Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
3737/13.0TBSTS.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: JORGE SEABRA
Descritores: IMPUGNAÇÃO DA DECISÃO DA MATÉRIA DE FACTO
ÓNUS DE ALEGAÇÃO
ÓNUS DE ESPECIFICAÇÃO
Nº do Documento: RP201811053737/13.0TBSTS.P1
Data do Acordão: 11/05/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Indicações Eventuais: 5ª SECÇÃO (LIVRO DE REGISTOS Nº 683, FLS 293-304)
Área Temática: .
Sumário: I – Tendo o recurso por objecto a reapreciação da matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar os concretos pontos da matéria de facto que considera incorrectamente julgados.
II – Essa especificação deve ser feita nas conclusões e não apenas no corpo das alegações, já que são aquelas que delimitam o objecto e o âmbito da actividade jurisdicional do tribunal de recurso.
III – O incumprimento deste ónus de especificação importa a rejeição do recurso, ma parte respeitante, com o consequente não conhecimento da matéria de facto impugnada que não conste, em termos concretos e sintéticos do elenco das conclusões.
IV – Não há lugar à reapreciação da matéria de facto quando o facto concreto impugnado não for susceptível de, face às circunstâncias próprias do caso em apreciação, ao quadro normativo aplicável e às regras do ónus da prova, ter relevância jurídica, sob pena de se levar a cabo uma actividade processual que se sabe de antemão ser inconsequente ou inútil.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo n.º 3737/13.0TBSTS.P1 - Apelação
Origem: Juízo Local Cível de Santo Tirso – Juiz 2.
Relator: Juiz Desembargador Jorge Seabra
1º Adjunto: Juíza Desembargadora Maria de Fátima Andrade
2º Adjunto: Juíza Desembargadora Fernanda Almeida
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Sumário:
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Acordam, em conferência, no Tribunal da Relação do Porto:
I. RELATÓRIO:
1. “ B..., Lda., com sede em Rua ..., .., ..., Santo Tirso, intentou a presente acção declarativa de condenação sob a forma de processo comum contra C..., residente em Rua ..., lote .., ..., Guimarães, D..., residente em Rua ..., Braga, e E..., residente na Rua ..., n.º .., ..., Braga, pedindo a condenação solidária dos Réus a:
a)- reconhecerem que a Autora é dona e legítima possuidora do veículo automóvel, marca Volkswagen, modelo “...“, com a matrícula ..-..-NL;
b)- restituírem à Autora a posse do dito veículo;
c)– subsidiariamente, a pagarem à Autora o valor comercial do veículo à data do esbulho, no montante de € 4.500,00, acrescidos de juros de mora à taxa legal, contados desde 29.10.2010 e até integral pagamento;
d)- e pagarem à Autora todas as despesas judiciais e extrajudiciais, a liquidar em execução de sentença e que estimam em montante não inferior a € 2. 500,00.
Alegou a Autora, em síntese, que é dona do aludido veículo automóvel e que no âmbito da sua actividade entregou o mesmo a F... a 29.10.2010 para que este último o mostrasse ao Réu C..., suposto interessado na sua compra pelo preço de € 4.500,00.
Porém, o referido F... não devolveu o identificado veículo à Autora nem procedeu ao pagamento do respectivo preço.
Entretanto, a Autora tomou conhecimento que o veículo se encontraria na posse do Réu E..., gerente de um sucata, sendo que o dito Réu E... e o Réu D..., para se cobrarem de uma dívida, fizeram seu e venderam o veículo em apreço a um tal de H... que está em França.
A Autora está assim desapossada do veículo.
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2. Regularmente citados, os Réus D... e E... apresentaram contestação, na qual impugnaram a versão factual alegada pela Autora e concluíram pela improcedência da acção.
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3. Foi elaborado despacho saneador, no qual foi afirmada a validade e regularidade da instância, tendo sido dispensada a fixação do objecto do litígio e a elaboração de temas de prova, o que não mereceu reclamação.
Foram admitidos os meios de prova e designada data para audiência de julgamento.
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4. Posteriormente, com data de 14.06.2017, e na sequência de requerimento deduzido pelo Réu D... foi julgada improcedente a excepção de caso julgado suscitada pelo mesmo e atinente à sentença (transitada em julgado) proferida nos autos de acção sumária que correu termos pelo 1º Juízo Cível do Tribunal de Santo Tirso e que ali condenou o Réu (nessa outra acção) F... a restituir à ora Autora “B..., Lda.” a posse do veículo destes autos e subsidiariamente a pagar-lhe o valor comercial do veículo à data do esbulho, € 4.500,00, acrescido de juros de mora à taxa legal contados desde 29.10.2010 e até integral pagamento, assim como as despesas que vierem a ser liquidadas.
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5. Realizada a audiência de julgamento, foi proferida sentença que julgou parcialmente procedente a acção e condenou os RR. a reconhecerem a Autora como legítima proprietária do veículo automóvel referido nos autos, absolvendo no mais os RR.
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6. Inconformada com a sentença, dela veio a Autora interpor recurso de apelação – que foi admitido nos termos legais -, deduzindo alegações e formulando, a final, as seguintes
CONCLUSÕES
1. A matéria de facto dada como provada sob o nº 16 dos factos provados deveria ter sido dada por não provada, pois a Autora desconhece, e não podia conhecer, os atos subsequentes praticados pelo Sr. F... após a entrega do carro a este para que o mesmo o pudesse apresentar a potenciais compradores; no entanto, na senda dos vários processos instaurados para tentar apurar o destino dado ao veículo foram apresentadas versões dos factos que levaram à conclusão de que a transação do veículo ocorreu da forma descrita pela Autora na sua Petição Inicial.
2. Resulta também dos documentos juntos aos autos e dos depoimentos prestados pelo sr. C... e D..., prestados no âmbito do processo-crime que correu termos no Tribunal Judicial da Comarca de Santo Tirso, 1º Juízo Criminal, sob o nº 127/11.3GDSTS, que se encontram juntos aos presentes autos, e no qual a testemunha C... apresentou uma versão consentânea com a da testemunha D..., mas absolutamente distinta da apresentada neste autos pelo aqui Réu D.... As gravações foram apresentadas em Tribunal a pedido do Ilustre Mandatário dos Réus, a gravação foi facultada aos Réus e ao Tribunal, que infelizmente fez tábua rasa da mesma. Ainda assim, a versão apresentada nos autos pelos Réus não é adequada a afastar deles a responsabilidade pelos danos causados à Autora.
3. Atentas as insanáveis disparidades entre os dois depoimentos a credibilidade do Réu nunca poderia ser valorada pelo Tribunal. Mais: o depoimento do ora Réu prestado no processo-crime, enquanto testemunha que afirmou sem qualquer limitação que ficou com um carro sem documentos, que nunca cuidou de saber quem era o dono e que posteriormente entregou/vendeu a terceiros, é feito com uma ligeireza e até uma certa benevolência para com a estranheza manifestada pela Meritíssima Juiz quanto à forma como se processam os negócios na sua sucata, que demonstra claramente que Réu considera estar imune às regras que se aplicam à comunidade em geral.
4. Ao invés, o representante legal da Autora depôs em todos os julgamentos sempre de forma serena, séria, idónea, lógica e coerente com os factos.
5. Da concatenação dos depoimentos prestados pelos Réus no processo-crime e no presente processo cível é por demais evidente que, mesmo tendo em conta o princípio da livre apreciação da prova, a Meritíssima Juiz, através da gravação dos depoimentos prestados em ambos os processos, e de acordo com as mais elementares regras da lógica e da experiência comum, não poderia credibilizar em circunstância alguma tais depoimentos.
6. A sentença recorrida é contraditória na matéria dada como não provada face à prova produzida, sendo exemplos os factos não provados sob as alíneas c) e d).
7. Do depoimento do representante legal da Autora bem como das demais testemunhas arroladas por esta resultou, sem sombra de dúvida, que esta ficou sem o veículo objeto dos presentes autos, e que tudo fez no sentido de encontrar o veículo, chegando mesmo a ser confrontado com a afirmação dos Réus de que tinham o carro mas que se o quisesse encontrar que o procurasse por toda a sucata.
8. Os Réus não só fizeram seu um veículo que não lhes pertencia como lhe deram o fim que entenderam, sendo certo que o facto de um veículo sem documentos ser entregue numa sucata indicia claramente a vontade de o fazer desaparecer.
9. Entendeu a Meritíssima Juiz a quo que os Réus não violaram o direito de propriedade da Autora no que se refere ao veículo dos autos. Obnubilou, porém, que o contrato de compra e venda de veículo automóvel não depende da observância de qualquer formalidade especial, nem sequer se exigindo a forma escrita, podendo fazer-se a sua prova por qualquer meio permitido em direito.
10. Nos presentes autos impunha-se responder à seguinte questão: – a Autora transmitiu para os Réus a propriedade do veículo automóvel ou a titularidade do respetivo direito, um efeito essencial do negócio acordado, definido no artigo 879º a) do C. Civil? A resposta não pode deixar de ser negativa, pois esta transmissão opera por mero efeito do contrato e não está dependente da tradição material ou simbólica da coisa – artigo 408º do C. Civil.
11. Apesar do Réu C... ter feito a entrega aos Réus D... e E... do veículo, e respetivas chaves, e de ter recebido o preço, não transmitiu para o comprador a titularidade do direito de propriedade do veículo. Esta seria transmitida, sim, se o Réu C... fosse a proprietário do veículo objeto da alienação, ou tivesse validamente transferido esse direito.
12. Um princípio geral nos negócios translativos contido no brocardo latino nemo plus juiris in alium transferre potest quam ipse habet – ninguém pode transferir para outro um direito que o não tenha como seu. Este princípio traduz a impossibilidade do adquirente obter qualquer direito se nenhum direito pertence ao transmitente, nem obter mais direitos do que ele tinha.
13. Os veículos automóveis são móveis sujeitos a registo, sendo obrigatório o registo do direito de propriedade sobre os mesmos – artigo 5º - 1 a) e 2 do Decreto-Lei nº 54/75, de 12 de Fevereiro; o registo automóvel tem essencialmente por fim individualizar os respetivos proprietários e, em geral, dar publicidade aos direitos inerentes aos veículos automóveis – artigo 1º do mesmo diploma. A falta de registo, quando obrigatório, comina a apreensão do veículo e dos documentos pelas autoridades de fiscalização do trânsito – artigo 5º nº 3 do mesmo diploma.
14. Quer o registo predial quer o registo automóvel têm a mesma natureza.
No que interessa: o registo não é condição de validade da compra e venda, quer de imóvel quer de veículo automóvel. O efeito constitutivo ou translativo do negócio opera-se inter partes solo consenso. O registo já tem relevância para com terceiros. O registo tem uma eficácia meramente declarativa e não constitutiva, fazendo surgir uma presunção ilidível – artigo 7º do Código Registo Predial aplicável ao registo automóvel por via do artigo 29º do Decreto-Lei nº 54/75.
15. A diferença entre o registo dos imóveis e dos automóveis é que no destes últimos não é exigido o trato sucessivo. De resto, os quadros mentais de análise são os mesmos. Face ao teor do registo automóvel, não atacado, e aos elementos carreados para o processo, a proprietária do veículo é a Autora. Como proprietária do veículo, à Autora assiste a prevalência sobre os demais direitos reais que tenham por objeto o veículo, e a sequela, o poder de perseguir a coisa mesmo si per mille manus ambulaverit.
16. A proprietária pode reivindicar a coisa das mãos de terceiro, possuidor ou detentor, correndo os encargos com a restituição à custa do esbulhador – artigos 1311º e 1312º do Código Civil. Pode recorrer à ação direta – artigo 1324º do C. Civil. Os Réus não tinham a seu favor qualquer direito com assento registral; porém, assumiram ter pago por conta do veículo dos autos a quantia de € 3000,00, bem como assumiram praticar atos de posse sobre o mesmo, designadamente deslocando-se nele. A posse que nasce para os Réus com o contrato de celebrado em 15 dos factos provados não é de boa fé.
17. A boa-fé deve ser aferida no momento da celebração do negócio. A posse diz-se de boa-fé quando o possuidor ignorava, ao adquiri-la, que lesava o direito de outrem – artigo 1260º 1 do C. Civil, e nos casos do artigo 892º do C. Civil consiste na ignorância de que a coisa vendida não pertencia ao vendedor. Os Réus dizem que desconheciam a identidade do titular inscrito no registo, e bem assim a existência da Autora, estando convencidos que o dono era o Réu C..., mas tal tese não convence, pois os Réus na sua atividade comercial todos os dias negoceiam com veículos e salvados e, como os mesmos orgulhosamente afirmam, trata-se da “segunda maior sucata do país”.
18. Sabe-se que os Réus tinham em seu poder o veículo, ilegitimamente, por falta de título válido, de má fé. Isso resulta de se terem dado como provados os factos elencados sob os números 13º, 14º e 15º.Os Réus não provaram ser possuidores ou detentores de boa fé em relação ao veículo.
19. Agiram os Réus em detrimento da Autora, pois se tivessem pedido o Certificado de Matrícula ao Réu C..., de imediato teriam concluído que se tratava de um bem alheio, que o vendedor não tinha legitimidade para vender/dar de garantia ou o que fosse. Sendo esse comportamento dos Réus que impossibilitou conhecerem a real situação do veículo quanto à sua propriedade ou, então, sabendo, não lhes interessou saber, desde logo, porque sabiam que o valor comercial do veículo era mais do dobro daquele que “alegadamente estava a emprestar ou a pagar por ele”, e depois porque, melhor do que ninguém, dispunham de meios para se verem ressarcidos do valor “emprestado/pago” com relativa facilidade. Os Réus assumiram que nem sequer se deram ao trabalho de diligenciar pela entrega dos documentos, e pugnam por não serem responsáveis pela restituição à Autora do preço do veículo.
20. Obnubilou a meritíssima juiz a quo que os Réus não tinham legitimidade para fazer qualquer transação tendo por base o veículo dos autos, pois não provaram a sua boa fé, antes há fartos elementos nos autos que inculcam comportamento abusivo.
21. O negócio que os Réus celebraram com o Réu C... seria formalmente válido inter partes solo consenso. Tal compra e venda em relação ao titular inscrito no registo é ineficaz. Quer pelo regime do Código Civil quer pelo do Código Comercial o negócio efetuado, não convalidado, está viciado- é venda de bens alheios. Se pelo Código Civil – artigo 894º - há lugar à restituição integral do preço, pelo Código Comercial haverá lugar à indemnização por perdas e danos - art. 467º 2 parágrafo único.
22. Objetivamente os Réus agiram sempre em detrimento da Autora, sem curar de verificar os documentos do veículo, sem curar de adquirir legitimamente o veículo da esfera jurídica da sua legítima proprietária.
23. Há, assim, nos autos elementos mais do que suficientes para fixar o objeto e o quantum do pedido indemnizatório, com ponderação, razoabilidade e acerto casuístico, face aos factos apurados e à lei aplicável.
Termos em que, revogando-se a douta sentença recorrida e substituindo-a por outra que condene os Réus no pedido, será feita JUSTIÇA.
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6. O Réu D... contra-alegou ao recurso interposto, pugnando pela sua improcedência e consequente confirmação da sentença recorrida.
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7. Foram cumpridos os vistos legais.
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II. DELIMITAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO:
O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente, não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso - cfr. artigos 635º, n.º 3 e 639º, nºs 1 e 2, do novo Código de Processo Civil, na redacção emergente da Lei n.º 41/2013 de 26.06 [doravante designado apenas por CPC].
Por outro lado, ainda, sem prejuízo das matérias de conhecimento oficioso, o tribunal de recurso não pode conhecer de questões não antes suscitadas pelas partes em 1ª instância e ali apreciadas, sendo que a instância recursiva, tal como configurada no sistema de recursos vigente na nossa lei adjectiva, não se destina à prolação de novas decisões judiciais, mas ao reexame ou à reapreciação pela instância hierarquicamente superior das decisões proferidas pelas instâncias. [1]
Por outro lado, ainda, ao Tribunal de recurso cumpre conhecer de questões e não de argumentos.
Neste enquadramento, as questões a decidir no presente recurso são as seguintes:
a)- Do erro de valoração e ponderação dos meios prova produzidos nos autos quanto aos concretos pontos de facto impugnados.
b)- Da responsabilidade dos RR. pelos danos invocados pela Autora.
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III. FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO:
O Tribunal de 1ª instância julgou provados os seguintes factos:
1. A Autora é uma sociedade comercial que se dedica ao comércio de veículos automóveis.
2. A Autora é dona e legitima possuidora de um veículo automóvel da marca Volkswagen, modelo ..., com a matrícula ..-..-NL.
3. A propriedade do referido veículo encontra-se registada a favor da Autora na Conservatória do Registo Automóvel.
4. A Autora adquiriu o mencionado veículo a 24 de Setembro de 2010 a I..., por compra.
5. Procedeu à sua inspecção.
6. E pagou o imposto de circulação.
7. Colocou-o no seu Stand à venda.
8. O que fez à vista de toda a gente.
9. Sem oposição de quem quer que seja.
10. De forma ininterrupta e na convicção de que o veículo lhe pertencia.
11. No âmbito da sua actividade e na pessoa do seu sócio gerente, J..., a Autora entregou a F..., em Outubro de 2010, o automóvel acima identificado para que este mostrasse a um suposto interessado na compra de nome C..., pelo preço de €4.500 (quatro mil e quinhentos euros).
12. O F... não devolveu o mencionado veículo à Autora nem procedeu ao pagamento do preço pelo qual o mesmo estava à venda.
13. Em data não concretamente apurada, o Réu G... solicitou ao Réu D... um empréstimo no montante de € 3.000 (três mil euros).
14. O Réu acedeu a tal pedido e emprestou-lhe tal montante.
15. O Réu C... como garantia do cumprimento da palavra de restituição do valor emprestado entregou ao Réu D... as chaves e o veículo identificado em 2 dos factos provados.
16. Ao fim de três dias, o Réu C... restituiu ao Réu D... o valor de €3.000 e este restituiu-lhe o carro e as chaves do mesmo.
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Por seu turno, o Tribunal de 1ª instância julgou como não provados os seguintes factos:
a)- Que o mencionado veículo tenha sido vendido pelo identificado F... ao Réu C... que não o pagou.
b)- Que o Réu C... tenha entregue o dito veículo ao Réu D... para pagamento de uma dívida.
c)- Que os Réus D... e E... para se cobrarem da dita dívida venderam o referido veículo a um tal de H....
d)- Que chegou a circular com o veículo.
e)- Que os Réus tenham feito seu, o dito veículo.
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IV. FUNDAMENTAÇÃO JURÍDICA:
IV.I. Impugnação da decisão sobre a matéria de facto:
Como resulta da fixação do objecto do presente recurso [delimitado, como se referiu, pelas conclusões recursivas, salvo no que seja de conhecimento oficioso] a primeira questão que importa dirimir refere-se à impugnação da decisão sobre a matéria de facto proferida pelo tribunal recorrido, sendo que esta se constitui como essencial à decisão da causa e, em particular, à procedência da pretensão deduzida nos autos.
Em sede de impugnação da decisão de facto, como é consabido, a reapreciação da prova produzida em 1ª instância, enquanto garantia do duplo grau de jurisdição em matéria de facto, está subordinada à observância de determinados ónus que a lei adjectiva impõe ao recorrente.
Na verdade, a apontada garantia nunca poderá envolver, pela própria natureza das coisas, a reapreciação sistemática e global de toda a prova produzida na audiência final, impondo-se, por isso, ao recorrente, no respeito dos princípios estruturantes da cooperação e da lealdade e boa-fé processuais, que proceda à delimitação com toda a precisão dos concretos pontos da decisão que pretende questionar, dos concretos meios de prova, disponibilizados pelo processo ou pelo registo ou gravação nele realizada, que imponham, sobre aqueles pontos, distinta decisão, e a decisão que, no ver do Recorrente, deve ser encontrada para os pontos de facto objecto da impugnação.
Com efeito, como decorre do preceituado no n.º 1 do art. 640º, incumbe ao recorrente, em primeiro lugar, circunscrever o âmbito do recurso, indicando claramente os segmentos da decisão que considerados viciados por erro de julgamento, com indicação da decisão que a seu ver deveria ter sido proferida [als. a) e c) do n.º 1] e, em segundo lugar, fundamentar, em termos concludentes, as razões da sua discordância, concretizando e apreciando criticamente os meios probatórios constantes dos autos ou da gravação que, no seu entender, impliquem uma decisão diversa [al. b) do n.º 1].
De facto, se ao Tribunal é atribuído o dever de fundamentação e de motivação crítica da sua decisão em matéria de facto (art. 607º, n.º 4 do CPC), facilmente se compreende que, em contraponto, o legislador tenha imposto à parte que pretende impugnar a decisão sobre a matéria de facto o respectivo ónus de impugnação, ou seja o ónus de expor, em termos claros e suficientes, os argumentos que, extraídos da sua própria apreciação crítica dos meios de prova produzidos, determinem, em seu entender, um resultado diverso do decidido pelo Tribunal a quo.
Neste sentido, havendo impugnação da matéria de facto, com recurso à gravação da prova, o recorrente vê alargado o prazo geral de recurso em mais 10 dias para apresentar as suas alegações – cfr. artigos 638º, n.º 1 e 7 e 640º, do CPC; Este alargamento tem justificação no facto de permitir ao recorrente ouvir a prova gravada e proceder à identificação precisa e separada dos depoimentos e cumprir as especificações processuais exigidas.
Com efeito, no caso de o recurso envolver a impugnação da matéria de facto, o recorrente, sob pena de rejeição, deve indicar sempre os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados, explicitando a decisão de que facto deveria ter sido adoptada pelo Tribunal recorrido, enunciar essa sua posição na motivação de recurso e sintetizá-la nas conclusões, bem como os concretos meios probatórios que, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizado impunham decisão diversa da adoptada quanto aos factos impugnados, indicando as passagens da gravação em que se funda, sem prejuízo da possibilidade de, por sua iniciativa, proceder à respectiva transcrição – cfr. artigo 640º, n.º s 1 e 2 do CPC. [2]
Como a este propósito salientam Luís Correia de Mendonça e Henrique Antunes, op. cit., pág. 254-255, “ Deve o recorrente procurar demonstrar o concreto erro de julgamento (error in judicando), produzindo a correspondente motivação, por reporte ao meio de prova que (na sua ótica) justifica decisão diversa da impugnada, indicando os respectivos «conteúdo, relevância e valoração». Este específico ónus de alegação (de apontar claramente os pontos da matéria de facto que repute incorrectamente julgados e de fundamentar a imputação da correspondente decisão) – que sempre decorreria dos princípios da cooperação, lealdade e boa-fé processuais – destina-se a evitar que «a impugnação da matéria de facto se banalize numa mera manifestação inconsequente de inconformismo» pondo em causa a «seriedade do próprio recurso.»
Este mesmo entendimento tem sido perfilhado pelo STJ, nomeadamente nos seus Acórdãos de 4.5.2010 e de 23.02.2010, escrevendo-se no sumário deste último, no que ora importa, o seguinte: “ Não se exige ao recorrente, no recurso de apelação, quando impugna o julgamento da matéria de facto, que reproduza nas conclusões tudo o que alegou no corpo alegatório e preenche os requisitos enunciados no art.º 690.º-A, n.º 1, alíneas a), b) e n.º 2, do C. P. Civil, o que tornaria as conclusões, as mais das vezes, não numa síntese, mas numa complexa e prolixa enunciação repetida do que afirmara. Esta consideração não dispensa, todavia, o recorrente de nas conclusões fazer alusão àquela pretensão sobre o objeto do recurso, mais não seja, pela resumida indicação dos pontos concretos que pretende ver reapreciados, de modo a que delas resulte, inequivocamente, que pretende impugnar o julgamento da matéria de facto.”
E como volta a sublinhar o mesmo STJ no seu Acórdão de 19.02.2015 “A exigência da especificação dos concretos pontos de facto que se pretendem impugnar com as conclusões sobre a decisão a proferir nesse domínio tem por função delimitar o objeto do recurso sobre a impugnação da decisão de facto”, sendo que no que respeita à exigência da especificação dos concretos meios probatórios e a indicação exata das passagens da gravação dos depoimentos que se pretendem ver analisados, “além de constituírem uma condição essencial para o exercício esclarecido do contraditório, servem sobretudo de parâmetro da amplitude com que o tribunal de recurso deve reapreciar a prova, sem prejuízo do seu poder inquisitório sobre toda a prova produzida que se afigure relevante para tal reapreciação, como decorre do preceituado no n.° 1 do artigo 662.° do CPC.” [3]
De facto, como emerge do regime plasmado nos arts. 635º, nºs 3 e 4, 637º, nº 2, 1ª parte e 639º, nº 1, do CPC, da sua natureza lógica de finalização resumida de um discurso, as conclusões têm um papel decisivo, não só no levantamento das questões controversas apresentadas ao tribunal superior como, sobretudo, na fixação do objecto do recurso, logo se compreendendo quão importantes elas são para o tribunal ad quem na definição dos seus poderes de cognição. Em suma: as conclusões têm a importante função de definir e delimitar o objecto do recurso e, desta forma, circunscrever o campo de intervenção do tribunal superior encarregado do julgamento.
Por isso, sendo a impugnação de matéria de facto uma autêntica questão fundamental, susceptível de conduzir a decisão diferente, deve ela ser incluída nas conclusões das alegações, de forma sintética mas obviamente com indicação precisa dos pontos de facto impugnados. Só assim se pode entender que é suscitada tal questão: para se impugnar matéria de facto há, forçosamente, que especificar nas conclusões, de forma concreta, quais os pontos de facto impugnados, pois de contrário o recurso não tem objecto fáctico.
Serve isto para dizer que, no caso sub judice, apesar de o recorrente no corpo das alegações sustentar genericamente que tudo o que alegou na sua petição inicial deveria ter sido julgado como provado [não cuidado, aliás, sequer de distinguir o que, de tal alegação, constitui matéria de direito e/ou conclusões], certo é que, a final, nas suas conclusões – que, como já exposto, delimitam o objecto do recurso e o “thema decidendum” sobre o qual incumbe ao Tribunal hierarquicamente superior o dever de se pronunciar -, o recorrente apenas especificou como pontos concretos da matéria de facto de cujo julgamento discorda os pontos 16 da factualidade provada (sustentando que o mesmo deveria ter sido julgado como não provado) e as alíneas c) e d) do elenco dos factos não provados (sustentando que as mesmas se apresentam como contraditórias) – vide conclusões 1. e 6. das conclusões do recurso interposto pelo recorrente.
Ora, sendo assim, e sob pena de este Tribunal conhecer além do objecto do recurso – definido pelas suas conclusões - a única matéria de facto que cumpre reapreciar nesta instância é a que o recorrente especificou nas suas referidas conclusões e que antes se elencou, pois que só relativamente a esta o mesmo recorrente cumpriu o ónus de especificação antes referido.
Dito isto como preliminar e delimitado, assim, o objecto do recurso na parte atinente à impugnação da decisão de facto, cumpre decidir de tal matéria.
Em primeiro lugar, sustenta o recorrente que os factos constantes das alíneas c) e d) do elenco dos factos não provados são contraditórios.
Nas alíneas c) e d) consta o seguinte (sic):
c) Que os Réus D... e E... para se cobrarem da dita dívida venderam o referido veículo a um tal de H....
d) Que chegou a circular com tal veículo.”
Com o devido respeito, não se vislumbra, nem o recorrente o explicita, em que medida os ditos factos sejam contraditórios. Na verdade, não se vê em que medida o facto de se julgar como não provado que os RR. D... e E... tenham vendido o veículo ao H... entra em contradição lógica com o facto de se julgar como não provado que esse H... tenha chegado a circular com tal veículo. Estão em causa factos completamente distintos que não podem, de um ponto de vista lógico, entrar em contradição, sendo certo, aliás, que dando-se como não provado que o veículo foi vendido ao H... será consequente – embora não obrigatório – que se dê como não provado também que esse H... tenha chegado a circular com o mesmo veículo.
Como assim, não se vislumbra qualquer contradição.
Mas mais: como é consabido, da circunstância de se ter julgado como não provado um determinado facto não significa que se tenha como provado o facto contrário; Significa apenas que esse facto não está provado e, portanto, é como se o mesmo, para efeitos decisórios, não tivesse sequer sido alegado.
Como salienta José Lebre de Freitas, “A prova do facto contrário diverge da resposta puramente negativa em que esta equivale à não alegação do facto não provado, fazendo jogar as regras da distribuição do ónus da prova.” (sublinhado nosso) [4]
Ora, sendo assim, não é possível dizer-se que existe contradição entre dois factos (distintos) que foram julgados não provados. A contradição lógica pode colocar-se entre factos provados entre si e/ou entre factos provados e factos não provados, questão que, todavia, não se mostra suscitada pelo recorrente, pois que este esgrime apenas a contradição entre as citadas alíneas dos factos não provados.
Por conseguinte, nesta parte, improcede a impugnação da decisão de facto, sendo, pois, de manter os ditos factos c) e d) como não provados.
Em segundo lugar, impugna o recorrente o ponto 16 da factualidade provada, sustentando que a factualidade ali descrita deveria ter sido julgada como não provada.
Nesta sede e em sustento da sua discordância quanto à dita factualidade invoca o recorrente as declarações de parte prestadas pelo Réu D... (cuja versão narrada na audiência de julgamento realizada nestes autos se revela contraditória com a que o mesmo narrou enquanto testemunha no âmbito de processo crime que correu termos pelo Tribunal Judicial da Comarca de Santo Tirso, 1º juízo criminal, sob o n.º 127/11.3GDTS), as declarações de parte prestadas pelo legal representante da Autora, J...
e, ainda, o depoimento da testemunha K..., concluindo que, em face das discrepâncias existentes nas declarações e depoimento do dito D..., estas suas declarações não deveriam ter merecido a credibilidade que lhes foi conferida pelo Tribunal a quo, razão porque, na sua perspectiva, a factualidade referida sob o ponto 16 deveria ter sido julgada como não provada.
Sucede, no entanto, que, como melhor se justificará em sede de oportuna fundamentação jurídica, dessa eventual reposta negativa (que não equivale, como já se referiu antes, a prova do facto contrário) não resulta qualquer alteração do decidido pelo Tribunal a quo e, em particular, não resulta, ao contrário do que sustenta o recorrente, a procedência da presente acção dirigida contra os RR.; Dito de outra forma, a alteração do ponto 16 no sentido propugnado pelo recorrente (não provado) é inútil no contexto jurídico à luz do qual há-de ser dirimido o presente litígio e em função das pertinentes regras de ónus de prova.
Com efeito, como é consabido, se a impugnação da decisão proferida sobre a matéria de facto, visa, em primeira linha, alterar o sentido decisório sobre determinada materialidade que se considera incorrectamente julgada, esse instrumento processual não visa a mera repetição das audiências de julgamento, nem constitui um fim em si mesmo; Ao invés, esse instrumento tem por fim possibilitar alterar a matéria de facto que o Tribunal recorrido considerou provada ou não provada, para que, em face da nova realidade a que por esse caminho se chegou, se possa concluir que, afinal, existe o direito que foi invocado, ou que não se verifica um outro cuja existência se reconheceu.
A sua efectiva finalidade é, portanto, conceder à parte uma ferramenta processual que lhe permita modificar a matéria de facto considerada provada ou não provada, de modo a que, por essa via, obtenha um efeito juridicamente útil ou relevante ao nível da alteração da decisão proferida, sendo certo que o recurso visa, precisamente, esse fito, isto é, a alteração ou revogação da concreta decisão recorrida.
Por conseguinte, se, por qualquer motivo, o facto a que se dirige aquela impugnação for irrelevante para a decisão a proferir, então torna-se inútil a actividade de reapreciar o julgamento da matéria de facto, pois, nesse caso, mesmo que, em conformidade com a pretensão do recorrente, se modifique o juízo anteriormente formulado, sempre o facto que agora se considerou provado ou não provado continua a ser juridicamente inócuo ou insuficiente para efeitos de alteração do acto decisório.
Quer isto dizer, conforme, aliás, vem sendo entendido pela jurisprudência, que não há lugar à reapreciação da matéria de facto quando o facto concreto objecto da impugnação não for susceptível de, face às circunstâncias próprias do caso em apreciação, ao quadro normativo aplicável e às regras do ónus de prova, ter relevância jurídica, sob pena de se levar a cabo uma actividade processual que se sabe, de antemão, ser inconsequente ou inútil. [5]
Neste sentido, refere Abrantes Geraldes que “[d]e acordo com as diversas circunstâncias, isto é, de acordo com o objecto do recurso (alegações e, eventualmente, contra-alegações) e com a concreta decisão recorrida, são múltiplos os resultados que pela Relação podem ser declarados quando incide especificamente sobre a matéria de facto.
Sintetizando as mais correntes: (…) abster-se de conhecer da impugnação da decisão da matéria de facto quando os factos impugnados não interfiram de modo algum com a solução do caso, designadamente por não se visionar qualquer solução plausível da questão de direito que esteja dependente da modificação que o recorrente pretende operar no leque de factos provados ou não provados.» (sublinhados nossos) [6]

Ora, no caso vertente, atento o objecto dos autos, as questões de direito suscitadas e as regras do ónus de prova, a matéria do dito ponto de facto acaba por se revelar irrelevante ou inócua para a decisão a proferir, razão porque, sob pena de levar a cabo uma actividade processual inútil, não se conhece de tal matéria, permanecendo, assim, a mesma no elenco dos factos provados, e não obstante a sua irrelevância para a decisão a proferir, tal como consta do elenco da sentença proferida pelo Tribunal de 1ª instância.
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IV.II. Do mérito da sentença recorrida – Da responsabilidade dos RR.:
Dirimida a questão antecedente, cumpre conhecer do mérito da decisão recorrida.
Conforme se evidencia dos autos, a Autora propôs a presente acção contra os RR. C..., D... e E... peticionando, a título principal, que os ditos RR. fossem solidariamente condenados a restituírem à sua posse o veículo Volkswagen, modelo “...”, matrícula ..-..-NL.
Para tanto, a Autora invocou como elemento constitutivo desta sua pretensão contra os RR. que os mesmos tinham adquirido o dito veículo (o Réu C... teria adquirido o veículo em causa ao F... e os RR. D... e E... teriam, por sua vez, adquirido o mesmo veículo ao dito C...) não obstante saberem (ou deverem saber) que o mesmo não era propriedade do alegado transmitente e sem procederem ao pagamento do respectivo preço à sua legítima proprietária (a Autora), permanecendo, pois, o dito veículo na sua posse (dos RR.) e contra a sua vontade (dela Autora).
Ora, dando de barato que a Autora está desapossada do dito veículo e do respectivo preço, certo é que a factualidade provada não corrobora minimamente a dita factualidade alegada pela Autora, factualidade essa que, sendo constitutiva da sua pretensão, teria a mesma que demonstrar em conformidade com a regra do artigo 342º, n.º 1, do Código Civil.
Com efeito, da factualidade provada não emerge como demonstrado que qualquer um dos ditos RR. C..., D... ou E... tenham comprado ou por qualquer outra forma adquirido ou feito seu o dito veículo (sabendo ou não podendo desconhecer que o mesmo veículo não pertencia ao alegado vendedor, mas à Autora), mantendo-o na sua posse.
É certo que resulta da factualidade provada que o Réu C..., como garantia da restituição do valor que lhe foi emprestado pelo Réu D..., entregou a este último o dito veículo e as suas chaves (vide factos provados em 13. e 15 do elenco dos factos provados, que não foram impugnados pela recorrente). No entanto, daí não decorre, sem mais, ao contrário do que parece sugerir ou entender a recorrente, que o Réu C... tenha adquirido o veículo ou, ainda, que D... tenha adquirido ou tenha feito seu o veículo em causa ou, ainda, que os mesmos o mantenham na sua posse.
O que resulta da factualidade provada – e só esta pode servir de base à decisão e à eventual pretensão da recorrente -, é que a Autora não tem na sua posse o veículo em apreço, nem foi paga do respectivo preço, mas não existe qualquer evidência probatória de que o mesmo tenha sido adquirido ou feito seu por qualquer um dos RR. e se encontre na sua posse.
De facto, à luz da factualidade provada e não provada, não só se ignora em absoluto qual o actual paradeiro do veículo em apreço, como, ainda, não está demonstrado que os RR. tenha feito seu o dito veículo, integrando-o no seu património.
Por conseguinte, não se vislumbra qual o fundamento factual e legal para que possa a recorrente exigir dos RR. C..., D... ou E... a entrega/devolução do dito veículo, pois que, repete-se, à luz da factualidade provada, não existe qualquer elemento que permita afirmar que os mesmos o adquiriram, o fizeram seu ou, ainda, que o mesmo se encontra na sua posse e que, portanto, estão eles em condições de o restituir, conforme peticionado pela Autora.
Neste circunstancialismo, e com o devido respeito, a pretensão principal da Autora e recorrente quanto à condenação dos RR. na restituição do veículo em causa seria em si mesma uma condenação impossível de ser cumprida pelos RR., pois que não existe uma qualquer evidência a nível de factualidade provada de que os mesmos RR. tenham retirado da posse da Autora o dito veículo e o tenham feito seu, integrando-o no seu património (estando, em tal circunstancialismo – e apenas nele -, em condições de o restituir à Autora), sendo, ao invés, tais factos exclusivamente imputáveis a F... a quem a Autora entregou tal veículo para mostrar a eventuais interessados e que dele se apossou contra a Autora não o devolvendo, nem lhe pagando qualquer preço (vide factos provados em 11. e 12. da factualidade provada e que não foi impugnada pela recorrente).
Por conseguinte, o pedido principal formulado pela Autora contra os ora RR. não podia deixar de improceder por não ter a Autora logrado provar os seus pressupostos nos termos por si alegados.
Todavia, além deste pedido principal, peticiona, ainda, a Autora que os RR. sejam condenados, a título subsidiário (isto é, para hipótese de não ser já possível a restituição do veículo em apreço por parte dos RR.), a pagarem-lhe o valor comercial do mesmo veículo, a título de enriquecimento sem causa, ou seja, por terem feito seu o veículo – integrando-o no seu património, que assim foi acrescido de tal valor – ou por o terem alienado a outrem e obtido o correspondente preço, preço este que caberia à Autora como sua legítima proprietária -, assim como a pagarem as despesas que teve que realizar para recuperar o dito veículo ou o seu valor.
Ora, como logo se alcança, esta pretensão dependia da demonstração de dois pressupostos: por um lado, que os RR. tivessem adquirido o veículo em causa e/ou, de qualquer modo, o tivessem feito seu, integrando-o no seu património, ou, por outro, que o tivessem alienado a outrem, enriquecendo com o produto da dita venda e fazendo, ao invés, a Autora perder esse mesmo produto, correspondente ao valor comercial do veículo.
Sucede que, confrontada a factualidade provada, não existe a mais ínfima prova de que qualquer um dos RR. tenham integrado no seu património o veículo em causa ou, ainda, que o tenham alienado a outrem fosse porque preço fosse, designadamente pelo valor comercial do mesmo – vide, ainda, os factos não provados em a), b), c) e e) do elenco da sentença recorrida.
O que significa, pois, que, independentemente do facto provado em 16. (que, como se vê, não releva para a decisão, em função do ónus de prova que incumbia à Autora quanto aos factos constitutivos da sua pretensão), o desapossamento do veículo da Autora e a perda do seu valor comercial não decorre de qualquer conduta ilícita imputável aos RR., que incumbia à Autora demonstrar como elemento constitutivo da sua pretensão (artigos 342º, n.º 1 e 483º, n.º 1, ambos do Código Civil), sendo, pois, em nosso julgamento, de manter a decisão de improcedência decretada pelo Tribunal de 1ª instância.
Improcede, pois, na íntegra a apelação.
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V. DECISÃO:
Pelos fundamentos acima expostos, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação do Porto em julgar improcedente a apelação, confirmando a sentença recorrida.
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Custas pela Recorrente, pois que ficou vencida – art. 527º, n.ºs 1 e 2 do CPC.
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Porto, 5.11.2018
Jorge Seabra
Fátima Andrade
Fernanda Almeida

(A redacção do presente Acórdão não segue as regras do novo Acordo Ortográfico).
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[1] Vide, neste sentido, FERNANDO AMÂNCIO FERREIRA, “Manual dos Recursos em Processo Civil”, 8ª edição, pág. 147, A. ABRANTES GERALDES, “Recursos no Novo Código de processo Civil”, 2ª edição, pág. 92-93.
[2] Vide, neste sentido, A. ABRANTES GERALDES, op. cit., pág. 132-135 e LUÍS CORREIA, HENRIQUE ANTUNES, “Dos Recursos”, Quid Iuris, pág. 253-255.
[3] AC STJ de 4.05.2010, relator PAULO SÁ, AC STJ de 23.02.2010, relator FONSECA RAMOS e AC STJ de 19.02.2015, relator TOMÉ GOMES; Vide, ainda, no mesmo sentido, AC STJ de 1.03.2007, relator /PINTO HESPANHOL, AC RP de 13.10.2015, relator FERNANDO SAMÕES e AC RP de 22.09.2014, relator ANA PAULA AMORIM, todos in www.dgsi.pt
[4] JOSÉ LEBRE de FREITAS, A. MONTALVÃO MACHADO, RUI PINTO,“CPC Anotado”, 2º Volume, 2001, pág. 630. Vide, no mesmo sentido, por todos, AC STJ de 6.06.2006, relator SEBASTIÃO PÓVOAS, in www.dgsi.pt.
[5] Vide, neste sentido, por todos, AC RG de 12.07.2016, por nós relatado, AC RC de 27.05.2014, relator MOREIRA do CARMO, AC RP de 7.05.2012, relator ANABELA CALAFATE, AC RC de 24.04.2012, relator A. BEÇA PEREIRA, todos disponíveis in www.dgsi.pt.
[6] A. ABRANTES GERALDES, “Recursos em Processo Civil – Novo Regime”, 2ª edição, Revista e Ampliada, 2008, pág. 297-298.