Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
865/21.2T8AMT.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: EUGÉNIA CUNHA
Descritores: INEPTIDÃO DA PETIÇÃO INICIAL
CAUSA DE PEDIR
FALTA
Nº do Documento: RP20220110865/21.2T8AMT.P1
Data do Acordão: 01/10/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Indicações Eventuais: 5ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - Gera o vício da ineptidão da petição inicial a falta de densificação ou concretização de factos essenciais em que se possa ancorar a pretensão deduzida.
II - Não estando desenhado o real núcleo factual essencial integrador da causa petendi, mas mera presunção ou, mesmo, suposição/dedução do sujeito ativo, esta não surge caraterizada, ocorrendo a sua falta.
III - E a falta de causa de pedir gera ineptidão da petição inicial e nulidade de todo o processo, exceção dilatória, de conhecimento oficioso a conduzir à absolvição do Réu da instância (al. a), do nº2, do art. 186º, al. b), do nº1, do art. 278º, nº2, do art. 576º e al. b), do art. 577º, todos do CPC).
IV - Contudo, na ineptidão da petição inicial, ante a verificação de manifesta inviabilidade da pretensão formulada, visando aquela exceção dilatória tutelar interesses do sujeito passivo que beneficiado sai com uma decisão de absolvição do pedido (na medida em que impedirá a repetição da causa por força do caso julgado), o desfecho da causa é de mérito, com a desejada e imposta, prevalência da substância sobre a forma, consagrada no nº3, do art. 278º, do CPC.
V - E a entender-se estar, apenas, insuficientemente densificada a causa de pedir, vício suscetível de sanação, ainda assim, inútil seria despacho de aperfeiçoamento na situação de inviabilidade da pretensão formulada, pois nenhuma utilidade acrescentaria à apreciação de mérito.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Apelação nº 865/21.2T8AMT.P1
Processo do Juízo de Comércio de Amarante - Juiz 4

Relatora: Eugénia Maria de Moura Marinho da Cunha
1º Adjunto: Maria Fernanda Fernandes de Almeida
2º Adjunto: Maria José Simões

Acordam na 3ª Secção Cível do Tribunal da Relação do Porto

Sumário (cfr nº 7, do art.º 663º, do CPC):
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I. RELATÓRIO

Recorrente: B…
Recorrida: C…, Lda

B… propôs contra C…, Lda procedimento cautelar de suspensão de deliberações sociais, ao abrigo do art. 380º, do CPC, pedindo que seja decretada a suspensão da deliberação social que deu origem ao registo comercial identificado por DEP ../2021-03-25 11:16:18 UTC – Transmissão de quota da sociedade requerida e que o seja por referência à data em que foi aprovada, a citação da Requerida com a cominação de que deverá juntar aos autos a ata que foi levada ao registo e que deu origem à referida apresentação e que seja decretada a inversão do contencioso.
Alega, para tanto, ter tido conhecimento de que a doação da quota na referida sociedade, que lhe foi feita pelo, então, seu marido, foi revogada após o divórcio, facto levado ao registo no dia 25/3/2021, e que a deliberação social onde foi aprovada a revogação da doação é nula.
Citada, a Requerida deduziu oposição defendendo-se por exceção e por impugnação, ao invocar a ineptidão da petição inicial, por falta de causa de pedir, por, como decorre do próprio registo invocado no requerimento inicial, não ter sido qualquer deliberação social o suporte do mesmo, mas a escritura pública do sujeito ativo (o ex marido da requerente) de distrate de doação ao sujeito passivo (a ora requerente) que junta, doc. nº7, e arguir a ilegitimidade ativa, por a requerente não ser sócia da sociedade requerida, como resulta do referido registo, referido pela Requerente, pugnando pela sua absolvição da instância e ao negar factos, pretendendo se julgue não provada e improcedente a providência cautelar de suspensão de deliberação social e, em consequência, seja absolvida do pedido.
Deixa claro que o que foi levado ao registo, como dele próprio consta, foi o ato praticado pelo ex-marido da Requerente em Notário, juntando, também, a certidão permanente atualizada com a apresentação que a requerente, ora apelante, invoca no requerimento inicial.
Notificada para tanto, a Requerente respondeu às exceções deduzidas pugnando pela improcedência das mesmas, quanto à ineptidão da petição inicial, por não existir prova de que a escritura foi, de facto, o documento de suporte à transmissão da quota e, quanto à ilegitimidade ativa, por continuar a ser sócia, não tendo a sociedade tido conhecimento da escritura de revogação da doação nem consentido a transmissão da quota. Mais sustenta que, a entender-se que a causa de pedir está insuficientemente concretizada, sempre terá de haver despacho de aperfeiçoamento destinado a completar a causa de pedir, com a alegação de factos, nos termos do art. 590º, nº2. al. b) e 4, do CPC.
Após pronúncia sobre as exceções deduzidas, foi proferida decisão a julgar improcedente a exceção da ineptidão da petição inicial e, na procedência da exceção da ilegitimidade, a absolver a Requerida da instância, ao abrigo dos arts. 30.°, n.° 1 e 3, primeira parte, 278.°, n.° 1, al. d), 380.°, n.° 1, 576.°, n.° 2, 577.°, al. e) e 78.°, todos do CPC.
De tal decisão veio a requerente apresentar recurso de apelação, pugnando por que o mesmo seja julgado procedente e, em consequência, seja revogada a sentença proferida pelo tribunal a quo, e substituída por outra a dar como preenchida a legitimidade ativa e, subsidiariamente, a decretar a convolação da providência cautelar requerida em providência cautelar comum, por se verificarem todos os pressupostos desta, nos termos e para os efeitos do previsto no n.° 1 do art. 362.° do CPC em conjugação com o n.° 3 do art. 376.° do mesmo diploma.
Formula, para tanto, as seguintes
CONCLUSÕES:
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A Requerida apresentou contra-alegações onde amplia o objeto do recurso e pugna por que se negue provimento ao mesmo, formulando as seguintes Conclusões:
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Após os vistos, cumpre apreciar e decidir o mérito do recurso interposto, com a ampliação do âmbito do recurso a requerimento da recorrida (v. art. 636º, do CPC).
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II. FUNDAMENTOS
- OBJETO DO RECURSO
Apontemos as questões objeto do presente recurso, tendo presente que o mesmo é balizado pelas conclusões das alegações do recorrente, com a ampliação constante das contra-alegações, estando vedado ao tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que se imponha o seu conhecimento oficioso, acrescendo que os recursos não visam criar decisões sobre matéria nova, sendo o seu âmbito delimitado pelo conteúdo do ato recorrido – cfr. arts 635º, nº4, 637º, nº2 e 639º, nºs 1 e 2, do Código de Processo Civil.
Assim, as questões a decidir são as seguintes:
1º- Da ineptidão do requerimento inicial, por falta de causa de pedir, geradora de nulidade de todo o processo, exceção dilatória que conduz à absolvição da instância e da inviabilidade da pretensão formulada, a demandar, prevalente, decisão de mérito.
Na improcedência de tal exceção e a não ser de decidir, desde já, de fundo:
- Da improcedência da exceção da ilegitimidade ativa;
3º - Da convolação da providência cautelar requerida em providência cautelar comum.
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II.A – FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
1. FACTOS PROVADOS
Os factos provados, vicissitudes processuais, são os que resultam do relatório supra, acrescentando-se, ainda, os seguintes:
1. No dia 2 de Fevereiro de 2021, no Cartório Notarial sito na Rua …, nº …, ….-… Porto, perante a Notária D… compareceu E…, tendo sido lavrada a escritura de “Distrate de Doação” junta aos autos com a oposição, como doc. 7;
2. Dá-se por reproduzido o teor da certidão permanente da Requerida junta com o requerimento inicial e com a oposição como doc.3, desta constando:
Menção: DEP ../2021-03-25 11:16:18 UTC – Transmissão de quota
Quota(s) e Sujeito(s) Ativo(s)
Quota: 1.250,00 Euros
Titular: E…
(…)
Sujeito(s) Passivo(s):
Nome/Firma: B…
(…)
Requerente e responsável pelo Registo:
D…, Notária (…)
Morada: Rua …, nº …, Porto
Código Postal: ….-… Porto
(…)”, negrito e sublinhado nosso;
3. A decisão recorrida tem o seguinte teor:
Na sequência do anterior despacho importa conhecer das excepções:
I - Da falta de causa de pedir:
A Requerida alega que não existiu qualquer deliberação no sentido da exclusão da Requerente como sócia ou, se quisermos, não existiu qualquer deliberação para efeito de revogar a doação de quota que alega ter sido feita à Requerente (dizendo que não houve, nem tinha de haver, porque o acto em causa foi uma revogação de doação devidamente escriturada e que foi levada, posteriormente, ao registo).
A Requerente refuta a ineptidão, porque deverá atentar-se ao modo como é construída e p.i., para além de que, a ineptidão estaria sanada, porque a Requerida compreendeu perfeitamente o aduzido na p.i.
Sinteticamente se dirá que neste aspecto não assiste razão à Requerida.
Para efeito de aferir da ineptidão deve atentar-se a causa de pedir, tal como é formulada aquando da instauração da acção.
E nesta é alegado que a) existiu uma deliberação; b) na mesma terá sido deliberado a revogação da doação da quota à Requerente; c) essa deliberação é nula porque a Requerente não foi convocada para a assembleia e, de todo modo, é ilegal.
Ora, independentemente da questão de se apurar se existiu, ou não, deliberação (e se a mesma deveria existir), o certo é que a p.i. contém a causa de pedir. Se os factos ali narrados correspondem, ou não, à realidade, é questão diversa.
Improcede a excepção da ineptidão.
II- Da ilegitimidade da Requerente:
No que se reporta à legitimidade processual activa a lei estipula expressamente que apenas pode interpor a providência cautelar de suspensão de deliberação social quem tem a qualidade de sócio.
"O requerente terá de justificar a qualidade de sócio, apresentando na petição inicial a respetiva prova. Essa prova será, em regra, realizada através de documento escrito - v.g., tratando-se de uma sociedade por quotas, através da certidão da conservatória do registo comercial" (Rita da Palma Matos, A SUSPENSÃO DE DELIBERAÇÕES SOCIAIS E A INVERSÃO DO CONTENCIOSO, Faculdade de Lisboa, Dissertação de Mestrado, 2017, p. 63).
E a qualidade de sócio deve existir na data do pedido de suspensão (Lebre de Freitas/Montalvão Machado/Rui Pinto, CPC Anotado, Coimbra Editora, 2001, p. 90).
O procedimento cautelar de suspensão de deliberações sociais depende do requisito do requerente ser sócio, o que "constitui pressuposto da legitimidade activa" (ac. RC, Rel. Carvalho Martins, 08.11.2011, consultado em www.dgsi.pt).
A Requerente na p.i. alegou que é sócia, juntando certidão de registo comercial para o provar (art. 3.° da p.i.).
Sucede que a Requerida, juntou certidão de registo comercial da qual consta que na data de instauração da presente providência cautelar a A. já não consta como sócia no registo comercial.
Ou seja, se a Requerente alega que é sócia, e para o provar junta registo comercial não actualizado, a junção posterior de registo comercial actualizado, deita por terra o documento que usou para prova da qualidade de sócia.
Em suma, perante o facto que está atestado pelo registo comercial (documento que a A. na p.i. para prova do alegado), não se pode concluir que esteja comprovado, actualmente, a qualidade de sócia.
Enfrentemos a última questão.
Isto impede o acesso ao Direito e aos Tribunais?
Não, desde logo estes casos de exclusão de sócio, o ex-sócio não deixa de ter legitimidade para a acção principal (para invocar a nulidade da deliberação, ou então que a mesma inexistiu mas deveria ter existido, para quem entenda que também a inexistência jurídica poderá servir de causa de pedir), apenas não pode interpor a providência cautelar de suspensão de deliberação.
E fica vedado a interpor uma providência cautelar?
Não.
Como escreve Abrantes Geraldes, «... para a instauração do procedimento cautelar de suspensão da deliberação a lei impõe que o requerente tenha a qualidade de sócio (...). Para quem não detenha essa qualidade e pretenda, ainda assim, impugnar a deliberação prejudicial, restará o recurso ao procedimento cautelar comum, verificados que sejam os respectivos requisitos [assim sucederá quando o gerente ou o administrador, que não detenha a qualidade de sócio, pretenda atacar a deliberação da sua destituição, como refere Taveira da Fonseca, Deliberações Sociais - Suspensão e Anulação, em Textos - Sociedades Comerciais, ed. CEJ, 1995/1995, pág. 91]» (Temas da Reforma do Processo Civil, Vol. IV, 4a edição revista e actualizada, págs. 89 e 90, com referências doutrinárias).
Ou seja, quem "não possa recorrer ao procedimento cautelar especificado, mas tenha legitimidade para intentar a acção de anulação, pode, se nisso tiver interesse, lançar mão do procedimento cautelar comum, alegando e provando os requisitos de que depende este procedimento, previstos no artigo 362° do Código de Processo Civil, pelo que não é correcta a conclusão de que o não sócio fica sem tutela cautelar" (ac. RE, Rel. Des. Francisco Xavier, 21.05.2020).
E continuando a citar o referido acórdão da RE: "nos termos previsto do n.° 3 do artigo 376° do Código de Processo Civil, o tribunal não está adstrito à providência concretamente requerida. Como refere, a propósito, Lopes do Rego, estabelece-se aqui o poder-dever de o juiz convolar da providência concretamente requerida para a que considere legalmente adequada ou mais eficaz à prevenção do receado dano, acrescentando: «Cumpre, pois, ao juiz corrigir, mesmo oficiosamente, o erro na forma de processo, consistente em se requerer procedimento cautelar comum quando a situação é subsumível aos pressupostos de determinado procedimento nominado, ou vice-versa, bem como em ter-se requerido um destes, quando seja legalmente aplicável outro à hipótese "sub juditio"» (Comentários ao Código de Processo Civil, Vol. I, 2a edição, 2004, pág. 362) Porém, a admitir-se a possibilidade de convolação do procedimento especificado no adequado procedimento cautelar, no caso o comum, era necessário que o recorrente tivesse alegado os factos concretos tendentes a demonstrar a verificação dos requisitos de que depende o procedimento cautelar comum, como previsto no artigo 362°, n.° 1, do Código de Processo Civil, concretamente a existência do direito a acautelar e o receio de que outrem cause "lesão grave e dificilmente reparável" ao direito do requerente." Porém tal não se verifica em relação a este último requisito. De facto, como se diz no acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 02/04/2019 (proc. n.° 58/19.9T8FVN.C1), com referência ao procedimento cautelar de suspensão de deliberações sociais, «[a]o contrário do que ocorre com o procedimento cautelar comum - em cujo art. 362.°/1 do CPC se fala "em lesão grave e dificilmente reparável" - considera-se desnecessário que se evidenciem danos irreparáveis ou de difícil reparação, "apenas" se impondo ao requerente o ónus de demonstrar que a suspensão da deliberação é essencial para impedir a verificação de um "dano apreciável".»"
Ora, a supor-se que a Requerente pretenderia manter a mesma alegação para esse procedimento cautelar comum (existiu uma deliberação para a qual não foi convocada razão pelo qual é nula), e mesmo a entender-se que os factos que alegou para o "dano apreciável" permitiam enquadrar a "lesão grave", não podemos concluir pela existência de uma lesão dificilmente reparável. Na verdade, por via da acção principal pode ser lograda a declaração da qualidade de sócia da requerida, e o cancelamento do registo (o que dependerá, claro, da existência de factos constitutivos desse direito), bem como uma indemnização pelos eventuais prejuízos causados.
Ou seja, é possível uma "reparação" de um eventual acto ilícito do Requerido.

Em suma, procede a excepção da ilegitimidade, razão pelo qual absolvo a Requerida da presente instância, ao abrigo dos arts. 30.°, n.° 1 e 3, primeira parte, 278.°, n.° 1, al. d), 380.°, n.° 1, 576.°, n.° 2, 577.°, al. e) e 78.°, todos do CPC.
Custas pela Requerente”.
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II.B - FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO
- Da ineptidão do requerimento inicial/inviabilidade da pretensão
Começaremos por analisar a questão da ineptidão da petição inicial e se, na procedência de tal exceção dilatória, é de anular todo o processo e de absolver a Ré da instância.
Aferindo-se tal exceção pelo próprio requerimento inicial, deste resulta vir formulado pedido de suspensão da deliberação social que deu origem ao registo comercial identificado por DEP ../2021-03-25 11:16:18 UTC – Transmissão de quota.
A requerida, na defesa que apresenta, invoca que a Requerente não alegou factos suscetíveis de fundamentarem o referido pedido, não vindo alegados factos constitutivos do direito, pelo que falta a causa de pedir do que, contra si, vem pedido, sendo que o que deu origem ao registo foi um ato não seu mas, sim, do ex-marido da Autora.
Cumpre, pois, analisar da ineptidão da petição inicial por falta de causa de pedir.
Estatui o artigo 186.º (que reproduz, sem alterações o anterior art. 193º), que tem a epígrafe Ineptidão da petição inicial que:
“1 - É nulo todo o processo quando for inepta a petição inicial.
2 - Diz-se inepta a petição:
a) Quando falte ou seja ininteligível a indicação do pedido ou da causa de pedir;
b) Quando o pedido esteja em contradição com a causa de pedir;
c) Quando se cumulem causas de pedir ou pedidos substancialmente incompatíveis.
3 - Se o réu contestar, apesar de arguir a ineptidão com fundamento na alínea a) do número anterior, a arguição não é julgada procedente quando, ouvido o autor, se verificar que o réu interpretou convenientemente a petição inicial”.
A ineptidão da petição inicial é uma exceção dilatória que conduz à abstenção do conhecimento do mérito da causa e à absolvição do Réu da instância e tal exceção é de conhecimento oficioso do tribunal, conforme os artigos 186.º, n.ºs 1 e 2, alínea a), e 278.º, n.º 1, alínea b).
Assim, se faltar ou for ininteligível seja o pedido seja a causa de pedir, se houver contradição insanável do pedido com a causa de pedir ou se ocorrer uma cumulação de pedidos substancial ou intrinsecamente incompatíveis ou inconciliáveis entre si, ou se houver contradição entre as causas de pedir, a petição é inepta, o que provoca a nulidade de todo o processo (art. 186º, nº1), sendo esta uma das causas que determinam a absolvição do réu da instância (arts, 557º, b) e 576º, 2), a decretar no despacho saneador (art. 595º, 1, a)), se antes não tiver sido indeferida liminarmente a petição, se houver despacho liminar (art.590º, 1)[1].
Como refere Alberto dos Reis, se o autor exprimiu o seu pensamento em termos inadequados, se se serviu “da linguagem tecnicamente defeituosa, mas deu a conhecer suficientemente qual o efeito jurídico que pretende obter, a petição será uma peça desajeitada e infeliz, mas não pode qualificar-se de inepta.[2]” (negrito nosso).
Como bem refere o mencionado autor, “podem dar-se dois casos distintos: a) a petição ser inteiramente omissa quanto ao acto ou facto de que o pedido procede; b) expor o acto ou factos, fonte do pedido, em termos de tal modo confusos, ambíguos ou ininteligíveis, que não seja possível apreender com segurança a causa de pedir. Num e noutro caso a petição é inepta, porque não pode saber-se qual a causa de pedir”[3].
Mais desenvolve “importa não confundir petição inepta com petição simplesmente deficiente… Quando a petição, sendo clara e suficiente quanto ao pedido e à causa de pedir, omite facto ou circunstâncias necessários para o reconhecimento do direito do autor, não pode taxar-se de inepta; o que então sucede é que a ação naufraga”[4] (situação de manifesta inviabilidade).
O nº 4 do indicado artigo 581.º define a causa de pedir como sendo o facto jurídico de que o autor faz proceder o efeito pretendido, precisando que a causa de pedir nas ações de anulação é o facto concreto ou a nulidade específica que se invoca para obter o efeito jurídico pretendido.
Causa de pedir é o facto jurídico concreto ou específico invocado pelo Autor como fundamento da sua pretensão[5].
A causa de pedir deve estar para com o pedido na mesma relação lógica em que, na sentença, os fundamentos hão-de estar para com a decisão. O pedido tem, como a decisão, o valor e significado duma conclusão: a causa de pedir, do mesmo modo que os fundamentos de facto da sentença, é a base, o ponto de apoio, uma das premissas em que assenta a conclusão. Isto basta para mostrar que entre a causa de pedir e o pedido deve existir o mesmo nexo lógico que entre as premissas dum silogismo e a sua conclusão[6].
Analisa Anselmo de Castro “para que a ineptidão seja afastada, requer-se, assim, tão só, que se indiquem factos suficientes para individualizar o facto jurídico gerador da causa de pedir e o objecto imediato e mediato da acção. Com efeito, a lei – art. 193º, n.º 2 al. a) – só declara inepta a petição quando falta ou seja ininteligível a indicação do pedido ou da causa de pedir, o que logo inculca ideia da desnecessidade de uma formulação completa e exaustiva de um e outro elemento”[7]. (negrito nosso).
Quanto à ininteligibilidade, afirma Rodrigues de Bastos “é necessário, porém, ter sempre presente que não é a obscuridade, a imperfeição ou equivocidade da indicação do pedido ou da causa de pedir que aquele preceito (correspondente à referida al. a), do nº2, do art. 186º) contempla, como bem se vê da redacção do n.º 3 do mesmo artigo”[8].
Como vimos, este entendimento já era o defendido por Alberto dos Reis, que, devidamente adaptado à atual redação do preceito em causa, conduz a que se considere inepta a petição, por ininteligibilidade, quando os factos e a conclusão são nela expostos em termos de tal modo confusos, obscuros ou ambíguos que não possa apreender-se qual é o pedido ou a causa de pedir. Assim, a petição será inepta por ininteligibilidade quando não seja possível saber-se qual é o pedido ou a causa de pedir.
No tocante à contradição entre pedido e causa de pedir, esta tem de se evidenciar entre o pedido, enquanto concreta pretensão jurídica formulada pelo autor, e a causa de pedir, enquanto facto ou factos jurídicos que se invocam para sustentar o efeito jurídico ou pedido, deduzido – artº 498º, nº 3 e 4, do Cód. Proc. Civil.
De acordo com a tese da substanciação, que o actual Código de Processo Civil acolhe, a causa de pedir é formada por factos sem qualificação jurídica, ainda que com relevância jurídica[9].
A petição inicial tem de traduzir um silogismo que estabeleça um nexo lógico entre as suas premissas (as razões de facto e de direito explanadas) e a conclusão (o pedido deduzido) e a sua falta traduz-se numa ausência ou inexistência de objeto do processo.
Nos termos dos arts. 5º, nº1 e 552º, nº1, al. d), do Código de Processo Civil, às partes cabe alegar os factos que integram a causa de pedir e as exceções. Da petição inicial devem constar os concretos e reais factos que preenchem a previsão da norma jurídica na qual a parte funda o seu direito. Isto é, o autor está obrigado à alegação e prova dos factos que, segundo a norma substantiva aplicável, servem de pressuposto ao efeito jurídico por ele pretendido.
Vista a Doutrina, analisemos, agora, a Jurisprudência.
Esta tem vindo a considerar que a petição inicial é inepta, por falta de causa de pedir, quando o Autor não indica o núcleo essencial do direito invocado, tornando ininteligível a sua pretensão.
A petição inicial é inepta por ininteligibilidade quando os factos e a conclusão são nela expostos em termos de tal modo confusos, obscuros ou ambíguos que não possa apreender-se qual é o pedido ou a causa de pedir.
contradição entre a causa de pedir e o pedido quando não exista um nexo lógico entre ambos. Existindo um nexo lógico entre ambos, não há contradição, podendo, apenas, ocorrer uma situação de improcedência, por a causa de pedir não ser bastante para alicerçar o pedido.[10]
Como se refere no Ac. do TRP de 27.5.2010, in proc. 5623/09.0TBVNG.P1, é por referência aos factos, independentemente da qualificação jurídica que deles hajam feito as partes, que haverá de indagar-se da concordância prática entre tais factos, enquanto causa de pedir, e a concreta pretensão jurídica formulada. E a este respeito, como refere A. Varela in Revista de Legislação e de Jurisprudência, ano 121º, nº3769, págs. 121, é no sentido da incompatibilidade lógica entre o facto real, concreto, individual, invocado pelo autor como base da sua pretensão (causa de pedir) e o efeito jurídico, por ele requerido (pedido) através da acção judicial, que a doutrina e a jurisprudência justificadamente interpretam, aplicam a contradição prevista (e regulada) na alínea b).
“Assim, porque a contradição do pedido com a causa de pedir representa uma contradição intrínseca ou substancial insanável, por não existir entre eles o mesmo nexo lógico que entre as premissas de um silogismo e a sua conclusão, não gera a ineptidão da petição inicial a circunstância de a alegada causa de pedir, conexionada logicamente com o pedido, não ser bastante para alicerçar este, pois o que então se coloca é um problema de improcedência (cfr. Acs. do S.T.J de 7/7/88 in BMJ 379º-592 e de 14/3/90 in A.J. 2º.-90 e Ac. da R.E. de 7/4/83 in BMJ 328º.-656)” - Ac do TCAS de 24-2-2005, proc 06656/02, in www.dgsi.pt.
Para que se verifique ineptidão da petição inicial é necessário que a alegação consistente na causa de pedir seja feita em termos genéricos tais que não ilustre e evidencie, em factos concretos, o objeto do litígio, ou que essa generalidade, ou deficiência por escassez ou falta de completa inteligibilidade, permita sem esforço de imaginação compreender qual é a causa de pedir, de tal forma que, em si mesma e mesmo sem aperfeiçoamento, autoriza um julgamento e uma decisão sobre o seu mérito.
A ineptidão da petição inicial supõe que o A. não haja definido factualmente o núcleo essencial da causa de pedir invocada como base da pretensão que formula, obstando tal deficiência a que a ação tenha um objeto inteligível. A mera insuficiência na densificação ou concretização adequada de algum aspecto ou vertente dos factos essenciais em que se estriba a pretensão deduzida (implicando que a petição, caracterizando, em termos minimamente satisfatórios, o núcleo factual essencial integrador da causa petendi, omite a densificação, ao nível tido por adequado à fisionomia do litígio, de algum aspecto caracterizador ou concretizador de tal factualidade essencial) não gera o vício de ineptidão, apenas podendo implicar a improcedência, no plano do mérito, se o A. não tiver aproveitado as oportunidade de que beneficia para fazer adquirir processualmente os factos substantivamente relevantes, complementares ou concretizadores dos alegados, que originariamente não curou de densificar em termos bastantes.[12]
No referido Acórdão do STJ, relatado pelo Ilustre Conselheiro Lopes do Rego, escreve-se, “a insuficiência na densificação ou concretização da matéria litigiosa … nunca poderia gerar o vício de ineptidão – devendo distinguir-se claramente esta figura (que implica que, por ausência absoluta de alegação dos factos que integram o núcleo essencial da causa de pedir, o processo careça, em bom rigor, de um objecto inteligível) da mera insuficiência na densificação ou concretização adequada de algum aspecto ou vertente dos factos essenciais em que se estriba a pretensão deduzida (implicando que a petição, caracterizando, em termos minimamente satisfatórios, o núcleo factual essencial integrador da causa petendi, omita a densificação, ao nível tido por adequado à fisionomia do litígio, de algum aspecto caracterizador ou concretizador de tal factualidade essencial).
É que, neste caso, movemo-nos já no plano, não do vício de ineptidão da petição, mas da insuficiente alegação de um facto concretizador dos factos essenciais efectivamente alegados, podendo tal insuficiência de concretização factual (mesmo que não haja sido oportunamente detectada, em termos de originar a formulação de um convite ao aperfeiçoamento, na fase de saneamento) ser ainda suprida em consequência da aquisição processual de tais factos concretizadores, se revelados no decurso da instrução, nos termos do nº3 do art. 264º do velho CPC, vigente na data da realização da audiência nos presentes autos.
E, como é evidente, se tal falta de densificação ou concretização adequada dos factos substantivamente relevantes, - de que depende, afinal, a procedência da pretensão do A. - nem mesmo assim se puder ter por suprida, a consequência de tal insuficiência da matéria de facto processualmente adquirida não será a anulação de todo o processo, mas antes a improcedência, em termos de juízo de mérito, da própria acção, por o A. não ter logrado, afinal, apesar das amplas possibilidades processuais de que beneficiou, alegar e provar cabalmente todos os elementos factuais constitutivos de que dependia o reconhecimento do direito por ele invocado…
Ora, no caso dos autos, a originária insuficiência de alegação … nunca tornaria a petição inepta, sendo tal insuficiência de densificação factual suprível durante o processo, nos termos em que está admitida a aquisição processual de factos concretizadores dos que integram o núcleo essencial da causa de pedir invocada pelo A. – e conduzindo uma irremediável insuficiência da matéria de facto, caso o A. não tenha aproveitado as oportunidades que a lei de processo lhe confere para suprir durante o processo tal originária deficiência na densificação factual dos factos substantivamente relevantes que alegou na petição, não à absolvição da instância do R., mas à improcedência da acção, por insuficiência do acervo factual constitutivo do direito por ele invocado. Importa, por outro lado, realçar que – independentemente de tal preclusão – a insuficiência na densificação ou concretização da matéria litigiosa, notada no acórdão recorrido (e de algum modo acentuada pelo decidido pelo STJ no Ac.de 19/2/13, ao apagar da matéria de facto provada a conclusão de que a parcela física em litígio fazia parte do prédio reivindicado pelos AA.) , nunca poderia gerar o vício de ineptidão – devendo distinguir-se claramente esta figura (que implica que, por ausência absoluta de alegação dos factos que integram o núcleo essencial da causa de pedir, o processo careça, em bom rigor, de um objecto inteligível) da mera insuficiência na densificação ou concretização adequada de algum aspecto ou vertente dos factos essenciais em que se estriba a pretensão deduzida (implicando que a petição, caracterizando, em termos minimamente satisfatórios, o núcleo factual essencial integrador da causa petendi, omita a densificação, ao nível tido por adequado à fisionomia do litígio, de algum aspecto caracterizador ou concretizador de tal factualidade essencial)”.
Assim, sendo o normal e expectável que o processo culmine numa decisão de mérito a solucionar a questão submetida à apreciação do tribunal, com o privilegiar da substância à forma, nem sempre isso se revela possível e adequado, sendo que determinadas falhas processuais atingem uma gravidade tal que não podem deixar de determinar a inevitabilidade de um resultado formal, a que nem intervenção do juiz consegue obviar[13].
Verificando-se exceção dilatória sanável, o juiz deve convidar a parte a suprir a falta ou, em determinadas situações, acionar, mesmo oficiosamente, os mecanismos de suprimento (arts. 6º, nº2 e 590º, nº2 a)). E sendo insanável ou não trazendo a diligência aventada qualquer utilidade para a apreciação do mérito da causa, deve haver absolvição da instância, a não ser que, atento o disposto no nº3, prevaleça a apreciação do mérito da causa, o que deve suceder quando, destinando-se o requisito formal a tutelar exclusivamente o interesse de uma parte, a decisão de mérito lhe seja integralmente favorável e não haja qualquer outro obstáculo à apreciação de mérito[14].
Com efeito, estatui este nº3, do art. 278º,
“3 - As exceções dilatórias só subsistem enquanto a respetiva falta ou irregularidade não for sanada, nos termos do n.º 2 do artigo 6.º; ainda que subsistam, não tem lugar a absolvição da instância quando, destinando-se a tutelar o interesse de uma das partes, nenhum outro motivo obste, no momento da apreciação da exceção, a que se conheça do mérito da causa e a decisão deva ser integralmente favorável a essa parte”.
E, na verdade, consagra tal preceito o princípio da prevalência da decisão de mérito, pressupondo distinção entre pressupostos processuais dispensáveis e não dispensáveis, de modo que, a não se encontrar preenchido um pressuposto processual destinado a proteger interesses das partes, importa verificar se o conhecimento de mérito pode ser favorável à parte que seria beneficiada com a proteção que resultaria do preenchimento do pressuposto e, em caso afirmativo, a decisão que prevalece, a proferir, é a de mérito, sendo esta a situação dos autos, adianta-se.
Plasma-se, assim, na lei a prevalência do direito material, ao consagrar que a persistência de uma exceção dilatória não obsta à prolação de uma decisão de mérito desde que:
i) - a função desse pressuposto processual seja tão só a tutela dos interesses da parte (e não, também, a defesa do interesse público na boa administração da justiça);
ii) - o juiz esteja em condições de proferir decisão de mérito, de imediato (sem necessidade da realização de outros atos processuais);
iii) – a decisão de mérito a proferir seja integralmente favorável à parte que seria beneficiada com o preenchimento do pressuposto em falta[16].
Neste conspecto, se, apesar da ineptidão da petição inicial, por falta de causa de pedir, se verificar manifesta inviabilidade da pretensão formulada, visando aquela exceção dilatória tutelar interesses do sujeito passivo que sai beneficiado com uma decisão de absolvição do pedido, na medida em que impedirá a repetição da causa por força do caso julgado, prevalente sendo a substancia sobre a forma, cabe proferir decisão de fundo[17].
In casu, pede a Requerente a suspensão da deliberação social que deu origem ao registo comercial identificado por DEP ../2021-03-25 11:16:18 UTC – Transmissão de quota. E alegando a “revogação da doação” invoca, também deliberação social.
Entendeu o Tribunal a quo que vem alegado no requerimento inicial a existência de uma deliberação de revogação da doação da quota à Requerente contendo, por isso, a causa de pedir.
Ora, assim não acontece, pois que foi alegada no requerimento inicial a “revogação de doação” e o registo, efetivado, do ato (cfr. designadamente arts. 12º e 13º, do requerimento inicial) e bem resulta do registo, afirmado naquele requerimento, que o que lhe deu origem foi um ato praticado pelo doador (o sujeito ativo), com intervenção da Senhora Notária. Não foi alegada uma real e efetiva deliberação da Requerida – cfr. designadamente art. 14º, do referido requerimento, bem traduzindo este a mera suposição em que a Requerente laborou, confirmada no artigo 8º, da resposta (“tinha de presumir que se tratava de deliberação social”). Assim, sequer especificada vem qualquer deliberação nos seus termos, tempo, âmbito e conteúdo, antes conclui a requerente por de “capciosa artimanha” do seu ex-cônjuge se tratar (cfr. art. 22º, do mencionado requerimento inicial).
Sustenta a Requerida faltar causa de pedir, pois que o pedido formulado pela recorrente na providência cautelar de suspensão de deliberações sociais se consubstancia na “suspensão da deliberação social que deu origem ao registo comercial identificado por DEP ../2021-03-25 11:16:18 UTC – Transmissão de quota” e essa menção está suportada em ato de E… (figurando este no registo do ato praticado por notário como o sujeito ativo).
E, na verdade, não vem invocada real, efetiva, específica, concreta deliberação, faltando a causa de pedir.
Bem se defende a requerida invocando falta de factos suscetíveis de fundamentarem o pedido, não vindo alegados factos constitutivos do direito a suspensão de concreta e específica deliberação social, pelo que falta a causa de pedir do que, contra si, vem pedido, sendo que, como foi alegado e resulta do próprio registo invocado, o que deu origem ao mesmo foi um ato ( de “revogação de doação” efetuada) do ex-marido da Autora (doador), praticado por escritura pública, sendo que ele mesmo nem parte é nos autos, e não uma concreta deliberação da requerida.
Efetivamente, a Requerente não alega quaisquer factos concretos, suscetíveis de consubstanciar uma causa de pedir quanto à Requerida, antes invoca uma dedução, uma suposição, um juízo conclusivo que efetuou.
Na verdade, não alega concreta deliberação antes vem mesmo, até, sustentar a falta de conhecimento, pela requerida, da “revogação da doação” e a falta de consentimento no ato, por parte desta, certo sendo que nada tendo a requerida doado, nenhuma doação tinha para revogar.
Tendo a causa de pedir de ser concretizada ou determinada, consistindo em factos ou circunstâncias reais, concretas e individualizadas, verifica-se que tal, no caso dos presentes Autos, manifestamente, não sucede, apenas vindo invocada a revogação da doação (a praticar, necessariamente, pelo doador) sendo à Requerente, que invoca a titularidade de um direito, que cabe fazer a alegação dos factos de cuja prova seja possível concluir pela existência do direito – art. 5º do CPC.
Assim, e não tendo a Requerente alegado, quanto à Requerida, quaisquer factos específicos, concretos que possam integrar a causa de pedir, verifica-se a falta desta e, consequentemente, a ineptidão do requerimento inicial o que, nos termos do disposto art. 186º, nº1, al. a) do CPC, acarretaria nulidade de todo o processo, exceção dilatória a obstar ao conhecimento do mérito da causa e a dar lugar à absolvição do sujeito passivo da instância (cf. arts. 576º, nº 1 e 2 e 577º, al. b) do CPC).
*
De qualquer modo, ainda que se não considerasse a petição inicial inepta, sempre, como vimos, a pretensão formulada seria inviável, pois que, do próprio registo aludido, bem resulta que o que deu “origem ao registo comercial identificado por DEP ../2021-03-25 11:16:18 UTC – Transmissão de quota da sociedade requerida” foi um ato praticado pelo ex-marido da Requerente.
E ainda que se entendesse que apenas, não está suficientemente densificada a causa de pedir, despacho de aperfeiçoamento, no sentido de ser completada, nenhuma utilidade teria face ao que resulta do próprio registo invocado e, mesmo, atenta a posição assumida pela requerente, na resposta que apresentou às exceções em causa, a qual, afirma não ter a sociedade tido conhecimento da escritura de revogação da doação nem consentido a transmissão da quota. Desse modo, como a própria Requerida sustenta, nenhuma deliberação esteve na base do registo em causa, pois que se deliberação tivesse havido a sociedade requerida não podia deixar de dela ter conhecimento (por tomada em assembleia geral sua).
Ora, pedindo a Requerente seja decretada a suspensão da deliberação social que deu origem ao registo comercial identificado por DEP ../2021-03-25 11:16:18 UTC – Transmissão de quota da sociedade requerida e bem resultando dos autos que o que deu origem ao referido registo foi a escritura pública de “Distrate de Doação, junta como doc. nº7, com a oposição, tendo sido a Exma Senhora Notária quem requereu e foi responsável pelo registo do ato, como do próprio registo consta (cfr. f.p. nº2), nenhuma concreta/específica deliberação social foi alegada e nenhuma esteve na base da referida apresentação, nunca podendo deixar de se verificar falta de causa de pedir.
Estamos, pois, perante o vício de ineptidão, já que não obstante a alusão a deliberação social, se verifica ausência absoluta de alegação dos factos que integram o núcleo essencial da causa de pedir, carecendo, em bom rigor, aos autos de um objeto inteligível já que na base do registo em causa (cfr. pretensão deduzida) se não encontra, como desse próprio registo resulta, uma deliberação social da Requerida.
Assim, e por se verificar nulidade de todo o processo, por falta de causa de pedir, a gerar ineptidão do requerimento inicial, na procedência da referida exceção dilatória, anulado teria de ser todo o processo e a Requerida absolvida da instância, nos termos da al. b), do nº1, do art. 278º, nº2, do art. 576º e da al. b), do art. 577º, todos do CPC.
Porém, como referido, sempre a pretensão é manifestamente inviável, o que resulta evidente do confronto do pedido com o registo nele referido. Na verdade, o que deu origem ao registo comercial identificado por DEP ../2021-03-25 11:16:18 UTC – Transmissão de quota foi, como dele consta, um ato praticado perante a referida Senhora Notária que lavrou a mencionada escritura pública de “Distrate de Doação”, no Cartório Notarial sito na Rua … nº …, ….-… Porto, outorgada em 2 de Fevereiro de 2021 e em que figura como outorgante E… (o sujeito ativo no registo).
Assim, e face ao estatuído no nº3, do artigo 278º, do CPC, que privilegia a substância à forma, sempre a providência, manifestamente improcedente (dado na base do registo nenhuma deliberação social da requerida estar), tem de ser indeferida, não sendo de ordenar.
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III. DECISÃO
Pelos fundamentos expostos, os Juízes desta Secção Cível do Tribunal da Relação do Porto acordam em, ao abrigo do nº3, do art. 278º, do CPC, julgar improcedente o requerido, que se indefere, não se ordenando a providência cautelar, e absolvem a Requerida da pretensão formulada.
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Custas pela apelante, pois que ficou vencida – art. 527º, nº1 e 2, do CPC.

Porto, 10 de janeiro de 2022
Assinado eletronicamente pelos Juízes Desembargadores
Eugénia Cunha
Fernanda Almeida
Maria José Simões
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[1] Abílio Neto, Novo Código de Processo Civil Anotado, 4ª Edição, 2017, Ediforum Edições Jurídicas, Lda, pág 291
[2] Alberto dos Reis, Comentários ao Código de Processo Civil, 2º, 364.
[3] Ibidem, pág. 371
[4] Ibidem, pág 372
[5] Vaz Serra, RLJ, 109º, 313
[6] Alberto dos Reis, idem, pág. 381
[7] Anselmo de Castro, Direito Processual Civil Declaratório, vol.II, pág. 221
[8] Rodrigues Bastos, Notas ao Código Processo Civil, vol. I, pág. 253,
[9] Miguel Teixeira de Sousa, Sobre a teoria do Processo Declarativo 1980, págs. 158
[10] Ac. da RG de 24/4/2012, proc. 2281/11.5TBGMR.G1, in dgsi.net
[11] Ac. do TRP de 27.5.2010, in proc. 5623/09.0TBVNG.P1, in dgsi.net
[12] Acórdão do STJ de 26/3/2015, Processo 6500/07.4TBBRG.G2,S2, in dgsi.net
[13] António Santos Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, O Código de Processo Civil Anotado, vol. I pág. 340
[14] Ibidem, pág 343 (v. ainda Abrantes Geraldes, Temas da Reforma do Processo Civil, vol. I, 2ª ed., pág. 37 e segs. e Paulo Pimenta, Processo Civil Declarativo, 2ª ed. págs 127 e segs).
[15] Ibidem, pág 343, Teixeira de Sousa, Estudos Sobre o Novo Processo Civil, 2ª ed. pág.85
[16] Ibidem, pág 343 (v., ainda, Abrantes Geraldes, Temas da Reforma do Processo Civil, vol. I, 2ª ed., pág. 37 e segs. e Paulo Pimenta, Processo Civil Declarativo, 2ª ed. págs 127 e segs
[17] v. Ac. RP de 21-2-18, proc, 604/17, citado in António Santos Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, Idem, pág. 340