Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
299/14.5T8PNF.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: PAULA LEAL DE CARVALHO
Descritores: AÇÃO DE RECONHECIMENTO DA EXISTÊNCIA DE CONTRATO DE TRABALHO
DESISTÊNCIA DO PEDIDO
LEGITIMIDADE DO TRABALHADOR
Nº do Documento: RP20150511299/14.5T8PNF.P1
Data do Acordão: 05/11/2015
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROVIDO
Indicações Eventuais: 4ª SECÇÃO (SOCIAL)
Área Temática: .
Sumário: Na ação de reconhecimento da existência de contrato de trabalho a que se reporta a Lei nº 63/2013 de 27.08, proposta pelo Ministério Público, não é passível de homologação a desistência do pedido requerida pela alegada “trabalhadora”.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Procº nº 299/14.5T8PNF.P1 Apelação
Relator: Paula Leal de Carvalho (Reg. nº 829)
Adjuntos: Des. Rui Penha
Des. Maria José Costa Pinto

Acordam na Secção Social do Tribunal da Relação do Porto:

I. Relatório

O Digno Magistrado do Ministério Público intentou a presente ação especial de reconhecimento da existência de contrato de trabalho contra B…, SA, pedindo que seja reconhecido que o contrato celebrado entre a Ré e C… em 19 de Março de 2014 é um contrato de trabalho e que a relação laboral se iniciou naquela data.
Arrolou prova testemunhal.

A Ré contestou aceitando uns factos e impugnando outros, concluindo, pelas razões que invoca, que o vínculo contratual existente consubstancia um contrato de prestação de serviços e não um contrato de trabalho. Sob a epígrafe de defesa por “Excepção”, alega que: a ação especial de reconhecimento da existência de contrato de trabalho prossegue apenas o interesse privado de que é titular o alegado trabalhador, constituindo a ação em causa violação dos princípios da autonomia privada e liberdade contratual (art. 405º do Cód. Civil) e sendo inconstitucional por violação do princípio do Estado de Direito Democrático, na sua vertente da segurança jurídica e do princípio da confiança, da liberdade de escolha do género de trabalho, da igualdade, do direito de ação e livre desenvolvimento da personalidade, previstos, respetivamente, nos arts. 2º, 47º, nº 1, 13º, 20º, nºs 1 e 4, 26º, nº 1 e 27º, nº 1, da CRP; entendimento contrário, que atribuísse ao MP o poder de promover a presente ação em representação e no interesse próprio ou de terceiro determinaria a incompetência material do Tribunal do Trabalho.
Conclui no sentido da procedência da “exceção inominada de inconstitucionalidade”, declarando-se, consequentemente, extinta a instância e a ré dela absolvida ou, caso assim se não entenda, no sentido da total improcedência da ação, com a sua absolvição do pedido.
Juntou prova documental e arrolou testemunhas.
Designada data para julgamento e cumprido o disposto no art. 186º-l, nº 4, do CPC, veio a alegada “trabalhadora”, a fls. 502, comunicar aos autos que não pretende alterar o vínculo de contrato de prestação de serviços que mantém com a Ré.
Notificados o MP e a Ré para, querendo, se pronunciarem quanto a eventual homologação da desistência apresentada por aquela, veio a Ré requerer que seja homologada a desistência do pedido apresentada pela mesma, na sequência do que o Tribunal a quo foi proferida a seguinte decisão:
“Pelo exposto, atenta a qualidade da requerente e o objecto do processo, nos termos do disposto nos arts. 283.º, n.º 1, 285.º, nº 1, 286.º, n.º 2, e 289º, todos do Cód. Processo Civil, julgo válida, por sentença, a desistência do pedido e, consequentemente, absolve-se a Ré do pedido.
Valor da acção: o previsto no art.º 12º, n.º 1, al. e), do Regulamento das Custas Processuais (ex vi art.º 186º-Q, n.º 1, do Código de Processo do Trabalho).
Sem custas.”

Inconformado, o Ministério Público recorreu, formulando, a final das suas alegações, as seguintes conclusões:

1) A ação de reconhecimento da existência de contrato de trabalho criada pela Lei 63/2013, de 27 de Agosto visa Combater a utilização indevida do contrato de prestação de serviços em relações concretas de trabalho subordinado;
2) Atribuindo a Lei ao Ministério Público legitimidade para intentar essa acção, independentemente de pedido ou vontade do trabalhador;
3) Sendo, por isso, interesses públicos que lhe são subjacentes;
4) Com a propositura da acção apenas se pretende pôr termo a uma situação de incerteza quanto à qualificação do contrato celebrado como sendo de trabalho ou de prestação de serviços;
5) Incerteza essa que Resultou após prévia inspecção da ACT, com base nos factos apurados e na presunção de laboralidade prevista no artigo 12º do Código do Trabalho;
6) O trabalhador não tem legitimidade para desistir do pedido contrariando a pretensão formulada pelo Ministério Público na Petição Inicial;
7) Já que o direito que se pretende acautelar com a instauração da acção não é um direito de que o trabalhador possa dispor;
8) Pelo que a declaração da trabalhadora, no sentido de constituir uma desistência do pedido, não pode ser considerada legal;
9) E, como tal, não deveria a transacção ter sido homologada;
10) A douta decisão recorrida violou, por erro de interpretação o disposto nos artigos 1249º do Código Civil, 1º da Lei 63/2013, de 17 de Agosto, 15º-A da Lei 107/2009, de 14 de Setembro, 52º e 186º-K, nº1, do CPT, e artigo 289º, nº1, do Código de Processo Civil;
11) Normativos legais esses que deverão ser interpretados e aplicados com o sentido e alcance sustentados na presente alegação;
12) E, consequentemente, ser revogada a decisão de que se recorre e substituída por outra que julgue inválida a desistência do pedido e ordene o prosseguimento dos autos com a designação da audiência de julgamento.


A Recorrida contra-alegou, tendo formulado, a final das suas alegações, as seguintes conclusões:
“1.ª
A consagração no processo do trabalho da acção especial de reconhecimento da existência de contrato de trabalho, aprovada pela Lei n.º 63/2013, de 27 de Agosto, teve por finalidade o combate à precariedade no emprego, no pressuposto de que esta precaridade é prejudicial aos trabalhadores e pretendendo proteger estes últimos.
2.ª
Trata-se, pois, de conferir a cada putativo trabalhador outro meio para a obtenção da tutela legal que lhe é devida, com eficácia acrescida por efeito de tramitação processual mais célere e do patrocínio pelo Ministério Público.
3.ª
Uma vez iniciada a instância, o interesse protegido em cada acção de reconhecimento da existência de contrato de trabalho é o do sujeito da concreta situação jurídica em apreço, que na forma se apresenta como trabalho autónomo, mas relativamente à qual há indícios de subordinação jurídica.
4.ª
Assim sendo, o titular do interesse processualmente protegido e autor da acção é o putativo trabalhador, cujo contrato de trabalho pretende ver reconhecido.
5.ª
Na acção especial de reconhecimento da existência de contrato de trabalho, o legislador não estatuiu que o Ministério Público actua em representação do Estado, nem que lhe caiba a defesa de interesse público, que não surge identificado.
6.ª
A acção especial de reconhecimento da existência de contrato de trabalho consubstancia acção declarativa de simples apreciação positiva, cujo objecto se limita à declaração da existência ou inexistência de direito ou facto jurídico.
7.ª
Sendo de simples apreciação positiva, da acção especial de reconhecimento da existência de contrato de trabalho não resultam quaisquer efeitos para terceiros e, designadamente, nem a autoridade tributária, nem a instituição competente da segurança social, podem socorrer-se de eventual sentença que reconheça a existência de contrato de trabalho como título para a cobrança da respectiva dívida, até porque da presente acção não decorre a fixação de qualquer rendimento colectável ou base de incidência previdencial.
8.ª
O contrato de trabalho insere-se no domínio da autonomia da vontade, não se tratando de negócio jurídico que possa ser imposto às partes pela lei, contra a vontade destas.
9.ª
Não tendo a Lei n.º 63/2013 introduzido qualquer alteração ao direito material, nomeadamente quanto à natureza do contrato de trabalho, não existe actualmente no nosso ordenamento jurídico qualquer referência legal no sentido de que o contrato de trabalho se encontra sujeito, limitado ou condicionado a algum tipo de interesse público, assim como que o mesmo não integra o núcleo de direitos indisponíveis.
10.ª
No caso concreto, estão em causa direitos disponíveis do alegado trabalhador, pelo que o mesmo pode deles dispor livremente.
11.ª
A circunstância de a presente acção se iniciar sem o impulso processual das partes e, em particular, do alegado trabalhador, não afasta a possibilidade de este poder, a partir do momento em que intervém na acção, desistir do pedido nela formulado, porquanto da Lei n.º 63/2013 não resulta qualquer limitação à liberdade de desistência, confissão ou transacção das partes, pelo que, nesta matéria, se aplica o regime geral previsto no artigo 289.º/1 do CPC.
12.ª
Não assiste razão ao Recorrente quando sustenta a sua legitimidade para prosseguir a presente acção, independentemente da vontade da prestadora de serviços a qual, se não fosse autora na presente acção – que é pelo facto de ser titular do único direito em discussão -, não poderia deixar de ser considerada como parte na mesma, atendendo, desde logo, ao disposto no artigo 186.º-O do CPT.
13.ª
Numa situação em tudo idêntica à dos presentes autos, decidiu já a Relação de Lisboa que “a intervenção do Ministério Público na propositura da acção de reconhecimento da existência de contrato de trabalho, introduzida no CPT pela L. 63/2013, de 27/8, faz-se, em primeiro lugar, em defesa do interesse do “trabalhador” a que a acção diz respeito e, só secundariamente, em defesa do interesse público de combate à utilização indevida do contrato de prestação de serviços em relações de trabalho subordinado”, prosseguindo no sentido de que, “sendo o contrato de trabalho (tal como o de prestação de serviços) um contrato de direito privado, é disponível o direito dos respectivos outorgantes a verem jurisdicionalmente definida a respectiva qualificação jurídica”, o que “decorre aliás da própria lei ao prever, no art. 186º-O do CPT que, estando presentes ou representados o ”trabalhador” e o empregador, o juiz realiza audiência de partes, procurando conciliá-los (mesmo que o “trabalhador” não tenha aderido aos factos apresentados pelo M.P., apresentado articulado próprio, nem constituído mandatário)” e concluindo que, “se o “trabalhador” manifesta vontade de desistir do pedido e não houver razões para pôr em causa que tal declaração é consciente e livre, nada obsta a que se homologue a desistência e julgue extinto o direito que se pretendia fazer” (acórdão de 24.9.2014, in www.dgsi.pt com o número de processo 1050/14.5TTLSB.L1-4 – com sublinhado nosso).
14.ª
O entendimento preconizado pelo Recorrente é contrário ao sustentado pelo Tribunal Constitucional no que respeita à relevância da vontade do alegado trabalhador na presente
acção e forma como a mesma pode ser manifestada, na medida em que este já afirmou que o que se pretende com o regime legal da acção especial de reconhecimento de contrato de trabalho “é combater a utilização indevida do contrato de prestação de serviços em situações em que, apesar de determinada relação ser formalmente titulada pelas partes como contrato de prestação de serviço, corresponda, substancialmente, a uma situação de trabalho subordinado, à qual deveria, por isso, ser aplicado o regime laboral”, sendo que, “nas situações […] em que uma pessoa não quer estar sujeita a nenhuma relação de subordinação jurídica […], não se verifica um caso de utilização indevida do contrato de prestação de serviço, visto que nenhuma das partes (e, concretamente, quem presta a outrem determinada actividade remunerada) pretende que a relação jurídica em causa esteja sujeita ao regime laboral” (acórdão n.º 94/2015, de 3 de Fevereiro, p. 25).
15.ª
Prossegue o Tribunal Constitucional no sentido de que, “nessas situações, o referido regime contém suficientes garantias de esta vontade do trabalhador poder ser expressa nos autos e levada em conta, de modo a que tal situação não seja tratada como sendo um caso de trabalho subordinado”, assim sustentando que o princípio da liberdade de escolha do género de trabalho não é violado precisamente porque o regime “garante a intervenção nos autos, quer do trabalhador, quer da entidade empregadora, sendo facultada ao trabalhador a oportunidade processual de tomar posição quanto às circunstâncias concretas em que desenvolve a sua actividade, podendo, além do mais, invocar que se pretendeu vincular num regime que não o do contrato de trabalho (designadamente por não querer estar sujeito a nenhuma relação de subordinação jurídica ou por estar vinculado a uma relação jurídica de um específico tipo contratual que não lhe permite ter outra relação jurídica de natureza laboral)” (cfr. p. 26 do referido acórdão com sublinhado nosso).
16.ª
Entendimento contrário, isto é, de que o Ministério Público pode prosseguir acção judicial para reconhecimento de existência do contrato de trabalho independentemente ou mesmo contra o real interesse e vontade do pretenso trabalhador, e sem que este possa desistir do pedido, infringiria os valores e direitos da autonomia privada e da liberdade contratual, acolhidos no artigo 405.º do Código Civil e, bem assim configuraria interpretação inconstitucional das normas dos artigos 15.º-A da Lei n.º 107/2009, 52.º, 186.º-K a 186.º-
R do CPT, e 283.º do CPC, por violação dos princípios do Estado de Direito Democrático, do direito à liberdade de escolha do género de trabalho, do direito de acção, do livre desenvolvimento da personalidade e da iniciativa económica privada, previstos nos artigos 2.º, 20.º/1 e 4, 26.º/1, 27.º/1, 47.º/1 e 61.º da Constituição da República Portuguesa, o que, desde já, se alega para os devidos efeitos.
17.ª
Pelos motivos acima expostos, a desistência do pedido pela enfermeira C… é lícita, não merecendo qualquer censura o despacho do Tribunal a quo que homologou aquela desistência e, em consequência, declarou extinto o direito que se pretendia fazer valer na presente acção, pelo que o mesmo deve ser mantido.
Nestes termos, deve ser negado provimento ao recurso, confirmando-se a decisão recorrida.”.

Aberta vista ao Exmº Sr. Procurador Geral Adjunto junto desta Relação, o mesmo não emitiu parecer dado haverem a ação e o recurso sido, respetivamente, intentada e interposto pelo Ministério Público.

Deu-se cumprimento ao disposto no art. 657º, nº 2, 1ª parte, do CPC/2013.
*
II. Matéria de facto assente

Tem-se como assente a tramitação que consta do relatório precedente.
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III. Do Direito

1. Nos termos do disposto nos arts 635º, nº 4, e 639º, nº 1, do CPC aprovado pela Lei 41/2013, de 26.06, aplicável ex vi do art. 1º nº 2 al. a) do CPT (redação do DL 295/2009), as conclusões formuladas pelo recorrente delimitam o objeto do recurso, não sendo lícito ao tribunal ad quem conhecer de matérias nelas não incluídas, salvo as de conhecimento oficioso.
Assim, a única questão a apreciar consiste em saber se o Mmº Juiz a quo não poderia ter homologado a desistência entre a Ré e a alegada “trabalhadora”, C….

2. A questão não é nova e já foi apreciada por esta Relação, designadamente, nos Acórdãos de 17.12.2014, proferidos nos Processos 309/14.6TTGDM.P1 e 1083/14.1TTPNF.P1 (1), ambos in www.dgsi.pt, bem como nos Acórdãos de 09.02.2015, proferido no Processo 1082/14.3TTPNF.P1(2) , de 13.04.2015, proferido no Processo 938/2014.8TTPRT.P1(3), de 23.02.2015, 23.03.2015 e 13.04.2015, proferidos no Processos 846/14.2TTPRT.P1, 645/14.1T8MTS.P1 e 175/14.1T8PNF.P1(4) e em que, em todos eles, era demandada a ora Ré.

2.1. No Acórdão de 17.12.2014, proferido no Processo 309/14.6TTGDM.P1 referiu-se o seguinte, que se passa a transcrever [omitimos as notas de rodapé]:
«A Lei nº 63/2013, de 27 de Agosto veio «instituir mecanismos de combate à utilização indevida do contrato de prestação de serviços em relações de trabalho subordinado» [artigo 1º], procedendo, ainda, à primeira alteração à Lei n.º 107/2009, de 14 de Setembro, e à quarta alteração ao Código de Processo do Trabalho, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 480/99, de 9 de Novembro, ou seja, veio combater os chamados falsos recibos verdes.
Esta Lei teve a sua origem na iniciativa legislativa de um grupo de cidadãos apelidada de “Lei contra a precaridade”, de 16 de Janeiro de 2012.
(…)
Vincamos que a Lei n.º 63/2013, de 27 de Agosto, tem como finalidade intensificar o combate à utilização indevida do contrato de prestação de serviços em relações de trabalho subordinado. Para o êxito de tal finalidade a lei concebeu dois mecanismos:
a) Reforçou a competência inspectiva da Autoridade para as Condições do Trabalho; e
b) Criou uma acção especial de reconhecimento da existência de contrato de trabalho.
Relativamente ao primeiro desses mecanismos – reforço da competência inspectiva da ACT – alterou-se o artigo 2º da Lei n.º 107/2009, de 14 de Setembro, aditando-se o nº 3 e criou-se o artigo 15º-A.
(…)
Destes normativos resulta que sempre que a ACT, no âmbito das suas competências, detectar uma situação de prestação de actividade, aparentemente autónoma [ou seja, prestação de serviço], que indicie características de contrato de trabalho, nos termos previstos no n.º 1 do artigo 12.º do Código do Trabalho, deve lavrar um auto e notificar o empregador para, no prazo de 10 dias, regularizar a situação, mediante a apresentação do contrato de trabalho ou de documento comprovativo da existência do mesmo, reportada à data do início da relação laboral, ou, então, se pronunciar dizendo o que tiver por conveniente.
Caso o empregador faça prova, no prazo de 10 dias que lhe foi concedido para o efeito, da regularização da situação do trabalhador [designadamente mediante a apresentação do contrato de trabalho ou de documento comprovativo da existência do mesmo, reportada à data do início da relação laboral], o procedimento é imediatamente arquivado.
Caso contrário, e decorrido o aludido prazo de dez dias, a ACT remete, em cinco dias, participação dos factos para os serviços do Ministério Público da área de residência do trabalhador, acompanhada de todos os elementos de prova recolhidos, para fins de instauração de acção de reconhecimento da existência de contrato de trabalho.
A ACT apenas deve dar início ao procedimento previsto no artigo 15º-A nos casos em que detecte uma situação de prestação de actividade, aparentemente autónoma [ou seja, prestação de serviço], que indicie características de contrato de trabalho, nos termos previstos no n.º 1 do artigo 12.º do Código do Trabalho.
Trata-se de uma presunção de laboralidade que advém da existência de pelo menos duas das características elencadas em tal normativo. Daí a expressão “se verifiquem algumas das seguintes características”. Não basta a existência de uma característica, têm de verificar-se pelo menos duas delas.
Assim, e caso o inspector do trabalho, numa das suas visitas inspectivas, constate a existência de, pelo menos, duas das características acima enunciadas, deve lavrar o respectivo auto e proceder de acordo com o já aludido, uma vez que existem indícios de se estar perante uma relação laboral e não de mera prestação de serviços.
Esta é uma fase administrativa da competência da ACT. E tanto assim é, que o Ministério Público, por força do disposto no nº 2 do artigo 186º-K do Código de Processo de Trabalho, caso tenha conhecimento, por qualquer meio, da existência de uma situação de prestação de serviços que indicie a existência de prestação de trabalho subordinado, deve comunicá-la à ACT, no prazo de 20 dias, para que esta instaure o procedimento previsto no artigo 15º-A da Lei n.º 107/2009, de 14 de Setembro.
Acrescentamos ainda que nada impede, que o empregador, que não tenha feito a prova da regularização da situação, nomeadamente, não tenha feito a apresentação do contrato de trabalho ou de documento comprovativo da existência do mesmo, reportada à data do início da relação laboral, no prazo que lhe foi concedido pela ACT, [não] faça essa mesma prova ou apresentação na fase judicial. E mais diremos, que caso essa prova tenha sido feita ainda na fase administrativa, mas já depois do decurso do prazo de 10 dias que foi concedido pela ACT, não deve o Ministério Público instaurar a acção especial de acção de reconhecimento da existência de contrato de trabalho, porque inútil. Se o objectivo da acção é o reconhecimento da existência de um contrato de trabalho, seria de todo descabido intentar algo que já está reconhecido.
Já no que diz respeito ao prazo de cinco dias que a ACT dispõe para remeter a participação ao Ministério Público, no caso de o empregador não ter feito prova da regularização da situação do trabalhador, não se trata de um prazo peremptório, cujo incumprimento tornaria nulos os actos praticados após o seu termo (cfr. artigo 139º, nº 3 do CPC). Na verdade, este prazo, assim como outros, por exemplo, o prazo a que alude o artigo 24º da mesma Lei, é um prazo meramente aceleratório e disciplinador, cujo incumprimento apenas pode levar a eventual responsabilidade disciplinar para os funcionários[1].
Já quanto ao prazo de 20 dias que o Ministério Público dispõe para intentar a acção de reconhecimento da existência de contrato de trabalho, a que alude o nº 1 do artigo 186º-K do Código de Processo do Trabalho, parece-nos que não é tão liquida a sua qualificação como prazo meramente aceleratório, ordenador ou disciplinador[2]. No entanto, tendemos a considerar que também estamos perante um prazo meramente aceleratório, até porque só assim faz sentido o nº 6 do artigo 26º do Código de Processo do Trabalho, ao prescrever que na acção de reconhecimento da existência de contrato de trabalho, a instância inicia-se com o recebimento da participação.
No que concerne ao segundo dos mecanismos criou-se uma nova acção: a acção especial de reconhecimento da existência de contrato de trabalho, cujos trâmites estão previstos nos artigos 186º-K a 186º-R, todos do Código de Processo do Trabalho.
Como vimos, nesta acção a instância inicia-se com o recebimento da participação prevista no nº 3 do artigo 15º-A da Lei nº 107/2009, de 14 de Setembro (aditado pela Lei nº 107/2009, de 27 de Agosto), dispondo o Ministério Público, após essa recepção, do prazo de 20 dias para instaurar a respectiva acção de reconhecimento da existência de contrato de trabalho. É assim uma ação de natureza oficiosa.
Esta acção tem natureza urgente – artigo 26º, nº 1, alínea e) do Código de Processo do Trabalho.
De forma breve vamos descrever os trâmites desta acção:
Na petição inicial, o Ministério Público expõe sucintamente a pretensão e os respectivos fundamentos, devendo juntar toda a documentação recolhida até ao momento (artigo 186º-L, nº 1 CPT).
O empregador é citado para no prazo de 10 dias para apresentar a contestação (artigo 186º-L, nº 2 CPT).
Quer a petição inicial, quer a contestação, não carecem de forma articulada, devendo ser apresentados em duplicado (artigo 186º-L, nº 3 CPT).
Se o empregador não contestar, é proferida, no prazo de 10 dias, decisão condenatória, a não ser que ocorram, de forma evidente, excepções dilatórias ou que o pedido seja manifestamente improcedente (artigo 186º-M do CPT).
Se a acção tiver de prosseguir, é marcada data para audiência de julgamento, que se realizará dentro de 30 dias (artigo 186º-N, nº 2 do CPT).
O trabalhador é notificado da petição inicial e da contestação (duplicados), bem como da data da audiência de julgamento, com a expressa advertência de que pode, no prazo de 10 dias, aderir aos factos apresentados pelo Ministério Público, apresentar articulado próprio e constituir mandatário (artigo 186º-L, nº 3 do CPT).
Na data designada para o julgamento e, caso, o empregador e o trabalhador estejam presentes ou representados, é realizada a audiência de partes com intuitos conciliatórios (artigo 186º-O, nº 1 do CPT).
Frustrada a conciliação, inicia-se imediatamente o julgamento, produzindo-se as provas que ao caso couberem (artigo 186º-O, nº 2 do CPT), as quais são oferecidas na audiência, podendo cada parte apresentar até três testemunhas (artigo 186º-N, nº 3 do CPT).
O carácter urgente desta acção está ainda espelhada no facto de não ser aplicável o disposto nos nºs 1 a 3 do artigo 151º do Código de Processo Civil (marcação do julgamento com prévio acordo dos mandatários), nem ser motivo de adiamento a falta, ainda que justificada, de qualquer das partes ou seus mandatários (artigos 186º-N, nº 2 e 186º-O, nº 3, ambos do CPT).
Finda a produção de prova, pode cada um dos mandatários fazer uma breve alegação oral (artigo 186º-O, nº 6 do CPT).
A sentença, sucintamente fundamentada, é logo ditada para a acta, devendo, no caso de reconhecer a existência de um contrato de trabalho, fixar a data de início da relação laboral, a qual é comunicada à ACT e ao Instituto da Segurança Social, I.P. (artigo 186º-O, nºs 7, 8 e 9 do CPT).
É sempre admissível recurso de apelação para a Relação, cujo terá efeito meramente devolutivo (artigo 186º-P do CPT).
O juiz deve a final fixar o valor da causa, tendo em conta a utilidade económica do pedido e, caso tenha sido interposto recurso antes desse momento, deve tal valor ser fixado no despacho que admita o recurso (artigo 186º-Q, nºs 2 e 3 do CPT).
O trabalhador apenas será responsabilizado pelo pagamento das custas se tiver apresentado articulado próprio e se houver decaimento (artigo 186º-Q, nº 3 do CPT).
Por fim, não deixa de ser importante salientar que os prazos previstos no nº 1 do artigo 337º (prescrição dos créditos emergentes de contrato de trabalho, da sua violação ou cessação) e no nº 2 do artigo 387º (prazo de 60 dias que o trabalhador dispor para se opor ao despedimento), ambos do Código do Trabalho, contam-se a partir da decisão final transitada em julgado (artigo 186º-R do CPT).
Saltemos agora para a resolução da questão que nos é trazida pelo presente recurso (…).
A solução desta questão depende da forma como interpretamos as normas e a finalidade que está consagrada na Lei nº 63/2013, 27 de Agosto.
Não restam quaisquer dúvidas que da leitura dos vários preceitos legais insertos na aludida lei resulta que a finalidade primordial consagrada pelo legislador foi «instituir mecanismos de combate à utilização indevida do contrato de prestação de serviços em relações de trabalho subordinado» [artigo 1º], ou seja, combater os chamados falsos recibos verdes.
Utilização indevida essa que há muito mina as relações laborais e tem ajudado de forma significativa a que vivamos num mundo onde a precaridade do trabalho predomina e assim, se estabelecendo, desigualdades sociais. Na verdade, os falsos recibos verdes que encobrem a existência de um contrato de trabalho, criam instabilidade no emprego, diminuem as garantias dos trabalhadores (que a qualquer altura podem ser «despedidos», não têm direito a férias, nem aos subsídios de férias e de Natal, nem horário), apenas o trabalhador contribui para a Segurança Social, inexiste qualquer proteção na doença, tem de ser o trabalhador a suportar os pagamentos dos prémios de seguro por acidentes de trabalho, criam, ainda, uma concorrência desleal em relação às empresas cumpridoras da lei. São um verdadeiro flagelo social.
O combate a este flagelo social é de interesse público[3]. Assim, quando na acção de reconhecimento de existência de contrato de trabalho se determina o reconhecimento de uma relação laboral de uma determinada entidade empregadora com um trabalhador concreto, está-se, além de proteger a situação deste trabalhador, a proteger essencialmente um interesse público, um interesse social em ver-se consagrada uma sociedade justa e em que o cumprimento da lei faz com que não tenhamos de ser todos penalizados pelo incumprimento de alguns[4].
Combata-se na essência a fraude à lei plasmada na ocultação de contratos de trabalho, demovendo a precaridade.
A Lei nº 63/2013, de 27 de Agosto consagra, assim, no seu âmago uma política de combate ao trabalho dissimulado e à precaridade na sua veste de falsos recibos verdes. Combate esse de interesse público e geral, razão pela qual o legislador, numa primeira fase administrativa, incumbiu a ACT, que, caso, no âmbito das suas competências, detecte uma situação de prestação de actividade, aparentemente autónoma, que indicie características de contrato de trabalho, nos termos previstos no n.º 1 do artigo 12.º do Código do Trabalho, lavre um auto e notifique o empregador para, no prazo de 10 dias, regularizar a situação, e, criou, já numa segunda fase, após essa intervenção da ACT, uma acção própria, de instauração oficiosa pelo Ministério Público.
Esta instauração da acção por parte do Ministério Público é independente quer da vontade do empregador, quer da vontade do trabalhador, entrando este em palco já numa fase adiantada da acção. Assim independentemente da vontade ou consentimento do trabalhador o Ministério Público terá de instaurar a acção de reconhecimento da existência de contrato de trabalho – o que demostra desde logo que o Ministério é parte principal, tem legitimidade activa, não representando, nem patrocinando o trabalhador. Este apenas tem intervenção na acção já após a apresentação dos articulados pelo Ministério Público e pelo empregador, com a notificação da data de julgamento e simultaneamente com a advertência expressa de que pode, no prazo de 10 dias, aderir aos factos apresentados pelo Ministério Público, apresentar articulado próprio e constituir mandatário (artigo 186º-L, nº 4 do CPT). E se não intervier nesta qualidade o trabalhador tem um papel duplo de testemunha e “parte de facto”. Testemunha porque não vemos outra qualidade processual em que ele possa intervir, caso não venha a aderir aos factos apresentados pelo Ministério Público, não apresente articulado próprio e não constituía mandatário. E “parte de facto” porque, não tendo a verdadeira veste de parte, seja principal ou acessória, se estiver presente ou se fizer representar na audiência de partes, além de testemunha, porque tem um interesse no desfecho da causa, tem participação activa na tentativa de conciliação presidida pelo Juiz (artigo 186º-O, nº 1 do CPT).
Resulta assim de forma inequívoca que o Ministério Público não patrocina o trabalhador nesta acção. Aliás, dificilmente se compreenderia que o patrocinador instaurasse uma acção sem a vontade e o consentimento do patrocinado, o qual não é tido nem achado sobre a instauração da acção e dos respectivos fundamentos. O chamamento num momento posterior do trabalhador à acção mais não é o reconhecimento por parte do legislador de que, além do interesse público que está subjacente à lei, existe também um interesse particular da pessoa afectada com a situação. E se de forma conciliatória puderem evitar o julgamento trazendo à ribalta a legalidade antes omitida nada impede que esse acordo seja homologado, pois ambos os interesses defendidos pela lei estão salvaguardados.
O Ministério Público só patrocinaria o trabalhador se o interesse principal tutelado fosse (ou fosse só) o do trabalhador, o que, como já vimos, não é. Assim, não há lugar ao chamamento da alínea a) do artigo 7º do CPT, nem a constituição de mandatário por parte do trabalhador, tem a implicação prevista no artigo 9º. Mesmo nesta situação (constituição de mandatário), o Ministério Público mantem a sua veste de parte principal.
E tanto não é o interesse do trabalhador o primordialmente tutelado que esta acção não permite discutir outras questões conexas com o reconhecimento da existência de contrato de trabalho, tais como, a petição de créditos salariais advenientes desse mesmo reconhecimento. Nesta situação o trabalhador terá de intentar acção própria.
Segundo o artigo 219º, nº 1 da Constituição da República Portuguesa «[a]o Ministério Público compete representar o Estado e defender os interesses que a lei determinar (…)». Princípio este densificado nos artigos 1º e 3 do Estatuto do Ministério Público (EMP) e harmonizado pelo artigo 3º da Lei nº 62/2013 de 26 de Agosto (Lei da Organização do Sistema Judiciário).
Se o artigo 3º do EMP estabelece a competência do Ministério Público, o seu artigo 5º adjectiva a intervenção, principal e acessória, estatuindo o nº 1 que o Ministério Público tem intervenção principal nos processos quando representa o Estado [alínea a)] e nos demais casos em que a lei lhe atribua competência para intervir nessa qualidade [alínea g)].
A legitimidade do Ministério Público – como parte activa - para instaurar a acção especial de reconhecimento de existência de contrato de trabalho, resulta, assim, da própria Lei n.º 63/2013, de 27 de Agosto, do artigo 291º, nº 1 da CRP e do seu Estatuto Legal [artigos 1º, e 3º, alíneas a) e l)], que lhe dão competência própria, e tem como pressuposto a existência de um interesse público determinado – o combate à precaridade laboral fruto dos chamados falsos recibos verdes. Interesse público assente, assim, no reconhecimento por parte do Estado de uma sociedade justa e equilibrada. Mais do que um interesse do Estado, do trabalhador, está o interesse geral da comunidade, ou seja, um interesse público relevante.
É verdade que a Lei n.º 63/2013, de 27 de Agosto, não é um exemplo da arte de bem legislar, suscitando imensas dúvidas e questões. Todavia, resulta da apreciação global do mesmo diploma e da sua finalidade, que o Ministério Público nesta acção tem uma legitimidade activa, tem intervenção principal, ou seja, figura como Autor. Esta legitimidade activa que lhe é conferida pelo artigo 186º-K, nº 1 do CPT (aditado pela dita Lei nº 63/2013) e artigo 5º, nº 1, alínea g) do EMP, mais não é do que um aditamento de uma acção em que essa legitimidade activa está prevista no artigo 5º-A do CPT[5]. E tanto assim é, que é a única entidade que pode instaurar a acção de reconhecimento de contrato de trabalho, estando o trabalhador impedido de o fazer. Este, caso queira ter iniciativa na instauração da acção e no reconhecimento da sua qualidade como trabalhador, terá de instaurar uma acção de processo comum (artigo 51º e ss. do CPT).
Já quanto ao trabalhador, além do que já dissemos quanto à sua qualidade de testemunha e “parte de facto”, face ao estatuído no artigo 186º-L, nº 4 do CPT, parece-nos que a figura jurídica, para qualificar a sua posição processual na acção, que melhor se enquadra no panorama da lei, será, como defendem Viriato Reis e Diogo Ravara[6], a de assistente (artigos 326º e ss. do CPC). E, nesse caso, como é óbvio, não pode o trabalhador defender ou ter uma posição processual conflituante com aquela que é defendida pela parte principal, no caso o Ministério Público e o efeito de caso julgado só o afecta se intervier no processo (nessa qualidade) - artigos 327º, nº 1, 328º, nºs 1 e 2, 331º e 332º, todos do CPC.
E a posição do trabalhador é tão secundária nesta acção, dispensando-se a sua opinião e vontade, que a acção, além de instaurada, como já vimos, sem a sua vontade ou acordo, também pode terminar sem sequer ele ter tido qualquer intervenção processual. É que, de acordo com o disposto no artigo 186º-M, se o empregador não contestar, o juiz profere decisão condenatória. Aliás, como pode terminar a qualquer altura do processo (ou até na fase administrativa e/ou pré-judicial), mesmo sem a vontade do trabalhador, caso a ré reconheça ou confesse a existência de um contrato de trabalho. Mesmo que o trabalhador se oponha a este reconhecimento ou confissão, não vislumbramos que processualmente esta oposição seja relevante.
É por isso que entendemos que o trabalhador não tem legitimidade para desistir do pedido ou pura e simplesmente acordar, à revelia do Ministério Público, com o empregador que a relação estabelecida entre eles constitui um contrato de prestação de serviços e não de trabalho.
Se o empregador e o trabalhador são livres de negociar à luz do artigo 405º, nº 1 do Código Civil, espelhando-se essa liberdade na escolha da forma e modo de prestação da «actividade laboral», a mesma (liberdade) esgota-se na livre qualificação do contrato celebrado. O que queremos dizer com isso é que, se, dentro dos limites da lei, as partes são livres de negociar, na qualificação jurídica desse negócio, não podem impor ao mundo jurídico uma qualificação que não está de acordo com os parâmetros reais e legais. Assim, não é pelo facto de ambas as partes dizerem que o contrato é um contrato de prestação de serviços que faz com que o mesmo na realidade o seja. Se a realidade concreta, ou seja, se a actividade desenvolvida pelo trabalhador, apreciada à luz de estritos critérios legais, corresponde a um contrato de trabalho e não ao que as partes dizem corresponder, não se pode à luz da liberdade contratual ou do princípio da autonomia privada, aceitar essa qualificação das partes. Passar-se-ia por cima da legalidade e da defesa do interesse público, que está além do mero interesse privado.
Não está aqui em causa qualquer atropelo ou limite à liberdade contratual, ao princípio da autonomia privada, mas somente um acerto jurídico da qualificação das partes que não correspondem à realidade dos factos. As partes são livres de escolher o modelo contratual regulador da sua relação profissional, mas não podem é adulterar as normas legais e pretender que, independentemente da realidade fáctica, essa regulação corresponda a um determinado contrato, que na realidade o não é. As partes foram e são livres de contratar, têm é de se submeter às regras legais. A liberdade contratual e a autonomia privada não podem estar à margem do ordenamento jurídico, já que é este que as reconhece e protege. É no ordenamento jurídico que o contrato se vai refletir e ter repercussões. Este é um dos limites à liberdade contratual e à autonomia privada.
Como é salientado no acórdão da Relação de Coimbra de 11/02/2014[7] «a teoria contratual contemporânea já não se funda apenas nos princípios liberais (autonomia privada, força obrigatória, relatividade dos efeitos), segundo uma concepção tradicional, falando-se hoje de novos princípios, chamados “princípios sociais contratuais” (princípio da função social do contrato, da boa fé objectiva, da justiça contratual), com o objectivo de adequar os contratos aos valores ético-jurídicos vigentes, com a chamada “socialização do direito civil”. Daqui decorre o entendimento de que o contrato não pode ser mais concebido pelo primado individualista da utilidade para os contraentes, mas no sentido da utilidade para a comunidade e a necessidade de o perspectivar no seu contexto social vinculante, com implicações não apenas quanto à conformação do objecto negocial, mas também quanto à sua interpretação/integração, servindo ainda de parâmetro para o controlo judicial».
Na autonomia privada existem duas valorações jurídicas e normativas diferentes: uma correspondente à valoração pelo legislador acerca do comportamento das partes e outra anterior que as partes fazem os seus próprios interesses[8]. Autonomia privada que não se confunde com autonomia de vontade. E o que a empregadora e a trabalhadora «acordaram» é expressão da autonomia de vontade e não tanto da autonomia privada. É essa autonomia de vontade que tem de ser valorada pelo tribunal quando aquelas acordam estar-se, no caso concreto, perante um contrato de prestação de serviços e saber se está na disponibilidade das mesmas, face aos interesses em causa protegidos pela lei, fazer tal qualificação de forma discricionária.
A lei está cheia de incongruências[9] [10], é verdade.
Assim, ao estatuir no nº 1 do artigo 186º-O do CPT que «[s]e o empregador e o trabalhador estiverem presentes ou representados, o juiz realiza a audiência de partes, procurando conciliá-los», parece excluir dessa conciliação o Ministério Público, dispensando a sua opinião. Mas, tal não é defensável. Não só porque o Ministério Público é parte e, portanto, tem de ser ouvido e tomar posição, como teria sempre legitimidade para intervir na defesa da legalidade. E a defesa da legalidade, do interesse público e até do trabalhador, não é manter viva, nem deixar correr, uma situação jurídica contrária aos imperativos legais[11].
Isso não implica, que o decurso da acção, nomeadamente, o julgamento, não possa levar à conclusão, após produção da prova, que no caso não se está perante uma utilização indevida de contrato de prestação de serviços, e, como tal, a acção terá de improceder.
Estamos assim de acordo com o que escrevem Viriato Reis e Diogo Ravara[12], que «estando em causa interesses de ordem pública na ARECT, afigura-se que da conciliação prevista no art.º 186.º-O do CPT, apenas pode resultar um acordo de “estrita legalidade”, à semelhança do que sucede no processo emergente de acidente de trabalho, não podendo relevar a eventual manifestação de vontade das partes contrária aos indícios de subordinação jurídica e, por isso, à verificação da presunção de laboralidade que motivaram a participação dos factos feita ao Ministério Público pela ACT e integram a causa de pedir invocada na petição inicial da acção.
Sendo os factos de que se dispõe na acção até esse momento da tramitação processual os mesmos que a ACT havia apurado, enquanto indícios da subordinação jurídica, aquando da elaboração do auto previsto no n.º 1, do art.º 15.º-A, do RPCLSS, a conciliação a realizar no processo judicial apenas pode ter como objetivo a “regularização da situação do trabalhador” que o empregador podia ter efetuado antes de a participação ter sido remetida pela ACT ao Ministério Público.
Nesta perspectiva, o Ministério Público deverá manifestar a sua oposição a um eventual acordo entre o trabalhador e o empregador que passe pela recusa da aceitação da existência de uma relação de trabalho subordinado e, por sua vez, o juiz não poderá dar como verificada a legalidade de um acordo celebrado nesses termos (cfr. o disposto no art.º 52.º, n.º 2, do CPT).».
Por outro lado, ficando o procedimento contraordenacional suspenso até ao trânsito em julgado da decisão (cfr. artigo 15º-A, nº 4 do CT), num caso em que haja desistência do pedido por parte do trabalhador, ou o reconhecimento pelas partes de que se está perante um contrato de prestação de serviço, o prosseguimento daquele procedimento contraordenacional pode levar a um final em que se reconheça que o contrato em causa é afinal de trabalho.
No caso em apreço, o Mº Juiz a quo aberta a audiência de partes e na procura da conciliação das partes, ao abrigo do nº 1 do artigo 186º-O, proferiu o seguinte despacho:
“Atento o acordo firmado entre a Sra. Enfermeira C… e a Ré de que o contrato em causa nos autos consubstancia um contrato de prestação de serviços e não um contrato de trabalho e por entender que a matéria não tem natureza de direito indisponível, homologo o acordo alcançado e consequentemente absolvo a Ré "B…, S.A." do pedido.
Sem custas dado não ter sido apresentado articulado próprio pela enfermeira C… - artigo 186º-Q, n.º 4 do Código de Processo de Trabalho.
Comunique à A.C.T..”
Acontece que, pelas razões acima enunciadas, entendemos que o acordo (se acordo se pode chamar ao que se passou na audiência de partes) não deveria ter sido homologado pelo Mº Juiz a quo, na medida em que o mesmo é ilegal, já que tem por base uma manifestação de vontade das partes contrária aos fins visados e protegidos pela Lei nº 63/2013, de 27 de Agosto, conforme lhe é imposto pelo nº 2 do artigo 52º do CPT, ao obrigar à certificação da legalidade do resultado da conciliação.»

2.2. Por sua vez, no Acórdão de 09.02.2014 [Proc. 1082/14.3TTPNF.P1], após a transcrição, em termos similares, do Acórdão acima transcrito, referiu-se o seguinte:
“Estas considerações, produzidas numa acção especial de reconhecimento da existência de contrato de trabalho instaurada pelo Ministério Público precisamente contra a ora ré B…, SA., e relativamente a um contrato pela mesma firmado com uma sra. enfermeira comunicadora, têm inteira aplicação ao presente caso, não se vendo razões ponderosas para deixar de aderir à posição que reflectem e para decidir de modo diverso situações materiais equivalentes e verificadas no mesmo contexto empresarial.
E, sendo assim, não se anui ao que foi vertido nas contra-alegações de recurso no sentido de que o entendimento do Ministério Público, ao não reconhecer outro desfecho da conciliação que não seja a aceitação da pretensão formulada na petição inicial, não respeita o sentido do texto legislativo, ou que é incoerente com as soluções previstas pelo sistema jurídico para situações semelhantes e conduz a resultados distintos para pretensões iguais, sem justificação adequada.
Deve apenas acrescentar-se que não se vislumbra que o reconhecimento ao Ministério Público de um direito autónomo de acção alheio aos interesses privados que estão na origem da celebração do contrato, infrinja os valores da autonomia privada e da liberdade contratual, acolhidos no artigo 405.º do Código Civil e, bem assim, os princípios da liberdade de escolha do género de trabalho e do direito de acção, previstos, respectivamente, nos artigos 47.º/1 e 20.º/1 e 4 da Constituição da República, nem que a circunstância de não reconhecer outro desfecho da conciliação que não seja a aceitação da pretensão formulada na petição inicial, viole os princípios constitucionais da igualdade e do direito a processo equitativo, previstos respectivamente nos artigos 13.º/1 e 20.º/4 da Constituição da República (conclusões 10.ª, 18.ª e 19.ª das contra-alegações).
O facto de se considerar prevalecente o interesse de ver judicialmente averiguada e qualificada a verdadeira natureza do contrato firmado à luz das regras que regulam os diferentes tipos contratuais – in casu a natureza de contrato de trabalho ou de contrato de prestação de serviço – fazendo corresponder o nomen iuris do convénio à real caracterização das relações negociais efectivamente estabelecidas entre as partes, com o inerente reconhecimento ao Ministério Público de um direito autónomo de acção, não afronta a autonomia privada e a liberdade contratual acolhidas no artigo 405.º do Código Civil pois que a acção é de simples apreciação positiva, limitando-se a qualificar o contrato livremente celebrado e executado, não interferindo com os seus contornos fácticos.
E não interfere, também, com a liberdade de escolha de género de trabalho previsto no artigo 47.º, n.º 1 da Constituição da República Portuguesa. A instauração e prossecução da acção sob o impulso do Ministério Público não contende com a dinâmica das relações contratuais efectivamente estabelecidas, que podem continuar a desenvolver-se nos exactos termos em que anteriormente se desenvolviam, persistindo o “género de trabalho” livremente escolhido, cabendo apenas ao juiz, dentro da sua liberdade de qualificação jurídica, caracterizar juridicamente aquele “género de trabalho” escolhido e efectivamente desempenhado, conferindo-lhe um nomen face às regras legais que disciplinam os dois tipos de convénio.
O mesmo se deve dizer quanto ao direito de acção consagrado no artigo 20.º da mesma Lei Fundamental. O reconhecimento ao Ministério Público de um direito autónomo de acção para ver judicialmente declarado qual a natureza do contrato (artigos 186.º-K e ss. do Código de Processo do Trabalho) não implica que, caso o juiz venha na decisão final a concluir que o convénio em causa configura um contrato de trabalho – o que constitui apenas uma das hipóteses possíveis de desfecho da acção –, o trabalhador seja obrigado a fazer valer perante o empregador quaisquer direitos inerentes à qualificação jurídica efectuada. Quer persista no entendimento de que é diversa a qualificação, quer adira à nova qualificação, nada impõe ao trabalhador que faça valer perante o empregador direitos de natureza laboral.
Quanto aos princípios constitucionais da igualdade e do direito a processo equitativo, que a recorrida entende serem violados caso se não admita a possibilidade de transacção nos termos em que a mesma foi feita nesta acção, também a não a podemos acompanhar.
Desde logo, e como é pacífico, as exigências do princípio da igualdade reconduzem-se, no fundo, à proibição do arbítrio, não impedindo em absoluto, toda e qualquer diferenciação de tratamento, mas apenas as diferenciações materialmente infundadas, sem qualquer fundamento razoável ou justificação objectiva e racional. Como escrevem Gomes Canotilho e Vital Moreira “[a] proibição do arbítrio constitui um limite externo da liberdade de conformação ou de decisão dos poderes públicos, servindo o princípio da igualdade como princípio negativo de controlo: nem aquilo que é fundamentalmente igual deve ser tratado arbitrariamente como desigual, nem aquilo que é essencialmente desigual deve ser tratado arbitrariamente tratado como igual. Nesta perspectiva, o princípio da igualdade exige positivamente um tratamento igual de situações de facto iguais e um tratamento diverso de situações de facto diferentes. Porém, a vinculação jurídico-material do legislador ao princípio da igualdade não elimina a liberdade de conformação legislativa, pois a ele pertence, dentro dos limites constitucionais, definir ou qualificar as situações de facto ou as relações da vida que hão-de funcionar como elementos de referência a tratar igual ou desigualmente. Só quando os limites externos da «discricionariedade legislativa» são violados, isto é, quando a medida legislativa não tem adequado suporte material, é que existe uma «infracção» do princípio da igualdade enquanto proibição do arbítrio”(5).
Ora, procedendo à comparação entre a defendida impossibilidade de haver uma transacção, desistência ou confissão nesta acção especial que acarrete o reconhecimento de que a relação contratual em causa é um contrato de prestação de serviço e os termos em que é admissível a realização de uma transacção, desistência ou confissão numa acção comum em que se igualmente se coloque uma questão da qualificação contratual, encontra-se justificação objectiva e racional para tal diferenciação.
Desde logo, a diferenciação não é total, pois que não há uma absoluta liberdade de transigir na acção comum (onde há que atender, designadamente, aos direitos de natureza indisponível).
Mas, essencialmente, a ratio e a estrutura desta acção especial (que resulta das considerações expressas no aresto que se transcreveu parcialmente) denota que os interesses a prosseguir na mesma não são rigorosamente os mesmos que estão presentes numa acção comum instaurada pelo trabalhador contra o empregador. Nesta última estão apenas em causa interesses privados entre dois sujeitos de direito privado (apesar de previsto o patrocínio dos trabalhadores pelo Ministério Público nas acções comuns), ao invés do que sucede na primeira em que, além do interesse privado do concreto trabalhador, estão em causa os interesses públicos já acima identificados cuja defesa a lei cometeu ao Ministério Público.
Não se mostra, pois, violado o artigo 13.º da Constituição da República Portuguesa.
Quanto ao direito ao processo equitativo, também se não vê que, com a não admissão da transacção efectuada e prosseguindo a acção para apuramento dos factos efectivamente sucedidos – com observância do contraditório e com vista à prolação de uma decisão final fundamentada e orientada para a justiça material –, seja o mesmo posto em causa(6).
E, por isso, entendemos também não se mostrar violado o artigo 20.º, n.º 4, da Constituição da República Portuguesa.
*
Em suma, sem prejuízo de se virem a apurar na audiência de julgamento os factos em que agora acordaram a demandada e a prestadora de actividade, ou outros que indiciem uma vinculação autónoma, cabe revogar a decisão sob censura e determinar o prosseguimento dos autos para julgamento.» [fim de transcrição].

2.3. E, no nosso acórdão de 23.03.2015, Proc. 645/14.1T8MTS.P1, referimos o seguinte que se passa a transcrever:
«(…)
De todo o modo, sempre se dirá que o interesse público subjacente à instituição desta ação especial passa não apenas pela tutela do interesse do trabalhador, pelo combate à precariedade e pela tutela de uma sã concorrência, mas também pela salvaguarda dos interesses do Estado em matéria fiscal e de segurança social, como decorre do art. 12º, nº 2, do CT/2009, nos termos do qual “constitui contra-ordenação muito grave imputável ao empregador a prestação de actividade, por forma aparentemente autónoma, em condições características de contrato de trabalho, que possa causar prejuízo ao trabalhador ou ao Estado.” [sublinhado nosso].
O prejuízo do Estado a que se reporta a mencionada norma não é outro que não o associado a matéria fiscal e de contribuições para a Segurança Social que possam decorrer de uma verdadeira relação de trabalho subordinado “camuflada” em outro tipo contratual. Naturalmente que, como já referido, a sentença que venha a ser proferida neste tipo de ação não tem natureza condenatória, muito menos naquelas matérias. Mas define o tipo contratual que vincula ou vinculou as partes.
Diga-se que esse interesse público é acentuado no acórdão do Tribunal Constitucional n.º 94/2015, de 03-02-2015 (Proc. n.º 822/2014,disponível em www.tribunalconstitucional.pt), em que se refere que «[e]ste recurso indevido à figura da prestação de serviços em situação de existência de uma verdadeira relação de trabalho subordinado tem diversas implicações negativas laterais, entre as quais, o prejuízo que as mesmas acarretam para a sustentabilidade dos sistemas de pensões em face da entrada tardia dos jovens no mercado de trabalho propriamente dito e pela menor entrada de contribuições que o trabalho dissimulado (e também o trabalho não declarado) representam, para além de implicar uma concorrência desleal entre empresas (sobre esta matéria e, em geral, sobre o regime da ação de reconhecimento da existência de contrato de trabalho, cfr. Pedro Petrucci de Freitas, Da ação de reconhecimento da existência de contrato de trabalho: breves comentário, in Revista da Ordem dos Advogados, Ano 73 - Vol. IV - Out./Dez -2013, pp. 1423 e ss.).”.
Por outro lado, o prosseguimento da ação também não é destituído de utilidade em matéria contraordenacional, sendo que na economia da Lei 63/2013 a definição do tipo contratual constitui um pressuposto do prosseguimento, ou não, do processo de contraordenação. Com efeito, e como decorre do art. 15º-A, nº 4, da Lei 107/2009, de 14.09, aditado pelo art. 4º da Lei 63/2013, a ação especial por esta instituída suspende até ao trânsito em julgado da decisão que nela venha a ser proferida o procedimento contraordenacional. (…)». [fim de transcrição].

3. O caso ora em apreço nos presentes autos é, em tudo, similar aos demais a que se reportam os acórdãos transcritos, arestos estes com os quais estamos de acordo, não se vendo igualmente razões ponderosas que levem a diferente entendimento(7), designadamente o Acórdão do Tribunal Constitucional nº 94/2015, de 03.02.2015, proferido no Processo 822/2014, in www.tribunalconstitucional.pt., de que a Recorrida transcreve um excerto em abono da sua tese.
Com efeito, e desde logo, neste se decidiu “não julgar inconstitucionais as normas do art. 26º, nº 1, al. i), e 6, e dos arts. 186º-K a 186-R, todos do Código de Processo de Trabalho”, acórdão esse que apreciou da questão, nele suscitada, da alegada violação do princípio do Estado de Direito Democrático, consagrado no artigo 2.º da Constituição, na sua vertente do princípio da segurança jurídica e do princípio da confiança, do princípio da liberdade de escolha do género de trabalho, consagrado no artigo 47.º, n.º 1 da Constituição, e do princípio da igualdade, consagrado no artigo 13.º da Constituição, concluindo no sentido da não violação de tais nomas e princípios constitucionais.

Por outro lado, o entendimento por nós preconizado não colide, a nosso ver, com as considerações tecidas no mencionado aresto do Tribunal Constitucional 94/2015, de 03.02, citadas pela Recorrida, na parte em que aprecia da alegada violação do princípio da «liberdade de escolha do género de trabalho».
É certo que, aí, nele se diz que:
<<Como salientam Jorge Miranda e Rui Medeiros (Constituição Portuguesa Anotada, I, 2.ª ed., Coimbra, 2010, pág. 967) «não obstante o artigo 47.º, n.º 1, só se referir ao direito de escolha livre da profissão ou do género de trabalho, a escolha, que toca a questão do se uma profissão é assumida, continuada ou abandonada (realização de substância), pressupõe o exercício, que se refere à questão do como (realização da modalidade), da mesma maneira que a segunda de nada valeria sem a primeira».
E ainda segundo estes autores (Constituição Portuguesa Anotada, Tomo I, 2.ª Edição, p. 965-966), numa dimensão positiva, a liberdade de escolha de profissão compreende diversas pretensões específicas, entre as quais «o direito de escolher o regime de trabalho – o trabalho independente, o trabalho subordinado por conta de qualquer empresa, a função pública ou trabalho subordinado por conta do Estado ou de outra entidade pública e a própria iniciativa económica (artigo 61.º), esta na medida em que a iniciativa ou a gestão de uma atividade empresarial (provada, cooperativa ou autogestionária) pressupõe, além de outras, uma escolha do género ou tipo de trabalho».
Conforme decorre da respetiva fundamentação, é esta a dimensão do direito de escolher livremente a profissão ou o género de trabalho que a decisão recorrida entende ter sido violada pelo regime da «ação de reconhecimento de existência de contrato de trabalho».
No entanto, é manifesto que tal regime legal não coloca em causa este direito. Com efeito, o que se pretende com o mesmo não é impor a quem presta determinada atividade remunerada que o faça, contra a sua vontade, em regime de contrato de trabalho, mesmo que o pretenda fazer em regime de trabalho independente.
Conforme se viu, o que se pretende é combater a utilização indevida do contrato de prestação de serviço nas situações em que, apesar de determinada relação ser formalmente titulada pelas partes como contrato de prestação de serviço, corresponda, substancialmente, a uma situação de trabalho subordinado, à qual deveria, por isso, ser aplicado o regime laboral. Nas situações problematizadas na decisão recorrida (os casos em que uma pessoa não quer estar sujeita a nenhuma relação de subordinação jurídica ou em que está vinculada a uma relação jurídica de um específico tipo contratual que não lhe permite ter uma ou outra relação jurídica de natureza laboral), não se verifica um caso de utilização indevida do contrato de prestação de serviço, visto que, nenhuma das partes (e, concretamente, quem presta a outrem determinada atividade remunerada) pretende que a relação jurídica em causa esteja sujeita ao regime laboral.
Nestas situações, o referido regime contém suficientes garantias de esta vontade do trabalhador poder ser expressa nos autos e levada em conta, de modo a que tal situação não seja tratada como sendo um caso de trabalho subordinado.
Com efeito, o artigo 186.º-L, n.º 4, do Código de Processo de Trabalho, determina que, simultaneamente com a notificação da data da audiência de julgamento, sejam remetidos ao trabalhador o duplicado da petição inicial e da contestação, simultaneamente «com a expressa advertência de que pode, no prazo de 10 dias, aderir aos factos apresentados pelo Ministério Público, apresentar articulado próprio e constituir mandatário» e o artigo 186.º-O, também do Código de Processo de Trabalho prevê, no seu n.º 1, que «[s]e o empregador e o trabalhador estiverem presentes ou representados, o juiz realiza a audiência de partes, procurando conciliá-los».
Independentemente das eventuais deficiências técnicas deste regime apontadas pela decisão recorrida (matéria sobre a qual não compete ao Tribunal Constitucional pronunciar-se), a verdade é que o mesmo garante a intervenção nos autos, quer do trabalhador, quer da entidade empregadora, sendo facultada ao trabalhador, a oportunidade processual de tomar posição quanto às circunstâncias concretas em que desenvolve a sua atividade, podendo, além do mais, invocar que se pretendeu vincular num regime que não o do contrato de trabalho (designadamente, por não querer estar sujeito a nenhuma relação de subordinação jurídica ou por estar vinculado a uma relação jurídica de um específico tipo contratual que não lhe permite ter outra relação jurídica de natureza laboral).
Face ao exposto, não se nos afigura que o regime da «ação de reconhecimento de existência de contrato de trabalho» viole a liberdade de escolha de profissão, consagrada no artigo 47.º, n.º 1, da Constituição, concretamente na dimensão em que consagra o direito de escolher o regime de trabalho.”.
Não colocamos em causa a liberdade de escolha do tipo contratual pelos contraentes, seja ele o contrato de prestação de serviços, de trabalho ou outro. No entanto, o que não podem é os contraentes denominarem um determinado vínculo contratual, mas, não obstante, submeter a sua execução ao modelo de um outro tipo contratual. Os contratos são o que são e não o que os contraentes dizem que são.
Naturalmente que o nomen juris será, a par de muitos outros elementos indiciários, um dos fatores a atender na definição do tipo contratual concretamente em causa (designadamente na medida em que poderá indiciar a vontade contratual) e, nessa, perspetiva, serem atendidas as declarações que o trabalhador possa vir a prestar na audiência de partes ou em depoimento que venha a prestar, tal como, pelo menos aparentemente, admitido no referido acórdão. Não obstante, essa definição, mediante a avaliação global e sopesados todos os factos, incluindo, a par dos demais, o mencionado elemento indiciário, competirá ao Tribunal, após a produção da prova.
Consigna-se, por fim, o que refere Albertina Pereira, em comentário ao art. 186º-O, Código de Processo do Trabalho, Anotado à Luz da Reforma do Processo Civil, Almedina 2015, págs. 332/333:
“Considerando, porém, a natureza eminentemente pública dos interesses prosseguidos por esta acção (…); e que o seu objecto é o apuramento de factualidade tendente a reconhecimento da existência de contrato de trabalho, afigura-se-nos que o sentido útil a atribuir a referida diligência [reportando-se à audiência de partes tendente à conciliação das mesmas] residirá, essencialmente, em permitir que através dela tenha lugar a confissão do pedido por banda do empregador ou a realização de um acordo (transação) que permita pôr termo ao processo, mas, ainda assim, no pressuposto da existência de um contrato de trabalho. Deste modo, afigura-se-nos inócuo, por exemplo, que nesta sede se declare que entre as partes existe ou existiu um contrato de prestação de serviços a que se pretende pôr fim, ou já se rescindiu, pretendendo-se, com isso e sem mais, colocar um “ponto final” à acção, quando foi intenção do legislador combater através dela o falso trabalho autónomo – o que se poderá alcançar através do apuramento da realidade contratual em causa, da posterior intervenção da ACT, e da regularização fiscal e contributiva por parte da entidade empregadora, como decorre, entre o mais, dos nºs 8 e 9, do normativo em apreciação.
Importa ainda realçar, de acordo com o princípio da primazia da realidade, que na qualificação contratual relevante é o modo como o contrato é executado e não o nome que as partes lhe atribuem, pelo que a acção em qualquer das referidas circunstâncias deveria prosseguir a fim de se apurar a factualidade tendente à qualificação do contrato, a apurar pelo tribunal. Podendo, naturalmente, o trabalhador no âmbito do julgamento, e nos termos referidos, vir a prestar esclarecimentos (factuais) relevantes, no sentido da existência (ou não) de um contrato de trabalho.”.

4. Em conclusão, procedem as conclusões do recurso, impondo-se a revogação da decisão recorrida e devendo os autos prosseguirem os seus termos se outro fundamento não objeto do recurso a tal não obstar.
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IV. Decisão

Em face do exposto, acorda-se em conceder provimento ao recurso, revogando-se a decisão recorrida e determinando-se, em consequência, se outro fundamento não objeto do recurso a tal não obstar, o prosseguimento dos autos.

Custas pela Recorrida, que ficou vencida no recurso.

Porto, 11.05.2015
Paula Leal de Carvalho
Rui Penha
Maria José Costa Pinto
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(1) Relatados, respetivamente, pelos Exmºs Srs. Desembargadores António José Ramos e Eduardo Petersen Silva.
(2) Relatado pela ora 2ª Adjunta.
(3) Relatado pelo Exmº Sr. Desembargador Domingos Morais, em que a ora relatora e 1º Adjunto intervieram, respetivamente, como 1º e 2º Adjuntos.
(4) Estes relatados pela ora relatora, tendo o segundo dos mencionados acórdãos por objeto a situação particular de cessação da relação contratual entre a Ré e a alegada “trabalhadora” em data anterior à do início da instância da ação especial de reconhecimento da existência de contrato de trabalho. Também versando sobre a situação em que a relação contratual havia cessado pronunciaram-se, em sentido no essencial similar, os Acórdãos desta Relação de 23.02.2015, proferidos nos Processos 1113/14.7T8PRT.P1 e 788/14.5T8PRT.P1, relatados pelo Exmº Sr. Desembargador João Nunes.
(5) In Constituição da República Portuguesa Anotada, Coimbra, 2007, p. 339.
(6) Vide Gomes Canotilho e Vital Moreira, in ob. citada, pp. 415-416.
(7) Em sentido similar pronunciou-se também a Relação de Lisboa, nos seus acórdãos de 08.10.2014, Proc. 1330/14.0TTLSB.L1-4, de 10.09.2014, Proc. 1344.0TTLSB.L1-4 e de 17.12.2014, Proc. 1332/14.6TTLB.L1-4. Todavia, apontam-se também, em sentido divergente, os Acórdão da Relação de Lisboa de 24.09.2014, Processos 1050/14.5TTLSB.L1-4 e 4628/13.0TTLSB.L1-4.