Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
0632648
Nº Convencional: JTRP00039287
Relator: ATAÍDE DAS NEVES
Descritores: TRANSPORTE MARÍTIMO
CONTRATO DE TRANSPORTE
DIREITO DE RETENÇÃO
Nº do Documento: RP200606080632648
Data do Acordão: 06/08/2006
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO.
Decisão: CONFIRMADA A SENTENÇA.
Indicações Eventuais: LIVRO 674 - FLS. 148.
Área Temática: .
Sumário: I- O contrato de transporte marítimo de mercadorias pode, assim, ser definido como aquele pelo qual um determinado transportador se obriga a transportar por mar uma certa quantidade de mercadorias que lhe foram entregues em determinado porto por um carregador e entregá-las num outro porto a um destinatário, mediante o pagamento de uma determinada remuneração, o frete.
II- A Convenção de Bruxelas apenas se aplica ao contrato de transporte marítimo e este só abrange o tempo decorrido desde que as mercadorias são carregadas a bordo do navio até ao momento em que são descarregadas no porto de desembarque", pelo que "se, para além do transporte marítimo e após o desembarque da mercadoria, o armador está obrigado a fazer o seu transporte por terra para uma outra cidade, esta fase do trajecto não está sujeita à Convenção de Bruxelas".
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Acordam na 3ª Secção Cível do Tribunal da Relação do Porto

A A. B……, Lda instaurou no 1º Juízo Cível do Tribunal de Santa Maria da Feira os presentes autos de acção declarativa com processo ordinário, a que foi atribuído o nº …../03.3, pedindo a condenação da Ré C…….., Lda a pagar-lhe a quantia de € 48.000, acrescido de juros desde a citação, que ocorreu em 2003/Jul./07 (fls. 33) e até integral pagamento.

Para tanto, e em síntese, alegou o seguinte:

- Que no exercício da sua actividade de comércio de flores artificiais e artigos de decoração, tem vindo a solicitar à Ré os serviços desta de transportes e transitários, designadamente de mercadoria proveniente do extremo oriente, como sucedeu com o transporte de 250 volumes de artigos de Natal (pinhas decorativas e ramos de flores artificiais) que custaram-lhe o correspondente a € 16.108,68;

- Que, acordada a data da entrega do contentor com essa mercadoria, a R. exigiu-lhe o pagamento imediato desse transporte, quando até aí tinha sido acordado, para o efeito, um prazo de 45 dias, o que a A. não aceitou, não tendo por isso aquela descarregado o referido contentor nas suas instalações, apesar de para lá ter feito deslocar um camião com o dito contentor;

- Que, por tudo isto e como essa mercadoria já não é passiva de comercialização, a A. deixou de ter uma receita de € 48.000, valor que incorpora o preço de aquisição, custos e despesas inerentes à sua compra e lucros cessantes.

A Ré contestou aceitando que a A. lhe contratava os referidos transportes, cujo pagamento deveria ser realizado no prazo de 30 dias, mas que a mesma nunca cumpria, pelo que devido à acumulação desses atrasos, que chegaram a atingir os € 54.145,48, viu-se na obrigação de tomar medidas para a regularização desse débito, passando a exigir a partir de finais de Maio de 2002 que o pagamento dos transportes fosse efectuado de imediato.
Assim e apesar desta exigência, a A. encomendou-lhe o frete marítimo do dito contentor, com aqueles 250 volumes, que chegou ao porto de Leixões em 2002/Jul./09, tendo que insistir junto da mesma para efectuar a descarga nas instalações desta, local para onde em 29 desse mês se dirigiu um camião com o dito contentor, o qual não foi descarregado em virtude daquela não ter pago imediatamente pago o respectivo transporte, pugnando pela improcedência da acção.
Como consequência do sucedido a R. teve custos de armazenagem, depósito e transporte desse contentor desde 2002/Jul./13 até 2003/Fev./24, que liquidou num total de € 10.010,13, e enviou à A. em 2003/Mai./25, que sempre os devolveu, acrescendo por isso desde então juros entretanto vencidos no valor de € 292,90, perfazendo um total de € 10.303,03.
Mais sustentou que a partir de 2003IFev /25 e até 2003/Mai./26, os custos desse armazenamento, que é equivalente ao peso taxável de 23.157 kg., representam € 34,80 por dia, perfazendo até à apresentação da contestação (2003/Mai./27) € 3.201,60.
Assim e em reconvenção, a Ré pede a condenação da A. a pagar-lhe as quantias referidas sob os artigos 137º, 138º, 139º e 140º, ou seja:
a) € 13.504,63 (137º), acrescidos do pagamento dos respectivos juros vincendos à taxa de 12 %, calculados sobre € 10.010,13 (138º);
b) o valor devido a título de armazenagem e calculados a partir de 2003/Mai./27 (139º), valor esse determinável através da fórmula descrita sob os art. 132º a 136º deste articulado, ou seja, à razão de € 34,80 por dia.

A A. replicou, mantendo no essencial a sua versão inicial e impugnando os factos conducentes à reconvenção.
Proferiu-se o despacho saneador, organizando-se de seguida os factos provados e por provar, que mereceram reclamação, tendo sido esta indeferida.
Procedeu-se à audiência de julgamento, vindo a matéria de facto a ser decidida nos termos constantes do despacho de fls. 175, que não foi alvo de qualquer reclamação.

Foi proferia sentença que decidiu nos termos seguintes:
"Nos termos e fundamentos expostos, julga-se parcialmente procedente a presente acção proposta por "B…….., Lda. " contra "C……., Lda." e improcedente a reconvenção formulada por esta contra aquela e, em consequência, decide-se:
1.º) condenar a R. a pagar à A. a quantia de € 35.686,4, acrescidos de juros de mora desde a citação ocorrida em 2003/Jul./O7 (fls. 33) e até integral pagamento, à taxa legal vigente, que inicialmente foi de 12.%, sendo de 9,01 % desde 2004/Out./01 e 9,09% a partir de 2005/Jan./01.
2.º) absolver a A. do pedido reconvencional formulado pela R.. "

Inconformada com tal decisão, dela veio interpor recurso a Ré, oferecendo as suas alegações, que terminam com as seguintes conclusões:
I. Em face da prova testemunhal gravada a resposta aos pontos 14.º, 18.º, 19.º, 27.º, 28.º, 29.º e 32.º dos FACTOS PROVADOS teriam de merecer resposta forçosamente depoimentos diferente, na medida dos concretos produzidos por
- D……., com depoimento gravado na cassete I, lado B, contagem de 651 a 1726 e cassete 2, lado A de 0 a 934,
- E……., com depoimento gravado na cassete 2, Lado A, contagem de 934 a 1320,
- F……., com depoimento gravado na cassete 2, lado A, contagem de 1320 a 2484 e na cassete 2, lado B, contagem de 0 a 869;
- G……., com depoimento gravado na cassete 2, lado B, contagem de 945 a 2079. Cassete 2, lado B, 2079 a 2484 e cassete 3, lado A, de 0 a 2283 e
- H…….., com depoimento gravado na cassete 3, Lado A, contagem de 2233 a 2483 e cassete 3, Lado B, contagem 0 a 1807.

II. Dos testemunhos encontrados em sede de audiência de julgamento extrai-se, de forma conclusiva e contrária à expressão particular da sentença recorrida,
- que existia uma exigência prévia à chegada do contentor destinado à Autora no sentido de que, atento o seu
historial creditício negativo e o reiterado incumprimento das suas obrigações comerciais, o pagamento da facturação teria de ser efectuada de imediato e contra a entrega das mercadorias ;
- que existia uma pré-convenção entre a Autora e a Ré para o pagamento do valor de € 15.113,97 ( quinze mil cento e treze euros e noventa e sete cêntimos) contra a entrega do contentor a entregar nas instalações/armazém da Autora em 29.07.2002;
- que tal convenção de pagamento IMEDIATO foi admitida pelo legal representante da Autora, Dr. I…… no dia 26.07.2002,
- ao ponto de, no dia 29.07.2002 aquando da chegada do veículo transitário ao serviço da Ré e no beneficio da instalações Autora, da encontrar nas se "B…….,L.DA " um cheque PREVIAMENTE EMITIDO PELO LEGAL REPRESENTANTE DA AUTORA,
- cheque esse que foi ordenado entregar ao motorista ao serviço da Ré CONTRA a entrega do contentor e - que só não foi aceite pelo simples facto de que o montante EXIGUO no mesmo contido NÃO CORRESPONDER AO CONVENCIONADO PAGAMENTO IMEDIATO de € 15.113,97 (quinze mil cento e treze euros e noventa e sete cêntimos) ;

III. Se existia tal convenção no sentido da entrega de cheque contra a entrega do contentor destinado à Autora, a resposta aos FACTOS PROVADOS supra identificados deveria ter raiz e formulação diversas, designadamente,
- NO SENTIDO DE QUE A EXIGENCIA DO PAGAMENTO IMEDIATO DO VALOR DA FACTURA E VALORES PARCIAIS EM DEBITO PELA AUTORA OCORREU EM MOMENTO ANTERIOR À CHEGADA DO VEICULO TRANSPORTADOR COM O CONTENTOR ;
- QUE SÓ TAL CONVENÇÃO PRÉVIA CONDUZIU A QUE A RÉ FIZESSE DESLOCAR O VEICULO TRANSPORTADOR DO CONTENTOR PARA AS INSTALAÇÕES DA AUTORA e
- QUE NÃO SE APLICAVA AO CASO CONCRETO DO TRANSPORTE EM CAUSA A PRÉVIA CONVENÇAO DE PAGAMENTO NO PERIODO DE TRINTA (30) DIAS SUBSEQUENTES À EMISSÃO DA FACTURA .

IV. A sentença é contraditória em si mesmo ao dar enquanto PROVADO o ponto 4.º dos FACTOS PROVADOS "A Autora optava, ou não, pelos serviços da Ré em função das condições por esta oferecidas para cada caso concreto. [D)]" e da parcela fundadora da sentença que DESAGUOU NA DECISÃO FINAL, entender que Autora e Ré convencionaram o pagamento SISTEMATICO da facturação a trinta (30) dias, obliterando o depoimento, específico, das testemunhas G……., com depoimento gravado na cassete 2, lado B, contagem de 945 a 2079. Cassete 2, lado B, 2079 a 2484 e cassete 3, lado A, de 0 a 2283 e H……, com depoimento gravado na cassete 3, Lado A, contagem de 2233 a 2483 e cassete 3, Lado B, contagem 0 a 1807 que demonstraram a inaplicabilidade do período de carência no pagamento da facturação à situação concreta da Autora, razão pela qual a resposta ao facto dado enquanto PROVADO sob o artigo 19.º dos FACTOS PROVADOS deveria ter merecido resposta negativa, ou seja, a de que AS CONDIÇÕES DE PAGAMENTO A TRINTA (30) DIAS NÃO VIGORARAM PARA O TRANSPORTE REFERIDO EM 8.º) QUANDO O MESMO FOI ACORDADO, dando-se, assim, resposta NEGATIVA/NÃO PROVADA ao Quesito 2.º da Base Instrutória;
V. Os FACTOS dados enquanto PROVADOS sob os artigos 27.º, 28.º e 29.º da sentença/ponto II 2. não se encontram CORROBORADOS DOCUMENTAL ou TESTEMUNHALMENTE, na medida em que, por um lado, as respostas aos mesmos produzidas resultaram de INADMISSIVEIS ORIENTAÇÕES DE RESPOSTA POR PARTE DO ILUSTRE MANDATÁRIO da Autora e que mereceram a censura do Tribunal ;
VI. Inexiste prova relativamente ao pressuposto essencial da contabilização da eventual indemnização devida à Autora, já que NÃO FAZENDO PROVA DA EXISTÊNCIA DE ENCOMENDA SINGULAR DA MERCADORIA POR PARTE DO CLIENTE ESPANHOL - MORMENTE, AO NIVEL DA EXISTENCIA DE NOTAS DE ENCOMENDA, COMUNICAÇÕES, ETC. - NÃO É POSSIVEL DETERMINAR O LUCRO POSSIVEL DA AUTORA PELO CONFRONTO ENTRE O PREÇO DE CUSTO DOS BENS E O PREÇO DE REVENDA, A ESTIPULAÇÃO DE UM PREÇO DE
REVENDA DE € 1,00 (um euro), assim como NAO É POSSIVEL DETERMINAR O NEXO DE CAUSALIDADE ENTRE A RETENÇÃO, ALIAS LEGITIMA, DA MERCADORIA POR PARTE DA RÉ E A PERDA DO SUPOSTO CLIENTE ESPANHOL ADQUIRENTE DA MESMA ou, até, a PROPRIA PERDA NO INTERESSE E VALOR COMERCIAL, GLOBAL OU PARCIAL, DOS BENS OBJECTO DE RETENÇÃO, POR PARTE DA AUTORA;

VII. Para o que se requer o confronto do depoimento da testemunha da Autora F……. registado na cassete 2, lado A, contagem de 1320 a 2484 e na cassete 2, lado B, contagem de 0 a 869, factos que se encontram, ainda, derrogados pela manifestação, por parte da Autora e por carta datada de 26.08.2002 dirigida à Recorrente de que a MERCADORIA SE DESTINAVA A "DIVERSOS CLIENTES QUE NO-LA SOLICITARAM' ...;

VIII. Logo, os artigos 27.º,28.º e 29.º/ Quesitos 12.º, 13.º e 15.º da Base Instrutória da sentença deveriam ter merecido resposta NEGATIVA;

IX. Extravaza do depoimento dos interessados no vingar da tese da Autora é, no fundo, uma clara incoerência e, até, falsidade relativamente aos depoimentos prestados, o que, «in fine», deveria ter conduzido à depreciação do valor dos mesmos pela sua contraditoriedade e manipulação, na certeza de que o depoimento de parte do legal representante da Autora registado, I……. registado na cassete 1 Lado A, de 0 a 1716 e Lado B, de 0 a 651 é CONFUSO e INCOERENTE e o depoimento das testemunhas D……., com depoimento gravado na cassete 1, lado B, contagem de 651 a 1726 e cassete 2, lado A de 0 a 934, E......., com depoimento gravado na, cassete 2, Lado A, contagem de 934 a 1320 e F…….., com depoimento gravado na cassete 2, lado A, contagem de 1320 a 2484 e na cassete 2, lado B, contagem de 0 a 869 peca por revelar CONTRADIÇÕES E FALSIDADES NÃO ADMITIDAS pelo Douto Tribunal;

X. Concretamente e atestando a testemunha D……. que no dia 29.07.2002 o legal representante da Autora se deslocou ao local onde se encontrava o veículo da Ré transportador do contentor, QUANDO as restantes testemunhas asseveram o contrário, ou seja, de que, quando muito, o citado Dr. I……. apenas por telefone teve conhecimento do que se estava a passar nas instalações da sua própria empresa, razões de facto que conduzirão à desvalorização e desconsideração dos depoimentos das testemunhas arroladas pela Autora na medida em que não colidam com as declarações que merecem o assentimento da Ré/Recorrente ;

XI. Terá de ter-se por impreterível entendimento que o douto Tribunal realiza uma notável confusão no que toca ao estribo legal da acção proposta e discutida já que e numa primeira linha de análise, a sentença recorrida manifesta uma clara desconformidade entre a sua fundamentação, esteada nos FACTOS dados enquanto PROVADOS e a decisão na certeza de que, dando o Douto Tribunal enquanto provado que "32. Por isso aquando do transporte referido em 13.º)[M)], a R. exigiu, pelo menos, o pagamento do mencionado em 14.º) [N)], no valor de € 3.013,06 e ainda do que estava atrasado, tudo num total de € 15.113,97. [20.)], a retenção da mercadoria realizada pela ora Recorrente reveste-se de clara legitimidade na certeza de que, AINDA QUE SE DESCONSIDERE, a título de cautela de patrocínio, A POSSIBILIDADE RETENTORA QUE EMERGE DE DIVIDA ANTERIOR MANTIDA PELA AUTORA, SEMPRE ESTA SE RECUSOU A ENTREGAR O VALOR RELATIVO AO TRANSPORTE CONCRETO, ou seja, € 3.013.06 (três mil e treze euros e seis cêntimos), LEGITIMANDO A RETENCÃO EXERCIDA POR FORÇA DA DENEGAÇÃO DO PAGAMENTO DESTE CONCRETO VALOR RELATIVO AO TRANSPORTE DA MERCADORIA RETIDA ;

XII. Destarte a destrinça que a sentença criticada realiza relativamente ao enquadramento legal distinguido pelos diplomas consubstanciados na Convenção Internacional para a Unificação de certas Regras em Matéria de Conhecimento/Convenção de Bruxelas de 29 de Agosto de 1924 entrada na ordem jurídica interna pela publicação do Diário do Governo de 02 de Junho de 1932, no Decreto-Lei n.º 191/87, de 29 de Abril relativamente ao fretamento mercantil marítimo e Decreto-Lei n.º 352/86, de 21 de Outubro no que concerne ao contrato de transporte de mercadorias por mar, o certo é que o Julgador passa ao lado dos mais importantes compostos normativos que regem a actividade prosseguida pela Recorrente no interesse e proveito da Autora;

XIII. Se se toma como certo o transporte da mercadoria da Autora por mar ao abrigo do Decreto-Lei n.º 352/86, de 21 de Outubro por inaplicabilidade do Decreto-Lei n.º 191/87, de 29 de Abril e na certeza de que os documentos emergentes dos autos legitimam a aplicação da também já citada Convenção Internacional para a Unificação de certas Regras em Matéria de Conhecimento/Convenção de Bruxelas de 29 de Agosto de 1924, a partir desta exége o Douto Tribunal envereda pela adopção das regras que regem o direito de retenção ao abrigo do Decreto- Lei n.º 352/86, de 21 de Outubro e, finalmente, por força do transporte da mercadoria por parte da Recorrente do Porto de Leixões para as instalações da Autora, pelas normas que contingentarn o direito de retenção contidas no Código Civil, mais concretamente, os seus artigos 754.º a 761.º ;

XIV. Porém, esquece a sentença duas questões essenciais, arvorando-se a primeira na certeza da inaplicabilidade do Decreto-Lei n.º 352/86, de 21 de Outubro, na certeza de que o conjunto de actividades comerciais prosseguidas pela Recorrente ao abrigo do conhecimento de transporte admitido pela Convenção Internacional para a Unificação de certas Regras em Matéria de Conhecimento/Convenção de Bruxelas de 29 de Agosto de 1924 CESSOU com a chega do navio ao Porto de Leixões ;

XV. A partir deste momento, mormente, ao nível da subsequente guarda dos volumes após a descarga dos contentores destinados à Autora, a responsabilidade passou a pertencer ao operador portuário ou à autoridade portuária, na hipótese prevista no artigo 15.º, n.º1, do Decreto-Lei n.º 282-B/84, de 20 de Agosto, os quais respondem perante o transportador pelas perdas e danos causados nas mercadorias durante o período em que se encontrem à sua guarda;

XVI. Quando se mostra enquanto inquestionável que o contrato de transporte de mercadorias por mar só existe, para efeitos de aplicação do Decreto-Lei n.º 352/86, quando for emitido um conhecimento de embarque pelo transportador marítimo - cfr. artigos 9º, 10º, 11º e 28º - conhecimento de embarque ou carga apresenta-se como o documento basilar do contrato de transporte marítimo, desempenhando uma função triplica,
- em primeiro lugar, trata-se de um documento que serve de recibo de entrega ao transportador de uma certa e determinada mercadoria nela descrita;
- em segundo lugar, o conhecimento de carga prova o contrato de transporte firmado entre carregador e transportador e as condições do mesmo e
- em terceiro lugar, o mesmo documento representa a mercadoria nele descrita, sendo negociável transmissível, de acordo com o regime geral dos títulos de crédito.

XVII. Apenas a pode dar se certa como convenção/contratação existente entre recorrente e autora no sentido do transporte dos contentores a esta destinados por mar, ou seja, desde o seu local de carga até ao seu local de descarga tanto assim é que o próprio tribunal dá como assente/provado que,
8º. Em consequência, Autora e Ré acordaram o frete do contentor para efectuar o transporte marítimo das mercadorias do porto de Hong-Kong para o porto de Leixões. [H)]
9º. ( ... )
11º. Posteriormente, Autora e Ré acordaram a entrega das mercadorias em 29.07.2002, nas instalações da Autora.[K)];

XVIII. A partir daqui e porque as operações de carga e descarga são, em regra, materialmente efectuadas por operadores portuários, na designação usada pelo Decreto-Lei n.º 282-B/84, de 20 de Agosto no seu artigo 1.º e, ainda porque nos portos nacionais, as operações de carga e descarga só podem ser levadas a efeito por operadores portuários / sociedades ou empresas públicas licenciadas exclusivamente para o exercício das operações portuárias referidas no n.º 1 - cfr. artigo 1.º n.º 3 do Decreto-Lei nº 282-B/84 -, e, finalmente, porque o § 4 do artigo 3º da Convenção de Bruxelas de 25 de Agosto de 1924, para unificação de certas regras em matéria de conhecimento, refere que o conhecimento de carga constituirá presunção, salvo prova em contrário, da recepção pelo armador das mercadorias tais como foram descritas naquele documento terá de haver-se enquanto CUMPRIDO O CONTRATO DE TRANSPORTE MARITIMO celebrado entre a Recorrente e a Autora com o momento da descarga dos contentores a esta destinados e a comunicação de tal facto por parte da Recorrente ;

XIX. O transporte dos contentores para as instalações comerciais da Autora configuram um novo contrato subordinado às regras do Decreto-Lei n.º 255/99, de 7 de Julho / Regime Jurídico da Actividade Transitária que veio substituir o anteriormente vigente Decreto-Lei n.º 43/83, de 25 de Janeiro no respeito pelo disposto nos termos do artigo 1.º do citado Decreto-Lei n.º 255/99, de 7 de Julho ;

XX. Contrariamente à decisão recorrida em causa nos presentes autos está, não o direito de retenção regulado na Lei Civil - cfr. artigo 754.º do Código Civil - mas o direito de retenção previsto em legislação especial aplicável à actividade de transitário - Decreto-Lei n.º 255/99, de 7 de Julho / Regime Jurídico da Actividade Transitária que veio substituir o anteriormente vigente Decreto- Lei n.º 43/83, de 25 de J aneiro -, normativo que no seu artigo 14.º- cfr. artigo 8.º, alínea b) Decreto-Lei n.º 43/83, de 25 de Janeiro - define taxativa e claramente que " Artigo 14.º (Direito de retenção) As empresas transitárias podem exercer o direito de retenção sobre mercadorias que lhes tenham sido confiadas em consequência dos respectivos contratos, pelos créditos resultantes, salvo estipulação expressa deles em contrário.";

XXI. A estipulação expressa em contrário que a norma prevê refere-se a concreta estipulação contratual que afaste «de jure», a possibilidade do exercício do direito de retenção e, «in casu» não só não existe tal convenção afastadora expressa do exercício do direito de retenção celebrada entre Recorrente e Autora, como subsiste, no universo contratual/comercial existente entre Autora e Recorrente débitos inequívocos e acumulados daquela, quer ao nível de contratos de transporte anteriores -, quer ao nível do próprio contrato de transporte das mercadorias sobre as quais foi exercido o direito de retenção;

XXII. O direito de retenção consagrado no artigo 14.º do Decreto-Lei n.º 255/99, de 7 de Julho é distinto e tem um regime diferente do direito de retenção estabelecido no artigo 754.º do Código Civil, pois, na verdade, não o é em sentido técnico, na medida em que a coisa retida não tem obrigatoriamente ligação com o negócio jurídico que se pretende fazer cumprir através da retenção ;

XXIII. Da interpretação «litere» do citado art.º 14.º resulta que o "direito de retenção" do transitário tem como pressupostos não existir estipulação expressa e prévia em contrário, a retenção tem de ser feita sobre mercadorias ou valores que lhe sejam confiados e a retenção ser exercida com o fim de garantir o pagamento de créditos de que o transitário seja titular, emergentes de serviços prestados ao dono da coisa retida;

XXIV. Nos presentes autos estão claramente preenchidos os três requisitos, ou seja, por um lado, não se verifica a existência de qualquer estipulação em contrário e por outro lado, os bens retidos foram entregues à Ré/Recorrente pela autoridade competente para o emitir como comprovativo do despacho de mercadorias efectuado e do pagamento das despesas devidas e, por um terceiro lado, a retenção foi exercida com o fim de garantir o pagamento de créditos de que a Recorrente é titular, emergentes de serviços prestados à Autora, dona da coisa retida;

XXV. A actividade transitária não se compadece com o direito de retenção "clássico", ou seja, aquele que é exercido pelo credor sobre um bem directamente relacionado com o crédito na certeza de que a ratio da Lei Especial é colocar ao dispor dos transitários um meio de garantir os seus créditos, não pode este direito ser sujeito ao regime do Código Civil, sob pena de lhe ser retirada a sua eficácia prática;

XXVI. Aos transitários é atribuído um direito de retenção sobre quaisquer valores ou documentos que legitimamente tenham em seu poder, ainda que tais bens e/ou documentos não constituam para o próprio transitário, um bem susceptível de ser convertido em dinheiro;

XXVII. A título cautelar que o patrocínio demanda, atente-se no disposto no artigo 757.º do Código Civil, o que, no caso em análise e ainda que se propugne pela eventual determinação de um prazo de trinta (30) dias para o vencimento da(s) factura(s) vencidas e vincendas e em débito pela Autora, reúnem-se as condições para a perda do beneficio do prazo por parte da "B……, L.da" e na senda do disposto no artigo 780.º, n.º 1 do Código Civil ;

XXVIII. Ficando provado que a Autora se encontrava na obrigação - estabelecida previamente - de entregar à Recorrente um cheque de valor determinado contra a entrega da mercadoria e, NÃO O TENDO FEITO, ou seja, tentando entregar cheque de valor substancialmente inferior ao convencionado, a sua culpa ao não prestar a garantia prevista - entrega do título de pagamento acordado - ou, no limite, a diminuição dessa garantia - entrega do título de pagamento de valor substancialmente inferior ao acordado - permitiria á recorrente exigir o cumprimento imediato da obrigação e, tal não sucedido, exercer o direito de retenção, ainda que nos termos da lei substantiva civil ;

XXIX. A decisão recorrida violou, assim, o disposto nos artigos 1.º e 14.º do Decreto-Lei n.º 255/99, de 7 de Julho / Regime Jurídico da Actividade Transitária e, ainda, o artigos 757.º e 780.º, n.º 1 do Código Civil ;

XXX. Pugnando-se por que o Douto Tribunal recorrido, se assim o entender, reforme a sentença nos termos do disposto nos artigos 668.º, n.º 4 e 744.º do Código de Processo Civil por remissão do disposto no artigo 669.º, n.º 3 do diploma ou, na senda de acórdão a proferir pelos Venerandos Juízes Desembargadores no Tribunal da Relação do Porto, ser a decisão recorrida revogada substituída por outra que, dando provimento à reconvenção operada e às normas jurídicas violadas, determine a absolvição da Ré/Recorrente da integralidade do pedido por si formulado e declare, consequentemente, a procedência do seu pedido reconvencional, condenando a Autora/Reconvinda ao pagamento do valor reclamado em sede reconvencional com acréscimo de juros contabilizados às taxas comerciais sucessivamente aplicáveis, assim se realizando justiça !

A A. recorrida contra-alegou, pugnando pela manutenção do julgado.

Corridos os vistos, cumpre apreciar e decidir .

Apontemos as questões objecto do presente recurso, tendo presente que o mesmo é banzado pelas conclusões das alegações, estando vedado ao tribunal apreciar e conhecer de matérias que naquelas se não encontrem incluídas, a não ser que se imponha o seu conhecimento oficioso (art. 684º nº3 e 690º nºs 1 e 3 do C PC), acrescendo que os recursos não visam criar decisões sobre matéria nova, sendo o seu âmbito delimitado pelo conteúdo do acto recorrido.

Antes, porém, reunamos a matéria de facto que foi considerada provada:

1.º) A A. é uma sociedade comercial que se dedica ao comércio de flores artificiais, quinquilharias e artigos de decoração e efectua importação de alguns produtos para comercialização no território nacional e em Espanha. [A)]
2.º) A Ré é uma sociedade comercial que se dedica à prestação de serviços de transporte e transitários. [B)]
3.º) Desde Abril de 2000, Autora e Ré mantêm relações comerciais entre si, relacionadas com transporte de mercadorias do Extremo Oriente. [C)]
4.º) A Autora optava, ou não, pelos serviços da Ré em função das condições por esta oferecidas para cada caso concreto. [D)]
5.º) A Ré, periodicamente, enviava por escrito [Aditamento ao abrigo do art. 659.º, n.º 3 do C. P. Civil, bem como da então Assento n.º 14/94 do S.T.J. de 1994/Mai./26 [DR I-A n.º 230/94] e na sequência do alegado em 4.º da p.i., remetendo, a titulo de exemplo, para os documentos de fls, 14-17, que foi aceite pela R. na sua contestação, como se pode ler nos seus art. 12.º a 18.º], à Autora a cotação dos seus preços, o que fez em 10.04.2000. [E)]
6.º) A A., em Maio de 2002, adquiriu materiais à firma J……, com sede em Kwai Chung, em Hong-Kong. [F)]
7.º) Para o transporte das mercadorias adquiridas, a R. forneceu a cotação do seu preço, que foi aceite pela Autora. [O)]
8.º) Em consequência, Autora e Ré acordaram o frete do contentor para efectuar o transporte marítimo das mercadorias do porto de Hong-Kong para o porto de Leixões. [H) ]
9.º) A chegada do contentor estava prevista para início de Julho de 2002.
[I)]
10.º) O contentor embarcou no porto de Hong-Kong em 06.06.2002 e chegou ao porto de Leixões em 08.07.2002. [J)]
11.º) Posteriormente, Autora e Ré acordaram a entrega das mercadorias em 29.07.2002, nas instalações da Autora. [K)]
12.º) A Autora entregou à Ré 5.694,73 euros referentes a facturas emitidas em meses anteriores pela Ré. [L)]
13.º) No dia 29.07.2002 foi efectuado o transporte de um contentor para as instalações da Autora. [M) ]
14.º) Nesse dia a Ré exigiu a liquidação prévia e imediata da factura referente ao transporte do contentor. [N) ]
15.º) O contentor foi devolvido porque a Autora não procedeu ao pagamento do transporte do mesmo. [O)]
16.º) Por carta datada de 19.09.2002, recebida pela Ré em 13.09.2002, a Autora solicitou à mesma a entrega do contentor. [P)]
17.º) O que, também, solicitou por faxes datados de 26.08.2002 e 22.10.2002. [Q)]
18.º) Autora e R. acordaram inicialmente que o pagamento dos transportes efectuados pela segunda para a primeira seriam pagas no prazo de 30 dias após a data de emissão da respectiva factura. [1.º)]
19.º) Estas condições de pagamento foram aquelas que vigoraram para o transporte referido em 8.º) [H)], quando o mesmo foi acordado. [2.º)] 20.º) Os materiais referidos em 6.º) [F)] consistiam em 120 cartões com 8 caixas cada, contendo cada uma destas duas dúzias de flores artificiais, assim como 130 cartões com 10 caixas cada, contendo cada uma destas uma dúzia de pinhas decorativas em plástico, no valor de USD 17.248, que na altura correspondia a € 16.108,68. [3.º)]
21.º) Em 2002/Jul./29 e após o transporte referido em 12.º) [M)], esse contentor não chegou a ser descarregado nas instalações da A., em virtude do referido em 14.º) [O)] e 30.º) [20.º)]. [6.º)]
22.º) Por carta datada de 2002/Set./05, que foi recebida pela A. por essa altura, a R. comunicou-lhe que em virtude dos prazos de pagamento terem sido largamente ultrapassados pela primeira, situação essa que se vem prolongando há muito, passaria desde então a solicitar que todos os serviços por si prestados fossem efectuados nas condições de pronto pagamento. [7.º)]
23.º) Foi a primeira vez que a R. fez por escrito tal exigência à A. [8.º)]
24.º) Entre 9 e 16 de Agosto de 2002 a A. entregou à R. a quantia de 3.203,05 para pagamento de uma factura emitida em 2002/Jun./17. [9.º)]
25.º) A mercadoria referida em 6.º) [F)] consistia em artigos de Natal que a A. destinava aos seus clientes, designadamente de Espanha. [10.º)] 26.º) A A. iria vender essa mercadoria por cerca de € 38.640. [11.º)]
27.º) A A. caso viesse a vender tal mercadoria iria obter um lucro que rondaria os E 19.577,72. [12.º)]
28.º) A mercadoria perdeu interesse e valor comercial. [13.º)]
29.º) A Autora, em consequência do comportamento da Ré, perdeu o cliente espanhol. [15.º)]
30.º) Desde Junho de 2000 até Novembro de 2002, que a maior parte dos pagamentos da A. foram efectuados para além dos apontados 30 dias de prazo, que no ano de 2000 chegaram a ser ultrapassados em mais 40, 25, 40, 38, 30, 12, 2, 23, 37, 55, 62, 38, 80, 3, 17 dias no ano de 2001, em 35, 7, 28, 33, 39, 55, 70, 77, 8, 75, 123, 4, 116, 54, 69, 80 dias no ano de 2001, tendo no fim deste ano (2001/Dez./18) ficado tudo regularizado, e 37, 1, 22, 46, 45, 45, 63, 65, 80, 102, 68, 62, 30 dias no ano de 2002. [18.º)]
31.º) Por isso, a Ré alterou as condições de pagamento. [19.º)]
32.º) Por isso aquando do transporte referido em 13.º) [M)], a R. exigiu, pelo menos, o pagamento do mencionado em 14.º) [N)], no valor de E 3.013,06 e ainda do que estava atrasado, tudo num total de E 15.113,97. [20.º)]
33.º) No dia 08 de Julho de 2002, a R. comunicou à Autora a chegada do contentor. [22.º)]
34.º) No dia seguinte repetiu a comunicação e solicitou a marcação da data para a entrega do contentor. [23.º)]
35.º) Em 23 de Julho de 2002 a R. reafirmou à A. a sua urgência em proceder à entrega do contentor. [25.º)]
36.º) A A. e a R. durante 23 a 26 de Julho, combinaram entre si que esta entregaria no dia 29 desse mesmo mês o referido contentor nas suas instalações daquela. [26.º)]
37.º) Após 29 de Julho e até 21 de Agosto seguinte a A. e a R. não estabeleceram entre si qualquer contacto relativamente à descarga do referido contentor. [27.º)]
38.º) A R. em 21 de Agosto de 2002 emitiu a factura n.º 1.86964, que enviou à A., no valor de € 138,23, referente aos custos de armazenamento desse contentor no Porto de Leixões. [28.º)]
39.º) A A. por fax de 2002/ Ago./26 avisou que iria devolver essa factura à R., o que fez. [29.º)]
40.º) Com a carta de 2002/Set./05 a que se alude em 21.º) e constante a fls. 19, que se dá por reproduzida, a R. voltou a reenviar a factura n.º 1.86964. [30.º)]
41.º) Nessa carta de 2002/Set./05 a R. comunicava igualmente à A. que lhe seriam debitadas posteriormente as despesas referentes à paralisação ( € 20,00 por dia) e movimentos em parque (carga/descarga € 25,00 x 2; estacionamento em parque € 0,75 por dia) até ao levantamento do contentor, assim como o custo do transporte (€ 125) até às instalações da R., indicando os valores agora referenciados. [32.º)]
42.º) O que a Autora não aceitou. [33.º)]
43.º) Em consequência da paralisação do contentor desde 2002/Jul./13 até 2003/Fev./24 a R. suportou € 10.010,13, com IVA incluído, sendo: € 4.288,28 referente a essa paralisação; € 3.672, relativo à detenção do contentor; € 50 respeitante à carga e descarga do contentor em parque; € 156,75 referente ao valor do estacionamento em parque do contentor; € 154,84 referente ao manuseamento da mercadoria no armazém; € 90 referente ao transporte do contentor para o armazém da R. [34.º)]
44.º) A Ré emitiu e enviou à Autora, em 2003/Fev./25, a factura correspondente a tais prejuízos. [35.º)]
45.º) A mercadoria ainda se encontra nos armazéns da Ré. [36.º)]
46.º) O custo de armazenamento da mercadoria é de 0,15 euros/dia por cada fracção de 100 kg.. [37.º)]
47.º) A mercadoria tem o preço taxável de 23.157 kg. [37.º)]

I.
Num primeiro momento põe a apelante em causa a decisão da matéria de facto tocante aos pontos 14º, 18º, 19º, 27º, 28º, 29º e 32º das respostas à base instrutória (correspondentes à alínea N) da matéria de facto assente, e aos quesitos 1º, 2º, 12º, 13º, 15º e 20º).

A possibilidade de documentação ou registo das audiências finais e de prova neles produzida foi introduzida no nosso ordenamento jurídico através do Dec. Lei nº 39/95 de 15 de Fevereiro.

Resulta do preâmbulo de tal diploma legal que “a garantia do duplo grau de jurisdição em sede de matéria de facto nunca poderá envolver, pela própria natureza das coisas, a reapreciação sistemática e global de toda a prova produzida em audiência - visando apenas a detecção e correcção de pontuais, concretos e seguramente excepcionais erros de julgamento”.

A garantia do duplo grau de jurisdição não subverte o princípio da livre apreciação das provas inserto no art. 655º nº1 do C PC - o juiz aprecia livremente as provas segundo a sua prudente convicção acerca de cada facto [Ac. Da Relação de Coimbra de 3 de Outubro de 2000 e 3 de Junho de 2003, in CJ, Anos XXV 4º pag. 28 e XXVIII 3º pag. 26, respectivamente].

"O princípio da livre apreciação de provas situa-se na linha lógica dos princípios da imediação, oralidade e concentração: é porque há imediação, oralidade e concentração que ao julgador cabe, depois da prova produzida, tirar as suas conclusões, em conformidade com as impressões recém-colhidas e com a convicção que, através delas, se foi gerando no seu espírito, de acordo com as máximas de experiência aplicáveis" [Lebre de Freitas, Código de Processo Civil, Vol. II, pag 635].

Essencial é que o tribunal indique “os fundamentos suficientes para que, através das regras da ciência, da lógica e da experiência, se possa controlar a razoabilidade daquela convicção sobre o julgamento do facto como provado ou não provado” [Teixeira de Sousa, Estudos Sobre o Novo Processo Civil, pag. 348].

Ao Tribunal de segunda Instância competirá apurar da razoabilidade da convicção formada pelo julgador, face aos elementos que lhe são facultados.

Em conclusão, porque se mantêm vigorantes os princípios da imediação, da oralidade, da concentração e da livre apreciação da prova, e guiando-se o julgamento humano por padrões de probabilidade e nunca de certeza absoluta, o uso, pela Relação, dos poderes de alteração da decisão da 1ª Instância sobre a matéria de facto deve restringir-se aos casos de flagrante desconformidade entre os elementos de prova disponíveis e aquela decisão, nos concretos pontos questionados [Ac. RP de 19.9.2000, in CJ, 2000, 4º, 186].

Na reapreciação das provas em 2ª Instância não se procura uma nova convicção diferente da formulada em 1ª Instância, mas verifica se a convicção expressa no Tribunal "a quo" tem suporte razoável naquilo que consta da gravação com os demais elementos constantes dos autos, que a decisão não corresponde a um erro de julgamento [Ac. RC de 3.6.2003, in CJ, 2003, 3º, 26].

Após termos procedido à audição de todos os depoimentos gravados em audiência de julgamento, relacionados com a factualidade em causa, voltámos a ler o despacho que decidiu a matéria de facto vertida na base instrutória, e respectiva fundamentação, e reconhecemos que, no que toca ao prazo de pagamento do frete em causa, optou o Senhor Juiz pela versão trazida ao processo, não só pelas testemunhas da A., que sustentaram ser de 30/45 dias, mas também pelas próprias testemunhas da Ré, que acabaram por confirmar que o negócio em causa fora feito com base no prazo de 30 dias de vencimento das facturas.

Do mesmo modo, face aos depoimentos prestados, de que resultou claramente que o contentor, apesar de "deslacrado", não chegou a ser aberto, mantendo a Ré as mercadorias consigo, até ao momento em que, na sequência da providência cautelar, se procedeu á sua abertura, sem que as mesmas mercadorias fossem entregues à A., tratando-se actualmente de material natalício desprovido de "novidade" que lhe concede valor comercial, pelo que sofreu a A. o prejuízo correspondente ao valor da mesma.

Apreciemos, contudo, o que cada testemunha, neste âmbito da reclamação deduzi da pela apelante, disse:
- Quanto à testemunha D......., vendedor da A. desde 1996, afirmou, no essencial: "Assisti a algumas conversas… aquilo que me apercebi é o que era habitual noutros transitários, 30/45 dias… também neste negócio… só quando não entregaram é que estranhámos… o material ia todo para o cliente de Espanha, face à amostra, o cliente ficou com o contentor todo… sei que vendia a 1 € cada peça… o Sr. I….. procurou o que se passava porque o contentor não era entregue... o contentor veio no dia 29/7, era uma segunda feira, cheguei nessa altura… eles só descarregavam se liquidassem o que lá havia em atraso… mediante o pagamento de um cheque… o F….. ligou para o Sr. I….. que lhe disse que estava "aí" um cheque… o F…… entregou o cheque de 5 mil e qualquer coisa… ele (motorista) disse que não era daquele valor e tinha ordens para levar um cheque de 15 mil €... enquanto o F…… foi buscar o cheque, alguém abriu o lacre, depois o contentor não foi aberto, o motorista não deixou… o cliente espanhol, de Porrifio, L….., disse-me "isto não vale nada, o que interessa é a palavra de um homem", até hoje não lhe vendi mais uma peça… é provável que nesta altura já esteja muito deteriorado, dentro de caixas a apanhar humidade… o cliente encomendou em Maio, à China a encomenda foi provavelmente em Setembro/Outubro (de 2001) ou Janeiro (de 2002)...".

- A testemunha E......., motorista da A. desde Abril de 2000 afirmou: "… o motorista trazia instruções que só era descarregado o contentor mediante levar um cheque, não sei quanto… um colega (F……) dispôs-se a ir ao escritório buscar um envelope com um cheque… entretanto perguntei se podia carregar… só foi cortado o lacre, o motorista não permitiu que abríssemos as portas do contentor, o motivo era para ser levado um cheque de determinado valor e o cheque do envelope não era desse valor… o cheque foi entregue e ele levou-o… o Sr. F…… foi incumbido pelo Dr. I….. ou M…… que lhe deve ter dado instruções para entregar o cheque que já tinha passado…".

- A testemunha F......., motorista da A., também com funções administrativas, fundamentalmente de arquivo de documentação, disse: "… tínhamos relacionamento com a C…… Há muitos anos, acabou em 2002… as condições de pagamento do preço do transporte, pela prática da casa, normalmente, era 45 dias, a norma era essa… também em relação a este transporte… as relações comerciais com a C……. eram com o Dr. I……", não tinha acesso a essas coisas… que eu recebesse, visse e arquivasse, não [em resposta a eventual alteração por escrito das condições de pagamento]… o contentor estava em falta, o empregado de armazém falou ao Dr. I.... o Dr. I….. ligou a perguntar pelo contentor… recebemos indicações que o mesmo vinha na 2ª feira… na 6ª feira o Dr. I…… disse "possivelmente vai vir um contentor na 2ª feira, tenho aqui um cheque para entregar ao motorista"… era de 5 mil 600 e tal €, era para pagar o que estava vencido até àquela data… o motorista disse que não, não é este valor… falei ao Dr. I…….. e ele disse "esse cheque é para o que está vencido"… o motorista viu que os valores não coincidiam… falou com a empresa dele e não houve cedência… as "regras de jogo" [expressão veiculada pelo Senhor Advogado da A..] foram alteradas no dia do contentor com a exigência do motorista… no Natal todos os anos há novidades... esse artigo deixou de ter o interesse de novidade nessa época… o espanhol ficou irritadíssimo, deixou de nos comprar...” .

- A testemunha G……, directora financeira da Ré desde 1990, afirmou: "Eu contactei a B……. antes do dia 26, no início de Julho [confrontada com o doc. De fls. 57 confirmou tratar-se de aviso de chegada a Leixões da carga transportada por via marítima]... o processo é aberto assim que a mercadoria chega, tendo esta chegado a 6/7/02... o colega D…… ficou de avisar para a descarga do contentor, o que fez em 9 de Julho… o Sr. I…… não contactou, voltei a ligar a 22, 23 por telemóvel, e a 24 falei por telefone, a 26 foi combinada a data de 29 para entrega do contentor… havia problemas de cobranças, constantes atrasos… as condições de pagamento foram acordadas a 30 dias a até ao dia l0 do mês seguinte o pagamento de direitos… a B…….. nunca cumpriu com os 30 dias [explicando então o teor do documento de fls. 56]… eu, por vezes, falando ao telefone com o Dr. I……, até dizia que a B….. era …..… … o que foi pedido foi o pagamento do contentor a pronto… foi a partir do dia 9 que foi combinado o pronto pagamento, fui eu que dei instruções ao meu colega D…… … pagamentos para além de 60 dias… não posso quando tenho instruções para cobrar a 30 dias, tenho de dar contas, o Sr. I….. até disse que pagava tudo à gerência… o motivo foi os 54 mil de finais de Março com este historial todo, impossível suportar isto… 100, 115 e 130 dias, quando nós não temos sequer 60 para pagar aos nossos subcontratados… nessa carta [de fls. 63] nós explicamos porque é que passamos a cobrar a pronto, o comunicado já tinha sido feito há mais tempo… não sei se foi em Maio, eu disse constantemente numa tentativa de fazer entender que era impossível suportar tal situação… depois deste houve mais dois, foram a pronto, tratados por Lisboa… em finais de Maio passou a ser exigido pronto pagamento, dito pelo telefone… a gerência não aceita sempre os atrasos para além de 30 dias… se fosse eu tinha sido mais cedo… [perguntado se a entidade estava a par e permitiu que isto existisse respondeu - ] Claro!".

- Por fim, a testemunha H......., responsável pelo Sector marítimo da Ré, desde 1982, disse:
"… quem falava sobre este assunto era eu e a directora financeira, antes de o contentor ir para a A… depois, só eu falei com eles… 30 dias, neste caso 30 dias… o departamento comercial fornece-me cópia, temos isso no computador, na ficha de cliente temos as condições de pagamento… nunca cumpriu o prazo de 30 dias, havia situações bastante graves, os 30 dias chegavam a ir aos 90… [ confrontado com o doc. De fls. 57] foi enviado por mim, chegada a 6/7, envio a 8, avisava por fax, depois telefonava… dia 9 falei directamente com o Sr. I….. por telemóvel… disse que o contentor estava disponível, ele disse que o responsável ia entrar em contacto para fazer essa marcação, normalmente le marcava o contentor, neste caso disse que mais tarde era feito o contacto… Foi feito no dia 23 por outra funcionária do nosso departamento financeiro… disse que entregava o contentor contra o pagamento do mesmo… as condições foram alteradas em Maio/Junho, havia avisos desde sempre que não podia ir além de 30 dias… foi dito que na altura em que iria receber o contentor teria de pagar a pronto… aconteceu na 6ª feira anterior à 2ª feira em que iria receber o contentor, foi o que me foi transmitido pelo departamento financeiro… o que estava para trás não tenho conhecimento…."

Depois de tudo isto, fica-nos realmente a convicção de que a A. era
"useira e vezeira" em pagar os transportes fora de prazo, muitas vezes ultrapassando o prazo de 30 dias combinado, beneficiando da imensa tolerância da Ré, até ao momento em que esta, cansada com tal situação, passou a exigir os pagamentos a pronto, o mesmo se verificando em relação ao transporte, exigindo a Ré a imediata liquidação do transporte do contentor apresentado para descarga em 29 de Julho de 2002, a que os autos se reportam, quando, ao tempo em que o mesmo fora negociado, ainda vigorava entre ambas o dito prazo de 30 dias.
Assim, não podendo ser posto em causa o especificado sob a alínea N), também se nos afiguram correctas as respostas dadas aos quesitos 1º e 2º.

Do mesmo modo nos ficou a convicção de que a mercadoria em causa, face a todas as vicissitudes sofridas, ficou sem interesse e valor comercial, sofrendo a A. o valor da mesma, já entretanto pago ao fornecedor chinês, bem como o prejuízo decorrente da não realização do lucro que corresponderia á operação, e perdendo também o cliente espanhol.
Daí também correctamente julgada a matéria de facto vertida nos quesitos 12º, 13º e 15º.

Finalmente, no que toca ao quesito 20º, também nenhuma censura se nos afigura adequado fazer ao julgamento feito pelo Tribunal recorrido, que directamente instou a testemunha G……. sobre o documento constante de fls. 56, explicando esta os vários momentos do débito da A., designada e em especial o montante de 54 mil e tal Euros a que o mesmo ascendeu em Março, e o saldo negativo de € de 15.113,97, à data do transporte.

Face ao exposto, não se verificando, bem pelo contrário, qualquer erro de julgamento, não haverá que proceder a qualquer censura do julgamento da matéria de facto efectuado pelo tribunal recorrido, assim improcedendo, nesta parte, a apelação.

II.
Num segundo momento das suas alegações, põe a apelante em causa o enquadramento jurídico dado pelo Tribunal recorrido aos factos apurados, requerendo, por isso, a reforma da sentença.

A questão fundamental, segundo a apelante, reside no direito de retenção para si decorrente do art. 14º do Dec. Lei nº 255/99 de 7 de Julho, sendo inaplicável ao caso vertente o disposto no art. 754º doCC.

Apreciando:

Na ordem jurídica portuguesa sobre o contrato de transporte de mercadorias por mar, estão em vigor a Convenção Internacional Para a Unificação de Certas Regras em Matéria de Conhecimento de Carga, assinada em Bruxelas a 25.8.1924, publicada no Diário do Governo, Iª Série, de 2.6.1932, e rectificada em 11.7.1932, tomada direito interno pelo DL. 37.748, de 1.2.1950 Convenção de Bruxelas - e o DL. 352/86, de 31/10.
Nos termos do art. 1º do Dec. Lei nº 352/98 de 21.10, "contrato de transporte de mercadorias por mar é aquele em que uma das partes se obriga em relação à outra a transportar determinada mercadoria, de um porto para porto diverso, mediante uma retribuição pecuniária, denominada "frete".

Por seu turno, nos termos do art. 2º deste diploma, "este contrato é disciplinado pelos tratados e convenções internacionais vigentes em Portugal e, subsidiariamente, pelas disposições do presente diploma".

O contrato de transporte marítimo de mercadorias pode, assim, ser definido como aquele pelo qual um determinado transportador se obriga a transportar por mar uma certa quantidade de mercadorias que lhe foram entregues em determinado porto por um carregador e entregá-las num outro porto a um destinatário, mediante o pagamento de uma determinada remuneração, o frete.
Por aqui se vê que são geralmente três as partes nesse contrato: o transportador, o carregador e o destinatário se designado no contrato (Contratos de Utilização do Navio, de José M. P. Vasconcelos Esteves, 1988, vol. II, pág.84.

O contrato em causa implica uma obrigação de resultado, ou seja, o transportador ou armador, na designação do art. 1º da Convenção de Bruxelas de 1924, obriga-se a deslocar as mercadorias de um porto para outro, o do destino, entregando-as incólumes.

E um contrato de resultado, e não de meios, porquanto o transportador obriga-se a colocar no local do destino a coisa objecto do contrato, sendo de sua responsabilidade os meios humanos e materiais a utilizar na sua execução, assim como a responsabilidade pela sua boa execução. [Vide " Transporte de Mercadorias por Estrada", Alfredo Proença, 1998, pag. 14.]

Qualquer expedidor que pretenda transportar mercadoria pode, ou conceber ele próprio o transporte, organiza os transportes efectivos, assegura-se das suas capacidades e competência, das pessoas jurídicas com quem contrata, determina datas horas e locais e além disso cumpre todas as formalidades administrativas e alfandegárias, ou confia contratualmente a direcção do conjunto dessas operações a um profissional especialçizado, que mediante remuneração, se encarregará autonomamente, por sua conta, do encaminhamento das mercadorias desde o lugar do carregamento até ao seu destino.

Nesta última situação, esta pessoa, que pode ser, como no caso vertente, uma agente de navegação, actua como comissário do transporte, e assume uma responsabilidade particularmente alargada, porque para além de responder pelos seus actos pessoais, abrangendo aqui todas as pessoas de que se sirva para o cumprimento da sua obrigação, responderá pelos actos de terceiro a quem incumba a efectivação material do transporte.

No caso vertente, sendo a Ré agente de navegação, assumiu perante a A. a obrigação de promover o transporte por via marítima de mercadorias por esta compradas a fornecedor do Extremo Oriente, deste recebendo as mercadorias e assumindo o encargo de as transportar até às instalações da A.

Entre a A. e a Ré foi, assim, celebrado um contrato de transporte.

O contrato de transporte é aquele "que se celebra entre aquele que pretende fazer conduzir a sua pessoa ou as suas coisas de um lugar para outro e aquele que, por um determinado preço se encarrega dessa condução" [cf. Cunha Gonçalves, Comentário ao Código Comercial Português, 2º, pag. 394].

Trata-se de um contrato comercial oneroso, bilateral, sinalagmático, e quanto à sua forma meramente consensual. É ainda um contrato de execução continuada, uma vez que a sua execução compreende as operações de carregamento, expedição ou deslocação, descarregamento e entrega ao destinatário e ainda de depósito, já que o transportador recebe coisas alheias, que se obriga a guardar durante o transporte e a restituir no mesmo estado. [Neste sentido Aureliano S. Ribeiro, Código Comercial Anotado, 2º, 267, C Com. Abilio Neto, pág. 176]

É um contrato de resultado, e não de meios, porquanto o transportador obriga-se a colocar no local do destino a coisa objecto do contrato, sendo de sua responsabilidade os meios humanos e materiais a utilizar na sua execução, assim como a responsabilidade pela sua boa execução.

Esse contrato abrange as obrigações de carga e descarga, que correm por conta do transportador [Ac. RP de 4.3.02, processo nº 0250194, in www.dgsi.pt.]

Dispõe o art. 8º do Dec. Lei nº 352/98:

1. Após o início do transporte marítimo, o transportador deve entregar ao carregador um conhecimento de carga de acordo com o que determinarem os tratados e convenções referidos no art. 2º;
2. O conhecimento de carga indicado no número anterior pode ser substituído pelo conhecimento de carga a que alude o artigo 5º, depois de nele terem sido exaradas as expressões " carregado a abordo" e a data do embarque;
3. O conhecimento de carga deve mencionar o número de originais emitidos;
4. Depois de ter sido dado cumprimento a um dos originais mencionados no número anterior, todos os outros ficam sem efeito;
5. Só transportador da mercadoria tem legitimidade para emitir o respectivo conhecimento de carga.

De harmonia com o art. 10º nº 1 deste diploma, "são nulos os conhecimentos de carga emitidos por quem não tenha a qualidade de transportador marítimo", impondo o nº 2 àquele que procedeu á emissão em tais condições a obrigação de indemnizar o carregador e outros interessados pelos danos eventualmente causados com tal conduta. O nº3 deste preceito dispõe, porém, que "o disposto neste artigo não prejudica a possibilidade de o agente do transportador assinar os conhecimentos de carga em sua representação".

Ensina Azevedo Matos [Princípios de Direito Marítimo, II,55.] que o contrato de fretamento também se verifica pelo conhecimento de carga.
O conhecimento de carga é tão importante que a carta partida só se emprega, normalmente, quando o fretamento é total, sendo aquele passado em todos os outros casos e até neste, por causa do crédito documentário.

Palma Carlos [In Novas Perspectivas do Direito Comercial, Almedina, 1988, 16 e segs ] prefere a definição de Lyon-Caen & Renault: conhecimento de carga é o título entregue pelo capitão para prova de que recebeu e se encarregou da carga.
Por meio deste título é que efectivamente se comprova que os "contratos de fretamento" (assim preferindo designar o contrato de transporte de mercadorias por mar) começaram a ter execução pela entrega ao fretador das mercadorias a cujo transporte ele deve proceder; por meio deles também é que se pode exigir do capitão a entrega das mercadorias que ele tomou à sua guarda e cujo recebimento no conhecimento de carga confessa. Tal como no antigo art. 541º do Código Comercial se regulava a carta de fretamento, também o actual art. 538º regula o conhecimento de carga.

A nova lei - art. 8º do Dec-Lei nº 352186 - equipara o conhecimento de carga - a emitir após o início do transporte - à declaração de carga ou conhecimento de carga contemporâneo da recepção da mercadoria para embarque (art.5º) desde que nele sejam exaradas as expressões carregado abordo.

A este conhecimento se refere A. Matos [Obra citada, II, 253], ensinando que, uma vez carregado o navio, embarcada a mercadoria, troca-se o bill of lading for shipment ou permis d'embarquement ou o mate's recept pelo bill of lading shipped, o chamado conhecimento embarcado.

Cunha Gonçalves escreve [In Comentário ao Código Comercial Português, III, citado no Ac. da Relação de Lisboa, de 15.3.78, na Col. Jur., 1978, II, 459]: "Concluído o embarque das mercadorias e entregues os conhecimentos aos carregadores, fica o capitão obrigado, desde esse momento, a transportar aquelas para o porto de destino e a entregá-las ao destinatário. Conhecimento é um título com vida autónoma que exerce no transporte marítimo a mesma função que a guia de transporte no transporte terrestre; uma dupla função jurídica e económica: é o documento constitutivo do contrato de transporte e o título representativo da mercadoria."

A importância do conhecimento de embarque (bill of lading shipped), sempre posta em relevo pelos tratadistas da matéria, revela-se ainda na lei positiva.
Como se vê do art. 539º do C. Comercial, as fazendas serão entregues pelo capitão no lugar do destino, a bordo ou na alfândega, conforme for o estilo do porto, ou conforme estiver pactuado no... conhecimento, à pessoa designada neste último título.
A descarga consiste no desarrumar, formar pilhas de mercadorias, extraí-las do navio e colocá-las no convés ou descê-las para o cais ou para barcas, fragatas ou batelões.
As companhias de navegação costumam inserir nos seus conhecimentos, para evitar demoras, a autorização de descarregar desde logo à custa das fazendas ou para consignatários.
O contrato só se cumpre com a mercadoria completamente descarregada e entregue - [Ib., 144 a 146].
Mais diz este Autor que há-de ter-se em atenção o pactuado sobre conhecimentos de carga para se definir o começo e o fim do contrato de transporte.
A entrega da mercadoria ao destinatário é o último acto de execução do contrato: com a entrega da carga ao seu destinatário, o fretador cumpre integralmente o contrato de transporte, não se confundindo entrega com descarga das mercadorias [Ac. RP de 5.3.96, processo nº 9231070, in www.dgsi.pt.]. A descarga é um acto material que pode preceder ou seguir a entrega..., a entrega é um acto jurídico que, além de marcar o termo da execução do contrato tem, praticamente, efeitos importantíssimos: depois da entrega, todos os riscos da carga, ainda que ela esteja a bordo, são por conta do afretador [P. Carlos, op. cit, 29].
A carga deve ser entregue ao destinatário que é o legitimo possuidor do conhecimento... na prática, o destinatário, ao receber a carga, entrega ao capitão o conhecimento respectivo, com a menção, nele exarada, de haver recebido as mercadorias a que ele respeitava [No mesmo sentido ensina Azevedo Matos, Princípios de Direito Marítimo, 150 e segs ].

Da leitura global do Decreto-Lei nº 352/86, de 21 de Outubro, ressalta que contrato de transporte de mercadorias por mar é um contrato solene, sujeito a escrito particular» (artigo 3º), em que o chamado "conhecimento de embarque ou de carga" se reveste de importância capital.
De facto, emitido e entregue pelo transportador ao carregador o chamado conhecimento de embarque ou de carga», o mesmo, por um lado, "constitui título representativo da mercadoria nele descrita e pode ser nominativo, à ordem e ao portador", e, por outro, é transmissível de acordo com o regime geral dos títulos de crédito (artigo 11º).
O conhecimento de embarque ou de carga desempenha uma tríplice função:
1) - serve de recibo de entrega ao transportador de uma certa e determinada mercadoria nele descrita;
2) - prova o contrato de transporte firmado entre carregador e transportador e as condições do mesmo;
3) - representa a mercadoria nele escrita, sendo negociável e transmissível, de acordo com o regime geral dos títulos de crédito [Calvão da Silva, in "Crédito documentário e conhecimento de embarque", Colectânea de Jurisprudência Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, 1994, tomo 1, págs. 16 e segs., citando René Rodière, «Traité général de droit maritime, aprêtements et transports», tomo II, Les contrais de transport de de marchandises, Paris, pág. 98].

No caso vertente, o conhecimento de embarque (BL) consta de fls. 81, do mesmo constando como local de descarga o Porto de Leixões.
Contudo, resulta do documento constante de fls. 53 dos autos, enviado pela Ré á A. em 10 de Abril de 2002, que entre a A. e a Ré foi celebrado contrato de transporte marítimo, sujeito à cláusula FOB [A cláusula FOB (free on board), significa a mesma que o transporte fica cargo do comprador, responsabilizando-se o vendedor tão só pela colocação da mercadoria a bordo, ou em sítio de ser carregado em outro transporte (Ac. STJ de 22.6.99, processo nº 9Pª378, in www.dgsi.pt).
Pela cláusula FOB, incluída num contrato de Compra e venda, o vendedor obriga-se a enviar a mercadoria para o cais de embarque com todas as despesas feitas por ele até ao momento de ela entrar a bordo, sendo as despesas que se seguem (frete do vagon, seguros e outras), até à chegada da mercadoria ao seu destino, pagas pelo comprador (Ac. STJ de 23.4.92, processo nº 081667, in www.desi.pt)], sendo a carga feita em Hong Kong, e a descarga em Leixões, com transporte até ao domicílio.

Ora, sendo certo que o transporte marítimo cessou com a descarga em Leixões, não menos certo é que a Ré se obrigou a proceder à entrega das mercadorias nas instalações da A.

Assim, só com a entrega das mercadorias nas instalações da A. terminava o contrato de transporte entre ambas celebrado, tendo este natureza marítima até ao desembarque, e terrestre desde o Porto de Leixões até às dias instalações da Ré.

Tem, pois, pleno cabimento o enquadramento jurídico concedido pela sentença, quando considera, apoiada no Ac. STJ de 23 de Maio de 1985, que a Convenção de Bruxelas apenas se aplica ao contrato de transporte marítimo e este só abrange o tempo decorrido desde que as mercadorias são carregadas a bordo do navio até ao momento em que são descarregadas no porto de desembarque", pelo que "se, para além do transporte marítimo e após o desembarque da mercadoria, o armador está obrigado a fazer o seu transporte por terra para uma outra cidade, esta fase do trajecto não está sujeita à Convenção de Bruxelas".

Assim, não se tratando já de transporte marítimo, não será aplicável ao caso vertente o Dec. Lei nº 352/86, designadamente o seu art. 21º, que disciplina o direito de retenção por parte do transportador sobre a mercadoria transportada para garantia dos créditos emergentes do transporte.

Será, pois, aplicável ao caso vertente, como sustenta a apelante, o Decreto-Lei nº 255/99, de 7 de Julho (Regime Jurídico da Actividade Transitária), cujo art. 14º, sob a epígrafe" Direito de retenção", determina que "as empresas transitárias podem exercer o direito de retenção sobre mercadorias que lhes tenham sido confiadas em consequência dos respectivos contratos, pelos créditos deles resultantes, salvo estipulação expressa em contrário."

Aqui chegados, coloca-se-nos a questão de saber se, in casu, poderá a Ré exercer o direito de retenção sobre as mercadorias por si transportadas.
Tal ponderando, afigura-se-nos que o facto de ter sido acordado entre as partes o prazo de 30 dias após a emissão da respectiva factura, para o pagamento de cada transporte (facto 18º e 19º supra), constitui estipulação em contrário para efeitos daquele normativo, dada a incompatibilidade desta cláusula contratual com a retenção das mercadorias.

Assim, quer à luz de tal preceito, quer á luz do art. 754º do Código Civil (de harmonia com o qual a sentença recorrida enquadrou a questão), não poderá a Ré arrogar-se a tal direito de retenção, impondo-se-lhe a entrega imediata das mercadorias, em respeito do acordado.

Acrescerá referir que, também em contrário do sustentado pela apelante, não se verifica no caso vertente o condicionalismo fáctico conducente à perda de beneficio de prazo a que alude o art. 780º do CC, porquanto, sendo certo não estarmos em face de uma situação de insolvência, também se não constataram diminuídas as garantias do crédito, até porque da factualidade apurada, designadamente a existência de um débito de € 15.113,97 à data da entrega do frete em causa nos autos (acrescendo ter o motorista da Ré ficado com o cheque naquele momento entregue pela A.), não evidencia, só por si, tal diminuição de garantias, sendo que muito maior fora a dívida da A. para com a Ré em momento anterior (designadamente em Março de 2002 que ascendeu a mais de 54 mil Euros - daqui resultando também não se verificar em finais de Julho diminuição de garantias).

Improcede, assim, a apelação.

DECISÃO

Por todo o exposto, Acordam na 3ª Secção Cível do Tribunal da Relação do Porto, em julgar improcedente a apelação, confirmando-se a sentença recorrida.

Custas pela apelante.

Porto, 8 de Junho de 2006
Nuno Ângelo Rainho Ataíde das Neves
António do Amaral Ferreira
Deolinda Maria Fazendas Borges Varão