Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
458/14.0PBAVR.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: NUNO RIBEIRO COELHO
Descritores: ACUSAÇÃO MANIFESTAMENTE INFUNDADA
LUGAR DA PRÁTICA DO FACTO
SMS [SHORT MESSAGE SERVICE]
CONVERSA TELEFÓNICA
Nº do Documento: RP20160217458/14.0PBAVR.P1
Data do Acordão: 02/17/2016
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC PENAL
Decisão: PROVIDO
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO, (LIVRO DE REGISTOS N.º 986, FLS.199-202)
Área Temática: .
Sumário: Não deve ser rejeitada, por manifestamente infundada, a acusação que omite o lugar da prática dos factos quando estão em causa o envio/recebimento de mensagens [sms] e conversações telefónicas para telemóvel.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo 458/14.0PBAVR.P1

Acordam, em conferência, na 1.ª Secção Criminal deste Tribunal da Relação do Porto:

I. RELATÓRIO
O Ministério Público, por não concordar com o despacho de 1/10/2015 que rejeitou a acusação deduzida contra B…, apresentada a julgamento, por entender que a mesma era manifestamente infundada, vem dele interpor recurso pedindo a revogação daquele mesmo despacho e a sua substituição por outro que receba a acusação e designe a audiência de julgamento.
A motivação deste recurso conclui da seguinte forma:
1) O Ministério Público deduziu acusação contra o arguido B… imputando-lhe, para julgamento em processo comum e com intervenção do tribunal singular, a prática, em autoria material e em concurso real, de um crime de ameaça, na forma continuada, previsto e punido pelas disposições conjugadas dos artigos 153º, n.º 1 e 30º, n.º 2, do Código Penal, e de um crime de violação de domicílio ou perturbação da vida privada, previsto e punido pelo artigo 190º, n.ºs 1 e 2, do Código Penal.
2) Por douto despacho proferido em 01/10/2015 (referência 87626578) a Mma. Juiz a quo rejeitou a acusação pública deduzida pelo Ministério Público por manifestamente infundada em virtude de não conter a narração dos factos, designadamente por não indicar o lugar a prática dos factos, nos termos do artigo 311º, n.º 2, alínea a) e n.º 3, alínea d), do Código de Processo Penal.
3) Decorre do libelo acusatório que naquele são descritos factos que fundadamente permitem imputar ao arguido a prática dos supra referidos crimes.
4) Efectivamente, compulsada a acusação pública verifica-se que naquela se inclui a identificação do arguido, a narração dos factos, as normas incriminadoras e as provas que a fundamentam, sendo que os factos descritos constituem crime, pelo que, em nosso entendimento, nenhum fundamento existe para que se proceda à rejeição da acusação.
5) O facto de não constar da acusação o lugar da prática dos factos (ou seja, de não se identificar o local onde a ofendida se encontrava quando recebeu cada SMS e cada telefonema do arguido) não é, salvo o devido respeito por melhor opinião, fundamento para a acusação ser considerada nula nem para a rejeição da acusação, em virtude de aquele não ser um elemento essencial.
6) O artigo 283º, n.º 3, alínea b), do Código de processo Penal, não impõe que na acusação se tenha de necessariamente narrar o lugar da prática dos factos, devendo aquele ser incluída “se possível”.
7) A Mma. Juiz a quo ao rejeitar a acusação por a considerar manifestamente infundada por não conter narração dos factos, salvo o devido respeito por opinião contrária, violou o disposto nos artigos 153º, n.º 1 e 190º, n.ºs 1 e 2, do Código Penal e artigos 311º, n.ºs 2, alínea a) e n.º 3, alínea b) e 283º, n.º 3, alínea b), do Código de Processo Penal.
Na resposta ao recurso o arguido pugna pela improcedência do mesmo
I- Só pela indicação do tempo e lugar da prática dos factos indiciados na acusação se pode conhecer o tribunal territorialmente competente para o julgamento e a tempestividade, de conhecimento oficioso, do procedimento criminal;
II – A omissão de tais elementos, sendo possível a sua indicação, acarreta a nulidade da acusação;
III – O douto despacho recorrido, escolheu, interpretou e aplicou correctamente as normas do CPP adequadas ao caso e, por isso, não existe razão para que o douto despacho seja alterado, pelo que deve ser mantido,
Assim se fazendo Justiça,
Foi admitido o recurso e mandado subir a este tribunal de recurso.
O Ex.mo Procurador-geral Adjunto apôs o seu visto.
Colhidos os demais vistos legais, cumpre decidir.
***
II. FUNDAMENTAÇÃO
Há que tomar em linha de conta o teor da decisão recorrida, no que respeita à sua fundamentação e à descrição do teor da matéria da acusação em causa:
. O Ministério Público encerrou o inquérito e, para além do mais, deduziu acusação pública contra o B… para julgamento em processo comum com intervenção do tribunal singular, pela prática, em autoria material e em concurso real, de um crime de ameaça, na forma continuada, previsto e punido pelas disposições conjugadas dos artigos 153º, n.º 1 e 30º, n.º 2, do Código Penal, e de um crime de violação de domicílio ou perturbação da vida privada, previsto e punido pelo artigo 190º, n.ºs 1 e 2, do Código Penal, porquanto:
“O arguido e a ofendida C… mantiveram uma relação de namoro, tendo a mesma ofendida, em data situada pouco antes do mês de setembro de 2013, comunicado ao arguido que pretendia pôr termo àquela relação, isto numa altura em que o mesmo se encontrava preso no Estabelecimento Prisional de Santa Cruz do Bispo, em Matosinhos.
Desagradado com aquela decisão da ofendida, desde aquela data e até Junho de 2014, por diversas ocasiões e visando atentar contra a paz e sossego da mesma ofendida, o arguido, a partir do seu aparelho de telemóvel que se encontra apreendido nos autos, melhor descrito a fls. 138, no qual usou os cartões com os números ………, ………, ………, ………, efectuou diversas chamadas telefónicas e enviou diversas mensagens de texto e de fotografia para o telemóvel da ofendida, este com o número ………, designadamente, as mensagens que se encontram fotografadas a fls. 40 a 46 dos autos, cujo teor aqui se reproduz integralmente, a as chamadas telefónicas cujos registos se encontram transcritos no relatório de exame pericial efetuado ao dito telemóvel do arguido, constante de fls. 163 a 170.
Entre aquelas mensagens enviadas pelo arguido à ofendida C…, contam-se as que, de seguida, se transcrevem:
- “Olha desculpa mas não stress pode fazer mal a criança continua a foder podes não tar gravida adeus até um dia destes pena 1ano, 1mes e 8 dias. ta a chegar o dia do acerto”, recebida em 12-01-2014;
- “Não atendes já falta pouco miuda”, recebida em 11-02-2014;
- “Tudo o k sofri vais sofrer nem k seja a ultima coisa que faça, felicidades eu tou a ficar livre, a droga k vao apanhar e tua e vens passar umas ferias l já sabes a tua paz ta a chegar ao fim”, recebida em 17-02-2014;
- “minha morte vais sofrer em dobro puta de merda .nao a dia k passe k não te deseje uma cadeira de rodas”, recebida em 26-04-2014;
- “Aproveita enquanto podes puta quando chegar a hora não te vou avisar besos e mts picas tchau puta e corno”, recebida em 08-05-2014;
- “O teu calvario ta a começar. Ai ta mesmo vais desejar desaparecer não duvides puta de merda”, recebida em 09-05-2014.
Ao dirigir à ofendida C… as expressões que acima se transcreveram, agiu o arguido com a intenção de criar na mesma medo ou inquietação ou prejudicar a sua liberdade de determinação, bem sabendo que a sua conduta era adequada a causar tal resultado.
Sabia ainda, o arguido, que ao telefonar insistentemente para o telemóvel da mesma C…, conhecedor de que a mesma não pretendia receber esses telefonemas, perturbava a paz e o sossego da mesma ofendida, resultado esse que pretendeu e logrou atingir, pois que bem sabia que a sua conduta era também adequada a obter esse resultado.
O arguido agiu sempre de modo livre, voluntário e consciente, não ignorando que a toda sua conduta era proibida e punida pela lei penal.”.
. A decisão recorrida tem o seguinte teor:
“CONCLUSÃO - 01-10-2015
(Termo eletrónico elaborado por Escrivão Adjunto D…)
=CLS=
Nos presentes autos foi deduzida acusação pública contra B… imputando-lhe a prática, em autoria material e em concurso real, de um crime de ameaça, p.p. pelos artigos 153°, n°1 e 30°, n°2 ambos do Código Penal e de um crime de violação de domicílio ou perturbação da vida privada, p.p. pelos artigos 190°, n°s 1 e 2 do mesmo diploma legal.
Nos termos do artigo 283.° CPP, a acusação formulada pelo Ministério Público deve, por força do seu n.° 3, conter, sob pena de nulidade:
a) As indicações tendentes à identificação do arguido;
b) A narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhe deve ser aplicada; ..."
Por sua vez, o art.° 311.° do CPP permite que:
"2 - Se o processo tiver sido remetido para julgamento sem ter havido instrução, o presidente despacha no sentido:
a) De rejeitar a acusação, se a considerar manifestamente infundada;
3 - Para efeitos do disposto no número anterior, a acusação considera-se manifestamente infundada:
a) Quando não contenha a identificação do arguido;
b) Quando não contenha a narração dos factos;
c) Se não indicar as disposições legais aplicáveis ou as provas que a fundamentam;
ou
d) Se os factos não constituírem crime."
Deste último citado preceito se extrai que ao Juiz, quando recebe o processo com vista a receber a acusação deduzida e a marcar julgamento, é permitido rejeitar a acusação quando a mesma for manifestamente infundada, adiantando desde logo, quais as situações em que mesma acusação tem aquela característica.
Destacamos dentre elas, com interesse para o caso concreto, as situações em que "não contenha a narração dos factos", o que, conjugadas com o disposto no art.° 283° CPP acima referido, equivale a dizer quando a acusação estiver afectada de nulidade por omissão de narração dos factos e nestes, sendo tal possível, não estejam indicados "o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve".
Revertendo para o caso concreto, a acusação em causa não indica o lugar do cometimento dos factos, quer os relativos ao envio das mensagens quer às várias chamadas telefónicas efectuadas à ofendida C….
Deste modo, a acusação de fls. 172 a 174 em causa é omissa quanto à falta de narração dos factos que constituem crime punível pelo que, nos termos dos artigos 311°, n°2, al.) a e n°3, al. d) do Código de Processo Penal rejeito a mesma.
Notifique.
Aveiro, 6 de Outubro de 2015
(texto elaborado em computador e integralmente revistopelo(a) signatário(a).
O/A Juiz de Direito,
Dr(a). E…”
***
Em face desta matéria factual há que nos pronunciarmos sobre a pertinência e a validade dos fundamentos do recurso apresentado.
A questão aqui em discussão tem a ver com o enquadramento dos pressupostos que basearam a rejeição jurisdicional desta acusação levada a julgamento pelo Ministério Público, averiguando se o mesmo libelo acusatório pode-se qualificar como manifestamente infundado.
Diz-nos o Ministério Público, aqui recorrente, que a acusação deduzida contra o arguido B… contém a descrição dos factos que fundadamente permitem imputar ao arguido a prática dos supra referidos crimes. Naquela se inclui a identificação do arguido, a narração dos factos, as normas incriminadoras e as provas que a fundamentam, sendo que os factos descritos constituem crime, pelo que, em nosso entendimento, nenhum fundamento existe para que se proceda à rejeição da acusação.
Cumpre apreciar.
De harmonia com o disposto no Art.º 311.º, n.º 2, al. a), do CPPenal, o juiz pode rejeitar a acusação, quando esta é manifestamente infundada.
Este conceito normativo encontra-se descrito nas alíneas a) a d) do n.º 3, do preceito referido.
Assim, o juiz, deve rejeitar a acusação, quando, faltar a identificação do acusado, a narração de factos, a identificação da incriminação ou das provas que a suporta, ou, ainda, quando os factos ali descritos não constituam crime.
É sabido que os poderes do juiz (de julgamento) sobre a acusação, antes do julgamento, são limitados, isto é, deve apenas controlar os vícios estruturais graves da acusação referidos neste mesmo preceito legal.
Aquele conceito de acusação «manifestamente infundada», assente na omissa narração dos factos deve aproximar-se da previsão do Art.º 283.º, n.º 3, alínea b), do Código de Processo Penal, que sanciona com a nulidade a acusação que não contenha a narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhe deve ser aplicada.
Ora, tal como defende o Ministério Público no seu recurso e tem expressado a jurisprudência produzida nesta matéria da narração dos factos e do local do seu cometimento, sabendo-se também que o crime em causa foi cometido por via da transmissão de mensagens telefónicas e se presume que as mesmas terão sido recebidas nos locais habituais da vida social e familiar dos intervenientes na história relatada pela acusação.
A relativa excepcionalidade da aplicação da consequência da rejeição da acusação, por manifestamente infundada, está reflectida na conjugação dos arts. arts. 283.º, n.º 3, e 311.º, n.º 3, na medida em que se o vício cominado quanto à falta de requisitos da acusação é de nulidade sanável (arts. 119.º a contrario e 120.º do CPP), não se compreenderia que, na prolação desse despacho, se cominasse alguma deficiência, desde que manifestamente suprível, com a imediata rejeição da mesma.
Assim, não se aceita, por excessiva e desproporcional, a posição defendida no despacho recorrido que rejeita a acusação deduzida pelo Ministério Público por omitir o lugar da prática dos factos, sendo que, objectivamente, as mensagens de texto alegadamente injuriosas, teriam sido enviadas pelo arguido e recepcionadas no telemóvel da ofendida.
Dada a forma de transmissão dessas mensagens, compreende-se que alguma dificuldade existiria, para o Ministério Público, quanto à concretização rigorosa do lugar da prática dos factos, designadamente à luz da regra geral definida pelo Art.º 7.º do Código Penal, aspecto importante para a determinação de qual o tribunal competente para o julgamento.
Assim, por todos, nos Acs. da RC de 21/4/2010, processo n.º 51/06.1TAFZZ.C1, disponível em http://www.dgsi.pt/jtrc.nsf/c3fb530030ea1c61802568d9005cd5bb/bcebf311b7c545fa8025771b004d1e91?OpenDocument, e de 13/10/2010, processo n .º 135/08.1GASEI.C1, disponível em http://www.dgsi.pt/jtrc.nsf/c3fb530030ea1c61802568d9005cd5bb/00048294d39c1b5d802577cf004e6960?OpenDocument; da RG de 23/3/2015, processo n.º 258/12.2PCBRG.G1, disponível em http://www.dgsi.pt/JTRG.NSF/86c25a698e4e7cb7802579ec004d3832/4e5903f95ed4d27380257e1a002fd75a?OpenDocument; e da RE de 6/10/2015, processo n.º 613/13.0TDEVR.E1, disponível em http://www.dgsi.pt/jtre.nsf/134973db04f39bf2802579bf005f080b/340062af724223af80257edc002dba79?OpenDocument.
Assim, na acusação pública em análise descrevem-se os números de telemóvel dos quais o arguido remete as SMS e faz os telefonemas à ofendida, bem como se indica o número de telemóvel em que a ofendida recebeu aquelas SMS e aqueles telefonemas, pelo que o simples facto de não ser indicado o local onde a ofendida se encontrava quando recebeu cada uma das SMS e cada um dos telefonemas não é fundamento, por desproporcional e excessivo, de rejeição da acusação deduzida.
Efectivamente, a acusação pública inclui a identificação do arguido, a narração dos factos, as normas incriminadoras e as provas que a fundamentam, sendo que os factos descritos constituem crime, pelo que, em nosso entendimento, nenhum fundamento existe para que se proceda à rejeição da acusação.
Nesta conformidade, o despacho recorrido, ao rejeitar a acusação por a considerar manifestamente infundada por não conter narração dos factos, em virtude de omitir a indicação do lugar onde a ofendida recebeu as SMS e os telefonemas enviadas e efectuadas pelo arguido, não efectuou, na verdade, uma correcta e adequada análise e apreciação da estrutura formal e do conteúdo do libelo acusatório, tendo violado o disposto nos Art.ºs 311.º, n.ºs 2, alínea a) e n.º 3, alínea b) e 283.º, n.º 3, alínea b), ambos do Código de Processo Penal, impondo-se a sua revogação e a substituição por outro que cuide do recebimento da acusação para julgamento do arguido, nos termos dos Art.ºs 311.º a 314.º, todos do CPPenal.
Não pode pois o recurso deixar de proceder.
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III. DECISÃO
Pelo exposto acordam os Juízes desta Relação em julgar procedente este recurso apresentado pelo Ministério Público, revogando-se o despacho impugnado de rejeição da acusação, o qual deverá ser substituído por outro que cuide do recebimento da acusação para julgamento do arguido, nos termos dos Art.ºs 311.º a 314.º, todos do CPPenal.
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Sem tributação, em face da procedência do recurso.
Notifique.
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Processado por computador e revisto pelo primeiro signatário (cfr. Art.º 94.º, n.º 2, do CPPenal).

Porto, 17 de Fevereiro de 2016
Nuno Ribeiro Coelho
Renato Barroso