Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
10189/12.0TBVNG-F.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: ARISTIDES RODRIGUES DE ALMEIDA
Descritores: EXONERAÇÃO DO PASSIVO RESTANTE
CESSÃO DO RENDIMENTO DISPONÍVEL
INÍCIO DA CONTAGEM DE PRAZO
Nº do Documento: RP2020020610189/12.0TBVNG-F.P1
Data do Acordão: 02/06/2020
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA A DECISÃO
Indicações Eventuais: 3ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - O período da cessão de rendimentos é de cinco anos, prazo cuja contagem se inicia com o encerramento do processo de insolvência.
II - Tendo sido proferido, em data anterior a 1 de Julho de 2017, despacho de admissão do incidente mas não se tendo então declarado encerrado o processo, designadamente por haver bens a liquidar, aquele prazo conta-se, nos termos do artigo 6.º, n.º 6, do Decreto-Lei n.º 79/2017, de 30 de Junho, a partir de 1 de Julho de 2017, desde que até essa data o insolvente ainda não tenha cedido ao fiduciário rendimentos.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Recurso de Apelação
ECLI:PT:TRP:2020:10189.12.0TBVNG.F.P1
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Sumário
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Acordam os Juízes da 3.ª Secção do Tribunal da Relação do Porto:

I. Relatório:
Em 26-11-2012, B…, contribuinte fiscal n.º ………, e mulher C…, contribuinte fiscal n.º ………, residentes em …, Vila Nova de Gaia, apresentaram-se à insolvência requerendo em simultâneo a exoneração do passivo restante.
Decretada a insolvência por sentença transitada em julgado, foi proferido, em 24-10-2013, despacho liminar sobre o pedido de exoneração do passivo restante formulado pelos insolventes.
Nesse despacho, entendeu-se que «dos autos não resultam quaisquer elementos que permitam apontar no sentido do preenchimento de qualquer um dos fundamentos de indeferimento liminar previstos no citado artigo 238º», razão pela qual se decidiu «conceder a exoneração do passivo pretendida, desde que se verifiquem as condições que adiante se passarão a enumerar, ou seja, e designadamente, desde que durante os cinco anos subsequentes ao encerramento do processo de insolvência o rendimento disponível que os insolventes venham a auferir, com exclusão do valor dos rendimentos até ao montante correspondente ao montante 1-100,00 €, seja entregue ao fiduciário infra designado, ficando os insolventes cientes que a inobservância da sua parte das condições referidas nas alíneas a) a e), inclusive, do n.º 4 do artigo 239º, os farão incorrer na cessação antecipada de um tal procedimento de exoneração
Os autos prosseguiram os seus termos, com verificação dos créditos, apreensão e liquidação dos bens dos insolventes, prestação de contas e rateio final.
Nesse ínterim, depois de o Fiduciário ter apresentado o primeiro relatório anual previsto no n.º 2 do artigo 240.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas informando não ter recebido dos insolventes qualquer rendimento objecto da cessão, os insolventes vieram, em 18-07-2019, requerer, na parte que aqui interessa, o seguinte:
«9. […] os insolventes entendem que o período de cessão já aconteceu e de facto está esse período terminado;
10. Aliás, iniciam a contagem desse período de cessão, desde que foi exarada nestes autos o despacho inicial de exoneração do passivo restante e nomeação de fiduciário em 24/10/2013 cujo transitou em 12/11/2013 – e no qual vertidos os deveres que lhe foram notificados e publicados em edital;
11. De facto, retira-se que o Senhor Administrador, faz a interpretação de contagem do prazo de cessão, fundado no artigo 6.º n.º 6 do Decreto-Lei n.º 79/2017 de 30/06 que entrou em vigor no dia 01/07/2017;
12. Porém, entendemos, que é deveras uma interpretação injusta, porquanto, os insolventes, potenciando o seu renascimento financeiro suscitaram a presente insolvência;
13. Cuja causa dessa insolvência foi francamente por terem sido fiadores de uma filha que entretanto falecida não pode cumprir tais empréstimos bancários e de outra que também não havia conseguido cumprir os seus empréstimos bancários;
14. Mas o certo é que pela interpretação vertida na referida carta, os insolventes vão estar nesta condição, mais 3 anos e 4 meses, passando por cima do tempo que passou desde o trânsito do despacho de exoneração até à presente data - tempo esse que ascende a 5 anos e 5 meses;
15. Portanto, acontece que por aquela leitura os insolventes vão estar neste estado de vida num total de 8 anos e 9 meses;
16. O que nos parece de todo, e, reiterando - algo violento, o que de certa forma a permitir-se tal, será penalizar, aquelas pessoas sem que o tenham de ser ou que exista fundamento para isso;
17. De facto, olhando para a motivação do próprio CIRE, diz esta motivação que a “A efectiva obtenção de tal benefício supõe, portanto, que, após a sujeição a processo de insolvência, o devedor permaneça por um período de cinco anos - designado período da cessão - ainda adstrito ao pagamento dos créditos da insolvência que não hajam sido integralmente satisfeitos. Durante esse período, ele assume, entre várias outras obrigações, a de ceder o seu rendimento disponível (tal como definido no Código) a um fiduciário (entidade designada pelo tribunal de entre as inscritas na lista oficial de administradores da insolvência), que afectará os montantes recebidos ao pagamento dos credores. No termo desse período, tendo o devedor cumprido, para com os credores, todos os deveres que sobre ele impendiam, é proferido despacho de exoneração, que liberta o devedor das eventuais dívidas ainda pendentes de pagamento. A ponderação dos requisitos exigidos ao devedor e da conduta recta que ele teve necessariamente de adoptar justificará, então, que lhe seja concedido o benefício da exoneração, permitindo a sua reintegração plena na vida económica.”;
18. Na verdade, continuando a ler esta motivação do CIRE, verificamos que o mesmo pretende que o referido processo seja célere, tanto para que os credores não fiquem prejudicados, mas também para que os falidos (pessoas singulares) possam ter o tão aclamado “Fresh Start” cujo só acontece com a exoneração do passivo;
19. Contudo, por aquela leitura, temos a celeridade de direito e processual (e em beneficio das recuperação dos créditos), mas não se dá a celeridade na reposição da vida das pessoas singulares (insolventes), nomeadamente, para as recuperar financeiramente, como se almeja;
20. Ora por esta incongruência ou desajuste fomos ao encontro da jurisprudência e no Tribunal da Relação de Évora no processo 1564/11.9TSSB-1.E1, Acórdão datado de 28/09/2017 onde foi relatora a Exma. Senhora Dr.ª Juiz Desembargadora Isabel Peixoto Imaginário, encontramos o seguinte “Não se tendo efectivado a apreensão de rendimentos na pendência do processo de insolvência, o cumprimento pontual e escrupuloso por parte do devedor insolvente da obrigação a que alude o art.º 239.º, n.º 4, al. c), do CIRE após a prolação do despacho inicial do incidente de exoneração do passivo restante, recebidas que sejam as quantias entregues, implica que se considere desde então em curso o período de cessão, ainda que não tenha sido declarado o encerramento do processo, conforme determina o art. 230.º, n.º 1, al. e), do CIRE.”;
21. Continuámos, e, no Tribunal da Relação de Guimarães no Processo n.º 1526/09.6TBVRLG.G1, Acórdão datado de 11/05/2017 onde foi relator o Exmo. Senhor Juiz Desembargador Espinheira Baltar, encontramos o seguinte “1. No domínio da aplicação da lei no tempo, ao abrigo do disposto no artigo 12 do C.Civil, a lei nova, quando o legislador não lhe confira efeitos retroactivos, rege para o futuro com a salvaguarda dos efeitos jurídicos produzidos. 2. A al. e) do n.º 1 do artigo 230 do CIRE, introduzida pelo artigo 2º da Lei 16/2012 de 20 de Abril permite ao juiz, oficiosamente, o que não acontecia, anteriormente, ordenar o encerramento do processo, em qualquer momento, desde que não haja bens a liquidar. 3. No caso de a cessão ocorrer antes do encerramento do processo, deve ser contado, para efeitos do prazo limite de cinco anos, todo o período de cessão anterior ao encerramento.”;
22. Contudo, aquele, que nos mostrou, que de facto o período de cessão é de cinco anos, foi o Acórdão datado de 16/10/2018 e exarado no processo n.º 1948/11.2YXLSB.L1.S1 onde foi relatora a Exma. Senhora Dr.ª Juiz Conselheira Graça Amaral e que diz no direito ponto 2, “2. Da Determinação do termo inicial do período de cessão “Vejamos. Sempre que o pedido de exoneração do passivo restante não seja liminarmente indeferido nem rejeitado, o juiz profere despacho inicial de admissão do pedido (cfr. artigos 239.º, n.º1 e 236.º, n.º1, ambos do CIRE) do qual deve constar que durante os cinco anos subsequentes ao encerramento do processo de insolvência – período de cessão - considera-se cedido ao fiduciário o rendimento disponível que o devedor venha a auferir. O despacho inicial, no caso de haver assembleia de apreciação do relatório do administrador da insolvência, pode ser proferido nessa mesma assembleia ou nos dez dias subsequentes (n.º 1 do artigo 239.º do CIRE). Segundo o n.º2 do mesmo artigo 239.º, a cessão de rendimentos e a decisão sobre o pedido de exoneração têm lugar após o encerramento do processo, encerramento que, de acordo com o artigo 230.º, n.º1, alínea e), do CIRE, deverá ser declarado no despacho inicial do incidente de exoneração do passivo restante se até aí não tiver sido encerrado. E se é certo que assume pleno cabimento que o início do período de cessão ocorra com o encerramento do processo (só depois do rateio final é declarado encerrado o processo de insolvência e ficam apurados os montantes dos créditos que não foram integralmente satisfeitos por forma a que o possam ser durante o período de cessão), há que ter presente que uma interpretação do preceito confinada estritamente ao seu elemento literal poderá conduzir a situações que se mostram alheadas da realidade prática e do seu espírito, porquanto resulta pacífico que o instituto em causa é determinado pela necessidade de conferir ao devedor pessoa singular uma oportunidade de começar de novo (fresh start), após ter estado confinado a um prazo – de cessão – em que cede o seu rendimento disponível a um fiduciário. Na verdade, tal instituto mostra-se pensado e concebido pelos parâmetros da satisfação dos créditos sobre a insolvência que não foram integralmente pagos nos cinco anos posteriores ao encerramento do processo de insolvência (cfr. artigo 235.º, do CIRE); nesse sentido, a lei contempla como marco inicial do prazo de cessão o despacho de encerramento do processo. Como considera o acórdão recorrido, efectivamente a lei não determina qualquer prazo peremptório para o proferimento do despacho de encerramento do processo. Todavia, embora a lei não fixe um prazo para o efeito, não há dúvida de que estabelece nas alíneas a) a e) do n.º 1 do artigo 230.º do CIRE, as respectivas balizas delimitadoras. No que aqui assume cabimento, importa ter em conta a alínea e) onde se dispõe “Quando este ainda não haja sido declarado, no despacho inicial do incidente de exoneração do passivo restante referido na alínea b) do artigo 237.º ” Tal como acima referenciado, decorre da letra do preceito que, quando o encerramento do processo de insolvência não tenha ainda sido declarado (nas situações a que se reportam as alíneas a) a d), o mesmo deverá ser decretado quando do despacho inicial do incidente de exoneração do passivo restante, a ser proferido na assembleia para apreciação do relatório ou nos dez dias subsequentes (artigo 239.º, n.º1, do CIRE). Luís A. Carvalho Fernandes e João Labareda defendem resultar deste preceito que a dedução e prosseguimento do incidente de exoneração não obsta ao encerramento do processo de insolvência de que depende. Tal posicionamento assenta no pressuposto de que o alcance da norma deverá ser contextualizado por forma a permitir/consagrar uma adequada autonomia entre o despacho inicial do incidente de exoneração e o de encerramento do processo de insolvência ditada pelas contingências do desenrolar do processo. A flexibilidade na articulação entre o despacho de encerramento do processo de insolvência e o despacho inicial de incidente de exoneração do passivo restante terá pois, a nosso ver, como consequência lógica e necessária o afastamento de um posicionamento rígido quanto à fixação do termo inicial do período de cessão. Assim, cremos, que a contextualização do n.º2 do artigo 239.º do CIRE, terá de ser feita por referência ao artigo 230.º, n.º1, alínea e), do mesmo código, ou seja, os cinco anos de cessão subsequentes ao encerramento do processo de insolvência apenas nas situações em que o encerramento seja declarado no despacho inicial do incidente. Note-se que esta interpretação restritiva é, a nosso ver, a que melhor se concilia com as situações de morosidade na tramitação do processo que não foram previstas pelo legislador porquanto visou imprimir ao processo de insolvência um cunho de celeridade e eficácia expressas desde logo na natureza urgente que lhe atribuiu (artigo 9.º, n.º 1, do CIRE). Como se faz constar na decisão de 9.2.2018 deste Supremo Tribunal “Não se vislumbra substancial razão para, em função até da protecção do devedor insolvente a quem foi concedida a segunda oportunidade, não se admita que, declarada a insolvência, tendo sido concedida a exoneração do passivo restante, o prazo da cessão não comece de imediato: no caso, foi logo conhecido dos credores e do devedor, o rendimento isento de cessão”. Defende tal decisão que este posicionamento é o que se mostra mais conforme ao princípio constitucional da igualdade e do tratamento equitativo das pretensões submetidas a juízo, assim como à filosofia que subjaz à figura da exoneração do passivo restante, e, no caso, atenua a circunstância, penosa para os Recorrentes, do atraso na decisão do Tribunal de 1ª Instância;
23. Ora este acórdão é claro, no sentido de afirmar que mesmo que não haja despacho de encerramento do processo, e por conta da celeridade insolvencial, mas também da recuperação económica dos devedores, deve ser tido como termo inicial de contagem de prazo inicial de período de cessão, o acto transitado em julgado, onde foi exarado inicialmente a exoneração do passivo onde nele foram impostas e por ele cumpridas regras pelos insolventes durante um período de cinco anos;
24. Por efeito de todo o supra expendido e em conclusão entendemos que deverá ser proferido despacho final de exoneração do passivo considerando que o período de cessão ocorreu desde 12/11/2013 e terminou a 12/11/2018».
Foram ouvidos o Administrador da Insolvência e os credores, tendo aquele e um destes defendido que o período da cessão de rendimentos apenas se iniciou em 01/07/2017.
Após foi proferido o seguinte despacho:
«[Foi] peticionado pelos insolventes, […], que o início do período de cessão seja o da prolação do despacho liminar, de admissão do pedido de exoneração do passivo por eles formulado.
Ora a um tal respeito, carecem os insolventes de razão, na medida em que o início do período de cessão se mostra legalmente fixado, sendo no caso, e porque o processo de insolvência ainda não tinha sido dado como encerrado a uma tal data, o apontado pelo Sr. Fiduciário.
Aliás, e reitere-se, não resultará de tal qualquer prejuízo para os insolventes tanto mais que os mesmos não procederam à cessão de quaisquer montantes, a título de rendimento disponível até ao dia 01-07-2017.
Indefiro pois, e nesta parte, ao requerido.»
Do assim decidido, os insolventes interpuseram recurso de apelação, apresentando as respectivas alegações a meio de cujo corpo foi aposta a expressão «conclusões» seguida do seguinte:
«19. Desta feita, parece-nos que não podemos ficar agarrados ao elemento literal da norma, nomeadamente do artigo 239.º n.º 1 do CIRE;
20. Porquanto, a interpretação literal, fica afastada do espírito legal vertido nesse mesmo Código da Insolvência, ou seja, do espírito da recuperação financeira das pessoas falidas e no tão falado “fresh start”;
21. Assim não podemos de deixar de concordar que terá de ser feita uma interpretação restritiva do referido preceito (239.º), onde, os cinco anos a contar do encerramento, são apenas tidos quando exista despacho de encerramento no despacho inicial de exoneração;
22. Porém, quanto àquelas pessoas que não tiveram, despacho de encerramento naquele despacho inicial, não podem, também elas por razão de, por um lado atento o espírito legal, ficarem estagnadas no meio de uma insolvência por mais de cinco anos;
23. Por outro lado, a não ser assim, aqueles que por sorte lhe tenha sido decretado o encerramento do processo, têm direito a fresh start, estes “os outros” por seu turno ficam dependentes do correr de um processo que se quer rápido, mas que resultou num “pavimento de areia movediça” de onde os insolventes não saem;
24. Na verdade, uma interpretação que diga que os aqui insolventes terão de estar mais de 5 anos à espera de ver a sua vida financeira de novo activada, vai contra o princípio da igualdade;
25. De facto olhando o artigo 13.º da Constituição da República Portuguesa, confrontando com a norma do artigo 239.º n.º 2 do CIRE e claro tendo respeitosamente o douto despacho em vista, ficamos com a convicta ideia que jamais pode ser ultrapassado para os insolventes – que o período de cessão seja superior a cinco anos;
26. Posto isto, tendo em conta as interpretações da jurisprudência, ao caso deveras importante a do Supremo Tribunal de Justiça, concluímos, que deve ser revogado o douto despacho naquela parte aqui objecto do presente recurso, sendo trocado por outro em que dite que o período de cessão nestes autos e que os insolventes deveriam respeitar é de 5 anos a contar do despacho inicial (ou nos 10 dias subsequentes à Assembleia de apreciação do relatório), ora e salientar que tal período já terminou;
Nestes termos […] deve ser dado provimento ao presente recurso, sendo aquela parte da decisão revogada e substituída por outra que determine que o período de cessão do rendimento disponível é de 5 anos contados desde o despacho inicial ou dos 10 dias subsequentes à assembleia de apreciação do relatório, e, que nos presentes autos tal período de cessão já terminou.»
Não foi apresentada resposta a estas alegações.
Após os vistos legais, cumpre decidir.

II. Questões a decidir:
As conclusões das alegações de recurso demandam desta Relação que decida a partir de que data se deve contar, no caso concreto, o período de cinco anos da cessão do rendimento disponível ao abrigo da exoneração do passivo restante.

III. Os factos:
Para a decisão a proferir importa os factos atinentes ao iter processual que constam do relatório que antecede.

IV. O mérito do recurso:
No título relativo às disposições específicas da insolvência de pessoas singulares, o Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas prevê um mecanismo, denominado exoneração do passivo restante, através do qual o devedor consegue obter a extinção de todos os créditos sobre a insolvência que ainda subsistam à data em que é concedida, sem excepção dos que não tenham sido reclamados e verificados. Concomitantemente, os credores vêm os respectivos créditos extintos na parte insatisfeita pela liquidação, em resultado de uma forma específica e inovadora de extinção das obrigações sem o seu cumprimento.
Segundo este mecanismo findo o período de cinco anos o devedor insolvente que obteve a exoneração recupera a plena disponibilidade do seu rendimento e não é mais obrigado ao pagamento aos credores dos créditos destes que não foram pagos pelo produto da liquidação – estes créditos extinguem-se, nessa medida, sem terem sido cumpridos –.
Conforme se refere no ponto 45 do preâmbulo do Decreto-Lei n.º 53/2004, de 18 de Março, que aprovou o CIRE, e é comum repetir nestas situações, a exoneração do passivo restante inspira-se no chamado modelo de fresh start amplamente difundido no Estados Unidos (discharge do Bankruptcy Code) e acolhido no código da insolvência alemão (Rechstschuldbrefeiung da Insolvenzordnung) que visa permitir ao devedor pessoa singular libertar-se do peso das dívidas que não podem ser satisfeitas através da liquidação do seu património e recomeçar de novo a sua vida.
A concessão da exoneração passa por dois momentos fundamentais caracterizados basicamente por duas decisões: o chamado despacho inicial e a decisão final da exoneração.
Num primeiro momento, perante o pedido de exoneração e ouvidos os credores e o administrador de insolvência, o juiz pronuncia-se sobre a admissibilidade do pedido de exoneração proferindo o chamado despacho inicial, onde afere da existência das condições mínimas para aceitar o pedido de exoneração. Verificando-se essas condições, o juiz admite liminarmente o pedido, não se verificando tais condições, o juiz indefere-o sem mais.
Mas a admissão do pedido (deferimento liminar, nas palavras da lei), não significa que a exoneração esteja concedida ou que o venha a ser necessariamente. Significa apenas que (i) se não for aprovado e homologado nenhum plano de insolvência e (ii) se durante os cinco anos posteriores ao encerramento do processo de insolvência o devedor observar uma série de imposições previstas na lei, será exonerado das suas obrigações insatisfeitas. A decisão final sobre a concessão ou não da exoneração só irá ser feita depois de decorrido esse período de tempo, na chamada decisão final (artigo 244.º do CIRE).
No caso, a questão que se coloca prende-se com o início da contagem do período de cessão de rendimentos a favor do fiduciário.
Segundo o artigo 235º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas «se o devedor for uma pessoa singular, pode ser-lhe concedida a exoneração dos créditos sobre a insolvência que não forem integralmente pagos no processo de insolvência ou nos cinco anos posteriores ao encerramento deste, nos termos das disposições do presente capítulo».
De forma coincidente o artigo 237.º do mesmo diploma estabelece que «a concessão efectiva da exoneração do passivo restante pressupõe que: (…) b) O juiz profira despacho declarando que a exoneração será concedida uma vez observadas pelo devedor as condições previstas no artigo 239.º durante os cinco anos posteriores ao encerramento do processo de insolvência, neste capítulo designado despacho inicial».
O artigo 239.º, n.º 2, por sua vez, consagra que «o despacho inicial determina que, durante os cinco anos subsequentes ao encerramento do processo de insolvência, neste capítulo designado período da cessão, o rendimento disponível que o devedor venha a auferir se considera cedido a entidade, neste capítulo designada fiduciário …»
Resulta destas normas que o período da cessão de rendimentos é de cinco anos e que o início desse prazo se conta a partir do encerramento do processo de insolvência. E, como se afirma no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 16-10-2018, Graça Amaral, processo n.º 1948/11.2YXLSB.L1.S1, in www.dgsi.pt, tem «pleno cabimento que o início do período de cessão ocorra com o encerramento do processo» porque «só depois do rateio final é declarado encerrado o processo de insolvência e ficam apurados os montantes dos créditos que não foram integralmente satisfeitos por forma a que o possam ser durante o período de cessão».
Sobre o encerramento do processo rege o disposto no artigo 230.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, nos termos do qual:
«1 - Prosseguindo o processo após a declaração de insolvência, o juiz declara o seu encerramento:
a) Após a realização do rateio final, sem prejuízo do disposto no n.º 6 do artigo 239.º;
b) Após o trânsito em julgado da decisão de homologação do plano de insolvência, se a isso não se opuser o conteúdo deste;
c) A pedido do devedor, quando este deixe de se encontrar em situação de insolvência ou todos os credores prestem o seu consentimento;
d) Quando o administrador da insolvência constate a insuficiência da massa insolvente para satisfazer as custas do processo e as restantes dívidas da massa insolvente.
e) Quando este ainda não haja sido declarado, no despacho inicial do incidente de exoneração do passivo restante referido na alínea b) do artigo 237.º
Este preceito estabelece uma coincidência tendencial entre o momento da prolação do despacho inicial do incidente de exoneração do passivo restante e o momento da declaração do encerramento do processo.
Todavia, como é fácil de ver, em resultado da aplicação do restante regime do processo de insolvência, são inúmeras as situações em que essa correspondência é impossível, designadamente quando, como sucedeu no caso em apreço, existem bens apreendidos para a massa e que carecem de ser objecto de liquidação e o respectivo produto distribuído pelos credores.
Essa divergência temporal entre o despacho de admissão do incidente e o encerramento do processo coloca o problema de saber se nesse caso, não se verificando a coincidência que a alínea e) do n.º 1 do artigo 230.º prevê, o período da cessão se deve contar desde o momento daquele despacho ou deve aguardar o encerramento do processo. A questão coloca-se porque neste caso o insolvente fica dependente da duração do processo para se libertar do passivo restante e poder reiniciar a sua vida económica.
O legislador teve presente essa questão quando aprovou o Decreto-Lei n.º 79/2017, de 30 de Junho.
Através deste diploma, que entrou em vigor em 1 de Julho de 2017 (artigo 8.º), o legislador introduziu no artigo 233.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, que trata dos efeitos do encerramento do processo, um n.º 7 que dispõe o seguinte:
«O encerramento do processo de insolvência nos termos da alínea e) do n.º 1 do artigo 230.º, quando existam bens ou direitos a liquidar, determina unicamente o início do período de cessão do rendimento disponível.»
Com esta norma parece que o legislador pretendeu que o período da cessão do rendimento disponível se inicie mesmo com o despacho de admissão liminar do incidente.
Para o efeito ficcionou um encerramento do processo que não é um verdadeiro encerramento do processo porquanto determina unicamente – na expressão da própria lei – o início desse período, não prejudicando em nada a normal tramitação do processo e a realização de todos os actos processuais inerentes à circunstância que impede o efectivo encerramento do processo (v.g. a necessidade de liquidar a massa insolvente e a distribuir pelos credores).
Naquele diploma, o legislador teve ainda o cuidado de definir um regime específico para a aplicação no tempo das novas disposições legais. E assim, no respectivo artigo 6.º, estabeleceu a regra de que estas são «imediatamente aplicáveis aos processos pendentes na data da sua entrada em vigor», mas excepcionou a essa regra, entre outras situações, o disposto no n.º 6.
Nos termos desta norma, «nos casos previstos na alínea e) do n.º 1 do artigo 230.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, … em que não tenha sido declarado o encerramento e tenha sido proferido o despacho inicial de exoneração do passivo restante, considera-se iniciado o período de cessão do rendimento disponível na data de entrada em vigor do presente decreto-lei”.
Esta previsão abrange precisamente o caso dos autos, uma vez que nestes, na data em que o diploma entrou em vigor, já tinha sido proferido o despacho inicial de exoneração do passivo restante e não tinha sido declarado o encerramento do processo (por haver bens na massa insolvente que careceram de ser apreendidos, liquidados e o respectivo produto distribuído após rateio final, o qual se encontrava ainda por realizar).
Acresce que mesmo que se contasse o prazo como a nova norma manda contar, isto é, a partir do despacho inicial, esse prazo estava ainda por se concluir (nos termos do regime vigente não estava sequer iniciado), razão pela qual não é possível defender que por já se mostrar decorrido o prazo que a norma visa regular esta, apesar da sua redacção literal, não lhe era aplicável.
Este é pois o regime legal a que se encontra subordinado o processo em apreço e do qual resulta, tal como assinalado pelo Administrador da Insolvência e no despacho recorrido, que o período da cessão do rendimento disponível se iniciou, ex lege, no dia 1 de Julho de 2017.
Refira-se que nenhum dos Acórdãos citados pelos recorrentes tem aplicação ao caso por duas razões absolutamente intransponíveis.
A primeira é a de que em nenhum dele se abordou a aplicação ao caso do disposto no Decreto-Lei n.º 79/2017, de 30 de Junho, e as consequências da solução legal nele estabelecida, de forma expressa, para responder ao problema suscitado.
A segunda é que em todos eles se verificava uma circunstância que não se verifica no caso e que determinava a necessidade de uma atenção espacial. Referimo-nos ao facto de após o despacho inicial os insolventes terem entregado rendimentos ao fiduciário e/ou para a massa insolvente, de forma que se o prazo se tivesse de contar a partir de um momento ainda não verificado ou verificado apenas depois dessas entregas os insolventes acabariam por estar sujeitos a um período de cessão de rendimento superior aos cinco anos previstos na lei, rectius, estariam a ceder rendimentos durante mais de cinco anos.
Foi essa situação que claramente justificou o decidido em todos esses arestos (e noutros conhecidos como o Acórdão da Relação de Coimbra de 18-10-2016, Fonte Ramos, processo n.º 1769/11.2TJCBR-F.C1, in www.dgsi.pt) sem necessidade de equacionar o disposto no mencionado Decreto-Lei n.º 79/2017, de 30 de Junho.
Por esta razão já se antecipa que a aplicação da solução legal apontada não consubstancia a violação do princípio da igualdade. Para que isso sucedesse seria necessário que essa solução determinasse que aos insolventes fosse afinal exigível a entrega ao fiduciário do rendimento obtido ao longo de um período superior a cinco anos em vez dos cinco anos exactos estabelecidos na lei. Independentemente do momento em que se inicia o período da cessão e desde que ele se complete cinco anos após o seu início, não há violação do princípio da igualdade porque em qualquer caso a cessão exigida se confina somente aos rendimentos de um período de cinco anos.
A circunstância de esse período se iniciar mais tarde ou mais cedo não importa qualquer tratamento materialmente diferenciado porque tal decorre de uma enorme variedade de circunstâncias, designadamente a data em que os próprios insolventes se apresentam à insolvência ou a existência de outro património que deva ser afecto à satisfação possível do direito dos credores e que tenha de ser objecto da liquidação, que faz com que cada situação particular seja diferente da outra.
Para obterem a exoneração do passivo restante os insolventes também não suportam todos os mesmos encargos, uns cedem determinados rendimentos, outros cedem rendimentos menores e outros ainda rendimentos maiores, sem qualquer relação percentual com o montante dos créditos insatisfeitos, numa demonstração clara de que cada situação é diferente da outra.
Acresce que os insolventes têm o direito de requerer e que lhes seja concedido o benefício da exoneração nos termos definidos na lei em termos gerais e abstractos, sendo que para isso o que releva é o respeito pelo período da cessão, rectius, o período após o qual os seus rendimentos deixam de responder pelos créditos insatisfeitos, e não propriamente que os insolventes não possam ser afectados em termos de expectativa de vida futura pelo tempo necessário à tramitação do processo de insolvência.
Por fim, refira-se que tendo o próprio legislador equacionado o problema e optado por o resolver em termos objectivos e abstractos para todos os insolventes na mesma situação (terem obtido um despacho inicial favorável mas o respectivo processo continuar por encerrar), mediante uma solução que conjuga a confiança processual (até esse momento não podia ser exigida aos insolventes a cessão de qualquer rendimento), com a preservação do espírito do benefício da exoneração (sujeição de facto a um período de cessão), não se vê fundamento normativo, ordinário ou de natureza constitucional, que permita afastar a aplicação da solução legal.
Pelo exposto, improcede o recurso.

V. Dispositivo:
Pelo exposto, acordam os juízes do Tribunal da Relação em julgar o recurso improcedente e, em consequência, negando provimento à apelação, confirmam a decisão recorrida.
Custas do recurso pelos recorrentes.
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Porto, 6 de Fevereiro de 2020.
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Os Juízes Desembargadores
Aristides Rodrigues de Almeida (R.to 537)
Francisca Mota Vieira
Paulo Dias da Silva

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