Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
2977/14.0TBMAI.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: FREITAS VIEIRA
Descritores: CESSÃO DE QUOTAS ENTRE CÔNJUGES
Nº do Documento: RP201602042977/14.0TBMAI.P1
Data do Acordão: 02/04/2016
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Indicações Eventuais: 3ª SECÇÃO, (LIVRO DE REGISTOS N.º 49, FLS. 67E 73 VRS.)
Área Temática: .
Sumário: I - Uma vez que o nº. 2, do artº. 228º do Código Comercial pressupõe a validade da cessão de quotas entre cônjuges, ainda que fazendo depender a sua eficácia em relação à sociedade, alguma doutrina considera que esta norma teria derrogado, ao menos parcialmente, e no que respeita à cessão de quotas, a proibição que resultaria do nº. 2, do artº. 1714º, do Código Civil, sustentando, por isso, a validade da cessão de quotas entre cônjuges, todavia este entendimento não é pacífico, porquanto, doutrina há que defende que a norma contida no nº. 2, do artº. 228º, do Código Comercial deve ser interpretada como reportada apenas às situações em que, de acordo com o previsto nas normas do Código Civil, a cessão de quotas entre cônjuges deve ter-se como válida, como acontecerá se os cônjuges estiverem separados judicialmente de pessoas e bens, a que se refere a parte final do nº. 2, do artº 1714º do Código Civil, não implicando, por isso, derrogação, nem do disposto no nº. 2, do referido artº. 1714 do Código Civil, quando prevê a proibição de compra e venda entre cônjuges, nem do principio de imutabilidade dos regimes de bens e das convenções antenupciais consagrado no nº. 1, do artº 1714º do Código Civil, sendo que de acordo com esta posição, haveria que atender ao negócio que está na base da cessão.
II - Assim, se a cessão de quotas se concretizar através de um contrato de compra e venda entre cônjuges, a mesma apenas será válida se os cônjuges estiverem separados de pessoas e bens. Se o negócio que está na base da cessão de quotas for uma doação entre cônjuges casados num dos regimes de comunhão, tal cessão será válida se a quota cedida for bem próprio do cônjuge doador e a doação for revogável.
III - Fora destas situações em que existe disposição expressa da lei a considerar, excepcionalmente, a validade da transmissão inter vivos, e entre cônjuges, da quota da sociedade comercial, a cessão de quotas entre cônjuges terá de considerar-se nula porque em violação do princípio de imutabilidade dos regimes de bens e das convenções antenupciais.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: APELAÇÃO N.º 2977/14.0TBMAI.P1
Relator: Desembargador Freitas Vieira
1º Adjunto: Desembargador Madeira Pinto
2º Adjunto: Desembargador Carlos Portela
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ACORDAM NA SECÇÃO CÍVEL DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DO PORTO

B…., intentou ação declarativa de condenação contra
1.ª – C…, e
2.ª - “D…, LDA”
Peticionando a) que fosse declarada a nulidade ou a anulabilidade do contrato de cessão de quotas outorgada entre ele e a sua mulher, a 11ª ré, porque violadora do imperativo constante do artº 1714º do CC.
Subsidiariamente alega que nem ele nem a 1ª ré tiveram verdadeira intenção de transmitir a referida quota social, ao contrário do que declararam, nem foi efetuado o pagamento a que se referem no mesmo contrato, tratando-se por isso de um negócio simulado, argumentando que, também por essa via seria o referido contrato nulo.
Peticionou por último (b) que, declarada a nulidade do referido contrato, fosse declarado o cancelamento do registo comercial fundado na sobredita cessão de quotas.

Contestaram as Rés, sustentando o entendimento de que o disposto no nº 2 do arteº 228º do CSC teria derrogado, enquanto lei especial, e no que concerne à cessão de quotas entre cônjuges, a proibição constante do artº 1714º do CC, e que inexistiu a simulação alegada pelo autor, impugnando assim os factos a esse respeito alegados.

Convocadas as partes para audiência prévia, viria a ser consignado na respetiva ata apenas que as partes previam a possibilidade de acordo e quer requeriam por isso a suspensão da instância, o que foi deferido com essa finalidade.

Vindo as Rés informar posteriormente terem-se frustrado as possibilidades do anunciado acordo, foi proferida decisão na qual se conclui pela inviabilidade da pretensão do Autor, enquanto fundamentada na violação do artº 1714º do CC por se considerar ter esta norma sido efetivamente derrogada, no que à cessão de quotas entre cônjuges respeita, pelo nº 2 do artº 228º do CSC, e por outro lado, e no que concerne à invocada simulação, por não teriam sido alegados os factos concretizadores dos pressupostos respetivos.
Julgou em consequência a ação totalmente improcedente e absolveu as RR. dos pedidos formulados pelo A.
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Desta decisão que vem interposto pelo Autor o presente recurso sustentado nas seguintes CONCLUSÕES:
I - Salvo melhor opinião, o recorrente não concorda com o entendimento do Tribunal “a quo” que considerou evidente a inviabilidade da pretensão do recorrente, quanto à invocada nulidade do contrato de compra e venda, celebrado entre o recorrente e 1.ª recorrida.
II - Efetivamente, pugna o recorrente pelo entendimento, segundo o qual, a previsão do art.º 228, n.º 2, do C.S.C., não tem carácter especial, porquanto, em nada contraria o regime geral, previsto no art.º 1714 do C. Civil.
III - De facto, é humilde entendimento do recorrente que o art.º 228, n.º 2, do Código das Sociedades Comerciais (C.S.C.), apenas tem aplicação à parte final do n.º 2 do art.º 1714 do C.C.
IV - Ou seja, tal preceito do C.S.C., estipula que, no caso de uma cessão de quotas entre marido e mulher, legalmente admissível desde que estes estejam separados judicialmente de pessoas e bens (art.º 1714, n.º 2, parte final, do C.C.), não é necessário o consentimento da sociedade (a essa mesma cessão), para esta produzir efeitos (art.º 228, n.º 2, do C.S.C.).
V - Este entendimento é totalmente distinto do plasmado pelo Tribunal “a quo”, que considera legal a cessão de quotas entre marido e mulher, independentemente do regime de bens do casamento e dos cônjuges estarem ou não separados judicialmente de pessoas e bens.
VI - Ora, como se alegou, e provou documentalmente (doc. n.º 1), em sede de P.I., recorrente e 1.ª recorrida não estão, nem estavam aquando da assinatura da aludida cessão de quotas, separados judicialmente de pessoas e bens.
VII - Pelo que, inexiste qualquer derrogação ao preceituado no sobredito normativo do código civil.
VIII - Além do mais, a proibição não está só relacionada com o princípio geral da imutabilidade do regime de bens, por si só, mas também, com a imutabilidade dos poderes de administração dos próprios bens.
IX - E, assim sendo, é manifesto que a pretensão do recorrente tem viabilidade e deve ser considerada procedente face à factualidade alegada e provada, podendo, até, sem mais, ser decretada por este Venerando Tribunal, ou, pelo menos, deve o processo prosseguir os seus termos para instrução e audiência final.
X – Noutra ordem de ideias, face ao preceituado no art.º 590, n.ºs 2, al. b), e 4, e ao invés do que sucedia, sobre esta temática, no anterior Código, atualmente passou a existir um verdadeiro dever, onde antes existia um “poder-dever”.
XI - Sucede que, no caso ora em apreço, o Tribunal “a quo”, apesar de ter considerado que “… quanto ao alegado contrato simulado, também não foram alegados factos concretizadores do mesmo …”, não proferiu despacho de convite ao aperfeiçoamento quanto à matéria em causa.
XII - Pelo que, salvo melhor opinião, estamos perante uma nulidade prevista no art.º 195º, n.ºs 1 e 2, do Código de Processo Civil, a qual se requer seja declarada e decretada, com todas as consequências legais, a saber, anular a decisão recorrida e substitui-la por outra que convide o recorrente a, em prazo, suprir a apontada concretização insuficiente de factos.
XIII – Por último, no que se refere ao Despacho de fls…, o recorrente não se conforma com posição do Tribunal “a quo”, porquanto, na aludida audiência prévia (realizada em 19.03.2015), o Recorrente não pediu a palavra apenas porque a mesma, depois de iniciada, foi suspensa, atento o facto de se ter vislumbrado possibilidade de acordo … conforme se poderá verificar da ata da mesma a fls…
XIV - Pelo que, caso as recorridas tivessem apresentado defesa por exceção, o que não se verificou, sempre o recorrente estaria em tempo de sobre aquela se pronunciar (até porque, no momento, desconheciam a Sentença recorrida).
XV - Verificou-se, entre outros, uma errada interpretação e aplicação dos art.ºs 1714 do C.C., 228 do C.S.C., e 590º do C.P.C.
Termos em que deve ser revogado a douta Sentença de fls… e substituída por outra que sustente as conclusões do recorrente, com o que se fará a esperada JUSTIÇA.
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As Rés contra-alegaram sustentando o bem fundado da decisão recorrida, pugnando pela sua manutenção.
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O objeto do recurso mostra-se circunscrito às seguintes questões:
I – Se deve considerar-se que o disposto no artº 1714º do CC não foi derrogado pela previsão do art.º 228, n.º 2, do C.S.C., sendo por isso nula a cessão de quotas entre cônjuges, a não ser que vigore entre eles o regime de separação geral de bens, por nesse caso – e só nesse caso – estar excecionada pelo supracitado normativo.
II – Se deve considerar-se que face ao preceituado no art.º 590, n.ºs 2, al. b), e 4, do CPC, se impõe hoje ao juiz um poder dever de convite ao aperfeiçoamento, ocorrendo por isso nulidade quando profere decisão fundada na insuficiente concretização de factos sem previamente formular aquele convite.
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Com relevo para a apreciação da decisão recorrida deve considerar-se desde já como assente, porque alegado e documentalmente comprovado pelo autor, e expressamente aceite pelas Rés, o seguinte:
- A. e 1.ª Ré são casados entre si, porquanto contraíram casamento católico, sem convenção antenupcial, em 16 de Julho de 1988.
- A. e 1.ª R., já depois de terem contraído casamento, constituíram uma sociedade comercial, por quotas, denominada “D…, L. da”, com o capital social de € 5.000,00, dividindo em 2 (duas) quotas de igual valor, a saber, € 2.500,00, pertencente uma a cada um dos sócios (A. e 1.ª R.),
- A dita sociedade, aqui 2.ª R., manteve inalterados todos os seus elementos constitutivos supracitados, até Fevereiro de 2014
- No dia 21.02.2014, A. e 1.ª R., assinaram um documento intitulado “Contrato de Cessão de Quotas”, no qual o A., declara ceder à 1.ª R. a quota de que aquele era titular na 2.ª R., pelo valor de € 2.500,00 (dois mil e quinhentos euros).
- Declarando igualmente renunciar à gerência da 2.ª R.
- Posteriormente àquela data (21.02.2014), mais concretamente em 26.02.2014, a 2.ª R., procedeu ao registo comercial das sobreditas cessão (Menção – Dep. 872/2014-02-26) e renúncia (Av. 1 – Ap. 31/20140226).
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I - A invocada nulidade da cessão de quotas vem fundamentada pelo autor e agora recorrente, em primeiro lugar, com referência ao disposto no nº 2 do artº 1714º do CC, uma vez que à data da cessão ele e a 1ª Ré não se encontravam separados judicialmente de pessoas e bens.

Na decisão recorrida considerou- se ter sido derrogada, no que à cessão de quotas entre cônjuges respeita, pelo nº 2 do artº 228º do CSC, julgando improcedente, com esse fundamento, a invocada nulidade da cessão de quotas efetuada.

Sob a epígrafe “Imutabilidade das convenções antenupciais e do regime de bens resultantes da lei”, dispõe-se no referido artº 1714º do CC:

“1 – Fora dos casos previstos na lei, não é permitido alterar, depois da celebração do casamento, nem as convenções antenupciais nem os regimes de bens legalmente fixados.
2 – Consideram-se abrangidas pelas proibições do número anterior os contratos de compra e venda e sociedade entre os cônjuges, exceto quando estes se encontrem separados judicialmente de pessoas e bens.”

Por seu lado o artº 228º do CSC, sob a epígrafe “Transmissão entre vivos e cessão de quotas”, dispõe:

“1 - A transmissão de quotas entre vivos deve ser reduzida a escrito.
2 - A cessão de quotas não produz efeitos para com a sociedade enquanto não for consentida por esta, a não ser que se trate de cessão entre cônjuges, entre ascendentes e descendentes ou entre sócios.
3 - A transmissão de quota entre vivos torna-se eficaz para com a sociedade logo que lhe for comunicada por escrito ou por ela reconhecida, expressa ou tacitamente.”

Uma vez que o nº 2 deste último normativo pressupõe a validade da cessão de quotas entre cônjuges – ainda que fazendo depender a sua eficácia em relação à sociedade, do consentimento desta – considera algum setor da doutrina que[1] esta norma teria derrogado, ao menos parcialmente, e no que concerne à cessão de quotas, a proibição que resultaria do nº 2 do artº 1714º do CC, sustentando por isso, ainda que em termos críticos, a validade da cessão de quotas entre cônjuges.
A decisão recorrida encontra apoio nesta posição doutrinária.

Esta posição não é, no entanto, pacífica.
Com efeito, também se tem defendido o entendimento de que a norma contida no nº 2 do artº 228º do CSC deve ser interpretada como reportada apenas às situações em que, de acordo com o previsto nas normas do C.Civil, a cessão de quotas entre cônjuges deva ter-se como válida – como acontecerá se os cônjuges estiverem separados judicialmente de pessoas e bens, a que se refere a parte final do nº 2 do artº 1714º do CC - não implicando por isso derrogação, nem do disposto no nº 2 do referido artº 1714º do CC, quando prevê a proibição de compra e venda entre cônjuges, nem do princípio de imutabilidade dos regimes de bens e das convenções antenupciais consagrado em termos gerais no nº 1 do referido artº 1714º do CC [2]. De acordo com esta posição, haveria de atender ao negócio que está na base da cessão. Se a cessão de quotas se concretizar através de um contrato de compra e venda entre cônjuges, a mesma apenas será válida se os cônjuges estiverem separados de pessoas e bens. Se o negócio que está na base da cessão de quotas for uma doação entre cônjuges casados num dos regimes de comunhão, tal cessão será válida se a quota cedida for bem próprio dos cônjuges doador (por a ter adquirido antes do casamento, por exemplo) - artº 1764º do CC e a doação for revogável. Fora destas situações em que existe disposição expressa da lei a considerar, excecionalmente, a validade da transmissão inter vivos, e entre cônjuges, da quota de sociedade comercial, a cessão de quotas entre cônjuges teria de considerar-se nula porque em violação do princípio de imutabilidade dos regimes de bens e das convenções antenupciais consagrado em termos gerais no nº 1 do referido artº 1714º do CC.

Esta diferença de posições sobre a questão colocada no recurso interposto nos presentes autos, é em grande parte resultante do diferente entendimento relativamente à abrangência do referido princípio da imutabilidade das convenções antenupciais e do regime de bens, que decorre do disposto no nº 1 do artº 1174º do CC.
Numa aceção mais ampla este princípio implicará não só a proibição de alterar as cláusulas da convenção antenupcial, ou as regras do regime supletivo, em termos que tenham como consequência uma alteração da qualificação de bens e da sua integração no património comum ou no património de um dos cônjuges, mas também a proibição de alterar por via indireta, através da celebração de negócios jurídicos entre cônjuges sobre bens concretos, a qualificação de um qualquer bem determinado como bem próprio ou comum[3].
As exceções a este princípio, além das normas que expressamente se refira à possibilidade de contratos específicos entre os cônjuges - como é o caso do nº 2 do artº 1714º do CC - seriam apenas as previstas no nº 1 do artº 1715º do CC, e seriam sempre normas excecionais.
Por outro lado, e coerentemente com o princípio de imutabilidade assim entendido, seria desnecessário que o legislador incluísse normas específicas a prever a proibição de específicos contratos entre cônjuges, sendo esta previsão justificada a sua previsão pela maior probabilidade com que determinados contratos poderão de ser utilizados para alterar o estatuto patrimonial dos cônjuges.
Do princípio de imutabilidade de regime de bens e de convenções antenupciais, entendido nos termos amplos supra referidos, decorreria por sua vez a inadmissibilidade da cessão de quotas entre cônjuges, porquanto, mesmo considerando a inexistência de disposição expressa nesse sentido, implicaria sempre violação do referido princípio de imutabilidade, entendido nos termos sobreditos.
É esta, como referimos, a posição sustentada por P. Lima e A. Varela in C. Civil anotado, Vol. IV, citado pelo recorrente. Mas ao contrário do que parece ser a interpretação deste, aqueles autores entendem – ainda que em termos críticos - que a cessão de quotas entre cônjuges terá passado a ser válida com a introdução do nº 2 do artº 228º do CC, que teria vindo derrogar a proibição de compra e venda entre cônjuges – ob citada, págs. 400 – acolhendo assim a posição sustentada na decisão proferida nestes autos e conta a qual se insurgem os recorrentes.

Já numa acção mais restrita do referido principio de imutabilidade do regime de bens considera-se que do mesmo decorre apenas a proibição de alterar nos termos supra referidos o regime de bens fixado por lei ou resultante de convenção de bens, mas já não os negócios entre cônjuges que incidissem sobre bens concretos, a não ser quando essa proibição conste de normas especiais, como sejam o nº 2 do referido artº 1714º, do CC [4].
Este conceito restrito do princípio de imutabilidade dos regimes de bens ou das convenções antenupciais tem sido invocado para fundamentar a posição de quantos sustentam que, uma vez que o nº 2 do artº 1714º do CC não se refere a cessão de quotas entre cônjuges, mas apenas à compra e venda, não decorreria desse preceito qualquer proibição de cessão de quotas entre cônjuges, a qual seria por isso válida - a não ser quando a quota social cedida devesse considerar-se bem comum, e para quem entende que nesse caso a proibição da cessão entre cônjuges resultaria da própria natureza da comunhão enquanto património de mão comum[5].
À luz deste entendimento o disposto no nº 2 do artº 228º do CSC não implicaria por isso qualquer derrogação do princípio de imutabilidade ou do disposto no nº 2 do artº 1714º do CC que não abrangeriam na sua previsão a cessão de quotas entre cônjuges.

Propendemos a subscrever – no que concerne à abrangência do princípio da imutabilidade das convenções antenupciais e do regime de bens previsto no nº 1 do artº 1174º do CC - a posição de quantos[6] sustentam o conceito mais amplo do princípio da imutabilidade das convenções antenupciais e do regime de bens, pois que de outra forma, facilmente poderiam os cônjuges, mediante celebração de contratos entre si, alterar as massas patrimoniais que integram o património comum ou o património próprio de cada um deles, frustrando por essa via a finalidade subjacente à opção do legislador em manter a consagração entre nós, e ao contrário de outras legislações europeias, aquele princípio, numa solução de continuidade com o que se encontrava já no artº 1105º do CC de 1867.
Com efeito, a justificação do referido princípio da imutabilidade das convenções antenupciais e do regime de bens previsto no nº 1 do artº 1174º do CC, tem sido encontrada na necessidade de evitar que um dos cônjuges, abusando do ascendente ou influência que exerce sobre o outro e o casamento lhe deu, possa levar este a consentir numa alteração do regime de bens que lhe seja prejudicial, bem como na necessidade de acautelar os interesses de terceiros que tendo contratado com os cônjuges, poderiam ver frustrada a confiança depositada na garantia dada pelo património conjugal, se fosse admitida a alteração da massa patrimonial que o compõe.
Consequentemente com esta posição, subscrevemos também a posição de quantos sustentam que, muito embora não exista norma específica a proibir a cessão de quotas entre cônjuges, essa proibição decorre já do princípio de imutabilidade previsto no nº 1 do artº 1714º do CC.
No entanto, e no que concerne à previsão do nº 2 do artº 228º do CC, divergimos da posição dos que entendem que tal norma operou a derrogação do princípio da imutabilidade das convenções antenupciais e do regime de bens previsto no nº 1 do artº 1174º do CC, entendido nos termos sobreditos, ou da proibição constante do mesmo artº 1714º do CC, considerando antes que tal norma terá de ser interpretada em harmonia e conjugação com aquele princípio e com esta proibição, e como tal interpretada como reportando-se apenas aquelas situações em que a cessão de quotas entre cônjuges deva ter-se como válida em face do disposto na lei civil.
Vista por este prisma a norma constante do nº 2 do artº 228º do CSC não representará uma derrogação do referido princípio de imutabilidade das convenções antenupciais e do regime de bens, consagrado no artº 1174º do CC, reportando-se apenas aquelas situações em que a cessão de quotas deva considerar-se como admissível, seja porque os cônjuges se encontram casados em regime de separação geral de bens – parte final do nº 2 do artº 1714º do CC – seja porque a cessão de quotas foi concretizada através de um contrato não proibido entre cônjuges, como é o caso da doação[7].

Revertendo à situação dos autos, estamos perante a cessão de uma quota social que, porque adquirida por ambos os cônjuges na constância do casamento, era, por força do regime de bens aplicável, um bem comum.
E por isso que, não estando o Autor e a Ré à data separados judicialmente de pessoas e bens, terá de concluir-se que a cessão de quotas entre o recorrente/autor e a então sua mulher, a 1ª ré, ora recorrida, é nula por violação do disposto no nº 1 do artº 1714º do CC [8], impondo-se por isso a revogação da decisão recorrida quando, com fundamento em entendimento diverso, julgou a presente ação improcedente.

No entanto a referida nulidade apenas deverá afirmar-se se tiver efetivamente havido contrato de cessão, impondo-se inclusive nesse caso extrair daí as consequências em matéria de restituição do que houver sido prestado, nos termos previstos no nº 1 do artº 289º do CC, muito embora a ré, ora recorrida, nada tenha peticionado a esse respeito [9].
Mas haverá então que apreciar da simulação alegada pelo autor, ainda que a nulidade correspondente apenas subsidiariamente seja por aquele invocada.

II-
Considerou-se a esse propósito na sentença recorrida que não foram alegados os factos concretizadores do mesmo, desde logo o intuito de enganar terceiros, um dos requisitos de verificação do instituto em causa.
E efetivamente, o intuito de enganar terceiros é, juntamente com a divergência entre a vontade e a declaração resultante de acordo entre declarante e o declaratário, o que nos termos do disposto no artº 240º do CC, caracteriza a simulação.
O referido intuito é assim elemento constitutivo do efeito pretendido pelo autor – artº 581º, nº 1, do CPC – e como tal teria que ser por ele alegado – artº 5º, nº 1, e 552º, nº 1, do CPC
No caso dos autos o autor, muito embora alegue efetivamente o acordo simulatório e a ausência de vontade correspondente à declarada cessão de quotas, nada refere quanto ao intuito de defraudar terceiros. E sem esse intuito não há simulação.
É certo que está prevista a possibilidade/dever de o juiz facultar às partes a oportunidade de suprirem as “insuficiências ou imprecisões” dessa alegação – nº 4 do artº 590º do CPC – mas apenas e tão só isso. Se as partes pura e simplesmente omitem a alegação de qualquer facto constitutivo do direito invocado, não pode essa omissão ser suprida a convite do juiz ao abrigo do referido nº 4 do artº 590º do CPC.
Improcede por isso a arguida nulidade, havendo por isso que manter-se a decisão recorrida, quando considera inviável a pretensão com fundamento na alegada simulação.
Mas impugnando a Ré, ora recorrida, a alegada inexistência de pagamento correspondente à cessão da quota na sociedade, haverá tal facto que ser indagado, dada a sua repercussão nos efeitos da nulidade da cessão da quota a declarar nos termos previstos no nº 1 do artº 289º do CC.

ASSIM QUE, NOS TERMOS E COM OS FUNDAMENTOS SUPRA EXPOSTOS, ACORDAM NESTA SEÇÃO CIVEL DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DO PORTO EM REVOGAR A DECISÃO RECORRIDA QUANDO ABSOLVE AS RÉS DO PEDIDO, E DECLARAM NULA A CESSÃO DE QUOTAS OPERADA ENTRE O AUTOR B… E A RÉ C…, E DETERMINAM O CANCELAMENTO DOS REGISTOS QUE FORAM EFETUADOS COM BASE NELA.
ACORDAM AINDA EM DETERMINAR O PROSSEGUIMENTO DOS AUTOS PARA APURAMENTO DA EXISTÊNCIA DE PAGAMENTO COMO CONTRAPARTIDA DA REFERIDA CESSÃO PARA, EM FUNÇÃO DO QUE VIER A APURAR-SE, SER OU NÃO ORDENADA A RESTITUIÇÃO COMO CONSEQUÊNCIA DA DECLARADA NULIDADE DO CONTRATO DE CESSÃO DE QUOTAS.

CUSTAS A FINAL, E EM CONFORMIDADE COM O DECAIMENTO.

Porto, 4 de fevereiro de 2016
Freitas Vieira
Madeira Pinto
Carlos Portela
______
[1] Pires de Lima e A. Varela, C. Civil anotado, Vol. IV, págs. 400
[2] Rita A.G. Lobo Xavier.
[3] Neste sentido, Rita Lobo Xavier …págs. 135 a 138; Antunes Varela – Direito de Família, 1ª edição, págs. 419/420; Pires de Lima e A. Varela – C. Civil anotado, vol. IV, págs. 399/400
[4] Parece ser este o entendimento de Pereira Coelho - Curso …. Págs. 490/491
[5] É esta a posição assumida por Cristina Araújo Dias – Alteração do Estatuto Patrimonial dos Cônjuges e a Responsabilidade por Dividas – págs. 122/123.
[6] P. Lima e A. Varela – C. Civil anotado, Vol. IV, págs. 399; M. Rita A.G. Lobo Xavier- Limites À Autonomia Privada na Disciplina Das Relações Patrimoniais Entre Os Cônjuges – págs. 113/116
[7] Neste sentido, Rita Lobo Xavier – Limitações à autonomia privada na disciplina das relações materiais entre cônjuges, Págs. 222, nota 206, e Castro Mendes, ali citado.
[8] Em sentido idêntico ao decidido V. acórdão do STJ de 06-11-2001, Revista n.º 3285/01 - 1.ª Secção Lopes Pinto (Relator)
[9] V. ASSENTO Nº 4/95 DR Iª SERIE A DE DE17-05-1995, PÁG. 2939 A 2941 - BMJ Nº 445 ANO 1995, PÁG. 67, hoje com valor uniformizador de jurisprudência