Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
1425/17.8T8GDM.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: JORGE SEABRA
Descritores: AUDIÊNCIA PRÉVIA
NULIDADE PROCESSUAL
REGIME DE ARGUIÇÃO DA NULIDADE
Nº do Documento: RP201811051425/17.8T8GDM.P1
Data do Acordão: 11/05/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Indicações Eventuais: 5ª SECÇÃO, (LIVRO DE REGISTOS N.º683, FLS.333-345)
Área Temática: .
Sumário: I - A realização da audiência prévia é tendencialmente obrigatória, porquanto, por um lado, só em casos contados a lei permite que ela não se realize (artigo 592º, do CPC) e, por outro, só nas hipóteses contempladas no artigo 593.º do mesmo diploma fica ao critério do juiz dispensar a sua realização.
II - O juiz não pode dispensar a realização da audiência prévia quando se proponha julgar de mérito no despacho saneador, seja conhecendo (total ou parcialmente) do mérito do pedido, seja julgando procedente uma excepção peremptória.
III - A não realização de audiência prévia nos casos em que a mesma deve ter lugar e não pode ser dispensada gera uma nulidade que influi no exame e decisão da causa (artigo 195º, n.º 1, do CPC).
IV - Mostrando-se a decisão de dispensar a audiência prévia fora do respectivo condicionalismo legal coberta e sancionada pelo despacho saneador - sentença subsequente, a consequente nulidade pode ser arguida tempestivamente no recurso a interpor do despacho - saneador.
V - A circunstância de o apelante ter oferecido alegações por escrito na sequência do despacho que dispensou a audiência prévia não constitui declaração que permita afirmar, em termos concludentes e com grande probabilidade (artigo 217º, n.º 2 do Cód. Civil), que o apelante renunciou ao direito de arguir a nulidade decorrente da preterição da audiência prévia no âmbito do recurso que venha eventualmente a interpor do despacho saneador - sentença subsequente.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo n.º 1425/17.8T8GDM.P1 - Apelação
Origem: Juízo Local Cível de Gondomar – Juiz 1.
Relator: Des. Jorge Seabra
1º Adjunto: Des. Maria de Fátima Andrade
2º Adjunto: Des. Fernanda Almeida
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Sumário (elaborado pelo Relator):
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Acordam, em conferência, no Tribunal da Relação do Porto:
I. RELATÓRIO:
1. Herança Indivisa por óbito de B… e C…, representada pela cabeça-de-casal C…, residente na Rua …, n.º …, …, …. – … Porto, intentou a presente acção de despejo sob a forma de processo comum contra D…, residente na Rua …, n.º .., …. - …, Porto, pedindo que seja decretada a resolução do contrato de arrendamento celebrado entre ambas e, ainda, que seja a Ré condenada a pagar as rendas vencidas desde 1.12.2017 e as vincendas ou, se assim não se entender, as rendas vencidas desde 1.12.2017 e, desde a data da resolução operada extrajudicialmente (a 16.12.2017) até à data da entrega efectiva do imóvel, uma indemnização mensal equivalente à renda actual (de € 505, 61).
Subsidiariamente, peticionou, ainda, que seja decretada a resolução do contrato de arrendamento por incumprimento do mesmo por parte da Ré (violação dos seus deveres de conservação e manutenção do arrendado) nos termos do disposto no artigo 1084º, n.º 1 do Cód. Civil, sendo a Ré condenada a proceder à imediata desocupação do imóvel locado, entregando-o livre de pessoas e bens e, ainda, no pagamento das rendas vencidas desde 1.12.2016 e vincendas até efectiva entrega.
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2. Regularmente citada, a ré apresentou contestação impugnando parcialmente a factualidade alegada pela Autora, negando o alegado atraso no pagamento no pagamento da renda conforme o convencionado entre as partes e o alegado incumprimento dos seus deveres de conservação e manutenção do arrendado, concluindo, a final, pela improcedência da acção e, ainda, pela condenação da Autora como litigante má-fé em multa e indemnização a seu favor nunca inferior a €1.000,00.
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3. A Autora respondeu através do articulado de fls. 81 a 84, pedindo o despejo imediato, atenta a confissão vertida no artigo 3º da contestação no sentido de que à data da notificação por si realizada a Ré tinha duas rendas em atraso, pugnando pela imediata decisão sobre o mérito da causa e, quanto à sua alegada má-fé impugnou a versão da Ré e concluiu no sentido da condenação desta última na qualidade de litigante de má-fé em multa e indemnização a seu favor.
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4. Após vicissitudes várias no processo, foi proferido o despacho a fls. 127, a comunicar às partes a decisão do Tribunal de que os autos se encontram instruídos de todos os elementos necessários à apreciação do mérito da causa nesta fase processual de prolação de despacho saneador e a conceder às mesmas uma derradeira oportunidade para se pronunciarem sobre o mérito da causa.
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5. A Ré veio a pronunciar-se a fls. 128-131, mantendo a sua posição, qual seja a da improcedência da acção, ao passo que a Autora, ao invés, tomou posição a fls. 132-134, pugnando pela procedência da causa.
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6. Nesta sequência, mediante despacho autónomo, foi proferido despacho saneador - sentença que julgou procedente, por provada, a acção instaurada, declarando resolvido o contrato de arrendamento referido nos autos, condenando, em consequência, a Ré a despejar o arrendado, entregando-o livre de pessoas e bens e, ainda, a pagar à Autora as rendas vencidas e vincendas na pendência da acção, que ainda não tenham sido pagas, até à entrega efectiva do imóvel.
Mais, ainda, se julgaram improcedentes os incidentes de litigância de má - fé deduzidos nos autos, seja pela Autora, seja pela Ré.
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7. Inconformada com a sentença, dela interpôs recurso de apelação a Ré, em cujo âmbito ofereceu alegações, e deduziu, a final, as seguintes
CONCLUSÕES
a) É interposto recurso da sentença proferida pelo tribunal a quo, o qual declarou resolvido o contrato de arrendamento existente entre Recorrente e Recorrida;
b) Contudo, a Recorrente não se pode conformar com a sentença proferida,
c) Atendendo que a mesma enferma de nulidade, ao abrigo do disposto no art.º 195º do CPC;
d) Verificou-se o incumprimento de várias formalidades legalmente prescritas e que, em boa verdade, influenciam o exame e a decisão da causa;
e) Desde logo, violou o tribunal a quo uma das formalidades da Audiência Prévia e prescrita na al. a) do n.º 1 do art.º 591.º do CPC;
f) Nestes termos, a decisão de não realização da Audiência Prévia, aqui em apreço é nula, por violação do princípio do contraditório;
g) O Tribunal recorrido decidiu sobre o mérito da causa sem facultar às partes a discussão da matéria de facto e de direito;
h) Ora, a audição das partes quanto à matéria de facto e de direito constitui uma formalidade legalmente imposta pelo artigo 591.º n.º 1 al. b) do C.P.C., cuja violação acarreta a nulidade da decisão o que, desde já se invoca, com todas as consequências legais daí decorrentes;
i) Pelo que se reitera que foi violado um dos mais elementares princípios processuais: princípio do contraditório consagrado no artigo 3.º n.º 3 do CPC;
j) Face ao exposto, não restam dúvidas de que a prolação da decisão final é proferida com preterição de uma formalidade essencial e, que se encontra prescrita na lei, ou seja, foi a mesma efetuada sem que as partes tivessem oportunidade de se pronunciar em relação às questões de facto e de direito;
k) Em face disso e, uma vez que a omissão de tal formalidade influi no exame ou na decisão da causa, tal decisão é nula, atenta a violação do art.º 3º n.º 3 e do art.º 591, n.º 1, al. b) ambos do CPC;
l) Porquanto, entende-se que a douta a sentença recorrida deve ser revogada;
m) Sem prescindir, sempre se dirá, que a decisão recorrida enferma de nulidade, nos termos do art. 615º nº 1 d) do CPC;
n) A Recorrente, conforme foi alegado e comprovado nos presentes autos, sofre da doença de Alzheimer, a qual é incapacitante do ponto de vista da gestão do seu dia-a-dia.
o) Deste modo, conforme a Doença de Alzheimer vai afetando as várias áreas cerebrais vão-se perdendo certas funções ou capacidades.
p) O que se verifica no caso sub judice!!
q) Contudo, o Tribunal a quo na sentença recorrida apesar de reconhecer que “O estado de saúde da Ré … não lhe permite organizar a sua vida de forma a pagar tempestivamente a renda,” o mesmo “não releva juridicamente”.
r) Dúvidas não há que, para além da interpretação da lei tal como ela se encontra prevista, devemos ter em consideração os factos que lhe deram origem.
s) Pois, o atraso no pagamento das rendas, como resulta dos autos, não é constante.
t) O que demonstra, efetivamente, que a Recorrente por vezes se mostra capaz de gerir os atos correntes do seu dia-a-dia,
u) Mas momentos há em que não revela tal capacidade.
v) Porquanto, encontrando-se a Recorrente com uma incapacidade acidental, fruto da doença que lhe foi diagnosticada,
w) É imperioso dizer-se que, à data da comunicação enviada pela Recorrida para resolução do contrato de arrendamento pelo facto da Recorrente estar em mora, a Recorrente não teve a capacidade necessária para entender a referida declaração;
x) Tanto mais que, se tivesse percebido o teor da declaração recebida teria, de imediato, agido em conformidade,
y) Isto é, teria colocado fim à mora, dentro dos prazos legalmente fixados;
z) Aliás, tanto não entendeu o teor e o alcance da referida declaração, leia-se comunicação da resolução do contrato de arrendamento, que continuou a pagar as rendas que, entretanto, se foram vencendo;
aa) A Recorrente tinha para si que tinha as rendas em dia;
bb) O facto da Recorrida não emitir recibos de renda também dificulta a tarefa da Recorrente para controlar os pagamentos;
cc) Em face do exposto, e não estando a Recorrente capaz de perceber e gerir todos os atos da sua vida quotidiana, a comunicação de resolução do contrato de arrendamento deve ser anulada, nos termos do art. 257º do C.C.;
dd) E, pelas razões supra aduzidas, mais uma vez se reitera que a concretização da audiência de julgamento era fundamental para que fosse feita prova relativamente a este ponto essencial, do ponto de vista da Recorrente;
ee) Apesar do Tribunal a quo entender “juridicamente irrelevante”!!!;
ff) Ademais, a Recorrida ao enviar a referida comunicação de resolução do contrato de arrendamento no dia 12 de janeiro de 2017, a qual foi rececionada a 16 de janeiro de 2017, bem sabia que se o fizesse a 22 de janeiro, a título de exemplo, já não teria duas rendas em atraso,
gg) Uma vez que vinha sendo uso/costume por parte da Recorrente realizar o pagamento por volta do dia 20 de cada mês, conforme comprovativos de pagamento já juntos aos autos;
hh) Pelo que, o exercício do direito de resolver o contrato de arrendamento por parte da Recorrida foi claramente abusivo, nos termos do art. 334º do C.C.;
ii) “O abuso de direito – art. 334º do Código Civil – traduz-se no exercício ilegítimo de um direito, resultando essa ilegitimidade do facto de o seu titular exceder manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito.” – Ac. STJ de 28/06/2007, in www.dgsi.pt.
jj) O que, nos presentes autos, se consubstanciou no exercício de um direito cujos limites foram manifestamente para lá dos impostos pelo fim social, o qual é gravemente atentatório daquele;
kk) De salientar que “não se exige que o titular do direito tenha consciência de que o seu procedimento é abusivo, não sendo necessário que tenha a consciência de que, ao exercer o direito, está a exceder os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes e pelo seu fim social ou económico, basta que objectivamente esses limites tenham sido excedidos de forma evidente, assim se acolhendo a concepção objectiva do abuso do direito” (Ac. STJ de 28/06/2007);
ll) De acordo com o texto fundamental do ordenamento jurídico português todos têm direito a uma habitação (art. 65º nº 1 da CRP);
mm) Destarte, a atuação da Recorrida foi exatamente no sentido contrário ao consagrado na CRP.
nn) Usando de meios legais, mas claramente abusivos, para obter o seu propósito: despejar a Recorrente!!;
oo) Cumpre, ainda, relembrar que no decorrer dos presentes autos foi publicada uma lei que altera o regime do arrendamento urbano, mais precisamente a Lei 43/2017, de 14 de junho;
pp) A referida lei veio introduzir, entre outras coisas, uma alteração ao regime previsto no art. 1083º nº 3 do C.C.,
qq) Precisamente o regime que estabeleceu a possibilidade do senhorio poder resolver o contrato em caso de mora do inquilino igual ou superior a três meses,
rr) Ou seja, voltamos ao regime vigente antes da entrada em vigor do NRAU.
ss) Ora, com a atual redação do artigo 1083º nº 3 do Código Civil voltamos a ter a preocupação social no centro das atenções do legislador, assistindo-se a um aumento da proteção dada ao arrendatário.
tt) Nessa conformidade, com o devido respeito por opinião diversa, também o tribunal a quo andou mal quando não teve em consideração a referida alteração.
uu) De acordo com o art. 12º do C.C., por princípio a lei só dispõe para o futuro.
vv) Porém, no nº 2 do citado artigo, na sua 2ª parte, encontra-se preceituado que quando a lei dispõe sobre o conteúdo das relações, a lei nova aplicar-se-á às situações jurídicas constituídas anteriormente, desde que subsistam à data da sua entrada em vigor, ou cujos efeitos subsistam ou estejam ainda em curso à data do início de vigência da nova lei.
ww) O que sucede no caso sub judice.
xx) Recorrendo aos ensinamentos do Prof. Baptista Machado, in “Sobre a aplicação no tempo do novo Código Civil,1968”, aí se pode ler que “há duas categorias de normas: as que regulam factos e as que regulam direitos.
yy) As primeiras são fixadas por leis que simplesmente determinam os efeitos, isto é, as consequências jurídicas, incluindo o efeito constitutivo de um facto, normas estas que, em caso de dúvida, só valem para o futuro (1ª parte do nº 2 do art. 12º do C.C.).
zz) As segundas, são estabelecidas por leis que regulam direitos, independentemente dos respectivos factos constitutivos e, no que a estas diz respeito, deve presumir-se que abrangem as próprias situações já existentes, podendo modificar-lhes o conteúdo ou até suprimi-lo (2ª parte do nº 2 do art. 12º do C.C.).”
aaa) Ainda sobre a temática da aplicação das leis no tempo escreve V. Gama Lobo Xavier in Revista de Direitos e de Estudos Sociais, ano XIV, um artigo intitulado "Sobre a aplicação do art. 830º, 1º, do novo Código Civil aos contratos-promessa celebrados anteriormente à sua vigência", que parece esclarecedor para sustentar a posição da Ré:
bbb) "Como é sabido, dois interesses conflituantes há fundamentalmente a ter em conta em qualquer problema de aplicação das leis no tempo. Por um lado, o interesse público inerente à regulamentação introduzida pela lei nova, que se presume ser a melhor, interesse que reclama a aplicação imediata da nova lei ao maior número possível de situações.
ccc) Por outro, o interesse da certeza jurídica, do respeito das justas expectativas dos particulares criadas à sombra de determinada lei - interesse, este último, que justifica restrições mais ou menos latas à aplicação imediata e condicionada da nova regulamentação.
ddd) Conforme, em dada espécie, uma justa ponderação atribua mais ou menos peso a um ou outro destes interesses, assim o problema é de resolver pela aplicação ao caso da lei nova ou pela sua sujeição à disciplina jurídica anterior".
eee) Porquanto, e com o devido respeito, in casu deve aplicar-se a nova redacção do art. 1083º nº 3 do C.C. introduzida pela L43/2017, de 14 de junho;
fff) Uma vez que devem prevalecer os interesses da aqui Ré,
ggg) Os quais estão intrinsecamente ligados ao princípio da estabilidade habitacional, princípio este constitucionalmente consagrado;
hhh) Impõe-se, ainda, relembrar que a Recorrente tem mais de 70 anos de idade e sofre de doença de alzheimer;
iii) Pelo que, é evidente que, por mais esta razão, o interesse da Ré na manutenção do contrato de arrendamento deve ser protegido.
Concluiu, assim, a apelante pelo provimento do recurso e consequente revogação da sentença recorrida por violação do princípio do contraditório ou, se assim não se entender, deve julgar-se a presente acção improcedente.
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8. A Autora ofereceu contra-alegações nas quais sustentou que é intempestivo o recurso por preclusão do direito de reclamar das nulidades invocadas ou, se assim não se entender, improcedentes as alegações e conclusões formuladas por preclusão (também) do direito de apresentar “ nova defesa ”, nomeadamente o abuso de direito da Recorrida, com a consequente confirmação da sentença recorrida.
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9. Foram cumpridos os vistos legais.
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II. DELIMITAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO:
O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente, não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso - artigos 635º, n.º 3, e 639º, n.ºs 1 e 2, do novo Código de Processo Civil, na redacção emergente da Lei n.º 41/2013 de 26.06 [doravante designado apenas por CPC].
Por outro lado, ainda, sem prejuízo das matérias de conhecimento oficioso, o tribunal de recurso não pode conhecer de questões não antes suscitadas pelas partes em 1ª instância e, por isso, não apreciadas na decisão proferida, sendo que a instância recursiva, tal como configurada no sistema de recursos vigente no nosso Código de Processo Civil, não se destina à prolação de novas decisões judiciais, mas ao reexame ou à reapreciação pela instância hierarquicamente superior da decisão proferida em 1ª instância, em função das questões oportunamente suscitadas pelas partes (nos seus articulados) e dos fundamentos da própria decisão recorrida. [1]
Por conseguinte, as questões a decidir no presente recurso, em função das conclusões recursivas e segundo a sua sequência lógica, são as seguintes:
i. Nulidade da sentença proferida por via da não realização de audiência prévia prescrita na alínea a) do n.º 1 do artigo 591º, do CPC;
ii. Nulidade da sentença por omissão de pronúncia – artigo 615º, n.º 1 al. d), do CPC.
iii. Do mérito da sentença recorrida.
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III. FUNDAMENTAÇÃO de FACTO:
O Tribunal de 1ª instância julgou provados os seguintes factos:
a) Encontra-se descrito na Conservatória do Registo Predial de Gondomar, freguesia de … (…), sob o n.º …./………, o prédio urbano situado em … (…), na rua …, com a área total de 128 m2, com a área coberta de 73 m2, com a área descoberta de 55 m2, composto de casa de rés - do - chão, andar, com sótão e logradouro, inscrito à matriz sob o artigo 5771.º.
b) O facto aquisitivo sem determinação de parte ou direito relativo ao prédio identificado em a), encontra-se registado a favor da Cabeça - de - casal que representa nestes autos a herança aberta por óbito de B… e da herança aberta por óbito de C…, do outro herdeiro E… e da outra herdeira F… sob a AP. 34 de 2000/01/10.
c) Por contrato de arrendamento celebrado em 21 de outubro de 1968, entre B…, na qualidade de senhorio e, G…, na qualidade de inquilino, foi declarado que “(…) fazem o presente contrato de arrendamento relativo ao prédio sito na Rua …, .. – …, da Freguesia …, inscrito na Matriz sob o artigo omisso com as cláusulas seguintes: 1.ª – Este arrendamento é pelo prazo de um ano, a começar em 1 de Novembro de 1968 e a terminar no último dia do mês de Outubro de 1969 considerando-se prorrogado por igual período nas mesmas condições, enquanto por qualquer das partes, não houver despedida com a antecipação legal. 2.ª – A renda mensal de ESC.1.500$00 e anual de 18.000$00 deverá ser paga em casa do senhorio, ou do seu representante, no primeiro dia útil do mês anterior ao que disser respeito. 3.ª O prédio, ou parte do prédio, aqui arrendada destina-se a habitação do arrendatário, não podendo este sublocar ou ceder por qualquer outra forma os direitos deste arrendamento, sem consentimento por escrito do senhorio e devidamente reconhecido (…) ” (sublinhado provindo da sentença proferida em 1ª instância).
d) A Ré sucedeu na posição de arrendatária no contrato identificado em c) relativamente a G….
e) A Autora enviou uma missiva com data de 12/01/2017, que a Ré recebeu na data de 16/01/2017, com o seguinte teor “(…) ASSUNTO: DESPEJO – resolução do contrato de arrendamento Exma. Senhora, Na qualidade de Cabeça de Casal da herança aberta por óbito de B… e esposa, C…, senhoria do locado sito na Rua …, .., …. - … Porto, Inscrito na matriz predial urbana da freguesia de …, sob o n.º 5771, venho informar V. Exa. que, em face da mora no pagamento da rendas por um período superior a dois meses, decidi, nos termos do nº 3, do art. 1083º e do nº 2 do art. 1084º, ambos do Código Civil, proceder à resolução do contrato de arrendamento, celebrado em 21 de outubro de 1968, com efeitos a partir da data em que V. Exa. for notificada, devendo o locado ser desocupado e entregue livre de pessoas e bens no decurso de um mês a contar desta resolução. Mais informa que estão em falta as rendas referentes aos meses de dezembro e janeiro, num total de 1011,22€ que só aceitarei com a multa legal de 50% no valor de 505,61€ caso não queira ver este contrato resolvido, pelo que a dívida total é de 1516,83€ ”.
f) A Ré pagou a renda respeitante ao mês de dezembro de 2016 no dia 22 de janeiro de 2017.
g) A Ré pagou a renda respeitante ao mês de janeiro de 2017 no dia 20 de fevereiro de 2017.
h) A Ré pagou a renda respeitante ao mês de fevereiro de 2017 no dia 20 de março de 2017.
i) A Ré pagou a renda respeitante ao mês de maio de 2017 no dia 19 de junho de 2017.
j) A Ré pagou a renda referente ao mês de junho de 2017 no dia 23 de julho de 2017.
k) A Ré paga as suas rendas por volta do dia 20 de cada mês com conhecimento e anuência da Autora.
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IV. FUNDAMENTAÇÃO JURÍDICA:
IV.I. Nulidade da sentença – Dispensa de Audiência Prévia:
A primeira questão que importa, em termos liminares, conhecer é da nulidade do despacho saneador-sentença proferido nos autos por preterição da audiência prévia prevista no artigo 591º do CPC, pois que, procedendo a nulidade em causa, o conhecimento das demais questões suscitadas pela apelante e que acima se resumiram em sede de delimitação do objecto do recurso ficará, logicamente, prejudicado.
Como resulta do relatório supra, o tribunal recorrido proferiu despacho a dispensar a audiência prévia e, logo em seguida, após o pronunciamento das partes, exarou despacho saneador sentença.
Permite o n.º 2 do artigo 590º do CPC que, findos os articulados, o juiz profira despacho pré-saneador com uma das finalidades previstas nas alíneas a) a c).
Não havendo lugar a tal despacho ou concluídas as diligências do mesmo resultantes, é convocada audiência prévia destinada a algum ou alguns dos fins previstos nas diversas alíneas do nº 1 do artigo 591º do mesmo diploma legal, nomeadamente, facultar às partes a discussão de facto e de direito, nos casos em que ao juiz cumpra apreciar excepções dilatórias ou quando tencione conhecer imediatamente, no todo ou em parte, do mérito da causa [alínea b)], ou proferir despacho saneador, nos termos do n.º 1 do artigo 595º [al. d)].
O artigo 592º do CPC determina em termos claros quais os casos em que não há lugar a audiência prévia:
a)-nas acções não contestadas que tenham de prosseguir em obediência ao disposto nas als. b) a d) do artigo 568º;
b)-ou quando, havendo o processo de findar no despacho saneador pela procedência de excepção dilatória, esta já tenha sido debatida nos articulados.
Prevê o artigo 593.º que nas acções que hajam de prosseguir, o juiz possa dispensar a audiência prévia, quando esta se destine apenas aos fins indicados nas alíneas d), e) e f) do n.º 1 do artigo 591º- ou seja, quando se destine, apenas, a proferir despacho saneador, a determinar adequação formal, simplificação ou agilização processual, ou a identificar o objecto do litígio e a enunciar os temas da prova-, caso em que, nos 20 dias subsequentes ao termo dos articulados, profere despacho nos termos do n.º 2 do mesmo normativo, podendo as partes requerer a realização da audiência prévia se pretenderem reclamar do despacho na parte em que determinou adequação formal, simplificação ou agilização processual, ou identificou o objecto do litígio e enunciou os temas da prova, em conformidade com o n.º 3 do citado dispositivo.
Define o artigo 595º, n.º 1, do CPC quais os fins a que se destina o despacho saneador: a) conhecer das excepções dilatórias ou nulidades processuais que hajam sido suscitadas pelas partes, ou, que, face aos elementos constantes dos autos, deva apreciar oficiosamente; b) conhecer imediatamente do mérito da causa, sempre que o estado do processo permitir, sem necessidade de mais provas, a apreciação total ou parcial, do ou dos pedidos deduzidos ou de alguma excepção peremptória.
Da Exposição de Motivos da Proposta de Lei nº 113/XII pode extrair-se: “A audiência prévia é, por princípio, obrigatória, porquanto só não se realizará nas acções não contestadas que tenham prosseguido em regime de revelia inoperante e nas acções que devam findar no despacho saneador pela procedência de uma excepção dilatória, desde que esta tenha sido debatida nos articulados. No que respeita aos seus fins, a audiência prévia tem como objecto: (i) a tentativa de conciliação das partes; (ii) o exercício de contraditório, sob o primado da oralidade, relativamente às matérias a decidir no despacho saneador que as partes não tenham tido a oportunidade de discutir nos articulados; (iii) o debate oral, destinado a suprir eventuais insuficiências ou imprecisões na factualidade alegada e que hajam passado o crivo do despacho pré-saneador; (iv) a prolação de despacho saneador, apreciando excepções dilatórias e conhecendo imediatamente, no todo ou em parte, do mérito da causa; (v) a prolação, após debate, de despacho destinado a identificar o objecto do litígio e a enunciar os temas da prova.
Do que fica dito, colhe-se, sem margem para dúvidas, que a realização da audiência prévia é tendencialmente obrigatória, porquanto, por um lado, só em casos muito contados a lei permite que ela não se realize (previstos no artigo 592º) – casos esses que, como é indiscutido, não se verificam na situação dos autos - e, por outro, só nas hipóteses contempladas no artigo 593º, n.º 1, fica ao critério do juiz dispensar a sua realização.
A este propósito refere Paulo Pimenta [2] que a audiência prévia assume-se como um dos momentos mais marcantes da acção declarativa, visando assegurar, com efectividade, a aproximação entre as partes, e estas e o tribunal, através de uma cultura de diálogo. Tal diálogo só será proveitoso se todos forem preparados para o mesmo e acrescenta: “ Ora, essa preparação supõe que as partes e seus mandatários saibam o que vai acontecer, o que vai discutir-se, o que vai tratar-se na audiência prévia. Disso devem ser informados pelo despacho que marca a audiência. O mesmo é dizer que o juiz deve ter o cuidado e o rigor de indicar, expressamente, o objecto da audiência prévia, tanto mais que, podendo, em abstracto, a audiência prévia cumprir diversas finalidades, há que definir quais as finalidades a considerar em cada concreto processo.“
Refere ainda aquele autor que, “quando o juiz, findo o período dos articulados e considerando o estado do processo, entender que dispõe de condições para decidir já o mérito da causa, decisão que, a ter lugar, será incluída no despacho saneador, a proferir, em princípio, nessa audiência [artigos 591º, n.º 1, al. d), 595º, n.º 1, al. b) e 595º, n.º 2, todos do CPC], a audiência prévia será então destinada a facultar às partes uma discussão sobre as vertentes do mérito da causa que o juiz projecta decidir. “ [3] Mais refere ainda que “deve ser proporcionada às partes a possibilidade de produzirem alegações quando o juiz se proponha decidir o mérito da causa num enquadramento jurídico diverso do assumido e discutido pelas partes nos articulados. “ (sublinhado nosso).
Tal solução impede que as partes venham a ser confrontadas com uma decisão que, provavelmente, não esperariam fosse já proferida, isto é, evita-se uma decisão-surpresa (artigo 3º, n.º 3, do CPC). Depois, são acautelados os casos em que a anunciada intenção de conhecimento imediato do mérito da causa derive de alguma precipitação do juiz, tanto mais que não é frequente a possibilidade de, sem a produção de prova, ser proferida já uma decisão final. Desse modo, a discussão entre as partes tanto poderá confirmar como infirmar a existência de condições para o tal conhecimento imediato do mérito. [4]
Também J. Lebre de Freitas segue, quanto a este aspecto, entendimento semelhante quando refere que, propondo-se o juiz conhecer imediatamente do mérito da causa, mediante resposta, total ou parcial, ao pedido (ou pedidos) nela deduzidos, deve convocar a audiência prévia para esse fim; não pode julgar de mérito no despacho saneador sem primeiro facultar a discussão, em audiência, entre as partes. [5] (sublinhado nosso)
As situações de não realização da audiência prévia constam do artigo 592º e nelas não cabem, com toda a evidência, a presente acção que conheceu de mérito no despacho saneador.
A dispensa de audiência prévia carece de preencher os requisitos previstos no artigo 593º, desde logo que a acção haja de prosseguir. Só neste caso o juiz pode dispensar a realização daquela audiência, contanto que se destine apenas aos fins indicados nas alíneas d), e) e f) do n.º 1 do artigo 591º. O conhecimento da totalidade do mérito não é de considerar para efeitos do art.º 593º, pois não satisfaz o primeiro requisito da norma habilitadora da dispensa: “acções que hajam de prosseguir.“[6]
Na doutrina, e além da já citada, defende também Ferreira de Almeida que “ Uma vez executado o despacho pré-saneador (ou seja, uma vez concluídas as diligências resultantes do preceituado no n.º 3 do art.º 590º - correcção das irregularidades formais dos articulados), ou, não tendo a ele havido lugar, logo que o processo lhe seja feito concluso, após a fase dos articulados, o juiz, observado o preceituado pelo art.º 151º e ss., designa dia para a audiência prévia indicando o seu objecto e finalidade de entre os constantes do n.º 1 do art.º 591º, a realizar num dos 30 dias subsequentes, salvo se ocorrer algum das hipóteses previstas no art.º 592º (em que a mesma não pode ex lege realizar-se) ou no art.º 593º (em que o juiz a entenda dispensável).
Conforme a exposição de motivos da Reforma de 2013, «a audiência prévia é, por princípio, obrigatória. Porquanto só não se realizará: - nas acções não contestadas que tenham prosseguido em revelia de revelia inoperante; - nas acções que devam findar no despacho saneador pela procedência de uma excepção dilatória, desde que esta tenha sido debatida nos articulados» (sic). E obviamente que também não se realizará no caso de revelia absoluta (operante) do réu, hipótese em que haverá lugar ao julgamento abreviado previsto no artº. 567º, por reporte ao art.º 56º. “ [7]
Esta tem sido também a posição que vem sendo assumida por esta Relação de que são exemplos o AC RP de 24.09.2015, relator JUDITE PIRES, AC RP de 12.11.205, relator FILIPE CAROÇO, AC RP de 27.09.2017, relator ARISTIDES RODRIGUES de ALMEIDA, todos disponíveis in www.dgsi.pt ou, ainda, o AC RP de 12.07.2017, proferido no Processo n.º 1056/14.2T2AVR.P1, em que foi relator MANUEL DOMINGOS FERNANDES e em que interviemos como 2 º Juiz Adjunto.
É certo que, no caso dos autos, antes da prolação do saneador sentença o tribunal recorrido exarou despacho onde dispensou a realização da audiência prévia, invocando, para tanto, o teor do sumário do acórdão desta Relação de 12.11.2015 (antes citado), assim como invocou que os “ autos se encontram instruídos de todos os elementos necessários para a apreciação e decisão do mérito da causa, uma vez que todos os factos necessários para a sua apreciação se encontram assentes, inexistindo matéria controvertida que tenha de ser submetida a julgamento “ e, ainda, que “ apenas se encontra em discussão a subsunção jurídica a dar aos factos assentes “, concedendo a “ palavra às partes nos termos do citado artigo 3º, n.º 3, para «uma derradeira oportunidade para as partes discutirem o mérito da causa».“
Acontece que esse despacho não supre, como é evidente, as finalidades da audiência prévia.
Com efeito, o tribunal recorrido, no referido despacho, limita-se a dizer que é sua intenção, por o processo conter todos os elementos necessários, proferir decisão final, dispensando, para tanto, a realização de audiência prévia, quando, como já se expôs, não devendo a acção prosseguir (ou seja, estando em condições de conhecer-se do mérito da causa logo após os articulados), não pode haver lugar, em nosso entender, a dispensa de audiência prévia.
Todavia, em face de tal despacho, tem de perguntar-se qual era o sentido decisório que o Tribunal tinha em mente vir a proferir?
Quais os seus fundamentos factuais?
E qual a sua subsunção jurídica?
É que não se fazendo essa enunciação, mesmo em termos sumários, no despacho em apreço, coloca-se a questão de saber que contraditório as partes estavam em condições de exercer de forma fundada?
Ora, é a audiência prévia que se destina a facultar às partes uma discussão sobre as vertentes do mérito da causa que o juiz projecta decidir (o que há-de, em termos sumários, de ser exposto aos Mandatários das partes presentes à diligência em causa) sendo que, como supra se referiu, a discussão entre as partes tanto poderá confirmar como infirmar a existência de condições para tal conhecimento imediato.
É que, a decisão de mérito proferida, nos termos em que o foi, constituiu para as partes uma decisão-surpresa, proibida nos termos do artigo 3º, n.º 3, e em violação do artigo 591º, n.º 1, al. b), na estrita medida em que, sabendo obviamente as partes que o Tribunal iria decidir do mérito da causa, já não sabiam (em face do despacho de dispensa de audiência proferido) qual o sentido decisório tido em mente pelo Tribunal, quais os factos que seriam tidos como relevante e por provados e qual a subsunção jurídica essencial que o Tribunal tinha em mente para efeitos decisórios.
Na verdade, e ao contrário do que parece ser o entendimento perfilhado na decisão recorrida, quando o artigo 593º, n.º 2 al. b), do CPC, consente a dispensa de audiência prévia e a prolação de despacho saneador nos termos do n.º 1 do artigo 595º, é no pressuposto de que a acção haverá de prosseguir, como resulta da condição prevista na primeira parte do n.º 1 do mesmo artigo 593º do CPC.
Se a acção não tiver de prosseguir, por o Tribunal entender que está habilitado para decidir de mérito de todo ou parte do pedido, já não funciona a norma do artigo 593º, como é manifesto, antes funcionando a norma do artigo 591º, norma esta que estabelece a regra ou princípio geral, qual seja o de que a audiência prévia – não devendo os autos prosseguir – é obrigatória, ali se permitindo às partes a discussão de facto e de direito.
Dito de outro modo, e como se refere no Acórdão desta Relação de 27.09.2017 (já citado) e conforme também já se decidiu no Acórdão desta Relação de 12.07.2017 (em que interviemos como 2º Juiz Adjunto), a não realização de audiência prévia nos casos em que ela deve ter lugar (como é o caso dos autos, pois que não é possível ao juiz dispensar a audiência prévia quando pretenda conhecer do mérito da causa após o termo dos articulados em conformidade com o n.º 1 do artigo 593º, do CPC) gera uma nulidade processual – um desvio ao formalismo legal prescrito na lei (artigo 195º, n.º 1, do CPC) -, não obstando a isso a circunstância de previamente à decisão o juiz ter anunciado às partes que se julgava em condições de decidir de mérito e de lhes ser concedida, sem mais, isto é, sem qualquer fundamentação de facto e de direito, ainda que sumária (que lhes permita antever qual o quadro factual e jurídico tido em vista pelo Tribunal para efeitos decisórios), prazo para, querendo, se pronunciarem sobre o mérito da causa.
Por conseguinte, em nosso ver, a preterição daquela formalidade processual constitui a omissão de um acto prescrito na lei que influiu, como é evidente, no exame e decisão da causa (artigo 195º, nº 1. do CPC). [8]
Coloca-se, no entanto, a questão de saber se o vício em causa pode ser reconhecido e declarado nesta instância, sendo certo que quer a apelada nas suas contra-alegações, quer a Srª Juiz a quo no despacho de admissão do recurso colocam a questão de tal nulidade dever ter sido arguida pela apelante no prazo de 10 dias após a notificação do despacho que dispensou a realização da audiência prévia.
Com efeito, como é consabido, por princípio, das nulidades cabe reclamação, em conformidade com o aforismo segundo o qual dos despachos recorre-se e das nulidades reclama-se.
Importa, pois, questionar se a nulidade denunciada podia ser suscitada por via de recurso, ou se devia antes ser objecto de reclamação perante o tribunal onde o vício se consumou.
Como já referia Alberto dos Reis [9] “ a arguição da nulidade só é admissível quando a infracção processual não está ao abrigo de qualquer despacho judicial; se há um despacho a ordenar ou autorizar a prática ou omissão do acto ou formalidade, o meio próprio para reagir contra a ilegalidade que se tenha cometido, não é a arguição ou reclamação por nulidade, é a impugnação do respectivo despacho pela interposição do recurso competente.“
Idêntica solução defendia Manuel de Andrade ao salientar que “ se a nulidade está coberta por uma decisão judicial que ordenou, autorizou ou sancionou, expressa ou implicitamente, a prática de qualquer acto que a lei impõe, o meio próprio para a arguir não é a simples reclamação, mas o recurso competente a interpor e a tramitar como qualquer outro do mesmo tipo. Trata-se, em suma, da consagração do brocardo: «dos despachos recorre-se, contra as nulidades reclama-se.»”
É este também o ensino de Anselmo de Castro e de Antunes Varela. [10]
Afirma o primeiro que “ se entretanto, o acto afectado de nulidade for coberto por qualquer decisão judicial, o meio próprio de o impugnar deixará de ser a reclamação (para o juiz) e passará a ser o recurso da decisão “, enquanto o segundo refere que ” tradicionalmente entende-se que a arguição da nulidade só é admissível quando a infracção processual não está, ainda que indirecta ou implicitamente, coberta por qualquer despacho judicial; se há um despacho que pressuponha o acto viciado, diz-se, o meio próprio para reagir contra a ilegalidade cometida, não é a arguição ou reclamação por nulidade, mas a impugnação do respectivo despacho pela interposição do competente recurso (…) “ (sublinhados nossos)
No caso em apreço, a nulidade processual cometida (dispensa da audiência fora do condicionalismo legal exigível) está a coberto do saneador-sentença que logicamente se lhe seguiu, que a sancionou e confirmou, pelo que o meio processual próprio para a arguir não era a reclamação do despacho que, antes, dispensou a audiência prévia, podendo, pois, ao invés, o vício em causa ser objecto do recurso desse mesmo saneador-sentença.
Com efeito, a partir do momento em que o despacho anterior (de dispensa de audiência prévia) veio a ser sancionado ou confirmado pelo despacho saneador - sentença subsequente, a parte passou a dispor do direito de invocar essa irregularidade processual/nulidade secundária no próprio recurso a interpor desse mesmo despacho saneador - sentença que pôs termo à causa, não tendo, pois, que dela reclamar.
Desta forma, a conclusão a extrair é, pois, que a invocação da nulidade processual em causa é tempestiva, podendo ser arguida no presente recurso e ser declarada por este Tribunal da Relação.
E não colhe, ainda, em contrário do que sustenta a apelada, o preceituado no artigo 197º, n.º 2 do CPC.
Preceitua este normativo que “ Não pode arguir a nulidade a parte que lhe deu causa ou que, expressa ou tacitamente, renunciou à arguição.“
Ora, com o devido respeito por opinião em contrário, da circunstância de a ré e ora apelante não ter reclamado do dito despacho – sendo que, como já antes se referiu, a apelante não estava compelida a fazê-lo pois que podia sempre arguir a preterição da obrigatória audiência prévia com o recurso do saneador - sentença que a sancionou ou confirmou (e que a apelante sabia, pelo contexto do despacho prévio ora em causa, que iria ser proferido, embora sem conhecer o seu conteúdo decisório e os seus fundamentos) – e ter emitido a sua pronúncia sobre o mérito da causa (na sequência do despacho que dispensou a audiência e convidou as partes a oferecerem as suas alegações) não é possível concluir-se, em termos concludentes ou altamente prováveis, que, através de tal acto processual, a apelante pretendia renunciar à arguição da preterição de tal formalidade legal na sequência da decisão que viesse a ser proferida e que lhe fosse desfavorável.
Com efeito, a declaração tácita tal como consagrada no artigo 217º, n.º 1, do Cód. Civil consiste no “ comportamento pelo qual se deduza com toda a probabilidade a expressão ou a comunicação de algo, embora esse comportamento não tenha sido finalisticamente dirigido à expressão ou à comunicação daquele conteúdo.“ [11]
Em suma, como refere ainda o mesmo autor, de uma declaração expressa, que é finalisticamente dirigida à expressão de certo conteúdo, pode resultar implicitamente uma outra declaração, esta agora tácita, “ desde que, segundo o n.º 1 do artigo 217º, dela se deduza com toda a probabilidade “, ou seja, com grande probabilidade ou segurança.
Em suma, a conduta ou declaração do declarante tem, portanto, que ser, à luz da interpretação que dela faria um declaratário medianamente razoável e perspicaz (artigo 236º, n.º 1, do Cód. Civil), concludente quanto ao sentido que nela se julgue implícito.
Em sentido idêntico, refere ainda Manuel de Andrade [12] que a declaração tácita “ existirá sempre que, conforme os usos da vida, haja quanto aos factos de que se trata toda a probabilidade de terem sido praticados com dada significação negocial (aquele grau de probabilidade que basta na prática para as pessoas sensatas tomarem as suas decisões) – ainda que porventura não esteja absolutamente precludida a possibilidade de outra significação. “
Ora, da circunstância de a ora apelante ter correspondido ao despacho em apreço, oferecendo alegações e nelas pugnando pela improcedência da causa, não é possível extrair, no contexto conhecido pela apelante e revelado pelo despacho em causa (isto é, sem conhecer os precisos fundamentos da decisão que iria ser proferida e o seu sentido), que, com toda a probabilidade ou com grande grau de certeza ou segurança, a mesma renunciou à arguição de tal irregularidade em face da concreta decisão que viesse a ser proferida e na hipótese de a mesma lhe ser desfavorável, sendo certo que só ocorrendo esta última hipótese lhe assistiria legitimidade processual para impugnar a decisão proferida.
E não colhe também, como é evidente, o argumento também invocado pela apelada nas suas contra - alegações, qual seja a de a apelante não ter reclamado do despacho em causa no prazo previsto no artigo 593º, n.º 3 do CPC.
Com efeito, e como já antes se referiu noutro passo desta decisão, a reclamação prevista neste normativo está prevista apenas para a hipótese de a acção prosseguir após o termo dos articulados e ser proferido, em tal contexto, um dos despachos previstos nas alíneas b) a d) do n.º 2 do mesmo artigo, o que não ocorre, manifestamente, no caso dos autos, pois que o saneador - sentença pôs termo à acção após os articulados, conhecendo do mérito dos pedidos e dos incidentes de litigância de má-fé suscitados pelas partes.
Destarte, procedem, nesta parte, as alegações da apelante e com ela o seu recurso, devendo ser anulado o despacho proferido a 30.01.2018 e todos os actos subsequentes, incluindo o despacho saneador - sentença proferido.
Em consequência, fica prejudicado o conhecimento das demais questões suscitadas pela apelante no presente recurso, as quais, como já se referiu, supunham a manutenção do despacho saneador - sentença proferido em 1ª instância, que se mostra anulado pela presente decisão.
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V. DECISÃO:
Pelos fundamentos acima expostos, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação do Porto em julgar a apelação procedente por provada e, em consequência, anulam-se todos os actos subsequentes ao despacho proferido a 30.01.2018, devendo ser exarado outro que designe dia para a realização da audiência prévia para os fins preceituados no artigo 591.º do CPC.
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Custas pela parte vencida a final e na proporção em que o for (artigo 527º, n.º 1, do CPC).
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Porto, 5.11.2018
Jorge Seabra
Fátima Andrade
Fernanda Almeida
(O presente acórdão não segue na sua redacção o Novo Acordo Ortográfico)
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[1] Vide, neste sentido, F. AMÂNCIO FERREIRA, “ Manual dos Recursos em Processo Civil ”, 8ª edição, pág. 147, A. ABRANTES GERALDES, “ Recursos no Novo Código de processo Civil ”, 2ª edição, pág. 92-93.
[2] PAULO PIMENTA, “ Processo Civil Declarativo ”, 2014, pág. 225-226.
[3] PAULO PIMENTA, op. cit., pág. 230.
[4] PAULO PIMENTA, op. cit., pág. 231.
[5] JOSÉ LEBRE de FREITAS, “ A Acção Declarativa Comum ”, 3ª edição, pág. 172.
[6] PAULO RAMOS de FARIA, ANA LUÍSA LOUREIRO, “ Primeiras Notas ao Novo Código de Processo Civil ”, 2ª edição, pág. 535-536.
[7] FRANCISCO MANUEL L. FERREIRA de ALMEIDA, “ Direito Processual Civil ”, 2º volume, 2015, pág. 190.
[8] A lei não fornece uma definição do que se deve entender por “irregularidade que possa influir no exame e decisão da causa”. No sentido de interpretar o conceito o Professor ALBERTO dos REIS tecia as seguintes considerações: “Os actos de processo têm uma finalidade inegável: assegurar a justa decisão da causa; e como a decisão não pode ser conscienciosa e justa se a causa não estiver convenientemente instruída e discutida, segue-se que o fim geral que se tem em vista com a regulação e organização dos actos de processo está satisfeito se as diligências, actos e formalidades que se praticaram garantem a instrução, a discussão e o julgamento regular do pleito; pelo contrário, o referido fim mostrar-se-á prejudicado se se praticaram ou omitiram actos ou deixaram de observar-se formalidades que comprometem o conhecimento regular da causa e portanto a instrução, a discussão ou o julgamento dela.” - Comentário ao Código de Processo Civil, vol. II, pág. 486. Daqui decorre que uma irregularidade pode influir no exame e decisão da causa, se comprometer o conhecimento da causa, a instrução, discussão e julgamento.
[9] J. ALBERTO dos REIS, “ Comentário ao Código de Processo Civil ”, II volume, pág. 507-508.
[10] MANUEL de ANDRADE, “ Noções Elementares de Processo Civil ”, 1979, pág. 183; ANSELMO de CASTRO, “ Direito Processual Civil Declaratório ”, III volume, 1982, pág. 134 e A. VARELA, “ Manual de Processo Civil ”, 2ª edição, pág. 393.
[11] PEDRO PAIS de VASCONCELOS, “ Teoria Geral do Direito Civil ”, 7ª edição, pág. 395-396.
[12] MANUEL de ANDRADE, “ Teoria Geral da Relação Jurídica ”, II volume, 1987, pág. 132.