factos que não constam do elenco a apurar na causa, ou, ainda, por já constar do processo prova de igual ou superior relevo[8].
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- Da nulidade de todo o processo
Tendo sido proferido despacho liminar, que julgou verificada a exceção da nulidade de todo o processo e absolveu o requerido da instância, por ineptidão da petição inicial, nos termos do n.º 1 e alínea a) do n.º 2 do artigo 186º, por incumprimento das alíneas a) a c) e e), do artigo 892º, ambos do Código de Processo Civil, e “ausência de um segmento do pedido”, contra ele se insurgiu a apelante, por entender não se verificar falta de pedido nem de causa de pedir.
Apreciemos da procedência do recurso (bem podendo, sendo caso disso, as partes, findos os articulados, ser convidadas a suprir irregularidades, designadamente quando aqueles careçam de requisitos legais ou não tenha sido apresentado documento essencial ou que lei dele faça depender o prosseguimento da causa, bem como nos casos de imprecisões ou insuficiências na exposição fática).
Cumpre, pois, analisar da ineptidão da petição inicial por falta, na parte conclusiva, de um segmento do pedido e por falta de causa de pedir.
Estatui o convocado artigo 186.º (que reproduz, sem alterações o anterior art. 193º), que tem a epígrafe Ineptidão da petição inicial que:
“1 - É nulo todo o processo quando for inepta a petição inicial.
2 - Diz-se inepta a petição:
a) Quando falte ou seja ininteligível a indicação do pedido ou da causa de pedir;
b) Quando o pedido esteja em contradição com a causa de pedir;
c) Quando se cumulem causas de pedir ou pedidos substancialmente incompatíveis.
3 - Se o réu contestar, apesar de arguir a ineptidão com fundamento na alínea a) do número anterior, a arguição não é julgada procedente quando, ouvido o autor, se verificar que o réu interpretou convenientemente a petição inicial”.
A ineptidão da petição inicial é uma exceção dilatória que conduz à abstenção do conhecimento do mérito da causa e à absolvição do Réu da instância e tal exceção é de conhecimento oficioso do tribunal, conforme os artigos 186.º, n.ºs 1 e 2, alínea a), e 278.º, n.º 1, alínea b).
Assim, se faltar ou for ininteligível seja o pedido seja a causa de pedir, se houver contradição insanável do pedido com a causa de pedir ou se ocorrer uma cumulação de pedidos substancial ou intrinsecamente incompatíveis ou inconciliáveis entre si, ou se houver contradição entre as causas de pedir, a petição é inepta, o que provoca a nulidade de todo o processo (art. 186º, nº1), sendo esta uma das causas que determinam a absolvição do réu da instância (arts, 557º, b) e 576º, 2), a decretar no despacho saneador (art. 595º, 1, a)), se antes não tiver sido indeferida liminarmente a petição, se houver despacho liminar (art. 590º, 1)[9].
Como refere Alberto dos Reis, se o autor exprimiu o seu pensamento em termos inadequados, se se serviu “da linguagem tecnicamente defeituosa, mas deu a conhecer suficientemente qual o efeito jurídico que pretende obter, a petição será uma peça desajeitada e infeliz, mas não pode qualificar-se de inepta.[10]” (negrito nosso).
Como bem refere o mencionado autor, “podem dar-se dois casos distintos: a) a petição ser inteiramente omissa quanto ao acto ou facto de que o pedido procede; b) expor o acto ou factos, fonte do pedido, em termos de tal modo confusos, ambíguos ou ininteligíveis, que não seja possível apreender com segurança a causa de pedir. Num e noutro caso a petição é inepta, porque não pode saber-se qual a causa de pedir”[11].
Mais desenvolve “importa não confundir petição inepta com petição simplesmente deficiente… Quando a petição, sendo clara e suficiente quanto ao pedido e à causa de pedir, omite facto ou circunstâncias necessários para o reconhecimento do direito do autor, não pode taxar-se de inepta; o que então sucede é que a ação naufraga”[12] (situação de manifesta inviabilidade).
O nº 4 do indicado artigo 581.º define a causa de pedir como sendo o facto jurídico de que o autor faz proceder o efeito pretendido, precisando que a causa de pedir nas ações de anulação é o facto concreto ou a nulidade específica que se invoca para obter o efeito jurídico pretendido.
Causa de pedir é o facto jurídico concreto ou específico invocado pelo Autor como fundamento da sua pretensão[13].
A causa de pedir deve estar para com o pedido na mesma relação lógica em que, na sentença, os fundamentos hão-de estar para com a decisão. O pedido tem, como a decisão, o valor e significado duma conclusão: a causa de pedir, do mesmo modo que os fundamentos de facto da sentença, é a base, o ponto de apoio, uma das premissas em que assenta a conclusão. Isto basta para mostrar que entre a causa de pedir e o pedido deve existir o mesmo nexo lógico que entre as premissas dum silogismo e a sua conclusão[14].
Analisa Anselmo de Castro “para que a ineptidão seja afastada, requer-se, assim, tão só, que se indiquem factos suficientes para individualizar o facto jurídico gerador da causa de pedir e o objecto imediato e mediato da acção. Com efeito, a lei – art. 193º, n.º 2 al. a) – só declara inepta a petição quando falta ou seja ininteligível a indicação do pedido ou da causa de pedir, o que logo inculca ideia da desnecessidade de uma formulação completa e exaustiva de um e outro elemento”[15]. (negrito nosso).
Quanto à ininteligibilidade, afirma Rodrigues de Bastos “é necessário, porém, ter sempre presente que não é a obscuridade, a imperfeição ou equivocidade da indicação do pedido ou da causa de pedir que aquele preceito (correspondente à referida al. a), do nº2, do art. 186º) contempla, como bem se vê da redacção do n.º 3 do mesmo artigo”[16].
Como vimos, este entendimento já era o defendido por Alberto dos Reis, que, devidamente adaptado à atual redação do preceito em causa, conduz a que se considere inepta a petição, por ininteligibilidade, quando os factos e a conclusão são nela expostos em termos de tal modo confusos, obscuros ou ambíguos que não possa apreender-se qual é o pedido ou a causa de pedir. Assim, a petição será inepta por ininteligibilidade quando não seja possível saber-se qual é o pedido ou a causa de pedir.
No tocante à contradição entre pedido e causa de pedir, esta tem de se evidenciar entre o pedido, enquanto concreta pretensão jurídica formulada pelo autor, e a causa de pedir, enquanto facto ou factos jurídicos que se invocam para sustentar o efeito jurídico ou pedido, deduzido – artº 498º, nº 3 e 4, do Cód. Proc. Civil.
De acordo com a tese da substanciação, que o actual Código de Processo Civil acolhe, a causa de pedir é formada por factos sem qualificação jurídica, ainda que com relevância jurídica[17].
A petição inicial tem de traduzir um silogismo que estabeleça um nexo lógico entre as suas premissas (as razões de facto e de direito explanadas) e a conclusão (o pedido deduzido) e a sua falta traduz-se numa ausência ou inexistência de objeto do processo.
Nos termos dos arts. 5º, nº1 e 552º, nº1, al. d), do Código de Processo Civil, às partes cabe alegar os factos que integram a causa de pedir e as exceções. Da petição inicial devem constar os concretos e reais factos que preenchem a previsão da norma jurídica na qual a parte funda o seu direito. Isto é, o autor está obrigado à alegação e prova dos factos que, segundo a norma substantiva aplicável, servem de pressuposto ao efeito jurídico por ele pretendido.
Vista a Doutrina, analisemos, agora, a Jurisprudência.
Esta tem vindo a considerar que a petição inicial é inepta, por falta de causa de pedir, quando o Autor não indica o núcleo essencial do direito invocado, tornando ininteligível a sua pretensão.
A petição inicial é inepta por ininteligibilidade quando os factos e a conclusão são nela expostos em termos de tal modo confusos, obscuros ou ambíguos que não possa apreender-se qual é o pedido ou a causa de pedir.
contradição entre a causa de pedir e o pedido quando não exista um nexo lógico entre ambos. Existindo um nexo lógico entre ambos, não há contradição, podendo, apenas, ocorrer uma situação de improcedência, por a causa de pedir não ser bastante para alicerçar o pedido.[18]
Como se refere no Ac. do TRP de 27.5.2010, in proc. 5623/09.0TBVNG.P1., é por referência aos factos, independentemente da qualificação jurídica que deles hajam feito as partes, que haverá de indagar-se da concordância prática entre tais factos, enquanto causa de pedir, e a concreta pretensão jurídica formulada. E a este respeito, como refere A. Varela in Revista de Legislação e de Jurisprudência, ano 121º, nº 3769, págs. 121, é no sentido da incompatibilidade lógica entre o facto real, concreto, individual, invocado pelo autor como base da sua pretensão (causa de pedir) e o efeito jurídico, por ele requerido (pedido) através da acção judicial, que a doutrina e a jurisprudência justificadamente interpretam, aplicam a contradição prevista (e regulada) na alínea b).
“Assim, porque a contradição do pedido com a causa de pedir representa uma contradição intrínseca ou substancial insanável, por não existir entre eles o mesmo nexo lógico que entre as premissas de um silogismo e a sua conclusão, não gera a ineptidão da petição inicial a circunstância de a alegada causa de pedir, conexionada logicamente com o pedido, não ser bastante para alicerçar este, pois o que então se coloca é um problema de improcedência (cfr. Acs. do S.T.J de 7/7/88 in BMJ 379º-592 e de 14/3/90 in A.J. 2º.-90 e Ac. da R.E. de 7/4/83 in BMJ 328º.-656)” - Ac do TCAS de 24-2-2005, proc 06656/02, in www.dgsi.pt”[19].
Para que se verifique ineptidão da petição inicial é necessário que a alegação consistente na causa de pedir seja feita em termos genéricos tais que não ilustre e evidencie, em factos concretos, o objeto do litígio, ou que essa generalidade, ou deficiência por escassez ou falta de completa inteligibilidade, permita sem esforço de imaginação compreender qual é a causa de pedir, de tal forma que, em si mesma e mesmo sem aperfeiçoamento, autoriza um julgamento e uma decisão sobre o seu mérito.
A ineptidão da petição inicial supõe que o A. não haja definido factualmente o núcleo essencial da causa de pedir invocada como base da pretensão que formula, obstando tal deficiência a que a ação tenha um objeto inteligível. A mera insuficiência na densificação ou concretização adequada de algum aspecto ou vertente dos factos essenciais em que se estriba a pretensão deduzida (implicando que a petição, caracterizando, em termos minimamente satisfatórios, o núcleo factual essencial integrador da causa petendi, omite a densificação, ao nível tido por adequado à fisionomia do litígio, de algum aspecto caracterizador ou concretizador de tal factualidade essencial) não gera o vício de ineptidão, apenas podendo implicar a improcedência, no plano do mérito, se o A. não tiver aproveitado as oportunidade de que beneficia para fazer adquirir processualmente os factos substantivamente relevantes, complementares ou concretizadores dos alegados, que originariamente não curou de densificar em termos bastantes.[20]
No referido Acórdão do STJ, relatado pelo Ilustre Conselheiro Lopes do Rego, escreve-se, “a insuficiência na densificação ou concretização da matéria litigiosa … nunca poderia gerar o vício de ineptidão – devendo distinguir-se claramente esta figura (que implica que, por ausência absoluta de alegação dos factos que integram o núcleo essencial da causa de pedir, o processo careça, em bom rigor, de um objecto inteligível) da mera insuficiência na densificação ou concretização adequada de algum aspecto ou vertente dos factos essenciais em que se estriba a pretensão deduzida (implicando que a petição, caracterizando, em termos minimamente satisfatórios, o núcleo factual essencial integrador da causa petendi, omita a densificação, ao nível tido por adequado à fisionomia do litígio, de algum aspecto caracterizador ou concretizador de tal factualidade essencial).
É que, neste caso, movemo-nos já no plano, não do vício de ineptidão da petição, mas da insuficiente alegação de um facto concretizador dos factos essenciais efectivamente alegados, podendo tal insuficiência de concretização factual (mesmo que não haja sido oportunamente detectada, em termos de originar a formulação de um convite ao aperfeiçoamento, na fase de saneamento) ser ainda suprida em consequência da aquisição processual de tais factos concretizadores, se revelados no decurso da instrução, nos termos do nº3 do art. 264º do velho CPC, vigente na data da realização da audiência nos presentes autos.
E, como é evidente, se tal falta de densificação ou concretização adequada dos factos substantivamente relevantes, - de que depende, afinal, a procedência da pretensão do A. - nem mesmo assim se puder ter por suprida, a consequência de tal insuficiência da matéria de facto processualmente adquirida não será a anulação de todo o processo, mas antes a improcedência, em termos de juízo de mérito, da própria acção, por o A. não ter logrado, afinal, apesar das amplas possibilidades processuais de que beneficiou, alegar e provar cabalmente todos os elementos factuais constitutivos de que dependia o reconhecimento do direito por ele invocado.
Ora, no caso dos autos, a originária insuficiência de alegação … nunca tornaria a petição inepta, sendo tal insuficiência de densificação factual suprível durante o processo, nos termos em que está admitida a aquisição processual de factos concretizadores dos que integram o núcleo essencial da causa de pedir invocada pelo A. – e conduzindo uma irremediável insuficiência da matéria de facto, caso o A. não tenha aproveitado as oportunidades que a lei de processo lhe confere para suprir durante o processo tal originária deficiência na densificação factual dos factos substantivamente relevantes que alegou na petição, não à absolvição da instância do R., mas à improcedência da acção, por insuficiência do acervo factual constitutivo do direito por ele invocado. Importa, por outro lado, realçar que – independentemente de tal preclusão – a insuficiência na densificação ou concretização da matéria litigiosa, notada no acórdão recorrido (e de algum modo acentuada pelo decidido pelo STJ no Ac.de 19/2/13, ao apagar da matéria de facto provada a conclusão de que a parcela física em litígio fazia parte do prédio reivindicado pelos AA.) , nunca poderia gerar o vício de ineptidão – devendo distinguir-se claramente esta figura (que implica que, por ausência absoluta de alegação dos factos que integram o núcleo essencial da causa de pedir, o processo careça, em bom rigor, de um objecto inteligível) da mera insuficiência na densificação ou concretização adequada de algum aspecto ou vertente dos factos essenciais em que se estriba a pretensão deduzida (implicando que a petição, caracterizando, em termos minimamente satisfatórios, o núcleo factual essencial integrador da causa petendi, omita a densificação, ao nível tido por adequado à fisionomia do litígio, de algum aspecto caracterizador ou concretizador de tal factualidade essencial)”.
Assim, sendo o normal e expectável que o processo culmine numa decisão de mérito a solucionar a questão submetida à apreciação do tribunal, com o privilegiar da substância à forma, nem sempre isso se revela possível e adequado, sendo que determinadas falhas processuais atingem uma gravidade tal que não podem deixar de determinar a inevitabilidade de um resultado formal, a que nem intervenção do juiz consegue obviar[21].
Verificando-se exceção dilatória sanável, o juiz deve convidar a parte a suprir a falta ou, em determinadas situações, acionar, mesmo oficiosamente, os mecanismos de suprimento (arts. 6º, nº2 e 590º, nº2 a)). Com efeito, estatui este nº3, do art. 278º, “As exceções dilatórias só subsistem enquanto a respetiva falta ou irregularidade não for sanada, nos termos do n.º 2 do artigo 6.º;…”
In casu verifica-se que a Requerente alegou os concretos, específicos, factos que integram a causa de pedir, não se verificando a falta desta nem falta do pedido, bem resultando o mesmo do requerimento inicial (cfr., desde logo, o que nele se requer no art. 32º, a não poder, simplesmente, ser ignorado, por não constar da parte final, o que nunca seria adequado nem proporcional). Consequentemente, não se verifica ineptidão do requerimento inicial nos termos do disposto art. 186º, nº1, al. a) do CPC, a acarretar nulidade de todo o processo, exceção dilatória a obstar ao conhecimento do mérito da causa e a dar lugar à absolvição do sujeito passivo da instância (cf. arts. 576º, nº 1 e 2 e 577º, al. b) do CPC).
Ao invés, a causa de pedir vem alegada e o pedido encontra-se formulado no articulado com que se introduziu a ação em juízo, impondo, razões de adequação e proporcionalidade, que despacho de aperfeiçoamento (no que se entenda necessário, designadamente quanto a documentos que devam ser juntos e especificações a efetuar), seja proferido, pois que do requerimento inicial bem resulta o pedido e a causa de pedir em que o mesmo assenta, nunca se podendo afirmar a falta de pedido nem a de causa de pedir, bem densificada.
Vejamos.
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- Do regime jurídico dos maiores acompanhados: requisitos do acompanhamento

O regime jurídico dos maiores acompanhados foi consagrado com grande maleabilidade, sendo suscetível de integrar vastas situações carecidas de tutela – v. art. 138º, do CC “maior impossibilitado, por razões de saúde, deficiência, ou pelo seu comportamento, de exercer, plena, pessoal e conscientemente, os seus direitos ou de, nos mesmos termos, cumprir os seus deveres”- e possibilitando a adoção das medidas que, dentro de um vasto leque, concretamente se vierem a revelar mais adequadas para o caso.
O regime atual, “do acompanhamento de maiores”, resultou, precisamente, de o anterior quadro legal se revelar insuficiente para dar cobertura a outras situações merecedoras de tutela legal, pois, desde logo, “O aumento da longevidade passou também a evidenciar a necessidade de serem adotadas medidas em função da perda progressiva da autonomia por via do envelhecimento ou de afeções degenerativas de natureza física ou psíquica. Na maioria das situações, são identificáveis graus de autonomia pessoal diferenciados que há que respeitar e preservar condignamente, sem acentuar em demasia interesses de terceiros relativamente ao património dessas pessoas”[22]. “Daí a necessidade de flexibilizar o regime jurídico dos maiores acompanhados, segundo um modelo em que as medidas a adotar são determinadas em função das concretas circunstâncias de ordem pessoal do visado (…) Para o efeito, foi seguido o modelo de acompanhamento por ser “o que melhor corresponde à profunda intenção normativa e cultural de tratar o visado como ser humano em parte inteira, com direito à solidariedade e ao apoio que se mostrem necessários” (Meneses Cordeiro. “Da Situação jurídica do maior acompanhado”, na Rev. de Direito Civil, 2018, nº3, p. 547) acrescentando que “o acompanhamento visa a dignidade e a liberdade das pessoas; ele procura salvaguardar e ampliar a sua autonomia e o âmbito da sua vida privada”[23].
Consagrando o Código Civil, que o acompanhamento do maior visa assegurar o seu bem-estar, a sua recuperação, o pleno exercício de todos os seus direitos e o cumprimento dos seus deveres, salvo as exceções legais ou determinadas por sentença (n.º 1, do art. 140º) e que a medida não tem lugar sempre que o seu objetivo se mostre garantido através dos deveres gerais de cooperação e de assistência que no caso caibam (n.º 2, do referido artigo), conferiu-se ao beneficiário a escolha do acompanhante, sujeita, no entanto, a confirmação pelo Tribunal (n.º 1, do artigo 143º), estabelecendo este artigo, com a epígrafe “Acompanhante”:
1- O acompanhante, maior e no pleno exercício dos seus direitos, é escolhido pelo acompanhado ou pelo seu representante legal, sendo designado judicialmente.
2- Na falta de escolha, o acompanhamento é deferido, no respectivo processo, à pessoa cuja designação melhor salvaguarde o interesse imperioso do beneficiário, designadamente:
a) Ao cônjuge não separado, judicialmente ou de facto;
b) Ao unido de facto;
c) A qualquer dos pais;
d) À pessoa designada pelos pais ou pela pessoa que exerça as responsabilidades parentais, em testamento ou em documento autêntico ou autenticado;
e) Aos filhos maiores;
f) A qualquer dos avós;
g) À pessoa indicada pela instituição em que o acompanhado esteja integrado;
h) Ao mandatário a quem o acompanhado tenha conferido poderes de representação;
i) A outra pessoa idónea.
3- Podem ser designados vários acompanhantes com diferentes funções, especificando-se as atribuições de cada um, com observância dos números anteriores.”, dispondo o artigo 144.º do Código Civil, quanto a Escusa e exoneração do acompanhante:
“1- O cônjuge, os descendentes ou os ascendentes não podem escusar-se ou ser exonerados.
2- Os descendentes podem ser exonerados, a seu pedido, ao fim de cinco anos, se existirem outros descendentes igualmente idóneos.
3- Os demais acompanhantes podem pedir escusa com os fundamentos previstos no artigo 1934.º ou ser substituídos, a seu pedido, ao fim de cinco anos”.
O artigo 145.º com a epígrafe “Âmbito e conteúdo do acompanhamento” consagra:
“1- O acompanhamento limita-se ao necessário.
2- Em função de cada caso e independentemente do que haja sido pedido, o tribunal pode cometer ao acompanhante algum ou alguns dos regimes seguintes:
a) Exercício das responsabilidades parentais ou dos meios de as suprir, conforme as circunstâncias;
b) Representação geral ou representação especial com indicação expressa, neste caso, das categorias de actos para que seja necessária;
c) Administração total ou parcial de bens;
d) Autorização prévia para a prática de determinados actos ou categorias de actos;
e) Intervenções de outro tipo, devidamente explicitadas.
3- Os actos de disposição de bens imóveis carecem de autorização judicial prévia e específica.
4- A representação legal segue o regime da tutela, com as adaptações necessárias, podendo o tribunal dispensar a constituição do conselho de família.
5- À administração total ou parcial de bens aplica-se, com as adaptações necessárias, o disposto nos artigos 1967.º e seguintes”.
Assim, o princípio do mínimo necessário, consagrado no artigo 145º, do Código Civil, impõe proporcionalidade entre a medida adotada e a situação apurada, a fim de preservar, na medida do possível, a autonomia e dignidade do beneficiário, cuja esfera pessoal só pode ser invadida da forma estritamente necessária a suprir as concretas deficiências e incompatibilidades detetadas – o indispensável à satisfação do imperioso interesse do acompanhado, com observância do princípio do aproveitamento de toda a capacidade de exercício e de gozo do mesmo.
O referido artigo consagra, exemplificativamente, medidas que visam suprir, independentemente da sua causa, a maior fragilidade do beneficiário, salvaguardando tanto quanto possível a sua autonomia[24].
Resulta do referido artigo 138º, do CC, e da al. a), do nº1, do art. 892º, do CPC, serem dois os requisitos do acompanhamento, tendo os factos a revelar e a densificar a necessidade das medidas de acompanhamento - que “justificam a proteção do maior através de acompanhamento” - de ser concretizados no requerimento inicial, para serem objeto de instrução:
i)- Um “de ordem subjetiva correspondente à impossibilidade de o sujeito se autodeterminar no que respeita ao exercício dos seus direitos, bem como à assunção e ao cumprimento dos seus deveres, o que permite que o acompanhamento possa ser decretado em relação a situações transitórias e temporárias”[25];
ii)- Outro “de ordem objetiva demanda que a impossibilidade referida derive de razões de saúde, de deficiência ou do comportamento do beneficiário. As razões de saúde abrangem as patologias de ordem física e psíquica, num alargamento do quadro dos fundamentos das interdições, abarcando situações transitórias como as decorrentes de um acidente ou de uma intervenção cirúrgica. A deficiência corresponde a “qualquer perda ou anomalia da estrutura ou função psicológica, fisiológica ou anatómica, contemplando, quer as alterações orgânicas, quer as funcionais”, integrando três dimensões, física (somática), mental (psíquica) e situacional (handicap) (…) desde que a deficiência limite a desempenho do sujeito em termos volitivos e/ou cognitivos. No que respeita ao comportamento, justificam o decretamento do acompanhamento os casos de comportamento pródigo ou condicionado pelo abuso de bebidas alcoólicas e estupefacientes e outras situações “em que o indivíduo tem uma compulsão para determinado tipo de comportamento que coarta a sua liberdade ou em que, fruto de um dado comportamento, perde a possibilidade de, sem qualquer condicionante de tipo aditivo ou de outro tipo, dominar a sua vontade, vendo-se, por isso, impossibilitado de exercer os seus direitos de forma livre””[26].
O acompanhamento só será decretado se estiverem verificadas duas condições: a necessidade da medida (requisito de ordem positiva) e a não suscetibilidade dessa medida ser suprida por via dos deveres gerais de cooperação e de assistência (requisito de ordem negativa)[27]
Dada a multiplicidade de circunstâncias, necessário se torna, apurar, com rigor, a situação, de fragilidade, do caso, para que, depois de o mesmo delimitado facticamente, e com os contornos das vertentes pessoal e patrimonial, se possa efetuar a subsunção jurídica e determinar o acompanhamento que se impõe.

- A concreta situação
No caso vem pedida a medida de acompanhamento de representação geral do beneficiário, por o mesmo padecer de total e absoluta incapacidade, por razões de saúde, de governar a sua pessoa e os seus bens, sofrendo de inúmeras doenças, entre elas demência (designadamente Alzheimer), parkinson, diabetes, cegueira, fala e equilíbrio condicionados em resultado de AVC, não se consegue movimentar sozinho, padece de deterioração cognitiva, anomalia psíquica, tendo dificuldades a responder a questões básicas como data e dia da semana, não se conseguindo vestir, alimentar nem situar no tempo e espaço.
Assim, concretizados estando, no requerimento inicial, o pedido e a causa de pedir, nunca se pode sustentar a sua falta, mesmo que aquele se não encontre completamente individualizado a final.
Encontram-se, no requerimento inicial, alegados os factos que fundamentam a legitimidade e que justificam a proteção do maior através de acompanhamento, vem requerida medida de acompanhamento que se considerou necessária e foi indicado quem deve ser o acompanhante, juntos tendo, também sido elementos que indiciam a situação clínica alegada.
No caso, bem resulta a alegação da incapacidade imputada ao beneficiário, com handicaps e limitações (quer no que respeita ao governo da sua pessoa quer no que concerne à administração dos seus concretos bens – demência), a provar, quer quanto ao tendente a apurar das concretas medidas idóneas a supri-la, com preservação do grau de autonomia possível do mesmo.
Insuficiências, designadamente de documentos que, ainda, entenda verificarem-se, e suprimentos que o Tribunal a quo considere necessários, podem ser pedidos ou, nos termos expostos, oficiosamente determinados.
Neste conspecto, procedem as conclusões da apelação, e por ocorrer violação dos normativos invocados pela apelante, deve a decisão recorrida ser revogada.
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III. DECISÃO
Pelos fundamentos expostos, os Juízes do Tribunal da Relação do Porto acordam em julgar a apelação procedente e, por se não verificar nulidade de todo o processo, revogam a decisão recorrida e determinam o prosseguimento dos autos.
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Sem custas.

Porto, 4 de abril de 2022
Assinado eletronicamente pelos Juízes Desembargadores
Eugénia Cunha
Maria José Simões
Abílio Costa
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[1] Cfr. António Santos Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, O Código de Processo Civil Anotado, vol. II, Almedina, pág. 336, onde se refere ter a remissão do nº2, do art. 895º, do CPC “de ser entendida como feita apenas para a situação em que o autor é o Min. Público (cf. Teixeira de Sousa, “O regime de acompanhamento de maiores alguns aspectos processuais”, em www.cej.mj.pt)”.
[2] António Santos Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, O Código de Processo Civil Anotado, vol. II, Almedina, pág. 331
[3] Ac. RP de 28/2/2021, proc. 1050/20.6T8PRD.P1, in dgsi.pt
[4] Pedro Callapez, Acompanhamento de maiores, in Processos Especiais, Rui Pinto e Ana Alves Leal (coordenação), vol. I, AAFDL Editora, pág. 105
[5] Não sendo o processo de acompanhamento de maiores, formalmente, um processo de jurisdição voluntária, “em termos substanciais” pode ser qualificado como tal – cfr. Miguel Teixeira de Sousa, O novo Regime Jurídico do Maior Acompanhado, in E-book do Centro de Estudos Judiciários, 2019, p. 46 e v., ainda, Ac. RL de 26 de setembro de 2019, proc. 735/17, citados por Pedro Callapez, Acompanhamento de maiores, in Processos Especiais, Rui Pinto e Ana Alves Leal (coordenação), vol. I, AAFDL Editora, pág. 105
[6] Pedro Callapez, Acompanhamento de maiores, in Processos Especiais, Rui Pinto e Ana Alves Leal (coordenação), vol. I, AAFDL Editora, pág. 105 e seg e António Santos Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, O Código de Processo Civil Anotado, vol. II, Almedina, pág. 331
[7] António Santos Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, O Código de Processo Civil Anotado, vol. II, Almedina, pág. 337
[8] António Santos Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, O Código de Processo Civil Anotado, vol. I, 2ª edição, Almedina, pág. 532
[9] Abílio Neto, Novo Código de Processo Civil Anotado, 4ª Edição, 2017, Ediforum Edições Jurídicas, Lda, pág 291
[10] Alberto dos Reis, Comentários ao Código de Processo Civil, 2º, 364.
[11] Ibidem, pág. 371
[12] Ibidem, pág 372
[13] Vaz Serra, RLJ, 109º, 313
[14] Alberto dos Reis, idem, pág. 381
[15] Anselmo de Castro, Direito Processual Civil Declaratório, vol.II, pág. 221
[16] Rodrigues Bastos, Notas ao Código Processo Civil, vol. I, pág. 253,
[17] Miguel Teixeira de Sousa, Sobre a teoria do Processo Declarativo 1980, págs. 158
[18] Ac. da RG de 24/4/2012, proc. 2281/11.5TBGMR.G1, in dgsi.net
[19] Ac. do TRP de 27.5.2010, in proc. 5623/09.0TBVNG.P1, in dgsi.net
[20] Ac. do STJ de 26/3/2015, Processo 6500/07.4TBBRG.G2,S2, in dgsi.net
[21] António Santos Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, O Código de Processo Civil Anotado, vol. I pág. 340
[22] António Santos Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, O Código de Processo Civil Anotado, vol. II, Almedina, pág. 329
[23] Ibidem, pág. 330
[24] Pedro Callapez, Acompanhamento de maiores, in Processos Especiais, Rui Pinto e Ana Alves Leal (coordenação), vol. I, AAFDL Editora, pág. 99
[25] António Santos Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, O Código de Processo Civil Anotado, vol. II, Almedina, pág. 330
[26] Ibidem, pág. 330 e seg.
[27] Pedro Callapez, Acompanhamento de maiores, in Processos Especiais, Rui Pinto e Ana Alves Leal (coord.), vol. I, AAFDL Editora, pág. 108 e v. Ac. RP de 26/9/2019, aí citado