Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
111/23.4GAPFR.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: FRANCISCO MOTA RIBEIRO
Descritores: AMEAÇA AGRAVADA
ACÇÃO PENAL
COMPETÊNCIA
MINISTÉRIO PÚBLICO
PRINCÍPIO DA LEGALIDADE
LEGITIMIDADE
EXCEPÇÃO
CRIME SEMI-PÚBLICO
CRIME DE NATUREZA PARTICULAR
Nº do Documento: RP20240228111/23.4GAPFR.P1
Data do Acordão: 02/28/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL (CONFERÊNCIA)
Decisão: CONCEDIDO PROVIMENTO AO RECURSO INTERPOSTO PELO MINISTÉRIO PÚBLICO
Indicações Eventuais: 4ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - O princípio da oficialidade, que assenta no caráter público da ação penal, cujo exercício compete ao Ministério Público, enquanto órgão do Estado, por sua própria iniciativa, embora orientado pelo princípio da legalidade, tem consagração constitucional, no art.º 219º, nº 1, da Constituição da República, ao estabelecer que ao Ministério Público compete “representar o Estado e defender os interesses que a lei determinar, bem como, com observância do disposto no número seguinte e nos termos da lei, participar na execução da política criminal definida pelos órgãos de soberania, exercer a ação penal orientada pelo princípio da legalidade e defender a legalidade democrática”.
II - Compreendendo-se por isso que a legitimidade do Ministério Público para promover o processo penal seja a regra, só carecendo dela nos casos em que tal legitimidade dependa de queixa ou de queixa e acusação particular – art.ºs 48º e 49º a 52º do CPP. A razão, citando-se o Professor Jorge de Figueiredo Dias, é o facto de as respetivas infrações não se relacionarem com bens jurídicos fundamentais da comunidade “de modo tão direto e imediato que aquela sinta, em todas as circunstâncias da lesão – vg. atenta a sua insignificância -, necessidade de reagir automaticamente contra o infrator”.
III - Por outro lado, a indicação da natureza semipública ou particular de um crime é expressamente dada pelo próprio legislador, logo a seguir, no próprio artigo do Código Penal onde descreve o tipo-de-ilícito, ou então em artigo autónomo, no qual expressamente são referidos os artigos do mesmo Código cujos crimes dependem de queixa ou de acusação particular.
IV - Assim sendo, é bom de ver que o procedimento criminal pela autoria do crime de ameaça simples, previsto no art.º 153º, nº 1, do CP, depende de queixa, porque o legislador di-lo expressamente no nº 2 do mesmo artigo. Mas já não a ameaça agravada prevista no art.º 155º do CP, porquanto, nem nesse artigo, nem noutro qualquer à parte, o legislador quis atribuir-lhe a natureza de crime semipúblico, porque se quisesse tê-lo-ia dito.
V - E não o disse por razões de índole material, relacionadas com o facto de o crime de ameaça agravada atingir bens jurídicos fundamentais de um modo intenso e grave que exige uma atuação automática do sistema penal.
VI - Não se vendo fundamento, por exemplo, para que houvesse possibilidade de se deixar que o procedimento criminal tivesse lugar dependentemente de queixa, no segmento normativo em que um dos fundamentos da agravação é o facto de a vítima ser uma pessoa particularmente indefesa (art.º 155º, nº 1, al. b), do CP), e por isso diminuída na capacidade e na vontade que pudesse livremente dirigir ou exprimir contra a pessoa que a ameaçou, estando assim carecida de uma acrescida proteção penal, que só o afastamento da necessidade de queixa pode verdadeiramente acautelar; ou no caso de a vítima se suicidar ou se tentar suicidar (art.º 155º, nº 2, do CP), valendo aqui o resultado morte da própria vítima, enquanto acrescido desvalor para a comunidade do atingimento do bem jurídico da liberdade de decisão e ação daquela, que o comportamento ilícito e culposo do agente causou, e que não pode ser deixado na disponibilidade da dedução de queixa dos representantes da pessoa ofendida - situação, aliás, análoga à prevista no art.º 178º, nº 1, al. a) do CP, ao excluir da necessidade de dedução de queixa os crimes aí previstos; ou ainda, em lugar de paralela gravidade, para efeitos de o crime assumir natureza pública, a ameaça com a prática de um crime punível com pena de prisão superior a três anos (art.º 155º, nº 1, al. a), do CP), sobretudo, como acontece no caso dos autos, quando essa gravidade é traduzida pela ameaça de morte, idónea a causar grave inquietação na vítima, mas reflexamente também na própria comunidade.

(Sumário da responsabilidade do Relator)
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo n.º 111/23.4GAPFR.P1 – 4.ª Secção

Relator: Francisco Mota Ribeiro

Sumário:

………………………………

………………………………

………………………………


*

Acordam, em conferência, no Tribunal da Relação do Porto

1. RELATÓRIO

1.1. No âmbito do processo nº 111/23.4GAPFR.P1, que corre termos no Juízo Local Criminal de Paços de Ferreira, do Tribunal Judicial da Comarca do Porto Este, por despacho de 22-11-2023, proferido em audiência de julgamento foi decidido o seguinte:

“Por nós propendemos para a interpretação de que o crime de ameaça, mesmo sendo agravada, mantém a disponibilidade na esfera do denunciante de poder desistir do procedimento criminal.--

Na esteira do Acórdão do TRP de 06.04.2022 in Proc. nº 1301/19.0PBAVR.P1, onde é escrito que o crime de ameaça desde a redação originária de 82 sempre revestiu natureza semipública e foi apenas após a alteração do Código Penal em 2007 que germinou a ideia da dicotomia entre ameaça simples e ameaça agravada, semipública a primeira, pública a segunda, a interpretação que essa revisão (assim como as posteriores), a nenhuma alteração substancial do tipo do crime de ameaça procedeu, apenas aglutinando e ampliando as circunstâncias agravantes da ameaça e da coação, por razões de utilitarismo sistemático.--

Mais é dito que na evolução histórica da lei nem a reconstituição de pensamento legislativo, permitem concluir pela existência de qualquer intensão do legislador em alterar a pré-existente natureza semi-pública do crime de ameaça na sua forma simples ou agravada, e ignorar por completo a vontade da pessoa ofendida, nomeadamente quanto à sua faculdade de desistir do procedimento criminal contra o ameaçante.--

Assim, face à interpretação que este Tribunal adota na esteira do citado Acórdão e integrando o ilícito que vem imputado à arguida como sendo de natureza semipública, admite-se a desistência de queixa e julga-se extinto o procedimento criminal contra a arguida AA.”

Em face do supra exposto, sufragando, no mais, os fundamentos elencados, além do suprarreferido acórdão do TRP, no Ac. TRP processo n.º 1301/19.0PBAVR.P1, de 06-04-2022, disponível em www.dgsi.pt, considerando que o crime de ameaça agravada pelo qual o arguido BB vem acusado tem natureza semipública (artigo 153º, nº 1 e 155.º, n.º 1, alínea a), do CP); que a queixosa tem direito a desistir da queixa (artigo 116.º, n.º 2, do CP); que a desistência de queixa é tempestiva (artigo 116.º, n.º 2, do CP); e que o arguido declarou expressamente que não se opõe à aludida desistência (cf. fls. 85), julgo válida e juridicamente relevante a desistência de queixa ora apresentada, que homologo nos termos conjugados dos artigos 48.º, 49.º, 51.º, do CPP, e 113.º e 116.º, n.º 2, do CP.

Em consequência do supra exposto, declaro extinto o procedimento criminal.”

1.2. Não se conformando com tal despacho, dele interpôs recurso o Ministério Público, apresentando motivação que termina com as seguintes conclusões:

“I. De acordo com os princípios da legalidade e oficialidade, nos casos em que os crimes têm natureza pública, uma vez que o procedimento criminal não está condicionado à apresentação da queixa, a desistência por parte do ofendido é irrelevante porquanto ineficaz, conservando o Ministério Público a legitimidade para o promover (cfr. artigos 48.º e 49.º ambos do Código de Processo Penal).

II. O crime de ameaça agravado reveste natureza pública.

III. Com efeito, a norma contida no artigo 155.º, n.º 1, alínea a) do Código Penal, ao invés do que sucede nos casos em que os crimes têm natureza semipública e particular, não estabelece a exigência de queixa para o Ministério Público poder promover livremente o procedimento criminal.

IV. E, conforme se verifica noutros tipos de crime simples e qualificados, nomeadamente de furto simples e qualificado, o crime de ameaça agravado é crime autónomo ainda que conformado pelo tipo-base constante do artigo 153.º, n.º 1 do Código Penal.

V. Ou seja, no crime de ameaça agravado a remissão feita pelo artigo 155.º, n.º 1 para o artigo 153º, não abrange o seu n.º 2, que contém a disposição «o procedimento criminal depende de queixa», antes se cinge, tão só, aos «factos previstos» no citado preceito, ou seja, à previsão do nº 1 onde se descrevem «factos».

VI. O legislador de 2007 decidiu atribuir maior severidade punitiva às condutas que integrou no artigo 155.º do Código Penal, porquanto reveladoras de maior ilicitude da ação — artigo 155º, nº 1, alíneas a), b) e c) —, ou mais elevada culpa do agente — artigo 155º, nº 1, alínea d) — e considerando as particularmente fortes necessidades de prevenção geral decidiu não fazer depender a legitimidade do Ministério Público para o exercício da ação penal pela prática de crime de ameaça agravado de queixa.

VII. Tal opção ressalta da sistemática adotada: no artigo 153.º, n.º 1, permaneceu o tipo simples, tendo sido mantida a natureza semipública, no n.º 2 do referido normativo. E o tipo qualificado passou a estar previsto no artigo 155.º, onde se preveem as circunstâncias e os resultados que qualificam, tanto o tipo simples de ameaça, como o tipo simples de coação e as penas que cabem a cada um dos tipos, em função da sua verificação.

VIII. Em suma, não existindo disposição que preveja de forma expressa a necessidade da queixa para o crime agravado previsto no artigo 155.º do Código Penal, a ausência de disposição que preveja a necessidade de queixa aponta no sentido de que o crime de ameaça agravado tem natureza pública.

IX. Do que vem de ser exposto, o despacho recorrido, que homologou a desistência de queixa quanto ao crime de ameaça agravado, considerando que este reveste natureza semi-pública, determinou a extinção do procedimento criminal e o arquivamento dos autos violou o disposto nos artigos 48.º e 49.º do Código de Processo Penal e, bem assim, nos artigos 153.º, n.ºs 1 e 2, e 155.º, n.º 1, alínea a), todos do Código Penal.

 Termos em que, deverá ser concedido provimento ao presente recurso e, consequentemente, ser o despacho recorrido revogado e substituído por outro que, considerando irrelevante a desistência de queixa apresentada por CC quanto ao crime de ameaça agravado em referência nos autos, determine o prosseguimento do processo para julgamento da arguida AA.”

1.3. Não foi deduzida resposta ao recurso.

1.4. A Exma. Senhora Procuradora-Geral-Adjunta emitiu douto parecer, concluindo pela procedência do recurso.

1.5. Tendo em conta os fundamentos do recurso interposto pelo Ministério Público e os poderes de cognição deste Tribunal, importa apreciar e decidir se o crime de ameaça agravada, previsto e punido pelas disposições conjugadas dos art.ºs 153º e 155º, nº 1, al. a), por referência ao art.º 131º, todos do Código Penal, em causa nos autos é, ou não um crime público e, consequentemente, se está ou não vedada relativamente a ele a possibilidade de desistência de queixa.    

2. FUNDAMENTAÇÃO

No início da audiência de julgamento, pela ofendida foi dito desistir da queixa apresentada nos presentes autos.

O Ministério Público opôs-se à homologação da desistência de queixa, porquanto entende que o crime de ameaça agravada, previsto e punido no art.º 153.º, n.º 1 e 155.º, n.º 1, a), do CP, reveste natureza pública e, como tal, não admite desistência.

Em sentido contrário foi o entendimento do Tribunal a quo, que na decisão recorrida considerou estarmos perante um crime semipúblico, homologando aquela desistência e determinando o arquivamento do processo.

Analisando o art.º 155º do CP, que prevê a agravação da pena prevista para o crime de ameaça simples, verificamos que em segmento normativo algum se diz que o procedimento criminal pela prática de tal crime, na forma agravada, está dependente de queixa. A contrário do que resulta para o crime de ameaça simples, onde no nº 2 do art.º 153º do CP se afirma, expressamente, como tem de ser, que o respetivo procedimento criminal depende de queixa.

 O princípio da oficialidade, que assenta no caráter público da ação penal, cujo exercício compete ao Ministério Público, enquanto órgão do Estado, por sua própria iniciativa, embora orientado pelo princípio da legalidade, tem consagração constitucional, no art.º 219º, nº 1, da Constituição da República, ao estabelecer que ao Ministério Público compete “representar o Estado e defender os interesses que a lei determinar, bem como, com observância do disposto no número seguinte e nos termos da lei, participar na execução da política criminal definida pelos órgãos de soberania, exercer a ação penal orientada pelo princípio da legalidade e defender a legalidade democrática”.

O mesmo resultando dos art.ºs 2º e 4º, nº 1, al. d), do Estatuto dos Magistrados do Ministério Público, e neste último normativo ao estabelecer-se que compete, especialmente, ao Ministério Público “Exercer a ação penal orientado pelo princípio da legalidade”. Com o significado de que a promoção e prossecução processual penal se apresenta para o Ministério Público como um dever, pautando a sua atuação por uma estrita vinculação à lei.

Do que fica exposto, compreende-se que a legitimidade do Ministério Público para promover o processo penal é a regra, só carecendo dela nos casos em que tal legitimidade dependa de queixa ou de queixa e acusação particular – art.ºs 48º e 49º a 52º do CPP. É isso que resulta do art.º 48º, nº 1, do CPP, quando diz que “O Ministério Público tem legitimidade para promover o processo penal, com as restrições dos art.ºs 49º a 52º”. Sendo que o art.º 49º, nº 1, nos diz que “Quando o procedimento criminal depender de queixa, do ofendido ou de outras pessoas, é necessário que essas pessoas deem conhecimento do facto ao Ministério Público”.   

O regime regra tem, portanto, por base a existência de um crime público, ou seja, aquele em que, nas palavras do professor Jorge de Figueiredo Dias, “o Ministério Público promove oficiosamente e por sua iniciativa o processo penal e decide com plena automomia – embora estritamente ligado por um princípio da legalidade – da submissão ou não-submissão de uma infração a julgamento”. Já assim não será nos crimes semipúblicos ou particulares, em que “a legitimidade do Ministério Público para por eles poder acusar precisa de ser integrada por uma denúncia (…) ou também por uma acusação particular”[1]. Sendo o fundamento material para a existência de crimes semipúblicos e particulares o facto de que “certas infrações (por exemplo certas formas de ofensas corporais, danos, furtos, injúrias) não se relacionam com bens jurídicos fundamentais da comunidade de modo tão direto e imediato que aquela sinta, em todas as circunstâncias da lesão – vg. atenta a sua insignificância -, necessidade de reagir automaticamente contra o infrator. Se o ofendido entende não fazer valer a exigência de retribuição, a comunidade considera que o assunto não merece ser apreciado em processo penal[2]. Acrescentando o Ilustre Professor, uma razão que se mantém válida face ao regime legal atualmente em vigor: vale entre nós, “sem quaisquer limitações, o princípio da legalidade, que vincula estritamente o Ministério Público a dar acusação por todas as infrações cujos pressupostos repute verificados, podendo daqui resultar que os tribunais se vejam submergidos por um sem-número de processos penais de duvidoso valor e interesse comunitário. Em vez de obviar a esta situação através da consagração, para certas hipóteses rigorosamente especificadas, do princípio da oportunidade, o legislador português terá preferido seguir o caminho de alargar as hipóteses de crimes particulares”[3] (em sentido lato, entenda-se, ou seja, semipúblicos e particulares). Referindo o mesmo Il. Professor, em obra posterior, que a queixa e a acusação particular desempenham uma tripla função: de que o procedimento criminal relativo a bagatelas penais e pequena criminalidade só tenha lugar se e quando tal corresponder ao interesse e à vontade do titular do direito de queixa; evitar que o processo penal, “prosseguindo sem ou contra a vontade do ofendido, possa, em certas hipóteses, representar um inconveniente (ou mesmo inadmissível) intromissão na esfera das relações pessoais que entre ele e os outros participantes processuais intercedem”, como acontece com o crime de aproveitamento de segredo - art.ºs 196º e ss.; servir a função de específica proteção da vítima (ofendido) do crime, nomeadamente quando este “penetra profundamente nos valores da intimidade” – nomeadamente, mas não só, da esfera sexual ou familiar [cf., vg. os art.s 178º e ss. e 201º e ss. (211º)][4].

Dito isto, comecemos por considerar que não vemos como é que uma qualquer destas funções pudesse ser reclamada para conferir natureza semipública ao crime de ameaça agravada. 

Por outro lado, a indicação da natureza semipública ou particular de um crime é expressamente dada pelo próprio legislador, logo a seguir, no próprio artigo do Código Penal onde descreve o tipo-de-ilícito, ou então em artigo autónomo, no qual expressamente são referidos os artigos do mesmo Código cujos crimes dependem de queixa ou de acusação particular. É o que sucede com a ofensa à integridade física simples do art.º 143º do CP, cujo nº 2 diz que o procedimento criminal depende de queixa, salvo quando a ofensa seja cometida contra agentes das forças e serviços de segurança, no exercício das suas funções ou por causa delas, fazendo com que a ofensa à integridade física grave do art.º 144º do CP seja considerada um crime público, porque nele nada se diz quanto à necessidade de queixa para haver procedimento criminal pela prática desse crime. Ou o que resulta do art.º 178º do mesmo diploma, ao referir expressamente que o procedimento criminal pelos crimes previstos nos art.ºs 163º a 165º, 167º, 168º e 170º depende de queixa, salvo se forem praticados contra menor ou deles resultar suicídio ou morte da vítima.

Voltando agora ao caso dos autos, é bom de ver que o procedimento criminal pela autoria do crime de ameaça simples, previsto no art.º 153º, nº 1, do CP, depende de queixa, porque o legislador o diz expressamente no nº 2 do mesmo artigo. Mas já não a ameaça agravada prevista no art.º 155º do CP, porquanto, nem nesse artigo, nem noutro qualquer à parte, o legislador quis atribuir-lhe a natureza de crime semipúblico, porque se quisesse tê-lo-ia dito.

E não o disse por razões de índole material, relacionadas com o facto de tal crime atingir bens jurídicos fundamentais de um modo intenso e grave que exige uma atuação automática do sistema penal, e assim a instauração do respetivo procedimento criminal contra o infrator. Não se vendo fundamento, por exemplo, para que houvesse possibilidade de se deixar que o procedimento criminal tivesse lugar dependentemente de queixa, por corresponder ao interesse e à vontade do titular desse direito, no segmento normativo em que um dos fundamentos da agravação é o facto de a vítima ser uma pessoa particularmente indefesa (art.º 155º, nº 1, al. b), do CP), e por isso diminuída na capacidade e na vontade que pudesse livremente dirigir ou exprimir contra a pessoa que a ameaçou, estando por isso necessitada de uma acrescida proteção penal, que só o afastamento da necessidade de queixa pode verdadeiramente acautelar; ou no caso de a vítima se suicidar ou se tentar suicidar (art.º 155º, nº 2, do CP),  valendo aqui o resultado morte da própria vítima, enquanto acrescido desvalor para a comunidade do atingimento do bem jurídico da liberdade de decisão e ação daquela, que o comportamento ilícito e culposo do agente causou, e que não pode ser deixado na disponibilidade da dedução de queixa dos representantes da pessoa ofendida.  Situação que o legislador também previu no art.º 178º, nº 1, al. a), do CP, ao excluir da necessidade de dedução de queixa para que haja procedimento criminal pelos crimes previstos nos artigos 163.º a 165.º, 167.º, 168.º e 171.º a 175.º “Quando de qualquer deles resultar suicídio ou morte da vítima”. E em lugar de paralela gravidade, para efeitos de o crime assumir natureza pública, colocou o legislador a ameaça com a prática de um crime punível com pena de prisão superior a três anos (art.º 155º, nº 1, al. a), do CP), preceito relativamente ao qual importa considerar o Acórdão de fixação de jurisprudência nº 7/2013, de 20/03[5] que fixou jurisprudência no sentido de que “A ameaça de prática de qualquer um dos crimes previstos no n.º 1 do artigo 153º do Código Penal, quando punível com pena de prisão superior a três anos, integra o crime de ameaça agravado da alínea a) do n.º 1 do artigo 155º do mesmo diploma legal”. E sobretudo, como acontece no caso dos autos, quando essa gravidade é traduzida pela ameaça de morte, idónea a causar grave inquietação na vítima, mas também na própria comunidade.  

No sentido de que o crime de ameaça agravada é um crime público, tem-se pronunciado a maioria esmagadora da jurisprudência dos Tribunais superiores, designadamente os Ac. do TRP, de 27/04/2011, do TRP, de 02/05/2012, do TRC, de 10/07/2013, do TRG, de 09/05/2011, do TRC, de 10/12/2013, do TRE, de 07/04/2015, do TRL, de 30/04/2015, do TRP, de 15/06/2016, do TRC, de 6/07/2016, do TRP, de 26/05/2021 e do TRG, de 07/11/2022[6].

Estando em causa nos autos um crime público, não só o procedimento criminal não está dependente de qualquer queixa, como a queixa existente não possibilitará que sobre ela haja desistência, com o fim de fazer cessar a intervenção do Ministério Público no processo, porquanto tal desistência, com os efeitos pretendidos, é legalmente inadmissível, e assim inadmissível é também a sua homologação e a consequente extinção do procedimento criminal que esta representaria – artºs 48º e 51º, nº 1, do CPP.

Razão por que irá ser concedido provimento ao recurso, revogando-se a decisão recorrida, que deverá ser substituída por outra que determine o prosseguimento dos autos.

3. DISPOSITIVO

Face ao exposto, acordam os juízes da 2.ª Secção Criminal (4ª Secção Judicial) deste Tribunal da Relação do Porto em conceder provimento ao recurso interposto pelo Ministério Público e, consequentemente, revoga-se a decisão recorrida, que deverá ser substituída por outra que determine o prosseguimento dos autos.

Sem custas


Porto, 2024-02-28
Francisco Mota Ribeiro
William Themudo Gilman
Paula Pires
_______________
[1] Direito Processual Penal, 1ª edição, 1974, reimpressão, Coimbra editora, Coimbra, 2004, p. 120
[2] Idem, p. 121.
[3] Ibidem.
[4] Jorge de Figueiredo Dias, Direito Penal Português – As consequências Jurídicas do Crime, Coimbra Editora, Reimpressão, Coimbra, 2005, p. 666 e ss.
[5] Diário da República, I Série, de 20/03/2013.
[6] Proc. nºs 53/09.6GBVNF.P1, 284/10.6GBPRD.P1, 187/11.7GBLSA.C1, 127/08.0GEGMR.G1, 183/09.4GTFVIS.C1, 517/12.4PAOLH.E1, 64/14.0PAPTS-A.L1-9, 6928/13.0TDPRT.P1, 467/13.7GASEI-A.C1, 467/13.7GASEI-A.C1,