Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
2184/21.5JAPRT.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: JORGE LANGWEG
Descritores: CRIME DE HOMICIDIO QUALIFICADO
ERRO NOTÓRIO NA APRECIAÇÃO DA PROVA
INSUFICIÊNCIA PARA A DECISÃO DA MATÉRIA DE FACTO PROVADA
REENVIO DO PROCESSO
REENVIO PARCIAL
Nº do Documento: RP202310182184/21.5JAPRT.P1
Data do Acordão: 10/18/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL (CONFERÊNCIA)
Decisão: RECONHECER NA DECISÃO RECORRIDA, OFICIOSAMENTE, OS VÍCIOS DE INSUFICIÊNCIA PARA A DECISÃO DA MATÉRIA DE FACTO PROVADA E DE ERRO NOTÓRIO NA APRECIAÇÃO DA PROVA E, POR CONSEGUINTE, DETERMINAR O REENVIO PARCIAL DO PROCESSO PARA NOVO JULGAMENTO, CONSIDERANDO PREJUDICADA A APRECIAÇÃO DAS DEMAIS QUESTÕES SUSCITADAS PELOS RECORRENTES.
Indicações Eventuais: 4. ª SECÇÃO CRIMINAL
Área Temática: .
Sumário: I - Tendo o julgamento por objeto um crime de homicídio qualificado, tendo como causa da morte a exsanguinação da vítima em resultado de graves lesões interiores causadas por agressões, constitui um facto notório que a morte apenas ocorreu algum tempo depois do início das perdas hemorrágicas causadas pelas agressões fatais, quando a perda de sangue ultrapassou níveis críticos, que variam consoante a condição física da vítima.
II - Tendo o tribunal confundido na sua apreciação da prova a hora da morte com o momento das agressões fatais, com reflexos no apuramento da responsabilidade criminal, o acórdão recorrido padece de erro notório na apreciação da prova, vício tipificado na alínea c) do nº 2 do artigo 410º do Código de Processo Penal.
III - Podendo o apuramento da responsabilidade criminal pelo homicídio influir no apuramento da motivação dos arguidos na prática de um crime de profanação de cadáver, p. e p. no art. 254º, n.º 1, als. a) e b), do Código Penal, sendo para isso relevante determinar a hora de produção das lesões que se vieram a revelar fatais, este facto instrumental constitui uma insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, o que integra o vício formal tipificado na alínea a) do nº 2 do artigo 410º do Código de Processo Penal.
IV - Por força do disposto no artigo 426º, 1, do Código de Processo Penal, existindo tais vícios formais da decisão e não sendo por isso possível decidir a causa - uma vez que o processo não dispõe dos elementos necessários para sanar os vícios - impõe-se determinar o reenvio parcial do processo para novo julgamento limitado aos factos afetados por tais vícios.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo nº 2184/21.5JAPRT.P1
Data do acórdão: 18 de Outubro de 2023

Desembargador relator: Jorge M. Langweg
Desembargadora 1ª adjunta: Maria Dolores da Silva e Sousa
Desembargador 2º adjunto: Manuel Soares

Origem:Tribunal Judicial da Comarca do Porto - Juízo Central Criminal de Vila do Conde

Sumário:
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Acordam, em conferência e por unanimidade, os juízes acima identificados do Tribunal da Relação do Porto



Nos presentes autos em que figuram como recorrentes o Ministério Público e os arguidos AA e BB;

I - RELATÓRIO

1. Em 20 de Dezembro de 2022 foi proferido o acórdão proferido na primeira instância que terminou com o dispositivo a seguir reproduzido:
1) absolver o arguido CC, da prática, como autor material, em concurso real e na forma consumada, de um crime de Escravidão, p. e p. pelo artigo 159º, do Código Penal, de que vinha acusado;
2) absolver o arguido CC, da prática, como autor material, em concurso real e na forma consumada, de um crime de Homicídio Qualificado, p. e p. pelos artigos 131º e 132º, nºs 1 e 2, al. d), do Código Penal, de que vinha acusado;
3) condenar o arguido CC, como co-autor material (com os arguidos AA, DD e BB), e na forma consumada, pela prática de um crime de Profanação de Cadáver, p. e p. no art. 254º, n.º 1, als. a) e b), do Código Penal, na pena de um ano de prisão, a qual se suspende pelo mesmo período de um ano.
4) condenar o arguido AA, como co-autor material (com os arguidos CC, DD e BB), e na forma consumada, pela prática de um crime de Profanação de Cadáver, p. e p. no art. 254º, n.º 1, als. a) e b), do Código Penal, na pena de um ano de prisão, a qual se suspende pelo mesmo período de um ano.
5) condenar a arguida DD, como co-autora material (com os arguidos CC, AA e BB), e na forma consumada, pela prática de um crime de Profanação de Cadáver, p. e p. no art. 254º, n.º 1, als. a) e b), do Código Penal, na pena de um ano de prisão, a qual se suspende pelo mesmo período de um ano.
6) condenar a arguida BB, como co-autora material (com os arguidos CC, AA e DD), e na forma consumada, pela prática de um crime de Profanação de Cadáver, p. e p. no art. 254º, n.º 1, als. a) e b), do Código Penal, na pena de um ano de prisão, a qual se suspende pelo mesmo período de um ano.
7) Revogar a medida de coacção de prisão preventiva aplicada ao arguido CC e, consequentemente, ordenar a restituição imediata do mesmo à liberdade (art. 212º, n.º 1, al. b), do C.P.P.), caso não interesse a sua prisão à ordem de qualquer outro processo, situação a averiguar junto do Estabelecimento Prisional onde se encontra.
8) Declaram-se perdidos a favor do Estado:
- os objectos/bens apreendidos pertencentes à vítima, nos termos decididos: colcha lilás, 2 fronhas de almofada de cor lilás, 1 lençol capa azul, 1 colcha em tons bege, 1 t-shirt verde, 1 par de calças de ganga azuis, 1 maço de tabaco “BAIRRO”, 1 isqueiro “CLIPPER”, 1 lenço de papel amarrotado,1 máscara cirúrgica amarrotada, 1 peúga de lá azul escura, telemóvel “SAMSUNG”, computador “COMPAQ”, trinta e seis cêntimos em moedas do BCE e 1 pau de madeira partido em 2 pedaços.
- as calças de fato de treino cinzentas com manchas de sangue encontradas na casa-de-banho da arguida DD, bem como a t-shirt vermelha, as calças de fato de treino azuis e os chinelos plásticos entregues pelo arguido CC, por terem sido usadas pelos arguidos AA e CC no transporte do cadáver para a residência daquela – art. 109º, n.º 1, do Código Penal,
Devendo ser dada vista ao Ministério Público para se pronunciar quanto ao seu destino.
9) Ordenar a restituição aos arguidos CC e BB, do documento manuscrito, pasta com facturas de electricidade e água e do computador portátil “ASUS”, apreendidos na residência de ambos, por não se ter demonstrado em relação a nenhum deles a sua utilização para a prática de crimes.
Tais arguidos devem ser notificados para proceder aos seus levantamentos, sob pena de, não o fazendo, serem tais objectos declarados perdidos a favor do Estado.
10) condenar cada um dos arguidos em quatro UC's de taxa de justiça;
(…)"

2. Inconformado com a decisão absolutória, o Ministério Público interpôs recurso da decisão, terminando a motivação de recurso com a formulação das seguintes conclusões:
"1. O presente recurso vem impugnar a decisão proferida sobre matéria de facto na sentença recorrida, ao abrigo do disposto nos art.º s 410º, nº1, e 428º e 431º, al. b) do Código de Processo Penal.
2. Recorre-se da decisão na parte em que se deram como não provados os factos respeitantes à autoria do arguido CC – Factos 12, 13 e 28, 29 e 30.
3. Também se pretende impugnar a matéria respeitante a factos não provados respeitantes a matéria instrumental relevante para a prova dos factos integradores do crime de homicídio imputado – factos 17, 18, 19, 20 e 26.
4. Estes factos foram incorrectamente julgados e deveriam ser considerados como provados.
5. Na parte da fundamentação da decisão em matéria de facto, em que se aprecia a autoria das lesões sofridas pelo ofendido EE, o tribunal a quo admite, em tese, o recurso a prova indirecta.
6. Contudo, não se logra fazer uma análise substantiva e relacionada de factos e circunstâncias corroborantes da tese da culpabilidade do arguido CC.
7. Relativamente aos meios de prova que mais claramente apontam para a participação do arguido na morte de EE, opta-se na decisão recorrida para apenas destacar a falta de certezas, como se não fosse isso mesmo que caracterizasse a prova indiciária ou indirecta.
8. Acabando por se ignorar a relevância de prova indirecta ou indiciária que, no caso, pela sua abundância, impunha distinta decisão, a final.
9. Os factos assentes quanto ao relacionamento prévio entre arguido e vítima (1 a 11), articulados com a prova testemunhal e documental assinalada, revelam ter o arguido CC demonstrado em actos um flagrante desrespeito pela honra, integridade física e dignidade do EE.
10. Essa factualidade revela ainda, da parte do arguido, enquanto detentor dos meios de subsistência e habitação, assim como de prestação de trabalho acessíveis ao ofendido, um amplo domínio dos movimentos e interacções do ofendido, algo que foi também completamente ignorado na decisão.
11. Arguido e ofendido eram vistos sempre juntos, assim como estavam no dia fatal, apurando-se terem trabalhado juntos desde manhã cedo (facto provado 13.), inexistindo qualquer indício de que não tenham permanecido juntos nas estufas do arguido CC, até que este, ao contrário do que era habitual, vai sozinho distribuir as alfaces colhidas nessa mesma manhã, já mais de uma hora depois do que estava combinado, conforme assente no facto provado 21.
12. Decorrendo da matéria assente que o arguido esteve na exploração para iniciar o trabalho pelas 5h49m, apenas dali saindo pelas 11:15, com a pausa para a deslocação à mercearia de FF, ou seja, um total de mais de 5 horas, sendo que foi relatado pela testemunha GG que arguido e vítima demorariam cerca de duas horas (e ao arguido sozinho cerca de 3 horas) a colher e carregar as cerca de 100 caixas de alfaces encomendadas.
13. Ao contrário do que parece crer o tribunal, as características de isolamento do local apenas tornam mais improvável a possibilidade da intervenção de uma terceira pessoa desconhecida nos factos.
14. Errou ainda o tribunal ao não dar como assente a zona das estufas como o local da prática dos factos, face à presença do cadáver, gravidade das lesões sofridas e os vestígios de sangue, articulado com os factos assentes 15., 16, 17. e 20., assim como à remoção de pertences a que se refere a impugnação do facto não provado 26.
15. Não se deu devido relevo ao comportamento incongruente e comprometido do arguido CC no dia dos factos, nomeadamente quando foi confrontado com o atraso no fornecimento de alfaces, mentindo, o que até ressalta do confronto dos factos 13. e 22 e dos depoimentos de HH e GG, a um dizendo que o EE não apareceu para trabalhar, a outro que o EE estava bêbado e não o ajudou.
16. O tribunal não deu devido relevo à existência de abuso de álcool por parte do arguido no dia em causa, assim como à compra pelo arguido de duas garrafas de vinho do Porto, consumida em conjunto com a vítima na exploração, conforme facto assente 16..
17. Também não foi objecto de suficiente e ponderada reflexão pelo tribunal a quo, as implicações da objectiva actuação de remoção e interferência com o corpo e demais vestígios no local onde foi encontrado, nas estufas do arguido CC.
18. Existe prova no processo que afasta os restantes três arguidos condenados pelo crime de profanação de qualquer suspeita quanto ao crime de homicídio.
19. Nesta medida, importaria ao tribunal reflectir sobre a implausibilidade da realidade alternativa que as suas (in)conclusões necessariamente importam: A de que a manipulação e transporte do cadáver de uma vítima brutalmente assassinada, nos termos apurados, possa não ter tido a participação do próprio homicida.
20. Se houve atuação objectiva e intencional de ocultação do local de aparecimento do cadáver, vítima de morte violenta, é, pelo menos, mais provável que a infracção a ocultar seja o próprio homicídio, o único ilícito, para além da profanação, que resultou apurado no julgamento.
21. O tribunal erra ao dar como não provado o facto 17., considerando o teor do registo de chamadas de fls.1284, 1284 vº, 1288 e 1289, transcrição de fls.1199 vº, o depoimento do inspetor II, o facto assente 30., conjugados com as regras da experiência comum.
22. O arguido não se limitou a participar na deslocação do cadáver, participa na recolha de pertences do arguido (factos provados 31. e 36.) vestindo o arguido com umas calças (facto provado 40.) e retirando objectos da zona das estufas.
23. Efectivamente, o depoimento do Insp. II, articulado com a visualização das imagens de videovigilância de fls.304 a 308, permite concluir que o arguido, antes da movimentação do corpo para a residência da arguida DD, procedeu à retirada de objectos da exploração, sendo uma dedução perfeitamente lógica, conjugada com a demais prova, de que se tratou de uma acção consciente com vista à subtração do local de objectos, designadamente as garrafas de vinho do porto aludidas, que relacionassem o arguido com o evento fatal.
24. Razão pela qual se entende ter havido erro na fixação do facto não provado 19. e que se deveria ter dado como provado que, pelas 17h40, o arguido CC carregou para o interior da viatura de marca Opel diversos objectos, designadamente as garrafas de vinho do Porto que arguido e a vítima tinham consumido de manhã, tendo a seguir o arguido CC ido colocar esses objectos num contentor de lixo existente nas imediações.
25. Face a todo o comportamento apurado ao arguido e já destacado quanto à prova da autoria do homicídio e todo o frenesim desenvolvido pelos arguidos CC, DD e BB até ao sinistro “cortejo” final é lógica a dedução, atento ainda o depoimento do inspetor II nesta sede, de que o arguido CC e as arguidas o tenham vestido ainda com uma t-shirt lavada e em todo o caso distinta daquela que o mesmo trazia de manhã.
26. E, ao fazê.lo, mais se torna evidente a intenção das arguidas em proteger o arguido de uma investigação pela prática de crime grave, sendo que o único que ressalta dos autos é o homicídio.
27. Evidenciando-se, assim, o erro na consignação, como não provado, do facto 18.
28. O arguido, depois de desvendada a atuação de deslocação do corpo desenvolvida por todos os arguidos, adopta comportamentos objectivos de perturbação na recolha de prova.
29. O arguido instado pelo investigador da PJ, não entregou, pelo menos quanto às t-shirts, as roupas que usou nesse dia e que foram visionadas nas imagens de videovigilância (cfr. fls..299, 302 e 303).
30. A inusitada semelhança das roupas entregues com aquelas que o mesmo comprovadamente usou é outra circunstância altamente suspeita e reveladora de uma atuação calculista e pensada que deveria ter fortalecido a convicção de que o mesmo procurou obstar à recolha de prova quanto à sua participação no homicídio.
31. Sendo certo que quando o arguido entregou as roupas, na madrugada do dia 11, a investigação não detém informação quanto à natureza violenta da morte, o que ainda torna mais evidente a intenção de perturbar a recolha de prova.
32. Também a deslocação de roupa de cama, vestuário e outros pertences da vítima aludida ocorrida entre os dias 10 e 14 de Junho e reflectida no auto de fls. 90 e retratada nas fotos de fls.52, 52 vº, 94, 95, 104 a 115 e 185 a 194, enquanto clara atuação de ocultação e perturbação de prova, conjugado com o depoimento do Insp. II quanto a esta matéria atrás destacado e o demais referido, permitem concluir com segurança que a zona das estufas na proximidade da roulotte e anexo aludidos foi o local onde o EE veio a ser fatalmente agredido.
33. Tal evidencia, a par do demais exposto em sede de impugnação, o erro na fixação do facto não provado 26.
34. Da mesma forma e com base nos mesmos elementos, em particular fotos de fls.109 a 111, o facto assente 18, na parte em que se confirma o desnudamento no momento da agressão letal, o registo de chamadas no telemóvel do arguido e o depoimento do Insp. II, supra evidenciado, resulta ter o tribunal errado na fixação, como não provado, do facto 20.
35. Do confronto do depoimento do inspetor II e da testemunha FF, articulado com o auto de diligência de fls.117 e 118, resulta uma concreta e flagrante atuação de perturbação de inquérito, que o tribunal, de forma incompreensível, não analisou nem ponderou.
36. O comportamento posterior dos arguidos CC e DD, nas conversações mantidas e transcritas nos relatórios de fls.553 vº. e 800 vº, apresentam-se incompreensíveis, a não ser numa lógica de ocultação e perturbação da descoberta da verdade, no que concerne à responsabilidade do arguido no homicídio do EE.
37. Resulta da decisão recorrida, ter sido dada especial importância a uma suposta incongruência entre a janela temporal apresentada na pronúncia para a prática dos factos pelo arguido, com o que se veio apurar quanto à hora provável da morte.
38. Compulsado o relatório de autópsia e os demais elementos documentais e periciais, logo se percebe que não existe pronúncia pericial quanto à hora provável da morte.
39. A Exma. Perita médica, inquirida, esclareceu que não dispunha de elementos para emitir parecer seguro. Mais esclareceu que tal determinação depende de muitas variáveis, incluindo climatéricas.
40. Desconsidera ainda o tribunal a probabilidade, face ao referido pela Sra. Perita médica no seu depoimento, da vítima não ter tido morte imediata, assim se perturbando o juízo de conformidade entre hora provável de agressão e da morte.
41. No mínimo, tal circunstância impediria que o tribunal avaliasse esta questão da hora provável da morte como um contra indício que permitisse gerar dúvidas na sua conjugação com os demais elementos de prova.
42. O tribunal a quo refere na sua fundamentação que «…na fixação da hora provável da morte não podemos ir mais além, isto é, para trás das cerca das 12 horas desse dia…».
43. Ora, a janela temporal indicada na pronúncia entre as 8h03 e as 11h15, não se afasta de forma relevante da hora indicada pela perita médica, considerando as reservas ao nível de razão de ciência pela própria explicadas.
44. Uma vez que o processo de morte causado pelo sangramento apontado no relatório de autópsia, implica decurso de tempo indeterminado, a hora indicada e admitida no acórdão, das 12 horas, considerando todos os demais elementos apurados, torna-se mais congruente com a prática do evento lesivo dentro do intervalo indicado na pronúncia, do que posteriormente, caindo pela base a razão das reservas apresentadas pelo tribunal a quo.
45. Assim, face à inexistência de uma resposta pericialmente validada, sobre a específica questão da hora provável e o mais supra exposto, considera-se não existir qualquer incongruência mas, outrossim, compatibilidade do parecer da perita médica com a tese vertida na pronúncia.
46. Mais se pronuncia a Exma. Sra. Perita sobre a contemporaneidade de lesões encontradas na restante superfície corporal da vítima face às lesões fatais, classificando-as todas como agudas.
47. O seu parecer é congruente com a tese da acusação e com a normalidade do agir humano, dentro de uma lógica criminosa: é dificilmente cabível que as lesões fatais não tenham sido precedidas de outros actos violentos.
48. Na verdade, a inusitada violência e energia necessariamente empregue por quem causou as lesões internas fatais apuradas, torna altamente provável, na ausência de indícios de sinal contrário, que as demais lesões agudas encontradas na cabeça, tronco e membros, tenham sido cometidas pelo mesmo agente, na mesma ocasião e lugar.
49. Tal prova aponta ainda para o prolongamento da acção violenta e consequente aproximação do facto lesivo da hora em que está assente, por existir prova directa, terem arguido e ofendido estado juntos na manhã do dia em apreço.
50. Mostrando-se ainda mais inexplicável a acção de um qualquer terceiro, por falta de motivação ou envolvimento emocional, considerando ainda o que se apurou sobre a existência de histórico de violência verbal e física e abuso laboral por parte do arguido contra o ofendido.
51. Motivos pelos quais se extrai, conjugado com tudo o mais exposto quanto ao depoimento da Sra. Perita médica e à autoria do arguido CC, ter o tribunal errado ao dar como não provados os factos narrados no ponto 12. Da matéria de facto não provada, em conjugação com o facto 17, na redacção que veio a ser consignada.
52. A perícia médico-legal de psiquiatria forense, junta aos autos revela alguns dados da personalidade do arguido CC, marcadamente narcísica e autodesresponsabilizante, compatíveis com emoção de frustração marcada perante uma oposição aos seus intentos, quer com uma postura de ocultação posterior, conforme a acusação.
53. A perita do INML, a par da capacidade de se determinar e de distinguir o bem e o mal, também apurou, ao nível da personalidade do arguido, disfunções emocionais e cognitivas, capazes de facilitar comportamentos desviantes.
54. A prova pericial respeitante à personalidade do arguido torna ainda mais consistente e segura a convicção gerada pelo conjunto dos meios de prova evidenciados na presente impugnação, articulada com os factos já assentes pelo tribunal a quo, no sentido de ter sido o arguido CC quem, depois de agredir o EE causando-lhe as lesões assentes no facto 17., introduziu na região anal do mesmo o objeto contundente não identificado, provocando-lhe as referidas lesões e hemorragia, com a intenção de lhe causar a morte, a qual representou como consequência directa e necessária da sua conduta.
55. As provas que impunham uma decisão de sentido inverso àquela que foi proferida, no que concerne à autoria das ofensas apuradas são todas as destacadas quanto à impugnação dos factos não provados 17, 18., 19., 20. e 26, concatenados com todos os já enunciados na decisão recorrida quanto aos factos provados 1. a 47, com destaque naqueles supra evidenciados na presente impugnação:
1. Depoimentos de II, HH, GG, JJ, FF e KK.
2. Prova documental e pericial, não devidamente valorada, auto de notícia de fls.4 a 7, auto de verificação de óbito de fls.12, Autos de diligência e inspeção de fls. 49 e ss., 78, 90 a 116, 117 a 119, 126 a 128, 134 a 135, 257, 278, fotografias de fls.52 a 54, 92 a 115, 136, 137, 177 a 206, Auto de inquirição de fls.258 e ss.(lido em audiência), imagens de videovigilância visionadas em julgamento a que se referem fls. 288 a 323, recolha de prova retratada a fls.115 e 116, registo de entregas de fls.144, auto de fls. 153 a 226 e as fotografias nele insertas, Avaliação preliminar da medicina legal com fotografias de fls.229 a 256, autos de apreensão de fls.431, 433, relatórios de fls.553 vº e 800 vº, o relatório de autópsia de fls. 927 a 945, com os esclarecimentos orais da perita Médica, Dra. LL na sessão de julgamento de 9.11.22, relatório de exame pericial de fls.979, 980 a 983, registos de fls.1001 a 1044 vº, relatório pericial de fls.1074, articulado com cota de fls.1150, autos de visualização e registos de chamadas de fls.1278 a 1289, transcrições de fls.1193 a 1208, , extracto de remunerações de fls. 1299 a 1301. auto de fls.1302, relatórios de perícia psicológica forense de fls.1566 a 1568 e 1573 a 1576 e informação sobre localização celular junta aos autos por mail de 21.11.22, ref.33923253.
56. Pelo que deverão considerar-se os factos 12, 13 e 28, 29 e 30 como provados, no sentido apontado na acusação e pronúncia, ou seja indicando-se o arguido CC como o autor das lesões e condutas descritas nos factos assentes 17 e 18.
Assim, deverá dar-se provimento ao presente recurso e, em consequência, revogar-se o Acórdão recorrido e substituí-lo por outro que, de harmonia com as conclusões expostas, considere provados, com as precisões decorrentes da impugnação, os factos de que o arguido CC vinha acusado e, em consequência, o condene da prática do crime de homicídio qualificado de que vinha pronunciado, numa pena acima do meio da moldura abstractamente aplicável, assim se fazendo Justiça.”

3. Os arguidos AA e BB interpuseram recurso do acórdão, terminando a respetiva motivação com as seguintes conclusões:
a) Os Recorrentes foram condenados pelo crime de profanação de cadáver, p. e p. pelo artigo 254º, n.º 1, alíneas a) e b) do Código Penal, com fundamento nos factos provados elencados nos números 25º a 43º do douto Acórdão, factos que os mesmos Recorrentes aceitam, e que se dão como reproduzidos, ao abrigo do princípio da economia processual.
c) No entanto, MERITÍSSIMOS DESEMBARGADORES, tais factos não são senão os seguintes, ou seja, imputa-se ao Recorrente AA o transporte do cadáver do EE, e o vestir de um par de umas calças, tendo de seguida sentado o corpo em duas cadeiras, na garagem da co-arguida DD, e ainda imputa-se à Recorrente BB a procura dos documentos do EE, no campo agrícola, e ter em conjunto decidido colocar o corpo do EE na garagem da co-arguida DD.
d) Ora, aceitando-se a prática de tais factos, o que já não se aceita é que tais condutas levadas a cabo pelos Recorrentes, possam preencher os elementos típicos (objetivos e subjetivos) do crime de profanação de cadáver, p. e p. pelo artigo 254º, n.º 1, alíneas a) e b) do CP.
e) Assim resulta, no que tange ao cadáver do EE, simplesmente o seu transporte realizado pelo Recorrente AA e o vestir das suas calças, sendo que nada é imputado ao comportamento da Recorrente BB, relacionado com o cadáver do EE.
f) Não se compreende assim que o transporte do cadáver possa constituir, de “per si” o crime de profanação de cadáver, pois se atentarmos no desenvolvimento das atitudes dos ora Recorrentes, quer no alegado transporte, quer posteriormente, nada lhes pode ser imputado a título de desrespeito pelo cadáver ou mesmo a título de ofensa ao mesmo cadáver, sendo que o transporte resultou das condições precárias em que o EE vivia, não se querendo que o outro arguido CC viesse a ter problemas com as autoridades por força de tais precárias condições.
g) Encontrou o Tribunal “a quo” a justificação da razão do transporte do cadáver do EE, e dela não condenou os Recorrentes, sendo que, do demais, os Recorrentes em momento algum subtraíram, destruíram, ou ocultaram o cadáver do EE, ou praticaram actos ofensivos do respeito aos mortos.
h) Se conjugarmos tais comportamentos com o prescrito no artigo 254º, alíneas a) e b) do Código Penal, percebemos que este normativo visa a proteção de um sentimento moral coletivo de respeito pelos defuntos, independentemente de qualquer conotação religiosa ou de fé, protegendo um bem jurídico imaterial (cfr. v. g., "Comentário Conimbricense do Código Penal", Tomo II, pág. 532), e dele retiramos que os ora arguidos recorrentes, com as suas condutas, em momento algum violaram tal sentimento de respeito pelo defunto.
i) MERITÍSSIMOS DESEMBARGADORES, na verdade, o Recorrente AA, reitera-se, ao transportar o cadáver do EE, em nada alterou a sua individualidade anterior, bem como a essência específica de espécie de representação do corpo, pelo que, “in casu”, tendo também em consideração o comportamento da Recorrente BB, não se verificam os elementos típicos do crime de profanação do cadáver - especificamente a subtração, destruição ou ocultação de cadáver, não tendo sido quebrada, de forma alguma, o desaparecimento dos elementos físicos do cadáver que fosse capaz de quebrar a «conexão simbólica» entre os despojos e a pessoa falecida, ou seja, a redução “a nada”.
j) In casu, nenhum dos Recorrentes/Arguidos subtraiu, destruiu, ocultou ou profanou o cadáver do EE, inexistindo naqueles qualquer disposição específica ou intenção de violar o bem jurídico protegido por aquele normativo legal, ou seja, o sentimento de respeito devido aos mortos, até porque os Recorrentes sempre acreditaram estarem perante uma morte natural do EE, e o transporte do seu corpo e chamada imediata do INEM teve como razão fundamental que não fossem presenciadas as condições de vida do EE na referida “roulotte”, tal qual se encontra devidamente provado nos autos.
k) Pelo que não podem os Recorrentes concordar com a fundamentação do Tribunal “a quo”, quando referencia que os arguidos recorrentes “com as suas condutas, faltaram ao respeito que era devido ao cadáver…………., no lugar de providenciarem para que tivesse o tratamento e as devidas exéquias, fúnebres, dignos, com inteiro respeito pelo corpo e pelas condições onde deveria ser depositado”, já que a mesma não encontra sustentação nos factos provados, já que, nenhum dos ora Recorrentes (mesmo com uma muita atenta análise dos FACTOS PROVADOS), com as suas atitudes e/ou comportamentos, ultrajaram ou ofenderam o cadáver do EE, muito menos tiveram com o mesmo cadáver tratamento desrespeitoso, pois não o esconderem, mutilaram e/ou profanaram.
l) E muito menos os Recorrentes com as suas condutas obviaram a que o cadáver do EE tivesse o tratamento devido, e as devidas exéquias fúnebres, pelo que, reitera-se, da prática dos actos dados como provados pelos Recorrentes, e devidamente aceites, não resulta o preenchimento dos elementos objetivos e subjetivos, por parte destes, do crime de profanação de cadáver, acrescendo que os Recorrentes em momento algum tiveram sequer a consciência que o seu comportamento era proibido e punido por lei, pois o transporte realizado pelo arguido AA havia sido realizado pelas razões já supra aduzidas.
m) Assim, o Tribunal “a quo”, face à matéria de facto dada como provada, não podia motivar a devida condenação, tendo feito, salvo melhor douta opinião, errada interpretação dos pressupostos do crime em causa, por ser entendimento dos Recorrentes que os factos praticados pelos mesmos, não preencheram quer o tipo objetivo, quer o subjetivo do crime de profanação de cadáver, a que foram condenados.
n) Fez assim uma errada interpretação do normativo legal previsto no artigo 254º, n.º 1, alíneas a) e b) do CP, entendendo que os factos dados como provados eram suficientes para tipificar o mesmo, o que não se concede.
TERMOS EM QUE dando provimento ao presente recurso, revogando-se a douta decisão recorrida, e absolvendo-se os Arguidos/Recorrentes do crime de que vêm sentenciados, p. e p. pelo n.º 1, alíneas a) e b) do artigo 254 do Código Penal, seguindo-se os ulteriores termos processuais, V. EX.AS FARÃO COMO SEMPRE JUSTIÇA..

4. Os recursos foram liminarmente admitidos no tribunal a quo, subindo nos próprios autos e com efeito suspensivo.
5. Apenas o arguido CC respondeu ao recurso do Ministério Público, pugnando pela sua improcedência, essencialmente com base na fundamentação da decisão recorrida.
6. Nesta instância, o Ministério Público[1] emitiu parecer, no qual se pronunciou quanto ao mérito dos recursos nos seguintes termos:
“(…)
Recurso apresentado pelo Ministério Público
1-O recurso apresentado por parte do Ministério Público relativamente à parte absolutória do acórdão no que diz respeito ao crime de homicídio qualificado imputado ao arguido CC versa sobre a matéria de facto, considerando-se que com a prova produzida e com a prova disponível em termos documentais e periciais impunha-se decisão diversa relativamente aos factos dados como provados e não provados.
Estamos na esfera e no âmbito do princípio da livre apreciação da prova, previsto no artigo 127.º do Código de Processo Penal, e apenas nesse âmbito o recurso pode ser apreciado.
É muita clara, e neste específico aspecto discordando do Recorrente, a motivação de facto apresentada pelo tribunal a quo quanto à apreciação crítica que foi feita relativamente à prova recolhida.
Entende-se que as omissões que o Recorrente detectou na motivação de facto do tribunal a quo se enquadram antes no modo como essa avaliação da prova foi realizada, o que bem se acaba por explicar na fundamentação do Recurso.
Desta forma, a decisão do tribunal a quo será sindicável nos termos do artigo 412.º, n.º3 do CPP, , ou seja, ponderando-se se nos limites da livre convicção da prova por parte do tribunal a quo, a opção em termos de decisão de facto exorbitou o que se impunha pela lógica e pelas regras da experiência comum, sendo que só dessa forma se poderá falar de erro de julgamento que levará a outra decisão.
Por outro lado, igualmente nesta apreciação se terá que avaliar se perante a prova produzida e no que diz respeito aos factos que no despacho de pronúncia consubstanciavam o crime de homicídio qualificado imputado ao arguido o tribunal a quo se podia atingir o grau de certeza exigível para uma decisão de condenação, considerando o principio constitucional in dúbio pro reo.
Considerando tais pressupostos, entende-se, desde logo, que não podendo existir por parte do recorrente/Ministério Publico uma substituição da convicção do tribunal de julgamento pela sua própria convicção, são justificados os fundamentos apresentados pelo Digno procurador da República em 1ª instância quanto à decisão de facto absolutória relativamente ao crime de homicídio qualificado imputado ao arguido CC, argumentação que é apresentada de modo muito exaustivo e convicto e respeitando-se o dever de objetividade e isenção inerentes ao estatuto constitucional da magistratura do Ministério Público no exercício da acção penal.
Não obstante, entende-se que, de facto, a apreciação da prova produzida em julgamento e toda a prova documental e pericial recolhida não dão uma resposta obvia quanto à autoria dos factos que conduziram à morte do ofendido EE, porque na verdade ninguém presenciou tais factos, desconhecendo-se a que horas ou a altura exata do dia em que os mesmos ocorreram e exatamente em que local e de que modo.
Tanto o Recorrente/Ministério Público na sua fundamentação, quer o próprio acórdão, invocam a necessidade de se recorrer, nas circunstâncias de facto em análise, à prova indirecta, o que indubitavelmente se impunha.
Indiscutivelmente, no caso concreto, quase toda a prova recolhida foi indirecta e teria de ser valorada e apreciada de modo conjunto e não individual - assim se concordando com o Recorrente - , sendo certo que mesmo no que diz à resposta pericial, e concretamente, ao exame de autópsia ao cadáver do ofendido EE, não existiram as habituais certezas possíveis em termos científicos sobre a contemporaneidade de algumas das lesões apresentadas, da forma como ocorreram- colocando-se relativamente a algumas dessas lesões várias hipóteses fácticas-; ao instrumento utilizado relativamente às lesões que constituíram a causa da morte e até mesmo ao facto de terem sido produzidas pelo próprio ou por terceiros, avançando-se relativamente às lesões que causaram a morte do ofendido no sentido de muito provavelmente terem sido causadas pela actuação de terceiro, de modo voluntário.
Na verdade, a recolha de prova ficou prejudicada, desde logo, pelo facto de após o conhecimento da morte do ofendido e da ida da GNR e da PJ e das autoridades de saúde ao local, se ter partido da premissa de que se estaria perante morte acidental.
Muitos dos vestígios que poderiam ter sido encontrados nos vários locais relacionados com a prática criminosa não chegaram a ser recolhidos com o rigor exigível, por, entretanto, terem mediado 3/ 4 dias.
A recolha de prova suscetível de ser avaliada em termos periciais e a apreensão de objectos e roupa que também poderiam ser examinados pericialmente, foi muito prejudicada por esse hiato temporal, originado por essa base investigatória de que se estaria perante morte acidental e não perante um cenário de homicídio.
E é esta, em meu entender, a primeira apreciação de facto realizada pelo tribunal a quo que fere as regras da experiência e da lógica.
Ou seja, a deslocação do cadáver do ofendido das estufas onde terá sido encontrado já sem vida para a residência da arguida DD, a 6 km de distância, praticando-se todos os actos descritos nos factos dados como provados em 20.º, 25.º26.º, 27.º, 28.º, 29.º, 30.º, 31.º, 32.º, 33.º, 35.º, 36.º, 37.º, 38.º, 39.º 40.º 41.º, 43.º, 44.º, foi interpretado e avaliado pelo tribunal a quo apenas como uma atuação conjunta dos quatro arguidos de colocarem em causa o respeito devido ao cadáver do ofendido.
Na motivação de facto o tribunal a quo quanto a tais factos ,diz o seguinte:
«Assim, de uma forma que nos logrou convencer pela coerência, detalhe e sinceridade que empreendeu ao longo das conversações transcritas, nenhuma dúvida existe do plano delineado na primeira deslocação que fez à exploração, no sentido de procederem ao transporte do corpo da vítima para a residência da arguida DD com o intuito de fazer crer às autoridades que o mesmo ali tinha falecido inopinadamente, tendo o arguido explicado muito bem de quem partiu tal ideia, ou seja, dos outros arguidos, e as razões subjacentes a tal desiderato, sendo que as condições de vida da vítima, nomeadamente, da roulotte onde habitava, ter-lhe-ão sido insistentemente veiculadas, especialmente pelas duas arguidas, não resultando dos coligidos elementos, indícios de outra(s) preocupação(ções) dos co-arguidos, designadamente, a que encerra o encobrimento do homicídio perpetrado por CC, de resto, como infra analisaremos (facto não provado n.º 18).
No que concerne às démarches da transferência do corpo, o arguido AA mais uma vez descreveu e imputou circunstanciadamente a sua participação e a dos co-arguidos a partir dessa decisão até ao momento em que chegaram à residência da DD, explicando as várias etapas da “encenação”, isto é, o local onde o colocaram, a troca das suas roupas por se mostrarem manchadas com sangue da vítima, o cesto onde as calças ensanguentadas foram depositadas e a espera pela chegada das autoridades após o telefonema efectuado pelo arguido CC - cfr. auto de gravação e audição de fls. 1302-1303 (facto provado n.º 41).
Em relação a estes acontecimentos na residência da DD, em conjugação com as transcrições foram valorados os depoimentos de MM e NN, Guardas da GNR que, no seguimento da mencionada chamada para o “112” acudiram ao local da ocorrência, contando de modo livre, inequívoco e praticamente indiscutível o que encontraram na sala adaptada de garagem onde o cadáver permanecia sentado nas cadeiras junto à mesa de jantar, a sua posição, estado das roupas e a localização dos documentos pessoais da vítima, dando ainda conta do nervosismo deles, das versões apresentadas, a deslocação ao quarto onde lhe transmitiram residir a vítima e o ali encontrado, tendo sido unânimes na descrição daquilo que os comportamentos estranhos e pouco naturais dos arguidos lhes suscitaram, e que estenderam ao cenário ali gizado.
Em sede de factos dados como não provados, faz-se constar o facto 18) «Nas circunstâncias descritas no facto provado n.º 27, os arguidos aí id. agiram com o objectivo de destruir vestígios que relacionassem o arguido CC com a morte do EE, e nesse local vestiram-no com roupa lavada».
Também na motivação de facto se fez constar:
«Os arguidos optaram por lançar mão do direito que lhes assiste de não prestarem declarações.
Pelo que, a todas as questões emergentes nenhuma explicação foi prestada.
Em sede de contestação os arguidos AA e BB negaram a prática do crime de profanação de cadáver pelo qual vinham pronunciados.
Na verdade, os factos dados como provados em 20.º, 25.º a 44.º , revelam inequivocamente que os quatro arguidos quiseram e conseguiram criar um cenário que levasse as autoridades sanitárias a acreditar que se trataria de morte acidental e não de homicídio.
E na verdade foi o que aconteceu durante a primeira abordagem das autoridades policiais perante a comunicação da morte do ofendido.
Os depoimentos prestados por quem fez a recolha da prova e recebeu a noticia do crime, por quem realizou as perícias é a de que a passagem do tempo entre a morte, o conhecimento da morte e a suspeita de que poderia tratar-se de crime de homicídio foi determinante para algum do insucesso a esse nível probatório, incluindo, no que diz respeito ao exame de autopsia médico-legal.
Qualquer conclusão que não seja esta, é completamente ao arrepio do que aconteceu e da prova produzida em julgamento e da prova documental e pericial junta aos autos, ferindo por outro lado os princípios básicos da lógica.
A hipótese levantada pelo tribunal a quo em sede de motivação, mas não trazida ao elenco dos factos dados como provados, de que a actuação dos quatro arguidos descrita nos factos provados já referenciados teve como objetivo ocultar das autoridades as condições em que o arguido vivia, é mais uma vez uma ilação da prova e dos próprios factos dados como provados completamente abusiva.
O ofendido de acordo com os factos dados como provados foi encontrado «20. O corpo do EE foi encontrado na construção anexa que servia de cozinha ao lado das estufas e da roulotte, sentado numas caixas de plástico encostadas a uma parede, onde ele ficou a sangrar pela região anal».
Por outro lado, dá-se como provado que « 24. O arguido CC contactou também telefonicamente a arguida DD, sua mãe, o que fez pelas 12h04m e cerca das 17 horas desse dia.
25. E, cerca das 17h30m, dirigiram-se ambos ao local daquelas estufas, onde se encontrava o corpo do EE sentado nas caixas de plástico na referida construção anexa que servia de cozinha.
Ou seja, pelo menos às 17 horas e 30 minutos, o arguido e a sua mãe, arguida DD, estiveram no local onde estava o corpo do ofendido, sem vida, onde se diz (dado como provado) que o ofendido ficou a sangrar pela região anal.
Perante o cenário, descrito, não podia haver qualquer dúvida para ambos que a morte do ofendido tinha sido violenta, havendo muitas lesões visíveis, para além das mencionadas.
Mas outras conclusões de facto foram retiradas pelo tribunal a quo que esbarraram com as regras da experiência comum e da lógica.
Vejamos!
Começa-se por referir os factos que não foram questionáveis em termo da sua verificação.
Deste modo, é inequívoco que ofendido e arguido tinham uma relação próxima, diária, trabalhando o primeiro para o segundo em serviços agrícolas de horticultura.
É também certo que ao contrário do arguido CC, o ofendido com 49 anos à data da sua morte, era de nacionalidade ucraniana, já residindo em Portugal há cerca de 10 anos, não tendo família ou amigos conhecidos, e sem local para viver, tendo sido o arguido a fornecer-lhe uma roulotte situada junto às estufas da empresa, para aí pernoitar e guardar os seus pertences.
Não se tendo sabido exactamente a retribuição recebida pelo ofendido EE, embora o arguido CC o tivesse inscrito na SS, ficou também apurado e dado como provado que o arguido lhe daria dinheiro para alimentação e outras despesas e que todos os dias os mesmos eram vistos juntos.
O ofendido era alcoólico, estando muitas vezes embriagado, sendo acompanhado algumas vezes pelo arguido nesse estado etílico, insultando-se os dois nessas alturas, mas nunca quebrando o relacionamento diário entre eles.
Do que foi observado após a notícia da morte do ofendido, o local onde o mesmo vivia estava degradado, situação para a qual terá contribuído o próprio, e que para a sua higiene pessoal eram cedidas as instalações do armazém da sociedade dos arguidos A..., Lda, sendo o arguido CC a obrigá-lo a tomar banho.
Por outro lado, o ofendido e arguido começavam a trabalhar de madrugada, preparavam as encomendas de hortaliças juntos, o que demorava algum tempo, e iam juntos efectuar as respetivas entregas.
Não existem dúvidas da prova produzida, que o ofendido perdeu a vida no dia 10 de Junho de 2021, embora se desconheça o exacto local e hora em que a sua morte ocorreu e se mesma teve lugar logo após o ofendido ter sofrido as lesões que foram causa da sua morte.
Atenda-se à dinâmica factual do dia 10 de Junho de 2021 que rodeou o evento “morte” do ofendido EE.
«12. No dia 10 de Junho de 2021, cerca das 5h30m, o arguido CC, fazendo-se transportar na sua carrinha de caixa aberta (ligeiro de mercadorias) da marca Toyota, modelo ..., de matrícula ..-..-VE, dirigiu-se sozinho aos armazéns da sociedade “A...”, sita na Rua ..., na Póvoa de Varzim, onde carregou tal viatura com caixas plásticas vazias para acondicionar alfaces que pretendia colher nas estufas e entregar, até às 10 horas desse dia, no armazém da sociedade “B..., Lda.”, sito na Rua ..., na ..., Póvoa de Varzim, conforme encomenda que no dia anterior lhe tinha sido feita por GG.
13. De seguida o arguido CC dirigiu-se, com aquela viatura carregada com as referidas caixas, para as suas estufas, onde, juntamente com o EE, que ali vivia, colheram várias caixas de alfaces.
14. Pelas 7h55m desse dia o arguido CC e o EE dirigiram-se na mesma carrinha à mercearia/café denominada “FF”, sita na Rua ..., em ..., Póvoa de Varzim, que confina com a Rua ... e a Rua ....
15. Nessa mercearia o arguido CC adquiriu 2 garrafas de vinho do Porto de 75 cl cada após o que se dirigiu de novo com o EE para as estufas, onde chegaram por volta das 8h03m.
16. Nesse local, o arguido CC e o EE consumiram daquele vinho, vindo o EE a apresentar uma TAS de pelo menos 2,21 g/l.
21. Pelas 11h15m daquele dia o arguido CC saiu da zona das estufas da sua exploração hortícola e, conduzindo a referida viatura, já carregada com caixas de alface, dirigiu-se sozinho ao armazém da sociedade “B...”, onde se apresentou alcoolizado.
22. Aí o arguido CC descarregou aquela mercadoria e justificou o seu atraso dizendo a HH, sócio da “B...”, que o seu empregado não tinha aparecido e que tinha cortado as alfaces sozinho.
23. Depois, cerca das 11h58m, o arguido CC saiu daquele local e dirigiu-se, ao volante da mencionada viatura, para a E.N. ...3, onde circulou em direcção a sul, tendo nessa altura efectuado uma chamada telefónica do seu telemóvel para o telemóvel do GG para justificar o atraso na entrega das alfaces ao seu cliente, alegando que o “EE” não o tinha ajudado a cortar as alfaces.
24. O arguido CC contactou também telefonicamente a arguida DD, sua mãe, o que fez pelas 12h04m e cerca das 17 horas desse dia.
O corpo do ofendido EE foi observado pelo enfermeiro OO por volta das 21 horas desse dia, já na residência da arguida DD, para onde havia sido transportado, tendo sido chamado depois o INEM e as autoridades policiais.
O cadáver do ofendido apresentava já rigidez cadavérica e a presença de livores.
Não foi possível determinar com rigor científico a hora da morte do ofendido, mas admitiu-se que a mesma pudesse ter ocorrido há 12 horas atrás, embora outras hipóteses fossem colocadas considerando um intervalo temporal entre as 12 horas e as 6 horas anteriores ao conhecimento da morte por parte das autoridades
Continuando ainda dentro do âmbito dos factos considerados como assentes pelo tribunal a quo, o ofendido EE regressou às estufas onde trabalhava e onde vivia às 8 horas e 5 minutos do dia 10 de Junho de 2021, acompanhado pelo arguido e ambos beberam, pelo menos, vinho do Porto.
O ofendido EE apresentava uma TAS de 2,21 g/l.
Até às 11 horas dessa manhã, não foi capatado pelas imagens de vídeo vigilância qualquer saída do local, quer do arguido, quer do ofendido EE.
Apesar de ter recebido chamadas durante esse período, só por volta das 10 h e 9 minutos é que durante uns segundos o arguido CC atendeu o seu cliente, onde juntamente com o ofendido já deveria ter sido entregue a encomenda.
O ofendido EE nunca mais foi visto nesse dia.
O arguido CC chegou ao local da entrega da encomenda embriagado, sozinho e mentindo sobre o motivo da ausência do ofendido EE.
Ao contrário do que sempre acontecia nesse dia os dois não almoçaram juntos.
Desde as 12 horas e 2 minutos e até às 17 horas desconhece-se o paradeiro do arguido.
O comportamento do arguido CC desde a entrega da encomenda dada como provada 21.º só é consentâneo com a possibilidade do mesmo ser o autor das agressões que vitimaram o ofendido EE, mesmo admitindo-se que após as agressões, o mesmo não tenha logo confirmado o resultado morte, dado o seu estado de embriaguez.
Às 17 horas o arguido faz um telefonema à sua mãe que dura 46 segundos- ou seja, em menos de um minuto o arguido terá dado conta à mãe que o ofendido estaria morto, caso o não tenha feito no telefonema que manteve com a arguida às 12 h e 2m, telefonema que durou 31 segundos/ apenas menos 15 segundos que o segundo telefonema- e após esse telefonema ambos se deslocaram às estufas onde se encontrava o cadáver do ofendido.
Desde o período da manhã e até ao momento que é feito o transporte de carro do cadáver do ofendido EE para casa da arguida DD, o arguido CC mudou duas vezes de t-shirt, sendo que a primeira alteração de t-shirt diferente daquela usava quando foi entregar a encomenda às 11 h e 18 m- se deu na altura em que o arguido, após telefonar à arguida DD, se dirige com ela de carro para as estufas ( 17 h e 27 m).
Na conversa telefónica que o arguido AA e a testemunha KK mantêm após a ocorrência dos factos, e com a investigação já em curso, a dada altura o arguido AA diz o seguinte «depois eu, vai e perguntei ao CC. O CC disse que quando saiu do campo que ele (ofendido EE) ficou la caído, lá dentro da estufa. E eu, “foda-se”! e tu não foste à beira dele? Não, ele volta e meio estava sempre bêbado e caído».
Dos ficheiros de internet apreendidos e visualizados, existe um vídeo no qual é visível uma imagem em grande plano da zona da fenda interglútea do ofendido EE que andava a trabalhar curvado para a frente, havendo uma troca de palavras entre o arguido e ofendido EE acerca desse facto, fazendo o arguido CC alusão ao “cu” do ofendido.
A esse elemento probatório se associam os depoimentos que comprovam conversas dessas testemunhas com o ofendido EE, nas quais o mesmo confessava ter o arguido CC manifestado a vontade de ter relações anais com ele e que estaria sem vida sexual em virtude da gravidez da mulher.
Como também não se dissocia destes elementos probatórios a personalidade do arguido descrita na sua avaliação psicológica e que o tribunal a quo de modo incompreensível desvalorizou, sendo certo que as suas características de fraca ressonância afectiva e de personalidade egocêntrica e narcisista ajudam a compreender o modo de gestão da situação adoptada pelo arguido até ao conhecimento da morte do ofendido EE.
Perante a resenha factual e contextual que rodeou a morte do ofendido EE, chega-se a outra decisão de facto do tribunal a quo que fere as regras da lógica e da experiência comum.
Em primeiro lugar, apresentam-se como pontos de dúvida relevantes o momento temporal e o local onde ocorreram as agressões que foram causais da morte do ofendido EE.
Não se entende tal conclusão no que diz respeito à determinação da autoria do crime de homicídio qualificado pelo qual o arguido vinha acusado e pronunciado.
A morte do ofendido EE ocorreu, sem margem para dúvida, entre as 8 h e 5 m e as 17 horas e 30m do dia 10 de Junho de 2021.
Por outro lado, e atento os vestígios recolhidos, a morte do ofendido EE terá ocorrido na área das estufas onde trabalhava e onde foi encontrado, tendo o mesmo em si vestígios de areia, o que indica a área das estufas, não tendo sido recolhidos quaisquer sinais de arrastamento do cadáver.
Não colhe a este propósito, a conclusão de que a morte do ofendido EE poderia ter sido em qualquer lugar, por tal conclusão contrariar toda a prova recolhida.
Assim, como também não é aceitável a ilação de que qualquer pessoa poderia ter entrado na área das estufas da empresa da qual o arguido era sócio para praticar os factos dados como provados - agressões que provocaram a morte do ofendido EE-, , não se fundamentando tal ilação em qualquer dado de facto recolhido, não esquecendo que existem camaras de vigilância no local, mas sim e apenas numa conjetura abstrata que contraria as regras da lógica e da experiência comum.
Também não se pode afirmar que durante os 3 dias que mediaram o conhecimento dos factos e a investigação já direcionada para a hipótese homicídio qualquer pessoa poderia ter ocultado prova ou eliminado a mesma, porque também esta conclusão fere a lógica e o normal do acontecer.
De modo objetivo se retira dos factos dados como provados que foram os arguidos que de modo deliberado criaram um cenário enganoso para ludibriar as autoridades e impedirem a recolha de prova.
Se assim aconteceu, não faz qualquer sentido que os mesmos arguidos retirassem do cenário que rodeou o crime indícios que pudessem afastar o arguido CC da autoria do crime de homicídio.
Por outro lado, bem sabiam todos que as condições em que o ofendido EE vivia eram do conhecimento de todas as pessoas que com ele lidavam nas redondezas e que acabaram por prestar o seu depoimento durante a investigação e julgamento.
Também não se pode aceitar que o tribunal a quo aponte como justificação relevante de dúvida relativamente à autoria dos factos a recolha do vestígio de ADN que não foi totalmente identificado e que teoricamente podia não pertencer nem ao arguido CC nem aos restantes arguidos.
Como se consigna do relatório pericial de fls.11078 e 1093 que « perfil genético de mistura, de no mínimo dois contribuintes, incompleto, compatível com o perfil da vítima e não compatível com os perfis dos arguidos CC e AA», sendo que em esclarecimento adicionais, para além do que é consignado, se afirma não existir certeza que tal perfil genético não possa ter origem em momento anterior aos factos que rodearam a morte do ofendido EE.
Em conclusão, e deste modo, fazendo-se uma valoração conjunta de toda a prova recolhida, entende-se que o tribunal a quo violou as regras da experiência comum e da lógica ao dar como provado que as agressões que levaram à morte do ofendido EE foram provocadas pela acção de pessoa não identificada, sendo tal conclusão ao arrepio de qualquer sustentabilidade fáctica e contrária ao que resulta dessa mesma prova.
Daí que havendo manifesto erro de julgamento, porque contrário às regras da lógica e da experiência comum, violou o tribunal a quo o princípio da livre apreciação da prova, devendo a decisão de absolvição do arguido CC ser revogada e substituída pela decisão de condenação pelo crime pelo qual vinha pronunciado.
Deve, deste modo, o Recurso interposto pelo Ministério Publico ser julgado procedente.
2- Recurso apresentado pelos arguidos AA e BB.
Os arguidos impugnaram de Direito a decisão do tribunal a quo que os condenou como co-autores do crime de profanação de cadáver, previsto e punido no artigo 254.º, n.º1 b) do Código penal.
Deste modo, os arguidos consideram que os factos dados como provados, e que não contestam, não constituem a prática do crime pelo qual foram condenados, por não ter havido da sua parte qualquer comportamento que visasse o desrespeito pelo restos mortais e memória do ofendido.
Por outro lado, e relativamente à arguida BB afirma-se que a mesma nem sequer chegou a tocar no cadáver do ofendido, mas apenas procurou pelos seus documentos na roulotte onde o mesmo pernoitava.
Como se refere no acórdão do STJ de 21-6-2006 «O tipo legal do art. 254.º, n.º 1, do CP (profanação de cadáver ou de lugar fúnebre) visa a protecção de um sentimento moral colectivo de respeito pelos defuntos, independentemente de qualquer conotação religiosa ou de fé, protegendo um bem jurídico imaterial (cf., v. g., Comentário Conimbricense do Código Penal, Tomo II, pág. 532). VIII - Cadáver, enquanto objecto do facto tipificado na al. a) do n.º 1 do aludido preceito, é o corpo de uma pessoa falecida, enquanto se possa dizer que ele representa essa mesma pessoa - portanto quando não se tenha verificado o processo total de decomposição ou 17 quando não se tenha quebrado, por uma qualquer razão, a conexão simbólica entre os despojos e a pessoa falecida; o cadáver tem de ser uma espécie de representação do corpo.
Em primeiro lugar e quanto aos factos praticados em concreto pela arguida BB, de mencionar que os arguidos Recorrente, em conjunto com os arguidos DD e CC, foram condenados em co-autoria material, o que pressupõe que tendo havido um plano conjunto por parte dos quatro arguidos e uma execução conjunta do propósito criminoso, não é necessário que todos os arguidos pratiquem todos os actos de execução do crime planeado.
Em segundo lugar, os arguidos transportaram em carro, vestiram e colocaram o cadáver do ofendido EE em local escolhido por todos, sem respeitarem o corpo físico, símbolo da identidade da pessoa em vida, manuseando e expondo-o de modo totalmente enganoso quanto ao modo como a sua vida terminou, o que constitui uma violação do respeito que ainda lhe era devido, sendo por isso tal actuação conjunta susceptível de preencher a previsão típica da alínea b) do n.º1 do artigo 254.º do Código Penal.
Entende-se, por isso, não ser atendível a fundamentação dos recursos apresentadas no sentido de decisão diversa daquela tomada pelo tribunal a quo e com a qual se concorda.”

7. Apenas o arguido apresentou resposta ao parecer, reiterando o teor da resposta já apresentada ao recurso, pugnando pela improcedência deste.

1. Proferiu-se despacho de exame preliminar e, não tendo sido requerida audiência, o processo foi à conferência, após os vistos legais, respeitando as formalidades legais [artigos 417º, 7 e 9, 418º, 1 e 419º, 1 e 3, c), todos do Código de Processo Penal].
*
Questões a decidir
Do thema decidendum dos recursos:
Para definir o âmbito dos recursos, a doutrina[2] e a jurisprudência[3] são pacíficas em considerar, à luz do disposto no artigo 412º, nº 1, do Código de Processo Penal, que o mesmo é definido pelas conclusões que os recorrentes extraíram da sua motivação, sem prejuízo, forçosamente, do conhecimento das questões de conhecimento oficioso.
A função do tribunal de recurso perante o objeto do recurso, quando possa conhecer de mérito, é a de proferir decisão que dê resposta cabal a todo o thema decidendum que foi colocado à apreciação do tribunal ad quem, mediante a formulação de um juízo de mérito.
Tendo em conta o relatório, importa decidir as seguintes questões:

Recurso do Ministério Público:
a) Impugnação da decisão da matéria de facto – pretendendo que os factos considerados não provados 12, 13, 17, 18, 19, 20, 26, 28, 29 e 30 passem a ser considerados provados -;
Recurso dos arguidos AA e BB
b) Erro em matéria de direito: os factos provados não integram a prática de um crime de crime de profanação de cadáver, p. e p. pelo artigo 254º, n.º 1, alíneas a) e b) do Código Penal;
*
Para decidir tais questões, impõe-se concretizar o facto jurídico-processual relevante – a fundamentação em matéria de facto do acórdão recorrido, bem como a fundamentação jurídica da incriminação dos arguidos AA e BB -.
*

II – FUNDAMENTAÇÃO
A – Fundamentação da decisão recorrida:
“2 – FUNDAMENTAÇÃO:
2.1 – FACTOS PROVADOS:
Da discussão da causa resultaram provados os seguintes factos do despacho de acusação:
1. O arguido CC é horticultor de profissão e produz produtos hortícolas numas estufas que possui num terreno situado em ..., entre as ruas do ... e a Rua ..., em ..., Póvoa de Varzim, sendo também sócio, juntamente com o arguido AA, da sociedade denominada “A..., Lda.”, que tem como principal objectivo a comercialização dos produtos hortícolas que ele e os demais sócios produzem.
2. Para o ajudar nessa actividade o arguido CC contratou, pelo menos, em 2018, o cidadão de nacionalidade ucraniana EE, nascido a .../.../1970, que já conhecia e que vivia em Portugal há pelo menos 10 anos. consumidas e a uma progressão mínima por semana sob pena de serem dispensadas;
3. O arguido CC instalou o EE, também conhecido por “EE”, numa roulotte que tinha aparcada naquele terreno agrícola, junto às referidas estufas, não existindo nas imediações quaisquer instalações sanitárias.
4. Nesse local existia apenas uma pequena construção que servia de cozinha, no interior da qual se encontravam uns armários, um fogão, um micro-ondas, um frigorífico, utensílios de cozinha e um lavatório, tudo em mau estado de conservação.
5. O EE passou naquela altura a trabalhar em exclusivo e a tempo inteiro para o arguido CC, a pernoitar no interior daquela roulotte numa cama feita com esponjas, a cozinhar algumas refeições nessa construção e a fazer as suas necessidades fisiológicas no meio das estufas, sendo que por vezes tomava banho na casa de banho do armazém da sociedade “A..., Lda.”, onde o arguido CC o levava.
6. O EE não tinha família em Portugal e convivia sobretudo com o arguido CC, que dele se fazia acompanhar diariamente, indo ambos proceder à entrega dos produtos hortícolas encomendados, que colhiam nas estufas, bem como a cafés e restaurantes, onde almoçavam juntos.
7. Em Fevereiro de 2019 o arguido CC inscreveu o EE como seu trabalhador na Segurança Social e a efectuar descontos, constando das respectivas declarações uma remuneração que rondava os €300 quinzenais.
8. O arguido CC entregou algumas vezes dinheiro ao EE para ele comprar tabaco.
9. O arguido CC pagava as refeições do EE nos restaurantes e cafés bem como algumas compras que ele fazia nas mercearias.
10. O EE tinha hábitos alcoólicos e embriagava-se quase diariamente, sendo que várias vezes, quando se encontrava nesse estado de embriaguez, o arguido CC chamava-lhe “animal”, “badalhoco” e “filho da puta”, por aquele não o ajudar nas lides agrícolas, e, pelo menos, numa ocasião, desferiu-lhe uma pancada com a mão na parte de trás do pescoço.
11. Desde 2018 até ao dia 10 de Junho de 2021, o EE trabalhou sob as ordens do CC.
12. No dia 10 de Junho de 2021, cerca das 5h30m, o arguido CC, fazendo-se transportar na sua carrinha de caixa aberta (ligeiro de mercadorias) da marca Toyota, modelo ..., de matrícula ..-..-VE, dirigiu-se sozinho aos armazéns da sociedade “A...”, sita na Rua ..., na Póvoa de Varzim, onde carregou tal viatura com caixas plásticas vazias para acondicionar alfaces que pretendia colher nas estufas e entregar, até às 10 horas desse dia, no armazém da sociedade “B..., Lda.”, sito na Rua ..., na ..., Póvoa de Varzim, conforme encomenda que no dia anterior lhe tinha sido feita por GG.
13. De seguida o arguido CC dirigiu-se, com aquela viatura carregada com as referidas caixas, para as suas estufas, onde, juntamente com o EE, que ali vivia, colheram várias caixas de alfaces.
14. Pelas 7h55m desse dia o arguido CC e o EE dirigiram-se na mesma carrinha à mercearia/café denominada “FF”, sita na Rua ..., em ..., Póvoa de Varzim, que confina com a Rua ... e a Rua ....
15. Nessa mercearia o arguido CC adquiriu 2 garrafas de vinho do Porto de 75 cl cada após o que se dirigiu de novo com o EE para as estufas, onde chegaram por volta das 8h03m.
16. Nesse local, o arguido CC e o EE consumiram daquele vinho, vindo o EE a apresentar uma TAS de pelo menos 2,21 g/l.
17. Naquele dia 10.06.2021, o EE apresentava na cabeça, na face e nos membros superiores e inferiores as seguintes lesões, conforme melhor descritas no relatório de autópsia de fls. 927 a 945:
- na cabeça: na região parietal direita, uma solução de continuidade, com bordos irregulares e pontes de tecido, com 1 cm de comprimento, de orientação vertical, com uma tumefação mole circundante, sugestiva de hematoma subjacente, com 7 cm por 4.5 cm de maiores dimensões.
- equimose arroxeada com 2.5 cm por 1 cm de maiores dimensões, na pálpebra superior do olho direito.
- escoriação avermelhada, com 3 cm por 1.5 cm de maiores dimensões, no dorso do nariz.
- escoriação avermelhada, com 5 cm por 2 cm de maiores dimensões, na porção lateral da região malar esquerda.
- na região nasogeniana, à esquerda da linha média, escoriação avermelhada, com 1 cm de comprimento.
- na face interna do lábio superior, à esquerda da linha média, duas soluções de continuidade infracentimétricas, com infiltração sanguínea associada.
- na face interna do lábio inferior, ao nível da linha média, uma solução de continuidade, com 1 cm de comprimento, com infiltração sanguínea associada.
- no tórax: medialmente ao mamilo direito, e na linha inter-mamilar, uma escoriação avermelhada, puntiforme.
- na face lateral do terço médio/inferior do hemitórax esquerdo, duas escoriações avermelhadas: a mais superior, oblíqua de cima para baixo e de posterior para anterior, com 4 cm de comprimento; a mais inferior, oblíqua de cima para baixo e de anterior para posterior, com 2 cm de comprimento.
- na área ano-genital: na posição de decúbito dorsal, três lacerações perianais: uma às 12h, oblíqua para cima e para a direita, com 4 cm de comprimento, com perda de integridade dos tecidos subjacentes e comunicação com o saco escrotal, com exteriorização de conteúdo hemático e presença de infiltração sanguínea extensa dos tecidos subcutâneos da região escrotal; duas às 6h, sendo uma delas vertical para baixo, com 2.5 cm de comprimento e outra oblíqua para baixo e para a esquerda, com 3.5 cm de comprimento; no sulco nadegueiro, três escoriações avermelhadas, de orientação vertical, a maior com 0,7 cm de comprimento.
- no membro superior direito: no terço médio da face anterior do braço, uma equimose azulada com 9.5 cm por 7 cm de maiores dimensões.
- no terço médio da face anterior do antebraço, duas equimoses azuladas, ténues: a mais lateral com 2.5 cm por 2 cm de maiores dimensões; e a mais medial com 2 cm por 1.5 cm de maiores dimensões.
- na face posterior do cotovelo, uma área com equimoses arroxeadas, com 9.5 cm por 6.5 cm de maiores dimensões.
- numa mão, equimose azulada, ténue, com 2 cm de diâmetro, ao nível da face posterior da região da articulação metacárpico-falângica do 2º dedo da mão.
- no membro superior esquerdo: na face posterior do terço inferior do braço, equimose avermelhada, ténue, com 2 cm por 1.5 cm de maiores dimensões.
- na outra mão, escoriação avermelhada, com 1.7 cm de comprimento, oblíqua de cima para baixo e da direita para a esquerda, na face anterior do terço inferior do antebraço.
- no membro inferior direito: ao nível do terço inferior da coxa e terço médio da perna, uma área com 30 cm por 20 cm de maiores dimensões, com múltiplas áreas de escoriações avermelhadas.
- na face anterior do tornozelo, uma área com múltiplas escoriações avermelhadas, puntiformes.
- no membro inferior esquerdo: na face posterior do terço médio da coxa, uma escoriação avermelhada infracentimétrica.
- na face anterior do terço inferior da coxa, uma equimose avermelhada com 3 cm por 1.5 cm de maiores dimensões.
- na face medial do terço médio da perna, uma equimose azulada, ténue, com 4.5 cm por 2.5 cm de maiores dimensões.
- na face lateral da região da articulação metatarsofalângica do primeiro dedo do pé, uma escoriação avermelhada, com 1 cm de diâmetro.
- fractura das seguintes peças dentárias: dentes incisivos superiores centrais (peça dentária 11 e 21) e do dente incisivo superior lateral esquerdo (peça dentária 22), com aparente infiltração sanguínea.
18. Nesse dia, pessoa cuja identidade não se apurou e em local também não concretamente determinado, despiu as calças ao EE e introduziu na região anal do mesmo, pelo menos por duas vezes, um objecto de natureza contundente que não foi possível identificar, provocando-lhe as seguintes lesões descritas naquele relatório de autópsia, designadamente as lesões traumáticas da região perineal (peri-anal com extensão para a região escrotal), anal e do cólon sigmóide/descendente:
- infiltração sanguínea ao nível da camada serosa do cólon sigmóide:
- na mucosa interna anal, duas soluções de continuidade superficiais, e áreas de infiltração sanguínea adjacentes.
- a 15 cm da mucosa anal, várias infiltrações sanguíneas da mucosa colónica.
- a 22 cm da mucosa anal, e numa extensão com 37 cm, infiltração sanguínea abundante de todas as camadas da parede do cólon sigmóide/descendente, com múltiplas soluções de continuidade superficiais da mucosa colónica, sobretudo no terço mais distal. A 4 cm acima do final dessa área de infiltração sanguínea, uma área de infiltração sanguínea da mucosa; a 6 cm acima dessa área, outra área de infiltração sanguínea da mucosa; a 11 cm acima dessa área, outra área de infiltração sanguínea da mucosa; a 13 cm acima dessa área, outra área de infiltração sanguínea da mucosa.
19. Essas lesões traumáticas, que levaram a perda hemorrágica abundante, provocaram, directa e necessariamente, a morte do EE.
20. O corpo do EE foi encontrado na construção anexa que servia de cozinha ao lado das estufas e da roulotte, sentado numas caixas de plástico encostadas a uma parede, onde ele ficou a sangrar pela região anal.
21. Pelas 11h15m daquele dia o arguido CC saiu da zona das estufas da sua exploração hortícola e, conduzindo a referida viatura, já carregada com caixas de alface, dirigiu-se sozinho ao armazém da sociedade “B...”, onde se apresentou alcoolizado.
22. Aí o arguido CC descarregou aquela mercadoria e justificou o seu atraso dizendo a HH, sócio da “B...”, que o seu empregado não tinha aparecido e que tinha cortado as alfaces sozinho.
23. Depois, cerca das 11h58m, o arguido CC saiu daquele local e dirigiu-se, ao volante da mencionada viatura, para a E.N. ...3, onde circulou em direcção a sul, tendo nessa altura efectuado uma chamada telefónica do seu telemóvel para o telemóvel do GG para justificar o atraso na entrega das alfaces ao seu cliente, alegando que o “EE” não o tinha ajudado a cortar as alfaces.
24. O arguido CC contactou também telefonicamente a arguida DD, sua mãe, o que fez pelas 12h04m e cerca das 17 horas desse dia.
25. E, cerca das 17h30m, dirigiram-se ambos ao local daquelas estufas, onde se encontrava o corpo do EE sentado nas caixas de plástico na referida construção anexa que servia de cozinha.
26. Para o efeito fizeram-se transportar na carrinha de caixa aberta da marca Opel, de matrícula ..-..-CG, pertencente ao arguido CC e por ele conduzida.
27. Aí decidiram ambos transportá-lo para a residência da arguida DD, sita na Rua ..., em ..., na Póvoa de Varzim, a cerca de 6 kms de distância das referidas estufas, e assim levar as autoridades policiais que depois se deslocassem ao local a acreditar que o EE havia falecido na residência da arguida DD.
28. Então, pelas 17h36m, a arguida DD telefonou do seu telemóvel para a arguida BB, esposa do arguido CC, e informou-a da morte do EE.
29. Alguns minutos depois compareceu nas estufas a arguida BB conduzindo a sua viatura da marca Renault de matrícula ..-LG-.. e decidiram os três chamar o arguido AA para os ajudar no transporte do EE para a residência da arguida DD.
30. Na execução desse plano, pelas 17h52m, a arguida DD telefonou do seu telemóvel para o telemóvel do arguido AA, deu-lhe conhecimento da morte do EE e pediu-lhe para se deslocar às estufas, onde se encontravam.
31. O arguido CC, na tentativa de encontrar o telemóvel do EE, que se encontrava no bolso de umas calças da vítima, efectuou, pelas 18h02m, uma chamada do seu telemóvel para o telemóvel dele.
32. A arguida BB procurou os documentos do EE, pelo que remexeu todo o conteúdo da roulotte.
33. Pelas 18h10m o arguido AA compareceu nas estufas juntamente com a mulher e um filho menor, tendo-lhe a arguida DD pedido ajuda para transportar o corpo do EE para a sua residência alegando, ela e a arguida BB, que devido às precárias condições em que o EE ali vivia não queriam que o arguido CC viesse a ter problemas com as autoridades caso descobrissem que o EE tinha morrido naquele local.
34. Como o AA tinha uma encomenda de alfaces para apanhar e entregar, todos os arguidos abandonaram as estufas, tendo os arguidos CC e DD ido ajudar o arguido AA naquela tarefa.
35. De seguida o arguido CC foi deixar a arguida DD na residência dela e, pelas 19h45m, ao volante da referida viatura da marca Opel, regressou ao local das suas estufas, onde, pelas 20h19m, compareceram os arguidos AA e BB, conduzindo cada um deles as respectivas viaturas.
36. Aí, na execução do mencionado plano, o arguido AA e o arguido CC pegaram no corpo do EE e colocaram-no no banco do passageiro da viatura da marca Opel do CC, que este ou a BB já tinham carregado com roupas e pertences do EE para colocar no quarto que a arguida DD ficou a preparar na sua residência para fazer crer que o mesmo era utilizado pelo EE e que ele ali residia.
37. Pelas 20h47m, abandonaram todos aquele local, sendo que o arguido AA conduziu a viatura da marca Opel do arguido CC, ao lado do corpo do EE, o arguido CC conduziu a viatura do arguido AA (ligeiro de mercadorias da marca Mitsubishi de matrícula ..-..-ZX), e a arguida BB seguiu na sua viatura.
38. Chegados à residência da arguida DD, decidiram todos os arguidos colocar o corpo do EE na garagem da casa que era utilizada como sala de jantar.
39. Então o arguido AA retirou o corpo do EE do interior do Opel, que estacionara no pátio da residência, e sentou-o em duas cadeiras que estavam colocadas naquela garagem, encostadas a uma parede, encontrando-se a vítima vestida com uma camisola vermelha, uns boxers e umas calças e, ao seu lado, um colete azul e um boné.
40. Essas calças, que tinham sido arranjadas pela DD, foram vestidas ao EE pelos arguidos.
41. A seguir, o arguido CC, com o telemóvel da arguida DD, ligou para o 112.
42. Os documentos da vítima foram colocados pelos arguidos em cima de uma mesa existente naquela garagem e as roupas e pertences do mesmo no quarto que a DD tinha preparado.
43. Como estranharam a situação, os enfermeiros do INEM que ali se deslocaram solicitaram a presença da GNR e esta entidade solicitou a seguir a presença da PJ, tendo, previamente, o arguido AA mudado as calças que vestia, que havia sujado com o sangue que escorria da região anal do EE quando o transportou, para umas lavadas que a arguida DD lhe arranjou, as quais vieram a ser encontradas momentos depois num cesto com roupa suja numa das casas-de-banho da residência.
44. No dia 14 de Junho de 2021, encontravam-se debaixo de uns plásticos usados no cultivo, a poucos metros de distancia da roulotte onde dormia o EE, um lençol, duas fronhas e duas colchas da cama dessa roulotte, que tinham sido removidos do seu interior.
45. Juntamente com esses objectos, debaixo dos referidos plásticos, encontravam-se as calças mencionadas no facto provado n.º 31.
46. Essas calças encontravam-se molhadas e impregnadas de areia das estufas, contendo nos bolsos o telemóvel do EE, um maço de tabaco e um isqueiro e, numa das pernas, uma peúga enrolada.
47. Numa daquelas colchas foram detetados vestígios de sangue do EE.
48. Sabiam os arguidos que ao vestirem o corpo do EE e ao transportá-lo, da forma referida, para a residência da arguida DD, faziam-no sem autorização e, que, dessa forma faltavam ao respeito que era devido ao corpo sem vida de EE e, não obstante, agiram todos deliberada, livre e conscientemente, em conjugação de esforços, sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei.
49. Os arguidos não têm antecedentes criminais.
Condições socioeconómicas dos arguidos:
50. O processo de desenvolvimento psicossocial de CC decorreu junto dos progenitores, à data emigrados no Canadá, país de onde o arguido é natural. O arguido tem um irmão mais velho 6 anos que permaneceu à guarda dos avós maternos em Portugal até aos 9 anos daquele.
51. A dinâmica familiar do agregado de origem é descrita como funcional e caraterizada pela existência de laços de solidariedade e entreajuda. O progenitor era jardineiro e a progenitora empregada doméstica em casas particulares, não tendo sido percecionado pelo arguido constrangimentos de ordem económica.
52. Todo o agregado regressou do Canadá em 1992, devido ao surgimento de problemas de saúde do progenitor, considerando este ter em Portugal melhores cuidados.
53. CC possui o terceiro ciclo de escolaridade, sendo referida uma progressão regular, níveis adequados de aprendizagem, desempenho e um percurso isento de problemas disciplinares. Por não se considerar motivado para o aumento de competências escolares iniciou pelos 16/17 anos de idade atividade laboral como ajudante de carpinteiro, no entanto logo que atingiu a maioridade e se habilitou com carta de condução abandonou aquela atividade para trabalhar na área da segurança privada.
54. Aos 19 anos decidiu emigrar para o Canadá, país de onde é natural, onde permaneceu até aos 23 anos de idade com inserção laboral no setor das obras publicas. Durante esse período permanecia em Portugal durante os meses de janeiro a março por as condições climatéricas no Canadá não permitirem o exercício laboral.
55. Desde os 23 anos de idade que permanece ligado ao setor agrícola, com exploração de estufas, dando seguimento ao negócio criado pelos progenitores e à data apenas gerido pela progenitora uma vez que o progenitor já tinha falecido.
56. A nível afetivo, após um longo relacionamento com uma colega de escola, com coabitação durante 3 anos, em 2014 conheceu e começou a namorar com BB, coarguida no presente processo, e em abril de 2016 contraíram matrimónio. Desta união têm 3 filhos, o mais velho com 4 anos e os mais novos, gémeos, quase a completar 2 anos.
57. No período a que se reportam os factos constantes dos autos, CC integrava o seu agregado, composto por si, pelo cônjuge e pelos descendentes. O casal autonomizou-se em setembro de 2017, residindo numa moradia independente e moderna, construída com recurso a crédito bancário, em terreno legado pelos avós maternos do arguido e situado em área de características rurais. A habitação do irmão do arguido situa-se no terreno adjacente.
58. O agregado beneficiava de uma situação económica confortável, sem constrangimentos de ordem económica, estando o seu cônjuge a trabalhar como contabilista numa empresa do ramo, auferindo à data 940€ mensais, enquanto o arguido tinha duas sociedades do ramo hortícola (“C...” e a “A...”, esta última com cinco sócios) auferindo o salário mínimo nacional, acrescido de lucros em montante variável. Como despesas não indica valores significativos, com exceção da amortização do crédito bancário no valor de 350€.
59. Atualmente o arguido refere não possuir qualquer rendimento pessoal, subsistindo o agregado do vencimento do cônjuge no valor de 1100 euros mensais.
60. O arguido exibia um contexto vivencial estável, verbalizando a existência de hábitos e rotinas de trabalho.
61. CC nega qualquer problemática aditiva ou alcoólica, afirmando que bebia apenas socialmente, no entanto em termos comunitários é verbalizado, ainda que não de forma consensual, que era recorrente encontrar tanto o arguido como o ofendido alcoolizados.
62. O arguido manteve relação laboral com o ofendido – EE.
63. Em termos de convivialidade, CC indica o seu núcleo familiar como o grupo com quem partilha todos os tempos livres, afirmando que devido ao volume de trabalho que possuía os mesmos eram muito escassos. Na comunidade de residência é tido como sociável e trabalhador.
64. Em meio prisional o arguido não viu deferida a sua pretensão de obter ocupação de carater laboral na horta interior, assim frequenta o ginásio duas vezes por semana, permanecendo inativo no resto do tempo.
65. A sua constituição como arguido e a sua reclusão não tiveram impacto negativo no seu relacionamento com a família de origem e constituída, beneficiando de visitas e apoio económico do cônjuge, da sua progenitora e do irmão. No meio também não se verifica resistência ao seu regresso ou a existência de manifestações adversas face ao mesmo.
66. O arguido aponta como principal impacto negativo do seu presente confronto judicial a privação da liberdade e ausência de convívio com os filhos.
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67. O processo de desenvolvimento psicossocial de AA – natural da ... e o segundo de um conjunto de três irmãos - decorreu no seio de um núcleo familiar estruturado, de matriz conservadora no que concerne ao desempenho dos papeis parentais e de condição económica estável.
68. Ambos horticultores e proprietários agrícolas, os progenitores desde cedo implicaram a prole ao nível da colaboração naquela atividade, existindo na cultura deste agregado uma preocupação com o rigor económico, designadamente a inexistência de dívidas e uma clara valorização do trabalho.
69. O arguido concluiu o 6º ano de escolaridade aos 13 anos de idade, não prosseguindo por desejar iniciar o seu percurso profissional, não vislumbrando oposição por parte dos progenitores.
70. Praticou atividade desportiva – futebol e natação – entre os 12 e os 18 anos de idade, circunscrevendo o seu circulo de sociabilidade a pares residentes na mesma freguesia, com quem veio a estabelecer relações de amizade que perduram à data de hoje. Evidencia uma juventude normativa, isenta de problemática comportamental.
71. Até 2008, colaborou com pai na atividade hortícola, revelando desde cedo apetência e motivação para o exercício de atividade relacionada com este setor. Entre 2012 e 2015 fundou e integrou – juntamente com onze sócios, nos quais se inclui o coarguido CC, uma sociedade de produtores - D..., Lda. - que se dedicava ao comércio por grosso de fruta e de produtos hortícolas. Posteriormente, constituiu a empresa A..., Lda, de idêntico setor de atividade, juntando cinco sócios entre os quais, um irmão, CC e a mãe deste, e em 2016, criou com o cônjuge a empresa E..., Lda., que mantém na atualidade.
72. Em 2007 contraiu matrimónio, sendo que desta relação resultou o nascimento de dois descendentes, com 12 e 9 anos de idade, no momento.
73. O arguido persiste em idêntico enquadramento sociofamiliar e habitacional do existente à data da factualidade descrita nos presentes autos. Compõe o agregado que integra, para além do próprio, o cônjuge (43 anos de idade, empresária) e dois filhos menores, e do ponto de vista habitacional dispõe de adequadas condições de habitabilidade e de conforto (moradia do casal que integra três pisos, de tipologia 3, com espaço envolvente de 1600m2, construída com recurso a crédito bancário, situada em zona predominantemente rural, onde as habitações são ainda escassas e confinam com terrenos de produção hortícola).
74. A dinâmica familiar apresenta estreitos níveis de coesão e proximidade, reforçada pelo exercício conjunto de atividade laboral pelo casal. Esta realidade tem-se constituído como um suporte significativo para o arguido, assim como o apoio de que dispõe de ambas as famílias de origem e pares.
75. O quotidiano de AA é absorvido pelas tarefas decorrentes da produção hortícola, que desenvolve conjuntamente com o cônjuge, no âmbito da E..., Lda. A empresa A..., Lda., por seu turno, encontra-se em processo de encerramento como consequência da existência dos presentes autos.
76. AA, igualmente empresário em nome individual no setor de produção hortícola, aufere rendimento fixo correspondente ao salário mínimo nacional (à semelhança do cônjuge), acrescido de rendimentos de valor variável atinentes aos lucros da atividade, que permitem ao núcleo familiar usufruir de um contexto que qualifica como confortável. Paralelamente, descreve como despesas de maior relevo a prestação relativa à amortização de crédito bancário (€494), consumos domésticos (€180) e seguros de quatro veículos que orçam os €1000 anuais.
77. Quanto à imagem comunitária do arguido, trata-se de um indivíduo - à semelhança do seu núcleo familiar - socialmente integrado. São-lhe atribuídos hábitos e competências de trabalho sólidos e estruturados e um padrão de vida convencional e de conformidade social.
78. Na qualidade de arguido, situa ao nível sócio pessoal uma eventual fragilização da sua imagem no meio de residência e ansiedade face ao julgamento, não obstante a positiva integração social que decorre da trajetória pretérita e atual de AA.
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79. DD nasceu e cresceu na região de ... e ..., na .... Os pais eram proprietários e agricultores de produtos hortícolas.
80. Primogénita de uma fratria de seis irmãos, beneficiou de um relacionamento com os pais e irmãos gratificante, ainda que pautado pelas premissas de enfoque nas obrigações laborais e respetiva entreajuda, em ambiente desenvolvimental equilibrado.
81. Detentora de ensinamentos escolares ao nível do 3º ano de escolaridade, por questões de organização familiar, precocemente, a sua integração integral no labor agrícola foi concretizada e mantida junto dos progenitores no negócio daqueles até aos 20 anos.
82. Estabelecendo uma relação de intimidade com um elemento masculino, operário fabril em França, DD casou com 20 anos, deslocando-se com o cônjuge para aquele país durante cerca de dois anos. Permaneceu em Portugal durante um curto espaço de tempo, já com o primeiro descendente (nascido em França), que terá ficado aos cuidados dos avós maternos, quando o casal emigrou para o Canadá (Toronto), onde nasceu o segundo filho CC.
83. No Canadá, o cônjuge era jardineiro e a arguida empregada de limpeza em casas particulares, dispondo de uma dinâmica de vida de aparente integração sociocultural, designadamente os descendentes, tendo, entretanto, o filho mais velho integrado o agregado familiar dos pais e do irmão.
84. O regresso a Portugal terá sido motivado pela situação clínica do cônjuge, que apresentava sérios problemas de saúde, do foro cardíaco, tendo falecido há cerca de 24 anos.
85. O núcleo familiar passou a residir em ..., em habitação própria, de tipologia 5 e distribuída por dois pisos, tratando-se de uma das principais artérias da freguesia.
86. A atividade associada à agricultura foi retomada em terrenos próprios e, posteriormente, em terrenos arrendados, atividade que veio a ser maioritariamente protagonizada pelo seu filho mais novo (coarguido), com quem foi estabelecida uma relação de vinculação afetiva significativa, elemento que permaneceu integrado no agregado familiar da arguida, mesmo após o casamento, constituindo-se como o principal elemento de suporte de DD.
87. Com o agravamento do seu estado geral de saúde, em correlato com a autonomização do seu descendente, DD deixou progressivamente de o coadjuvar na atividade laboral.
88. À data dos factos de que se encontra acusada, DD constituía agregado familiar isolado e a sua subsistência era assegurada pelo valor de reforma atribuída pelo Canadá desde os seus 66 anos (aproximadamente €700), complementados pelo valor da reforma atribuída pelo trabalho executado em França (cerca de €120).
89. DD convivia quase diariamente com o filho (coarguido), uma vez que ia para a casa deste coadjuvando-o com as tarefas inerentes aos cuidados dos 3 netos.
90. Na atualidade, DD preserva a mesma residência, sito à Rua ... – ..., área de residência e comunidade local, onde é sobretudo referenciada pela educação, pela relação privilegiada e próxima com o coarguido, seu filho, destacando-se uma imagem social favorável. É-lhe atribuído um padrão de vida ajustado e de analogia social.
91. A subsistência continua a ser assegurada por ambas as reformas respeitantes ao período de emigrante e que lhe conferem uma vivência de sustentabilidade, a qual é complementada com bens/património, designadamente a sua habitação e dois terrenos de produção hortícola, sem assinalar particulares despesas.
92. A sua dinâmica de vida é cingida ao meio comunitário onde se sente apoiada pela rede de vizinhança e pelas atividades religiosas em que se envolve.
93. Semanalmente visita a nora e os netos, prestando-lhes o apoio que lhe seja solicitado e necessário.
94. Evidencia sentimentos de ansiedade.
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95. BB é filha primogénita de uma fratria de três irmãos, descendentes de um casal de condição económica mediana.
96. Os progenitores, trabalhador da construção civil e doméstica, respetivamente, organizaram uma vivência familiar de equilibrado ambiente, de referencial de apoio materno, aludindo-se à existência de relações familiares gratificantes.
97. A arguida frequentou os ensinamentos escolares na idade prevista, assinalando uma retenção no segundo ano de escolaridade, que atribui a problemas de inadaptação, considerando ter um desempenho académico suficiente, muito embora tenha abandonado o sistema de ensino, após a conclusão do 9º ano de escolaridade, para integrar o mercado de trabalho na área das confeções.
98. Com cerca de 18 anos integrou o ensino recorrente, em regime noturno e concluiu o 12º ano.
99. Posteriormente, concluiu a Licenciatura de Contabilidade e Administração na Escola Superior de Estudos Industriais e de Gestão, do Instituto Politécnico do Porto.
100. BB realizou um estágio de 9 meses, assinalou um período de desemprego de cerca de 6 meses, integrou a Ordem dos Contabilistas e, em 2012, obteve colocação profissional no escritório “F..., Unipessoal”, uma empresa de contabilidade e consultoria fiscal, como contabilista, onde ainda se encontra integrada.
101. Sem aparentes registos de condutas desviantes e/ou transgressivas, BB destacava uma dinâmica interpessoal de integração, com convivialidade em ... onde foi catequista até 2016, de aparente recato social, mas com momentos de inserção em espaços de diversão, fundamentalmente ao domingo, no período da tarde, numa discoteca de referência das imediações de ..., onde conheceu o coarguido, seu marido, CC.
102. Constituindo uma relação de casamento com aquele em 2016, BB foi viver os primeiros anos para casa da sogra, também coarguida nos autos e afastou-se progressivamente dos elementos e atividades da sua comunidade de origem.
103. Enquanto contabilista e o marido empresário na área hortícola, contruíram a própria habitação, em ..., uma moradia independente com todas as condições de habitabilidade e conforto, contígua à habitação do cunhado e respetivo núcleo familiar, construída com recurso a crédito bancário, em terreno legado pelos avós maternos e situado em área de características rurais, onde as habitações são ainda escassas e confinam com terrenos de produção hortícola. A amortização do crédito bancário corresponde a uma mensalidade na ordem dos 350 euros.
104. Dispõe de redes de sociabilidade familiar e de uma imagem vicinal de positiva consideração.
105. A parentalidade inicia-se no ano de 2018 com o nascimento do primeiro filho, seguindo-se o nascimento dos filhos gémeos em 2020, considerando a arguida dispor de um relacionamento conjugal gratificante, nomeadamente ao nível da afetividade e cooperação, desconhecendo eventuais hábitos etílicos do cônjuge, salientando a existência de uma dinâmica de vida que situa no padrão normativo.
106. À data dos factos de que se encontra acusada, assim como na atualidade, BB integrava a comunidade sócio residencial de ..., onde ela e o seu cônjuge – coarguido dos autos – têm uma imagem social sem associações de desvio e de conotação comunitária positiva, sendo, então, o agregado familiar composto pelo casal, o cônjuge (preso preventivamente), e pelos três filhos, que se encontram integrados em equipamentos escolares.
107. BB sempre contribuiu para os rendimentos do agregado, auferindo uma remuneração na ordem dos 1100€, mantendo reduzida imiscuidade na actividade do marido, a quem atribui o recebimento de um salário de referência mínima, sem quantificar outros eventuais rendimentos decorrentes da atividade profissional do mesmo.
108. Mantém o apoio ao cônjuge, designadamente visitando-o com regularidade.
109. Com este processo, sentimentos de exposição social e devassa, impactaram psicologicamente a arguida, ainda que nunca tenha sido importunada.
110. Ao nível laboral o impacto situa-se no momento das diligências policiais que ocorreram em sede laboral, tendo tido necessidade de revelar aos superiores hierárquicos a existência do presente processo, salientando o apoio dos mesmos, nomeadamente na preservação das suas funções e responsabilidades.
111. BB continua a beneficiar da aceitação, confiança e apoio familiar, quer do seu núcleo de origem, quer da parte da família do cônjuge, pese embora os seus familiares aparentemente desconheçam a sua constituição como arguida e a natureza da acusação.
112. Sente-se ansiosa e atemorizada com o desfecho do processo.
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2.2 – FACTOS PROVADOS DAS CONTESTAÇÕES:
- Nenhum, na medida em que parte deles assumem natureza meramente impugnatória/conclusiva, e os restantes acabam por integrar o elenco da factualidade vertida nos relatórios sociais e nos C.R.C.s, nos termos que deles melhor constam.
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2.3 – FACTOS NÃO PROVADOS:
1) A cozinha referida no facto provado n.º 4 estava instalada num contentor.
2) A cama de esponjas referida no facto provado n.º 5, era improvisada.
3) O EE não tinha amigos em Portugal e convivia unicamente com o arguido CC.
4) O arguido CC nunca pagou o salário ao EE.
5) O arguido CC ficava com o dinheiro do trabalho do EE.
6) O EE tinha crédito nas mercearias onde fazia compras.
7) Para além do comportamento descrito no facto provado n.º 10, o arguido CC bateu várias vezes ao EE, noutras ocasiões, com as mãos.
8) Através da conduta descrita no facto provado n.º 10, o arguido logrou obrigar o EE a trabalhar.
9) Nas circunstâncias descritas no facto provado n.º 12, que o arguido CC tivesse carregado duas paletes.
10) Nas circunstâncias descritas no facto provado n.º 13, que o arguido CC e o EE também tivessem carregado uma palete.
11) Nas circunstâncias descritas no facto provado n.º 15, que o arguido CC também tivesse adquirido 2 garrafas de vinho Favaios de 5 cl cada.
12) No dia 10.06.2021, entre as 8h03m e as 11h15m, o arguido CC agrediu o EE provocando-lhe as lesões descritas no facto provado n.º 17.
13) Nesse dia 10.06.2021, entre as 08h03 e as 11h15, foi o arguido CC quem procedeu do modo descrito e provocou as lesões referidos no facto provado n.º 18.
14) Após ter praticado aqueles factos o arguido CC, de forma não apurada, levou o corpo do EE até à construção que servia de cozinha, onde o sentou despido apenas com uma meia num pé, aí o deixando.
15) Nas circunstâncias descritas no facto provado n.º 21, que o arguido levasse duas paletes, e que se apresentasse com um pequeno ferimento no sobrolho.
16) Nas circunstâncias descritas no facto provado n.º 22, que o arguido CC também tivesse dito ao HH que tinha carregado a carrinha sozinho.
17) Nos contactos telefónicos mencionados no facto provado n.º 24, que o arguido CC tenha dado conhecimento à sua mãe da morte do EE.
18) Nas circunstâncias descritas no facto provado n.º 27, os arguidos ainda agiram com o objectivo de destruir vestígios que relacionassem o arguido CC com a morte do EE, e nesse local vestiram-no com roupa lavada.
19) Os arguidos CC e DD colocaram uma camisola vermelha e umas boxers no corpo do EE e carregaram a viatura da marca Opel com diversos objectos, designadamente as garrafas de vinho do Porto, tendo a seguir o arguido CC ido colocar esses objectos num contentor do lixo nas imediações.
20) Que as calças mencionadas no facto provado n.º 31 fossem as que a vítima vestia na manhã do dia 10.06.2021, e que o arguido CC não tivesse conseguido localizar o telemóvel.
21) O arguido CC procurou os documentos do EE, pelo que remexeu todo o conteúdo da roulotte.
22) Nas circunstâncias referidas no facto provado n.º 34, os arguidos acordaram em adiar o transporte do corpo do EE para momento posterior.
23) Nas circunstâncias descritas no facto provado n.º 37, que os arguidos tenham colocado um casaco no corpo do EE e um chapéu na cabeça do mesmo para lhe cobrir o rosto.
24) Nas circunstâncias descritas no facto provado n.º 39, que tenha sido o arguido AA a colocar as cadeiras na garagem.
25) Como os arguidos não encontraram uma meia igual à que EE tinha num dos pés, o arguido AA tirou as próprias meias que usava e colocou-as nos pés de EE.
26) Que tivesse sido o arguido CC a remover da roulotte os objectos descritos no facto provado n.º 44, e a coloca-los, juntamente com as calças mencionadas nos factos provados nºs 31 e 45, debaixo dos plásticos.
27) O arguido CC sabia que, ao agir da forma descrita, controlando, agredindo fisicamente, insultando e obrigando o EE não só a trabalhar sob as suas ordens sem lhe entregar a devida remuneração, mas também a viver nas estufas nas referidas condições, o colocava na sua completa dependência, o constrangia na sua liberdade e dignidade com o objectivo de obter vantagens económicas decorrentes do trabalho do mesmo e o reduzia à condição de escravo, como pretendia.
28) O arguido CC, ao introduzir na região anal do EE o objecto contundente não identificado, provocando-lhe as referidas lesões e hemorragia, quis e conseguiu causar a morte daquele, o que sabia e representou como consequência directa e necessária da sua conduta.
29) Sabia ainda que aquele seu acto era cruel e que com ele aumentava o sofrimento do EE, o que também quis.
30) Em toda a actuação supra descrita o arguido CC agiu deliberada, livre e conscientemente, sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei.
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2.4 – FACTOS NÃO PROVADOS DAS CONTESTAÇÕES:
Nenhum.
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2.5 – A restante matéria vertida na Acusação e a que consta das Contestações não foi considerada provada ou não provada, dado constituir alegação conclusiva e/ou de direito ou meramente impugnatória, sem relevância para o objecto dos autos na vertente do apuramento da responsabilidade criminal dos arguidos, salientando-se da acusação:
- “O EE viveu assim (…) na completa dependência do arguido CC, que o controlava (…) constrangendo-o na sua liberdade e dignidade”.
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2.6 – MOTIVAÇÃO:
Os arguidos optaram por lançar mão do direito que lhes assiste de não prestarem declarações.
Pelo que, a todas as questões emergentes nenhuma explicação foi prestada.
Nos termos da lei, esta realidade não pode impedir que o tribunal aprecie livremente os meios de prova produzidos ao abrigo do disposto no art. 127º do CPP e extraia as conclusões que se reputam por verosímeis, a partir da conjugação dos mesmos.
De acordo com os seus termos “Salvo quando a lei dispuser diferentemente, a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente”.
Consagra este preceito, na falta de disposição legal específica (ex. prova documental, pericial, por confissão) o critério da livre convicção, no sentido de não vinculada a critérios formais, que não sem fundamentação ou arbitrária.
A convicção está sujeita, antes de mais, à prova produzida ou examinada em audiência - art. 355° do CPP.
Está vinculada, por outro lado, aos critérios legais de apreciação vinculada de determinados meios de prova - vg. prova por confissão, prova documental, prova pericial.
E está ainda subordinada às disposições legais sobre produção e validade dos meios de prova - métodos proibidos de prova e correspondentes nulidades de valoração (cfr. designadamente os artigos 128° a 190°e 126°, nºs 1 e 3, do C.P.P.).
Mesmo quando não sujeita aos critérios legais de apreciação vinculada, deve ser "segundo as regras da experiência comum", sem nunca perder de vista o princípio in dubio pro reo decorrente do princípio da presunção de inocência do arguido.
No caso sub judice, os factos supra descritos, provados e não provados e apurados criticamente, assim resultaram com fundamento:
«Na resposta aos factos provados nºs 1, 2, 3, 4, 5, 6, 7, 8, 9, 10 e 11 e factos não provados nºs 1, 2, 3, 4, 5, 6, 7, 8 e 27, o Tribunal alicerçou-se fundamentalmente, na prova testemunhal que concatenamos com alguma prova documental e com as regras da experiência comum.
Entrando na apreciação critica dos depoimentos, importa referir que de uma maneira geral todos demonstraram conhecer o arguido CC e a vítima, por com eles terem trabalhado nas estufas e/ou no armazém da “A...” ou por frequentarem os mesmos locais e estabelecimentos, designadamente, mercearias, cafés e restaurantes, sendo, assim, as suas declarações sustentadas em razão de ciência.
A actividade agrícola desenvolvida pelo CC, a constituição da sociedade “A...” por ele, pelo co-arguido AA, pela testemunha GG, e a utilização pelos seus 5 sócios do armazém situado na Rua ... (....), para comercialização e escoamento dos produtos hortícolas que, individualmente, produziam, constitui factualidade que nenhuma dúvida suscitou ao Tribunal face à consentaneidade dos depoimentos produzidos, conjugada com a prova documental demonstrativa da localização do armazém e das estufas do arguido CC, bem como o print de fls. 416 (base de dados da Segurança Social referente ao registo do arguido CC) – facto provado n.º 1.
- Relativamente à prova testemunhal, começamos por inquirir o inspector da Polícia Judiciária II, que efectuou diligencias no âmbito do inquérito dos presentes autos; com excepção da alusão às condições degradadas que encontrou na roulotte na noite do dia 10 de Junho de 2021 e na semana seguinte, não demonstrou qualquer conhecimento directo dos factos em discussão, relatando ao Tribunal o que as testemunhas inquiridas lhe transmitiram e o que percepcionou a partir das escutas telefónicas acerca dos maus tratos verbais do arguido CC à vítima, as condições da roulotte e o desconhecimento das circunstâncias em que a vítima ali passou a residir, a inexistência de instalações sanitárias e o local onde a vítima tomava banho, pelo que o seu depoimento não foi inteiramente determinante na formação da convicção do Tribunal nesta matéria.
Procedeu-se à inquirição da testemunha FF, proprietário da mercearia situada nas imediações das estufas do arguido CC, o qual, de forma directa e pormenorizada, contou ter apenas ouvido falar da utilização da roulotte como alojamento da vítima nas estufas, não o presenciando, e descreveu os hábitos quotidianos deles, uma vez que, quase diariamente, arguido e a vítima se dirigiam ao seu estabelecimento onde se alimentavam com três sandes e bebiam cerveja e Favaios, esclarecendo que as refeições eram habitualmente pagas por CC ou pela vítima caso fosse sozinha buscar comida e bebidas para levar para a exploração.
JJ, empregado de armazém da empresa “B...” onde, periodicamente, o arguido e a vítima entregavam produtos hortícolas, referiu de modo calmo, sereno e isento, que nunca viu CC ser agressivo ou injuriar a vítima.
HH sócio-gerente da “B...”, corroborou o depoimento da anterior testemunha, ou seja, nunca presenciou agressões ou insultos do arguido CC dirigidos à vítima quando ali se deslocavam, indo mais longe ao afirmar que aparentavam ter boa relação e entendimento.
Quanto a GG, um dos sócios da “A...” que diariamente exercia funções no armazém da sociedade próximo dos terrenos de CC, não conhecendo directamente as condições de vida da vítima, relatou o que sabia por intermédio do que lhe era dado a conhecer pelo próprio EE quando se deslocava ao armazém, e em resultado das conversas mantidas com o arguido; referiu que o EE tinha sido contratado pelo arguido para trabalhar nas estufas e que nos últimos três anos só trabalharia para ele, confirmando então a residência na roulotte, a utilização da construção (anexo) dotada de luz eléctrica, e a inexistência de saneamento e de rede pública de água embora existissem poços; alegando desconhecer o montante do salário que lhe era pago pelo arguido CC, afirmou que chegou a ver o arguido dar-lhe dinheiro para comprar tabaco e fazer compras, entre € 10, € 20 ou € 30, que lhe fazia descontos para a Segurança Social, dizendo que o arguido era a pessoa que o ajudava, que mais ninguém queria saber dele para trabalhar; em relação aos horários de trabalho, foi claro ao referir que o EE trabalhava pouco, que quando se lembrava não ia trabalhar e quando lhe apetecia ficava a dormir, mas como não era fácil contratar pessoas para trabalhar no campo, o pouco que fazia representava sempre alguma coisa; que em algumas ocasiões chegou a ver vê-lo no Café na companhia de outras pessoas onde falava português e ucraniano; quanto aos hábitos de higiene, disse que presenciou várias ocasiões, uma a duas vezes por semana, em que o arguido trazia a vítima para tomar banho na casa-de-banho do armazém, contra a sua vontade, apenas acedendo por insistência do arguido que lhe dizia “vai tomar banho” “tens de tomar banho”, nunca o ali vendo sozinho para esse efeito, apesar de o armazém se encontrar sempre aberto durante o horário de expediente; com menor convicção, é certo, não deixou de confirmar que a vítima faria as necessidades fisiológicas no meio das estufas; e confirmou ainda que quando a vítima se encontrava embriagada, o que acontecia com frequência provavelmente diária, chegou a ver o arguido chamar-lhe esporadicamente “seu bêbedo”.
KK, pessoa que trabalhou nas estufas para CC entre 2016 e 2017/2018, disse ter trabalhado com a vítima após ter vindo viver para a roulotte, cerca de seis meses antes de se ter despedido; por referência a esse período, demonstrou conhecimento directo quer das condições em que a vítima vivia, quer das circunstâncias em que trabalhava para o arguido; de modo espontâneo e detalhado, relatou nunca ter visto o “EE” – como a vítima era conhecida – com grandes dinheiros, que embora tivesse visto o arguido dar-lhe € 20 ou € 30, desconhece como era pago o ordenado dele, que se queixava naquela altura de ganhar pouco, acrescentando que se fosse verdade é porque trabalhava pouco, mas que se encontrava inscrito na Segurança Social; corrobora o anterior depoimento ao afirmar que a vítima andava sempre embriagada tal como, por vezes, o arguido CC e que quando isso acontecia “pegavam-se um com o outro”; à semelhança dos outros inquiridos, refere que logo pela manhã chegou a ver a vítima comprar e pagar bebidas e comida – vinho, conservas e pão – para levar para a roulotte, tendo visto o CC pagar pelo menos em duas ocasiões, adiantando que o EE devia beber vinho na roulotte durante a noite, porquanto, de manhã já o encontrava bêbedo; disse também que ao almoço o arguido e o “EE” iam sempre ao restaurante, onde este escolhia o que queria almoçar e beber, limitando-se o arguido a pagar e por vezes a comprar-lhe carne para ele cozinhar à noite; no que diz respeito aos episódios de embriaguez que presenciou, caracteriza ambos como agressivos, explicando que uma vez viu o CC “dar um cachaço” ao EE por estar embriagado e a fazer mal o trabalho, e que se chamavam impropérios mutuamente, isto é, o CC insultava-o de “filho da puta” “corno” “animal” “badalhoco” e a vítima, por sua vez, replicava “filho da puta és tu” “corno és tu”, mas que passadas duas horas já tudo tinha passado e iam juntos para o café; de resto, quando o arguido se encontrava sóbrio nunca o viu tratar mal o EE nem ameaçá-lo, que até tinha pena dele pois ninguém o queria para trabalhar; confirma o depoimento de GG ao dizer que nas estufas não existia casa-de-banho, e que a vítima ia ao campo fazer as necessidades; também presenciou episódios em que o arguido dizia à vítima para tomar banho no armazém, por vezes, obrigando-o face à recusa dele; relativamente às características da roulotte disse que quando o arguido a trouxe para o “EE” estava limpa e em condições, um verdadeiro “T1”, possuindo um fogão, uma cama, uma mesa e um banco, um lavatório de cozinha, um guarda-fatos e uma casa-de-banho com retrete que desconhece se funcionava, coexistindo ao lado a “barraca” onde viu a vítima comer refeições por ali ter um fogão, uma botija de gás e um frigorífico, chegando a ver pão, arroz, fiambre e mercearias que o “EE” ia buscar à mercearia; a este propósito afirmou que a vítima não tinha zelo, que apesar de lhe caber arrumar e limpar a roulotte onde vivia, não o via faze-lo; ainda com relevância contou que na mercearia da testemunha FF e nos cafés tanto o depoente como a vítima comiam e bebiam o que quisessem, sem restrições do arguido, aludindo ainda a vários momentos de boa disposição e provocações entre ambos posto que andavam sempre na brincadeira um com o outro.
PP, sócio dos arguidos na “A...”, confirma que nos últimos tempos, há cerca de cinco anos, o EE só trabalhava para o CC e que chegou a trabalhar um dia ou outro para ele quando CC o dispensava por não precisar dele, pagando-lhe directamente o montante de € 3,00/hora; descreveu as circunstâncias em que, por não poder pagar rendas, o arguido e EE decidiram arranjar a roulotte, mostrando-se a vítima satisfeita com a solução, corroborando KK ao referir que a roulotte se encontrava em bom estado e que não obstante o arguido lhe dizer para a limpar, o ofendido era desleixado; no que respeita às relações entre eles, afasta aspectos negativos e reforça a frequência conjunta e constante dos cafés e estabelecimentos da rua onde morava, embora também tivesse visto o ofendido nesses estabelecimentos com outras pessoas, sem o CC; para além disso, almoçava várias vezes no mesmo sítio que eles e, nessa medida, reafirma a dependência da vítima do consumo de bebidas alcoólicas, e do próprio arguido ao dizer que ultimamente bebia cada vez mais, que às refeições ambos bebiam mais do que o normal, e que EE tinha liberdade para pedir o que quisesse comer e beber; referiu também que o arguido ficava incomodado em virtude de aos fins-de-semana o EE se embebedar e depois não conseguir trabalhar e, por vezes, de se atrasar nas entregas pelo facto de aquele estar embriagado e não o ajudar; no que tange aos hábitos de higiene, demonstrou conhecimento da autorização concedida à vítima para tomar banho no armazém deles e das rejeições desta; desconhecendo quanto ganhava, embora tenha ideia que seria “à hora”, refere que chegou a ver a vítima pedir um adiantamento ao arguido para ir às compras e este anuir, esclarecendo que EE não trabalhava as “horas todas” para poder receber o ordenado mínimo; por último refere que durante as ocasiões que esteve com eles nunca viu o arguido insultar ou tratar mal a vítima.
Por conseguinte, os depoimentos das testemunhas GG, KK (ainda que este por referência sobretudo aos anos de 2017/2018) e PP, auxiliaram o Tribunal na formação da sua convicção sobre as circunstâncias de vida da vítima ao serviço de CC.
Quanto a QQ, mulher do arguido AA, revelou não conhecer bem EE nem as suas condições de vida, fazendo referência a um único dia de trabalho dele ao serviço do marido, que lhe terá pago no final do dia as horas que trabalhou, pouco contributo trazendo à discussão. Já RR, amigo de CC com quem outrora trabalhou, disse possuir campos próximos dos dele, afirmando de modo livre e isento que se cruzava com ele e com a vítima quando iam comer sandes e beber cerveja na loja do Sr. FF, chegando a ver o EE sozinho, e que quando este se encontrava sem comer o arguido mandava vir sandes para ele, estando ocasionalmente presente quando CC lhe dava dinheiro para comprar tabaco e fazer compras; referiu que numa ocasião foi trabalhar com eles, não tendo presenciado maus-tratos nem insultos do arguido; disse, por fim, que chegou a ver a vítima noutros estabelecimentos, sozinho, a beber, confirmando o bom ambiente nos restaurantes onde se cruzavam. Por último, a testemunha SS, amiga dos arguidos CC e DD, veio dizer que conhecia EE de vista em virtude de o ter encontrado algumas vezes nas festas em casa da arguida e que quando ele vinha ali comer era bem tratado e bem-recebido, sendo-lhe deferido o mesmo tratamento que era dirigido aos outros, apercebendo-se de relacionamento normal entre ele e CC.
Posto isto, analisando criticamente os depoimentos destas testemunhas, importa afirmar que foi com base neles que foi sendo sedimentada a convicção do Tribunal, face à coerência e espontaneidade das respostas oferecidas, sem contradições de fundo, mostrando-se de uma maneira geral concordantes relativamente a aspectos essenciais do objecto do processo, sendo patente que conhecem e convivem (ou conviveram) com o arguido CC e, pelo menos, desde 2017, com a vítima, tendo todos respondido directamente e do mesmo modo às perguntas que lhes iam sendo colocadas, razões bastantes para lhes ter sido dado relevo probatório.
Nesta conformidade, comprovou-se que quando adquirida pelo arguido CC, a roulotte era dotada de condições mínimas de habitabilidade, as quais se vieram a deteriorar por falta de limpeza da vítima posto que, na realidade, era quem ali vivia (e não o arguido), o mesmo sucedendo em relação aos equipamentos existentes na construção anexa utilizados na confecção de refeições, embora aqui se conheça menos bem o circunstancialismo que envolveu a sua utilização. Sobre esta questão, reside a dúvida sobre a eventual associação entre a deterioração destes espaços, e o desleixo a que a vítima se votou em consequência do constante estado de embriaguez em que emergiu, conforme foi asseverado pela maioria das testemunhas inquiridas que o conheciam. Como justificação para a aquisição da roulotte por algumas testemunhas foi adiantado tratar-se da solução encontrada pelo arguido e por EE para este residir, por não ter condições de pagar rendas de anterior habitação. Por conseguinte estaremos sempre a falar de decisão consensual e não de qualquer imposição do arguido. Dos depoimentos prestados, também não se pode solidamente concluir pela inexistência de vínculo laboral trilhado numa relação empregador/trabalhador, ou que existissem constrangimentos e desapossamento do fruto do trabalho da vítima, pese embora não se tivesse apurado com rigor a periodicidade do pagamento nem o valor do salário estipulado entre eles, para além do que consta do documento de fls. 1298/1301 proveniente da Segurança Social, e dos de fls. 1516 e 1519; neste particular e, independentemente das questões jurídico-laborais que eventualmente se pudessem colocar, não se pode desconsiderar a possibilidade da vítima trabalhar “à jorna”, isto é, “ao dia”, um costume enraizado no seio dos trabalhadores agrícolas, conclusão a que chegamos face aos depoimentos de QQ e PP nos segmentos em que referem terem beneficiado de um ou outro dia do trabalho da vítima após a concordância do arguido CC, pago na hora, sem descurar que era habitual os horticultores da região entreajudarem-se nos períodos de acréscimo de trabalho.
Inquestionável é também não se ter demonstrado a imposição do modo e do tempo de trabalho por parte do arguido em tudo que esteja para além da responsabilidade da vítima no bom desempenho do serviço em tempo útil face à agenda das entregas de produtos, tendo sido nesse circunstancialismo, de fraca prestação, que KK situa a única ofensa apurada; adentro deste contexto laboral, por comprovar ficaram também ameaças de castigos, resultando uniformemente de alguns depoimentos que, designadamente, após o almoço, já nenhum deles conseguia trabalhar por se encontrarem embriagados. Também não é compaginável com uma situação de escravatura laboral, em que se procura ocultar não só as condições degradantes e castrantes em que o trabalho é prestado, como o trabalhador em si, a realização de descontos para a Segurança Social (cfr. documento de fls. 1298 a 1301), facto conhecido por testemunhas que o referenciaram. Demonstrou-se, outrossim, que o arguido entregava dinheiro à vítima para se deslocar ás lojas e mercearias nas imediações com o fito de adquirir bens alimentares e o mais que precisasse no dia-a-dia, e que os lanches e almoços diários, além de escolhidos pela vítima, eram pagos pelo arguido. Tais depoimentos também serviram para afastar o convívio social exclusivo entre vítima e arguido, dado ter sido mencionada por mais que um dos inquiridos a presença de EE com outras pessoas nos cafés e lojas frequentados (2ª parte do facto não provado n.º 3), não podendo ainda olvidar-se que a vítima possuía telemóvel e computador, pessoais, conforme resulta dos autos de apreensão; é ainda de relevar, nesta questão, a integração ocasional no seio familiar do arguido CC (cfr. depoimento de SS), incompatível com a tentativa de desumanização postulada pela acusação. Por todo o exposto, afastada está então a hipótese de controlo dos movimentos e da localização da vítima, pelo arguido, inclusivamente durante o horário de trabalho, pois foi dito que nem sempre a vítima se prestava a trabalhar com CC por estar embriagada, soçobrando igualmente eventuais actos de execução conducentes ao seu isolamento relativamente ao exterior e restante “civilização”, da mesma forma que inexistem indícios de a vítima ter sido mantida durante todo aquele período, nas estufas, pela via da força e contra a sua vontade. De outra sorte, todos confluíram genericamente para a existência de relação satisfatória entre ambos, com episódios de distracção e divertimento, situando-se os insultos dirigidos pelo arguido à vítima nos momentos de embriaguez conjunta ou quando o arguido se encontrava insatisfeito com a ausência ou com a menor eficácia do trabalho executado pelo EE, não podendo aqui olvidar-se o meio rural em que viviam e o tipo de linguagem por vezes associada, tal como resulta das escutas telefónicas. Além do mais, sendo dito por quem presenciou (KK) que a vítima retorquia os insultos ao arguido em idêntica medida, teremos de o analisar, por um lado, sob o ponto de vista da confiança existente e, por outro, a ausência do “regime de medo” da vítima, inerente à necessária submissão. Esta linha de raciocínio encontra reflexo na transcrição das escutas telefónicas efectuadas ao arguido AA, a fls. 1021, em segmentos como “Ele morava porque queria. Tu nunca o acorrentaste nem nada”, querendo referir-se à vítima e à sua residência na roulotte, dizendo mais à frente “Se ele quisesse ir embora ele que se tivesse ido embora” respondendo-lhe o interlocutor KK “Estava assim porque queria, estás a perceber? Ele não tinha nada que esconder”; e a fls. 1203-v.º “Ele se vivia ali era porque queria. Não estava acorrentado. Não estava amarrado”; importa acrescentar que ambos os conheciam bem, lidando o co-arguido regularmente com CC e com a vítima, sendo de conferir credibilidade ao afirmado. No plano das transcrições, é ainda de ressaltar a que consta de conversação telefónica mantida entre o arguido AA e outro indivíduo com o n.º de telefone ...04, que lhe refere [EE já “mandava” no CC que quando iam comer, no final da refeição o CC dizia: “vamos trabalhar” e que EE respondia: “Vamos nada. Vamos beber mais uma cerveja”], chamando-se ainda a atenção para nova alusão a realidade assente aos olhos do Tribunal, a dependência do consumo de bebidas alcoólicas, conforme se infere das seguintes passagens transcritas a fls. 551 [… no meio disto tudo a vítima é ele (CC). Dizem que CC “se perdeu” desde que deu “auxílio” ao EE, tendo-o “metido lá para a barraca”. CC começou a meter-se “no vinho”, chegava às onze horas da manhã já não dizia coisa com coisa…]; [… O CC entrou “naquele caminho de vinho”]. O facto de não existirem nas estufas instalações sanitárias aptas a serem utilizadas pela vítima no dia-a-dia, é sintomático de degradação das condições em que ali vivia, embora também não se tenham apurado as circunstâncias da falta de utilização da sanita existente na roulotte; por outro lado, ficou patente certo cuidado e inconformismo do arguido CC com a higiene da vítima na medida em que partia dele a deslocação de EE ao armazém da “A...” para tomar banho, contra a vontade do ofendido (cfr. depoimentos de quem frequentava ou trabalhava no armazém como GG, KK e PP).
- as cópias dos documentos pessoais da vítima de fls. 11, para além atestarem a sua identidade e nacionalidade, permitem suportar o facto provado n.º 2 a partir de “… o cidadão …” até final (cfr. ainda transcrição de fls. 1197-v.º).
No que toca aos restantes factos dados como não provados, para além da sua fixação resultar das considerações já expendidas, ficarem eles a dever-se à total ausência de prova ou à falta de elementos seguros que os pudessem confirmar. Em específico ao facto não provado n.º 7, vimos que nenhuma testemunha, para além de KK, revelou conhecimento do mesmo. O facto não provado n.º 1 resulta da visualização das fotografias de fls. 96 (a partir da foto n.º 10) a 99 do relatório de exame pericial de fls. 91 e ss.., e das fotografias de fls. 177 a 184 do relatório de exame pericial de fls. 153 e ss.. Registou-se igualmente ausência de prova de que a cama de esponjas existente na roulotte tivesse sido improvisada pelo arguido ou pela vítima e, nessa medida, que não derivasse da montagem original da mesma (fotografia n.º 4 de fls. 95 e nºs 61 e 62 de fls. 189-190.
Adentro deste figurino crítico, não pôde este Tribunal firmar convicção da existência de vileza, crueldade e ultraje no tratamento dirigido pelo arguido à vítima, e que alguns dos factos, isolada ou, conjuntamente, permitissem concluir pela instrumentalização de EE por CC, como se de património dele se tratasse, e como se o visse única e, exclusivamente como “máquina agrícola”.
«A convicção formulada quanto aos factos provados nºs 25, 26, 27, 28, 29, 30, 31, 32, 33, 34, 35, 36, 37, 38, 39, 40, 41, 42, 43 e 48, e factos não provados nºs 18, 19, 20, 21, 22, 23, 24 e 25, é a consequência do que de inequívoco, convergente e seguro resulta do conjunto da prova produzida sobre esta questão, chamando-se a atenção para a preponderância das transcrições das várias escutas telefónicas efectuadas - após prévia autorização judicial - às declarações do arguido AA, onde descreve todo o circunstancialismo que norteou a sua participação nos factos, podendo constatar-se que ao longo das várias conversações foi mantendo versão idêntica (ou aproximada) do que se passou naquele dia 10.06.2021 – cfr. transcrição das escutas telefónicas, de entre as quais se salienta as de fls. 556 a 558-v.º e 1193 a 1202.
Em face do que detalhadamente explicou relativamente à forma como ele e os co-arguidos actuaram a partir sensivelmente das 17h30 daquele dia 10.06.2021, foi perceptível ao Tribunal a sucessão cronológica dos acontecimentos a partir do momento em que foi contactado pela arguida DD e foi informado da morte do “EE” (fls. 1197 e 1203) e as deslocações que se seguiram ao local onde o corpo se encontrava – nas estufas pertencentes ao arguido CC –, numa primeira ocasião, cerca das 18h10 na companhia da sua mulher e filho menor, onde se deparou com os outros três arguidos; e, na segunda, depois do corte e entrega de encomenda de alfaces, após as 20H19, quando nas estufas já só se encontravam os arguidos CC e BB (cfr. fls. 1201).
Temos por certo que o arguido não tinha fundamento para se deslocar ao campo se não tivesse sido chamado pela arguida DD; e que não era a ele que cabia, nem coube, a decisão de transportar o corpo para casa de outrém.
Relativamente à localização do corpo, as suas declarações encontram respaldo no auto de inspecção judiciária, fotografias de fls. 52-v.º (2ª imagem) e 53, no relatório pericial, fls. 179 e 181/184 e fls. 1200-v.º, cujas manchas hemáticas nos caixotes e no chão da construção na sua correlação com a causa de morte, não deixam dúvidas quando à presença do corpo naquele local.
Assim, de uma forma que nos logrou convencer pela coerência, detalhe e sinceridade que empreendeu ao longo das conversações transcritas, nenhuma dúvida existe do plano delineado na primeira deslocação que fez à exploração, no sentido de procederem ao transporte do corpo da vítima para a residência da arguida DD com o intuito de fazer crer às autoridades que o mesmo ali tinha falecido inopinadamente, tendo o arguido explicado muito bem de quem partiu tal ideia, ou seja, dos outros arguidos, e as razões subjacentes a tal desiderato, sendo que as condições de vida da vítima, nomeadamente, da roulotte onde habitava, ter-lhe-ão sido insistentemente veiculadas, especialmente pelas duas arguidas, não resultando dos coligidos elementos, indícios de outra(s) preocupação(ções) dos co-arguidos, designadamente, a que encerra o encobrimento do homicídio perpetrado por CC, de resto, como infra analisaremos (facto não provado n.º 18).
Teve-se, pois, em atenção na apreciação das provas atinentes, ao cuidado e rigor das suas declarações, explicando suficiente e, credivelmente, as circunstâncias em que se viu envolvido no transporte do corpo, e as razões que o levaram a aceder aos pedidos dos co-arguidos, com especial acuidade das arguidas [a fls. 557 “…quando chegou lá ainda tentou convencer CC a chamar as autoridades, mas que a mulher dele [BB] não concordou”; a fls. 557-v.º “… então que é que vós quereis que eu faça? E que a BB disse é pegar e levar…”; a fls. 558-v.º depois de tentar convencer CC a chamar as autoridades em vez de mexerem no corpo “…foi a mulher dele [BB], quem insistiu para que movessem o corpo”; a fls. 1193-v.º “…Depois estava lá a mulher. A mulher pediu-me por favor para ajudar…”; a fls. 1200-v.º “… Depois começaram logo a D. DD: não era melhor levar para casa. Lá para minha casa” “Foi a mãe. Foi a mãe”; a fls. 1201 “… A mulher (…) Oh AA, ajudas a pegar?” “Ela. Foi ela. Percebes? E o CC ficou calado…”], dizendo que o fez, não apenas por ter relação próxima e de confiança com CC e DD, mas, fundamentalmente, para evitar a aplicação de “multas” àquele arguido mercê das alegadas condições de vida em que a vítima vivia, caso as autoridades comparecessem nas estufas.
No que concerne à transcrição de fls. 1193/1198 salienta-se a propósito do facto assente n.º 34, o segmento “… Ainda fui cortar alfaces. Ele veio… Depois ele apareceu lá no campo mais a mãe…”, que reforçou a fls. 1197 e 1200-v.º; por seu turno e a propósito da movimentação do corpo, ressalta-se a expressão de fls. 1199-v.º “…Se… que foi que mexeu? E eu disse: fui eu e o CC. Mais ninguém.” e a fls. 1201 “Eu e mais o CC pegamos nele pusemos na carrinha. Virou-se para a casa da D. DD” – (1ª parte do facto provado n.º 36).
De realçar ainda o teor da transcrição de fls. 823-824 relativamente ao que viu quando chegou às estufas, tudo indicando que se esteja a referir à primeira deslocação das 18H10.
A testemunha QQ, mulher de AA, em relação à participação dele lançou mão do postulado no art. 134º do C.P.P., no entanto, veio a corroborar parcialmente as declarações transcritas ao referir que, na primeira deslocação às estufas, saiu do veículo onde se encontrava com o filho menor com o intuito de convencer o marido a abster-se de interferir, logrando por isso confirmar o que os outros arguidos em modo perturbado comentavam sobre o risco de descoberta das condições de vida do falecido, e as movimentações apenas da arguida BB, dentro da roulotte, para encontrar os documentos daquele (facto provado n.º 32 e facto não provado n.º 21) - cfr. igualmente fls. 1200-v.º.
No que concerne às démarches da transferência do corpo, o arguido AA mais uma vez descreveu e imputou circunstanciadamente a sua participação e a dos co-arguidos a partir dessa decisão até ao momento em que chegaram à residência da DD, explicando as várias etapas da “encenação”, isto é, o local onde o colocaram, a troca das suas roupas por se mostrarem manchadas com sangue da vítima, o cesto onde as calças ensanguentadas foram depositadas e a espera pela chegada das autoridades após o telefonema efectuado pelo arguido CC - cfr. auto de gravação e audição de fls. 1302-1303 (facto provado n.º 41).
Em relação a estes acontecimentos na residência da DD, em conjugação com as transcrições foram valorados os depoimentos de MM e NN, Guardas da GNR que, no seguimento da mencionada chamada para o “112” acudiram ao local da ocorrência, contando de modo livre, inequívoco e praticamente indiscutível o que encontraram na sala adaptada de garagem onde o cadáver permanecia sentado nas cadeiras junto à mesa de jantar, a sua posição, estado das roupas e a localização dos documentos pessoais da vítima, dando ainda conta do nervosismo deles, das versões apresentadas, a deslocação ao quarto onde lhe transmitiram residir a vítima e o ali encontrado, tendo sido unânimes na descrição daquilo que os comportamentos estranhos e pouco naturais dos arguidos lhes suscitaram, e que estenderam ao cenário ali gizado (factos provados nºs 38, 39 e 42).
Foram também tais depoimentos conjugados com o teor do relatório pericial de fls. 153 e ss. – em específico ao boné e casaco, a fotografia de fls. 165 – e, bem ainda, com os esclarecimentos do Inspector II e os que foram prestados pelo Enfermeiro do INEM OO, e o técnico TT, cuja relevância probatória resulta, em primeiro lugar, da manifesta isenção, objectividade e desinteresse das suas declarações, em segundo, da circunstância de terem estado no local onde o corpo se encontrava e, concomitantemente, terem descrito as características da residência e o ali visionado, o vestuário e a localização/posição da vítima, embora no seio dos depoentes só o Inspector tenha subido ao quarto onde simularam a residência do ofendido.
Ressalvam-se das declarações de II o que nesse dia ouviu do arguido AA sobre o que vestiram ao corpo, e o que lhe foi transmitido pelo arguido CC sobre o facto de a vítima ter, afinal, morrido nas estufas.
Ainda a propósito do facto assente n.º 40, atentou-se ao depoimento do Inspector II, e ao que resulta de fls. 26 e no ponto 6 de fls. 225; efectivamente, face ao aspecto ensanguentado dos boxers da vítima por comparação com as calças relativamente limpas que usava, não coadunável com a quantidade de sangue existente nos caixotes e chão do anexo, afigura-se-nos razoável concluir que essas calças terão sido posteriormente vestidas ao ofendido na residência da DD, caso contrário, teriam de apresentar aspecto semelhante à roupa interior.
Ainda em relação aos elementos do INEM é de realçar, em moldes semelhantes aos Militares, o ambiente estranho percepcionado entre os arguidos, não compatível com o que é habitual encontrar nas situações de paragem cardiorrespiratória, confirmando os documentos em frente do corpo e as contradições e hesitações nas respostas obtidas daqueles, particularidades que, conjugadas com o estado e posição do corpo, livores e rigidez, lhes levantou de imediato a suspeita que relataram ao Tribunal, ou seja, que a vítima foi deslocada já cadáver para a garagem/sala onde a encontraram (facto provado n.º 43, 1ª parte).
Os seus depoimentos são ainda relevantes para comprovar a presença da arguida BB e da sua viatura na residência da arguida DD, a qual abandonou o local só depois de ali terem chegado.
Para além do descrito, o Tribunal ponderou, para formação da sua convicção, o teor do auto de notícia de fls. 4/7, bem como o resultado das diligências de investigação realizadas, designadamente:
- auto de inspecção judiciária de fls. 49 e ss., salientando-se, para além do seu descritivo, a análise dos fotogramas que permitem melhor compreensão do acima exposto pelo arguido AA e testemunhas, no interior da residência da DD e nas estufas – roulotte e construção anexa – aqui se chamando a atenção para as características do local onde o corpo foi encontrado pelas autoridades (...), e onde terá sido visto pela primeira vez pelo arguido AA, na construção ao lado da roulotte.
- auto de diligência de fls. 90-116 correlacionado com os depoimentos acima referidos, que permitem comprovar a residência da vítima nas estufas (roulotte e anexo), onde possuía os bens pessoais e o seu centro de vida, robustecendo a prova do transporte do corpo; com efeito, para além de nenhum dos inquiridos ter aludido à sua residência na habitação da arguida DD (sendo certo que conheciam os seus hábitos e condições de vida), resulta à saciedade dos depoimentos dos dois Militares da GNR e do Inspector da PJ estribados nas diligências realizadas, que o ofendido nunca residiu na habitação dela – onde, como dissemos, apenas foi visto em algumas festas dos arguidos – face à descrição detalhada do que encontraram nessa noite no suposto quarto da vítima, destacando-se o facto de todos os seus pertences, nomeadamente, roupas, se encontrarem em caixas iguais às usadas nas estufas para transporte dos produtos em vez de arrumados nas gavetas dos móveis ali existentes, os quais haviam sido para ali transportados juntamente com o corpo (facto provado n.º 36, 2ª parte), e de o quarto se encontrar decorado com objectos pessoais dos arguidos CC e não do ofendido – cfr. auto de inspecção judiciária, a fls. 49-v.º e 50, e relatório de exame pericial de fls. 153 e ss., fls. 172 a 175, correlacionados com as declarações do Inspector II e do Guarda MM, coincidentes entre si.
Importa ainda assinalar que a testemunha PP, quando afirmou ser habitual ver a vítima e o arguido CC nos cafés e lojas da rua onde mora, próximo das estufas, também aludiu ao facto de o EE parar por ali de manhã (na rua) antes do arguido chegar e o apanhar para irem trabalhar, o que certamente não aconteceria se a vítima residisse na ....
- o “print” de fls. 68 referente ao registo automóvel do veículo Opel usado no transporte do cadáver; o de fls. 276 respeitante ao registo do veículo conduzido naquele dia pelo AA, e o de fls. 277 quanto ao veículo conduzido pela arguida BB, documentos conjugados com os fotogramas de fls. 280 e 301 a 322, além do mais, no apuramento dos intervalos temporais das suas sucessivas movimentações nos veículos em que se fizeram transportar de e para as estufas, a saber:
1. Imagem “17” de fls. 301 até fls. 305 para prova dos factos assentes nºs 25 (1ª parte) e 26 – cfr. ainda transcrição de fls. 1197;
2. Imagens de fls. 311 para prova do facto assente n.º 29 (1ª parte);
3. 1ª imagem de fls. 312 demonstrativa do facto assente n.º 33 (1ª parte);
4. 2ª imagem de fls. 312 e imagens de fls. 313 a 315, igualmente em suporte do facto assente n.º 34, conjugadamente com as transcrições supra aludidas;
5. Imagens de fls. 316 até à 1ª imagem de fls. 318 para prova do facto assente n.º 35 (2ª parte);
6. 2ª imagem de fls. 318 e imagens de fls. 319 a 322 para prova do facto assente n.º 37, sendo de realçar em relação a este e ao ponto anterior, a relevância da vestimenta branca envergada pelo arguido CC (fls. 316) que permite mais tarde, a fls. 318 e 319, situa-lo na condução do veículo pertencente ao arguido AA; e das fotografias de fls. 51 e 51-v.º bem como as que integram o relatório de exame pericial, a fls. 200-202 (fotografias nºs 80 a 84), é possível constatar a existência de vestígios hemáticos no banco do passageiro do veículo Opel “..-..-CG”, o que vai ao encontro das declarações transcritas de AA no que concerne ao transporte do corpo.
De notar que os Autos de Diligência de fls. 257 e 278, e fls. 289 do auto de visualização, deixam evidente a necessidade de realização de acertos horários relativamente aos sistemas de vigilância “CCTV” que permitiram a recolha das fotografias vindas de elencar, nos termos aí descritos.
- detalhes de tráfego de fls. 1002 a 1044-v.º referentes, além do mais, aos números de telemóvel dos arguidos, resultando de fls. 1021-v.º que às 20:47 quando o arguido CC telefona à arguida DD, é activada a célula “... 3” correspondente à residência da arguida, o que que se infere do documento remetido pela PJ sob a referência n.º 33923353 datado de 22.11.2022, concernente à localização das BTS e respectiva orientação (azimute), com representação cartográfica, na zona de residência de DD, e dos documentos de fls. 1284 e 1288 (autos de visualização de exame); neste pressuposto, não residindo o ofendido na ... e tendo o Sr. Inspector e os Srs. Militares encontrado pertences dele num dos quartos da residência da arguida nas circunstâncias supra descritas, encontra-se razoavelmente demonstrado que depois de sair do campo do arguido AA, a arguida já não voltou às estufas permanecendo na sua residência a montar o cenário que vieram a transmitir às autoridades (facto provado n.º 35, 1ª parte).
- por sua vez os detalhes de tráfego de fls. 1008-v.º, 1021-v.º, 1039 e 1042-v.º, autos de visualização a fls. 1279-v.º e 1286, e fls. 1199-v.º (transcrição) são de molde a sustentar os factos provados nºs 28 e 30; e o teor do auto de exame, a fls. 1281-v.º no segmento do contacto “n.º 150 (pág. 178)”, ao fazer referência ao último contacto telefónico registado, comprova o facto provado n.º 31.
- documentos de fls. 457/462 demonstrativos da titularidade dos números de telemóvel em causa.
Para além do exposto:
- Na resposta positiva ao facto provado n.º 27, atentamos ao que resulta das intercepções telefónicas e demais considerações já tecidas, mas valoramos igualmente a circunstância de apenas os arguidos CC e DD se encontrarem nas estufas no primeiro intervalo de tempo, a que se juntou posteriormente a arguida BB, emergindo a decisão de transporte do corpo como a mais plausível para solicitarem a comparência do AA (facto provado n.º 29, 2ª parte).
- Na resposta positiva ao facto provado n.º 43, 2ª parte, consideramos essencialmente os fotogramas de fls. 203 a 206, e o depoimento corroborante de II, não olvidando que AA foi quem, juntamente com CC, carregou o corpo nas estufas, e que lhe coube, após o transporte, retira-lo do veículo Opel e leva-lo para a garagem; tendo trocado de roupa após a colocação do cadáver nas cadeiras e tratando-se da residência da arguida DD, é razoável e, por isso, se acolhe, ter sido ela a fornecer-lhe calças lavadas para se trocar.
Em suma, o provado neste segmento acusatório, é, pois, um conjunto de evidências e indícios objetiváveis, relativamente aos quais nenhuma dúvida razoável se coloca e que, em nosso entender, sustentam insofismavelmente a presença do corpo da vítima no campo/estufas do arguido CC e o seu posterior transporte para a residência da arguida DD, nos termos propugnados pelo Ministério Público.
Quanto à RESTANTE factualidade sobre esta matéria dada por NÃO ASSENTE, resulta a mesma da circunstância de não ter sido presenciada pelos inquiridos e das considerações já expendidas, por ter resultado provado apenas o que ficou a constar da matéria de facto nos termos analisados, e também por não ter sido produzida prova sólida e bastante sobre a mesma, designadamente, as transcrições das intercepções telefónicas que a omitiram por completo.
É o que sucede com a parte final do facto não provado n.º 18 e 1ª parte do facto não provado n.º 19, que os arguidos não explicaram, inexistindo, assim, qualquer prova das peças de roupa terem sido vestidas ao ofendido por estes dois arguidos, ou que tivessem agido em conformidade com o vertido nos factos não provados nºs 22, 23, 24 e 25.
Na resposta negativa ao facto não provado n.º 20, considerando que os objectos encontrados no bolso das calças, designadamente o telemóvel, nos permitem concluir razoavelmente pertencerem à vítima e, concomitantemente, que as calças também seriam dele, a verdade é que tais indícios, só por si, já não se mostram aptos a inferir com a mesma segurança que se tratassem das calças envergadas no referido período, por exemplo, pela ausência de vestígios hemáticos ou DNA.
Por seu turno, a chamada telefónica do arguido CC para o telemóvel da vítima não permite acolher a hipótese da acusação, dadas outras possíveis hipóteses a considerar.
- Por último, a convicção quanto ao facto não provado n.º 19 (2ª parte), resulta da circunstância de os arguidos não o terem esclarecido, e não ter sido feita prova do que eventualmente se encontrava na Viatura Opel durante a deslocação visionada nos fotogramas de fls. 306 a 310, dada a plausibilidade de outras hipóteses a considerar.
«Para dar como provados os factos nºs 12, 13, 14, 15, 16, 17, 18, 19, 20, 21, 22, 23, 24, 44, 45, 46 e 47, e como não provados os factos nºs 9, 10, 11, 12, 13, 14, 15, 16, 17, 26, 28, 29 e 30, serviram de base à formação da convicção do Tribunal os seguintes elementos de prova, que apreciamos crítica e, conjugadamente, além do mais, com as regras da experiência comum:
- Na resposta positiva aos factos nºs 12, 13 e 14, atentou-se aos fotogramas extraídos dos circuitos de videovigilância supra mencionados, em concreto os de fls. 294 a 301 (1ª imagem), que circunstanciam suficientemente trajectos e períodos horários do veículo Toyota do arguido (cfr. matrícula e toldo enrolado na traseira da cabine).
Os seus teores foram concatenados com o depoimento de FF que mantendo suficiente credibilidade confirmou a deslocação do arguido CC ao seu estabelecimento no dia 10.06.2021, logo pela manhã como era hábito, esclarecendo que só o arguido entrou, embora não excluísse que a vítima permanecesse no exterior, onde não a conseguisse visualizar; relativamente à localização da sua mercearia, entre os demais elementos, salienta-se o de fls. 289 e as descrições das imagens de fls. 290 e 292 (2ª imagem)/293 (1ª imagem).
Para comprovar o acompanhamento da vítima nessa deslocação, foram valorados os depoimentos de GG que, confrontado com as fotografias, confirmou tratar-se do veículo do arguido, que lhe parecia ser a vítima na 2ª fotografia de fls. 297 e que na 2ª fotografia de fls. 290 aparentava tratar-se do arguido à frente e a vítima atrás; KK já foi peremptório ao afirmar tratar-se da vítima nas fotografias de fls. 290, 293 (2ª foto), e na 2ª foto de fls. 297 onde seguia como passageiro, logrando identificar cabalmente, além do mais, a sua indumentária; outras testemunhas também lograram tal identificação, designadamente, RR em relação às de fls. 290 e 293, SS relativamente às de fls. 293 e 297, e UU só na de fls. 297.
A fotografia de fls. 296 também não deixa margem para dúvidas que, nessa manhã, para além do arguido, seguia outra pessoa como passageiro, cujas roupas correspondem às que foram descritas por testemunhas como pertencentes à vítima.
GG foi mais uma vez importante ao dar conta da presença de arguido e vítima, no dia 09.06.2022, no armazém da “A...” onde acordaram a entrega da encomenda de alfaces no dia seguinte, até às 10H00, na “B...”, aspecto corroborado pelas testemunhas JJ e HH, respectivamente, funcionário e sócio-gerente da empresa, constituindo esta a razão de ser de todas as movimentações ocorridas naquela madrugada e manhã, vindas de descrever.
Nesta conformidade, é possível firmar convicção que os dois ocupantes visualizados nesses dois dias no interior do Toyota ..., ou apeados, sejam, efectivamente, arguido e vítima, surgindo aquele no lugar do condutor e EE no do passageiro e, bem ainda, que no dia 10.06.2021, entre as 07H55 e as 08H03, a vítima se encontrava viva.
FF e KK confirmaram que arguido e vítima começavam cedo a trabalhar no campo e que entre as 08H00 e as 09H00 era costume deslocarem-se à mercearia do primeiro para lanchar e beber (ou levar para as estufas) cerveja, vinho, “Favaios” e copos de vinho do Porto, após o que voltavam para as estufas, trabalhar.
GG veio também dizer que em conversa mantida posteriormente com o arguido CC, este lhe disse que naquele dia o EE ainda o tinha ajudado a cortar alfaces, que estava bêbedo.
Perante estas explicações, conjugadas com a hora a que o arguido chegou ao campo nessa madrugada – cerca das 05H49 –, julga-se suficientemente demonstrado que quando ambos se deslocaram ao estabelecimento de FF, pelo menos parte das alfaces já se encontrariam colhidas e que a vítima teria participado nessa tarefa, como, de resto, era sua função.
- Por seu turno, a fixação dos factos não provados nºs 9 e 10, decorre da circunstância de, para além das caixas trazidas da “A...”, não terem sido visionadas quaisquer paletes no veículo de CC, cuja existência só foi possível constatar em abundância nas instalações da “B...” (fls. 299/300).
- A convicção positiva estabelecida em relação aos factos provados nºs 15 e 16, e a negativa firmada quanto ao facto não provado n.º 11, assenta desde logo nas declarações de FF que confirmou objectivamente o que o arguido CC adquiriu nessa deslocação; ao particularizar o oferecimento das garrafas e as razões que o levaram a tanto, sai reforçada a credibilidade das suas declarações.
Estriba-se igualmente nos esclarecimentos do Inspector II, concatenados com a 1ª imagem de fls. 180 reveladora da presença no anexo que servia de cozinha de uma rolha e uma cápsula de alumínio comummente utilizadas no engarrafamento de vinho do Porto, corroborando o depoimento da testemunha FF.
No que se refere à TAS da vítima, a Sr.ª Perita médica, Dra. LL explicou fundada e, cientificamente, as razões que a levam a concluir corresponder à taxa apresentada no momento da morte, que sustenta na zona do corpo onde a colheita de sangue foi realizada (membro inferior), por oferecer maior segurança em relação aos valores obtidos do que, por exemplo, o estômago, logrando convencer o Tribunal.
Por seu turno, HH veio dizer que nesse dia, quando chegou à “B...” onde o depoente se encontrava, o arguido lhe parecia alcoolizado e a cambalear.
Assim e, em rigor, a descoberta desses objectos em conjugação com os mencionados esclarecimentos e TAS apresentada pela vítima, permite-nos assentar que, efectivamente, arguido e vítima beberam do vinho do Porto adquirido nessa manhã, mas já não que tenham consumido integralmente as duas garrafas, o que afirmamos por duas ordens de razões: em primeiro lugar, sendo consabido o relevante teor alcoólico deste vinho, se a vítima tivesse ingerido as duas garrafas seguramente a TAS apresentada seria mais elevada; nesse seguimento e, em segundo lugar, a circunstância de o arguido ter conseguido conduzir o Toyota até às instalações da “B...” e descarregado sozinho as caixas de alfaces – conforme resulta da visualização do apurado pelo circuito CCTV desta empresa – sem que, por exemplo, haja notícia de qualquer acidente.
- Em específico ao apuramento do facto provado n.º 17, o Tribunal atendeu ao relatório de autópsia constante de fls. 927 a 935, que constituiu prova incontroversa de tal factualidade face à sua clareza e rigor científico, e aos fotogramas de fls. 168 a 170, 217 e 219; considerou igualmente as declarações complementares de uma das suas subscritoras, Dr.ª LL, e o depoimento do enfermeiro do INEM OO, que as constatou e descreveu.
- A resposta aos factos positivos nºs 21 e 22, decorre das imagens de fls. 298 a 300 (1ª imagem), e das declarações corroborantes do HH, sendo possível através da visualização desses fotogramas identificar cabalmente o arguido e o veículo Toyota, designadamente, pela matrícula.
- Por sua vez e em relação aos factos não provados nºs 15 e 16, renovam-se as considerações supra tecidas sobre o transporte de paletes pelo arguido, e os esclarecimentos de HH sobre a justificação que ouviu do arguido para o atraso.
No que diz respeito ao alegado ferimento, a testemunha já não foi categórica sobre o que viu, ao declarar que ele tinha qualquer coisa na testa ou ferida ou qualquer coisita, ligeira; por sua vez, o Inspector II vem dizer que olhou para a testa dele nessa noite, mas não reparou em lesões.
Pelo que, sem outra prova, não foi possível materializar com segurança tal factualidade.
- A convicção positiva quanto aos factos nºs 23 e 24, assenta das declarações concordantes de GG, nos detalhes de tráfego de fls. 1007 (8ª posição a contar do fim da página), 1021 (9ª posição a contar do fim da página) e 1021-v.º (8ª posição a contar do fim da página), fls. 1284 e fls. 1289.
De notar que GG foi confrontado com as declarações prestadas durante o inquérito, a fls. 258 e ss., cfr. resulta da respectiva acta, realçando-se o afirmado a fls. 260 sobre a questão do motivo de atraso.
- Na fixação do facto não provado n.º 17, para além de todas as considerações que infra se expenderão sobre a participação do arguido na morte da vítima, a convicção negativa do Tribunal resulta da circunstância de tal factualidade não ter sido demonstrada por qualquer meio de prova, revelando-se as chamadas telefónicas insuficientes a suportar a tese da acusação.
Com efeito, para além da panóplia de hipóteses a considerar como motivo para os contactos, o facto de cada uma das chamadas não atingir a duração de um minuto (31 segundos e 46 segundos, respectivamente), à luz das regras do normal suceder, não é coadunável com a transmissão de notícia com esta gravidade e dimensão; várias questões seriam seguramente colocadas e não se estranharia que a deslocação para as estufas ocorresse bem mais cedo do que as 17H30, constatadas.
- Na fixação dos factos provados nºs 44, 45, 46 e 47, e facto não provado n.º 26, assenta o Tribunal a sua convicção no relatório de exame pericial de 14.06, a fls. 92, 103 a 113, e 115 a 116, no auto relatório de exame pericial de fls. 980 a 983 que comprova a presença de vestígios biológicos da vítima na colcha, num dos paus apreendidos (embora em relação a estes se desconheça as circunstâncias em que ali foram deixados), no chão do anexo e nas calças que foram trocadas pelo AA após o transporte, mas sem quaisquer vestígios do perfil de CC, tudo conjugado com o depoimento de II por ter participado na inspecção ao local.
Todavia, não foi produzida prova – documental, pericial ou testemunhal – da autoria do arguido na sua remoção para o local onde no dia 14 foram encontrados.
- Por último, na resposta aos factos provados nºs 18, 19 e 20, e factos não provados nºs 12, 13 e 14:
As lesões descritas e causa de morte da vítima encontram-se igualmente comprovadas pelo relatório de autópsia médico-legal e declarações da Sr.ª Perita médica, cujo rigor metodológico e evidência científica, mais uma vez não suscitaram quaisquer dúvidas na constatação que tais lesões matam (e mataram) devido à perda de sangue.
Considerando o aí descrito relativamente à natureza e localização das lesões traumáticas, é igualmente seguro afirmar a existência de dois trajectos em consequência de, pelo menos, dois impulsos ou introduções de objecto de natureza contundente, ou como tal actuando, pelo orifício anal, um irrompendo na região perineal (peri-anal, com extensão para a região escrotal), e outro nas regiões anal e do cólon sigmoide/descendente.
Para sua melhor compreensão, chama-se a atenção para o teor da cota de fls. 186/187 e para a fotografia 10 da pág. 23 do relatório de autópsia relativamente ás duas perfurações explicadas pela Perita, que também se pronunciou sobre a razão por que as infiltrações sanguíneas constatadas devem ser entendidas como lesões traumáticas, dada a região onde foram provocadas (parede do intestino).

Vejamos agora o que se apurou quanto à autoria das lesões,
Ninguém viu o facto acontecer; não se sabe onde concretamente aconteceu.
Não se apurou o instrumento utilizado na agressão, pese embora a Sr.ª Perita tenha afirmado a possibilidade de vários utensílios agrícolas utilizados no campo, se mostrarem idóneos a configurar o objecto contundente a que aludiu no relatório.
Quanto ao pau apreendido na deslocação ao campo do arguido, apenas continha perfil de ADN da vítima.
Nesta conformidade, a prova produzida sobre o seu enquadramento factual é, essencialmente, indirecta. É conhecida a clássica distinção entre prova directa e prova indirecta ou indiciária. Aquela incide directamente sobre o facto probando, enquanto esta incide sobre factos diversos do tema de prova, mas que permitem, a partir de deduções e induções objectiváveis e com o auxílio de regras da experiência, uma ilação da qual se infere o facto a provar (cfr. Germano Marques da Silva, in Curso de Processo Penal, 3.ª ed., II vol., pág. 99). Embora a nossa lei processual não faça qualquer referência a requisitos especiais em sede de demonstração dos requisitos da prova indiciária, a aceitação da sua credibilidade está dependente da convicção do julgador que, embora sendo uma convicção pessoal, terá que ser sempre objectivável e motivável. Assim, em resultado dos depoimentos e dos outros meios de prova produzidos, deve haver indícios ou indicadores graves, isto é, sérios, importantes, fortes ou intensos, precisos, exactos, e todos concordantes, quer dizer, coincidentes ou direccionados segundo o resultado comum e consequente: o de que os factos se passaram como a acusação, nessa parte, os descrevia e, portanto, se deram como assentes.
Citando Tolda Pinto (in A tramitação do Processo penal, Coimbra Editora, pág. 644 e seguintes, nota 782), conforme refere ANDRÉ MARIETA (La Prueba em Processo Penal, pág. 59), são dois os elementos da prova indiciária: Em primeiro lugar o indício que será todo o facto certo e provado com virtualidade para dar a conhecer outro facto que com ele está relacionado (DELAPLANE define-o como todo o resto, vestígio, circunstância e em geral todo o facto conhecido, ou melhor devidamente comprovado, susceptível de levar, por via da inferência ao conhecimento de outro facto desconhecido). O indício constitui a premissa menor do silogismo que, associado a um princípio empírico ou a uma regra da experiência, vai permitir alcançar uma convicção sobre o facto a provar. Este elemento de prova requer em primeiro lugar que o indício esteja plenamente demonstrado, nomeadamente através de prova directa (v. g. prova testemunhal no sentido de que o arguido detinha em seu poder objecto furtado ou no sentido de que no local foi deixado um rasto de travagem de dezenas de metros). Em segundo lugar é necessária a existência da presunção que é a inferência que obtida do indício permite demonstrar um facto distinto. A presunção é a conclusão do silogismo construído sobre uma premissa maior: a lei baseada na experiência, na ciência ou no sentido comum que apoiada no indício - premissa menor - permite a conclusão sobre o facto a demonstrar. A inferência realizada deve apoiar-se numa lei geral e constante e permite passar do estado de ignorância sobre a existência de um facto para a certeza, ultrapassando os estados de dúvida e probabilidade. A prova indiciária realizar-se-á para tanto através de três operações. Em primeiro lugar, a demonstração do facto base ou indício que, num segundo momento faz despoletar no raciocínio do julgador uma regra da experiência ou da ciência que permite, num terceiro momento, inferir outro facto que será o facto sob julgamento. Em resumo, a presunção com base no factum probatum permite a ligação ao factum probandum se a presunção se basear num juízo lógico, seguro, causal, sequencial, preciso, directo e unívoco, não bastando a mera verosimilhança, o provável, o plausível, para que se permita operar de forma capaz uma presunção natural.
No caso vertente, os elementos probatórios trazidos por provas directas e indirectas foram conjugados entre si pelo Tribunal.
Neste desiderato, salienta-se o depoimento isento, livre e objectivo (pelo menos no que tange às conclusões enquanto investigador) do Inspector da Polícia Judiciária, II, que, começando por referir não conhecer os arguidos, descreveu o seu grau de envolvimento na investigação, a inspecção judiciária que realizou ao corpo da vítima e aos locais referenciados (residência da arguida DD e campos de estufas), as reportagens fotográficas, a localização e recolha dos vestígios hemáticos examinados, os objectos e roupas apreendidos e demais diligências realizadas na noite do dia 10.06.2021.
Explicou também como a partir do momento em que na segunda-feira seguinte - 14.06.2021 – recebe a informação preliminar provinda do INML a dar conta das causas do óbito de EE, a investigação passa então, para além da profanação, a seguir o rumo do homicídio, seguindo-se as ulteriores diligências de averiguação que detalhou, e todo o apreendido.
Pois bem, não oferece dúvida que a vítima não morreu na residência da arguida DD, tendo para lá sido transportada já cadáver, nas narradas circunstâncias.
Dos elementos que à investigação foi possível coligir, é inquestionável que a vítima foi vista pela última vez na companhia do arguido CC no percurso para as estufas.
Sobre o que se passou desde aí até ao momento em que o arguido abandonou o campo em direcção às instalações da “B...”, ninguém o presenciou.
Testemunhas que conhecem bem a zona e o campo do arguido, vieram dizer que se trata de uma considerável área rural onde se encontram implantados campos e estufas, agrícolas, sem vedações, que ali coexistem com estradas e caminhos, parte em terra batida.
É o caso do campo do arguido, ladeado por caminhos, outras estufas e campos, e sem vedações.
Conforme resulta do depoimento do Sr. Inspector e dos inúmeros fotogramas juntos, em relação a trajectos da parte da frente, de e para as estufas, foi possível fazer a sua cobertura através dos circuitos de videovigilância existentes nas residências e estabelecimentos situados nas imediações, não o tendo sido, porém, em relação a outras entradas/saídas e acessos da parte de trás, por não se ter conseguido aceder a tais sistemas e recolhido imagens, esclarecendo a propósito a testemunha que se pode ir para outros locais pelas traseiras, que até ficariam mais perto.
Aliás, o arguido não observava sempre o mesmo trajecto, consoante resulta do auto de visualização de fls. 288 e ss., posto que tanto circulava pela Rua ... como pela Rua ... (fls. 289, 290 e 296).
No que tange à encomenda de alface, tendo em conta que quando foram lanchar parte já se encontrava colhida, também se desconhece o remanescente por cortar e o período que levaria.
Foi ainda possível apurar que, pelas 10H09 quando CC devolve a “chamada não atendida” a GG, pelas 10H38 quando recebe os três sms`s da E-Redes, pelas 10H54 quando telefona novamente para o GG e este lhe devolve a chamada pelas 10H57 (contactos que a testemunha confirmou para saber do estado da encomenda), a célula BTS accionada é “CRIAZ FDD3” (cfr. documento remetido pela Altice, a fls. 1007), que o inspector II explicou tratar-se da que abrange a área das estufas.
No sentido de se perceber o alcance geográfico coberto pelo transmissor BTS da zona das estufas, foi junta pela PJ a informação já mencionada sobre a localização desta BTS CRIAZ FDD3, da qual resulta a localização das BTS alusivas à designação “CRIAZ”, na EN...3, junto de um armazém (primeiras imagens do documento), sendo que o emissor “CRIAZ FDD3” que cobre a zona das estufas do arguido, corresponde a uma espécie de cone delimitado na Imagem 1 pelas linhas azul e vermelha, de cuja análise se infere uma extensa área geográfica onde se inclui esse campo (vd. localização da “roulotte”), emergindo de forma esclarecedora a representação da quantidade de campos e estufas cobertas por tal transmissor, dimensões e respectiva organização geográfica.
A tal conclusão se chegou igualmente por força da visualização daquela zona durante a audiência, através do recurso à plataforma “Google Maps”.
Uma derradeira nota para deixar claro que quando o arguido telefonou a GG a dar conta da entrega da encomenda, na EN ...3 onde circulava, a célula então activada também foi a CRIAZ FDD3 (fls. 1007), o que demonstra a amplitude geográfica do transmissor.
Perante o quadro fáctico vindo de expor, é nossa convicção não podermos asseverar, para além da mera probabilidade, que durante o período definido na acusação, nem o arguido nem a vítima saíram das estufas ou que mais ninguém ali tenha entrado, nem que o arguido ali tivesse efectuado ou recebido os telefonemas e os sms`s, porquanto se poderia encontrar noutro qualquer lugar abrangido por esse transmissor.
Sem prejuízo, na hipótese de lá terem permanecido todo o tempo após as O8H03, sempre esbarraríamos com o desconhecimento do que ali se passou de concreto, entre o mais, o exacto local da plantação de alfaces, se havia mais do que um lote e neste caso se teriam sido, ou não, colhidas por ambos no mesmo lote, se o arguido se teria apercebido do sucedido à vítima.
Para além daquilo que já resulta do antes transcrito, convirá reforçar não ter sido possível, a partir das declarações, depoimentos, prova pericial e documentos, estabelecer o específico local onde a vítima morreu nem a hora da morte.
Afora as declarações do Sr. Inspector da PJ, foram considerados determinantes os depoimentos dos técnicos do INEM, o enfermeiro OO e o técnico TT, a par dos esclarecimentos prestados em audiência pela Sr.ª Perita Médica Dr.ª LL, por referência ao relatório de autópsia.
Tanto OO como a Sr.ª Perita explicaram adequadamente a relevância e o significado médico-legal da presença de livores corporais, os quais reflectem a posição predominantemente assumida pelo corpo após o decesso; entre os diversos fenómenos cadavéricos, os livores, em paralelismo com o grau de rigidez cadavérica instalado, assumem importância como referência para definir a hora provável de morte, nos termos por ela especificados.
A Sr.ª Perita também explicou o significado de “livores”; que quando alguém morre o sangue deixa de circular permanecendo dentro dos vasos sanguíneos e, que, ao fim de certo período de tempo, carrega-se numa parte do corpo e o que sucede é que o sangue já não circula porque se fixou dentro desses vasos, ou seja, os livores atingem o estado de fixos.
No caso vertente, os dois responsáveis do INEM confirmaram a existência de livores predominantemente para o lado direito do tronco do corpo da vítima, na zona do abdómen, abaixo do que a camisola vermelha ligeiramente levantada permitia observar, que comprovaram pelo corte da mesma efectuado por TT com vista à colocação das pás (por lhes ter sido transmitida situação de paragem cardiorrespiratória), explicando OO de forma perceptível ao Tribunal, indiciar esta localização que o corpo esteve predominantemente posicionado em decúbito dorsal direito.
Assim que se apercebeu disso, contou que não fez mais nada nem deixou que mexessem no corpo até à chegada das autoridades, pelo que nada soube adiantar sobre a eventual presença de livores na zona inferior do corpo, nos membros inferiores, o que se afigura relevante considerando que o corpo se encontrava sentado, na vertical, e os livores acompanham, como se disse, a posição assumida pelo mesmo.
Cumpre aqui realçar que a deslocação do corpo ocorreu menos de uma hora antes da chegada dos técnicos do INEM.
Referiu também que a boca já não mexia, confirmando rigidez articular consumada e, nesse pressuposto, que devia estar falecido há algumas horas, dizendo que já teria sido deslocado cadáver naquela posição.
Por sua vez, a propósito do fotograma de fls. 167, esclareceu que os livores não estavam fixos nem imutáveis, face ao resultado obtido com o simples movimento de pressão na pele.
Da análise do auto de inspecção judiciária, a fls. 26-v.º, decorre igualmente que os livores constatados eram “ténues e não fixos”; e a fls. 154 pode igualmente ver-se “livores ainda não fixos a convergirem para o lado direito” e “rigidez cadavérica instalada”.
Sob este prisma, a Sr.ª Perita também expôs de forma clara e em traços gerais, toda a dialética que envolve a análise e constatação da presença de livores, rigidez cadavérica e períodos horários associados, dizendo que no período post mortem, a rigidez se instala a partir da zona da cabeça para os pés e, em média, no espaço de duas horas na zona da mandíbula, quatro horas os membros superiores, seis horas a zona torácica e abdominal, e doze horas o corpo todo.
Mais referiu que os livores se fixam, em média, 12 horas após a morte, face aos factores que o podem influenciar.
Sucede, como a própria afirmou que, não obstante as primeiras informações veiculadas pelos técnicos do INEM, ao não ter sido solicitada a comparência de equipa médico-legal no local, nem ela nem outro médico legista puderam examinar o corpo, sobressaindo das suas declarações a importância de nada saber sobre o estado em que se encontravam os membros inferiores para daí poder extrair as conclusões reputadas como necessárias.
Ora, a fls. 154 do relatório pericial nada de particular foi referido quanto aos pés do ofendido, e na fotografia de fls. 212 onde se observam nitidamente os pés sujos com areia, também não foram mencionados livores e estado dos mesmos.
Por conseguinte, face aos dados a que acedeu, entre o mais, fotografias e o estado do tronco, onde a rigidez cadavérica estaria estabelecida, considera ser possível afirmar que a morte teria, em média, mais de seis horas, de acordo com os parâmetros supra mencionados.
Depois de confrontada com os fotogramas de fls. 167 e 168, corroborou que efectivamente os livores cadavéricos não estavam fixos, mas sim, móveis, ou seja, ainda vão acompanhar a mexida do cadáver, concluindo, assim e, em média, não se afigurar como líquido ir mais além do que as 8, 9 ou 10 horas de morte da vítima sobre a hora daquelas fotografias; acrescentou ainda que a cor das mãos visualizada na fotografia de fls. 168 não correspondia a nenhum fenómeno cadavérico.
Nesta explicação, a Sr.ª Perita declarou ignorar a hora a que as fotografias foram retiradas, no entanto, analisando o relatório de exame pericial de fls. 153 e ss. e o aí mencionado quanto à hora de início, o momento da captura das imagens andará à volta das 00H00.
Já em relação às imagens de fls. 207 e ss. – onde se inclui a de fls. 214 referente à presença de livores não fixos na região dorsal –, os Srs. Inspectores explicaram, a fls. 155, que antes de passarem ao exame do cadáver, aguardariam pela chegada do Delegado de Saúde a fim de comprovar o óbito (como é habitual nestas circunstâncias), resultando do Auto de Verificação de fls. 65, que a Sr.ª Delegada de Saúde constatou o óbito pelas 00H39 do dia 11.06.2022.
Donde, a conclusão que tais fotografias não terão sido captadas antes dessa altura, presumivelmente, até bem mais tarde, pois, de acordo com o relatado a fls. 175 ainda se deslocaram previamente ao campo e só depois de regressarem à residência da DD é que efectuaram o complemento fotográfico do cadáver (vd. fls. 202); em reforço, deve anotar-se que a fls. 28-v.º do auto de inspecção judiciária se apontam as 04:00 como o termo das diligências no local.
Nesta medida, forçoso é concluir que, ainda que recuássemos 12 horas (na hipótese, não verificada, de os livores se encontrarem fixos) a partir da hora em que se procedeu ao registo fotográfico, temos que na fixação da hora provável da morte não podemos ir mais além, isto é, para trás das cerca de 12H00 desse dia (sem olvidar que face ao estado dos livores a Sr.ª Perita admitiu um máximo de 10 horas de intervalo, ou até menos).
Este intervalo temporal encurta se olharmos a que a fotografia n.º 106 de fls. 214 foi captada posteriormente ao regresso das estufas, pela noite dentro, e os livores continuavam por fixar.
A conclusão semelhante se chega a partir da observação do enfermeiro OO; não tendo examinado a parte inferior do corpo (membros inferiores), teremos de valorar, pelo menos, os livores não fixos na zona do abdómen e rigidez cadavérica torácica, de que resulta, pelo menos, uma média de seis horas post mortem até à hora em que compareceram no local (próximo das 21H30).
Aliás, especificamente questionado sobre a questão, OO, com cerca de 14 anos de experiência ao serviço do INEM, admitiu como possível hora da morte, face ao que observou, algures no início da tarde desse dia, revelando não se sentir seguro considerar a hipótese colocada do início da tarde para trás.
Neste contexto, afirmar como certo e seguro que o falecimento da vítima tenha ocorrido no período descrito na acusação – entre as 08H03 e as 11H15 –, é temerário, dada a dúvida em estabelecer de forma arraigada a hora da morte de EE, máxime, que seja a indicada no despacho de acusação.
Ainda em relação às lesões causais do óbito, a nossa convicção vai no sentido de afastar a possibilidade de terem sido autoinfligidas, com tudo que isso representa.
Neste parâmetro, acompanhamos o que a Sr.ª Perita ressaltou, ao esclarecer que, embora não hajam elementos científicos que o excluam, no caso concreto as lesões não são compatíveis com autoagressão, desde logo, por existir mais do que um trajecto; pelo facto da sua localização corresponder a áreas anatómicas com muitos nervos, onde dói muito, não sendo curial que face ao primeiro impulso, se insistisse num segundo face à dor sentida; em virtude de as lesões autoinfligidas se caracterizarem normalmente por lesões superficiais e neste caso se constatar a sua relevante profundidade; e, bem ainda, por não se mostrarem compatíveis com acção voluntária do próprio para satisfação sexual.
Outro dos pilares da acusação reside na existência de várias lesões físicas nas zonas da cabeça, face, membros superiores e inferiores.
A Sr.ª Perita referiu que todas essas lesões eram agudas e parecidas, podendo serem todas compatíveis com dois ou três dias de existência, ou simultâneas às lesões internas que provocaram a morte; relativamente às que observou, OO foi mais longe dizendo que não eram feridas daquele momento, que não eram de agora, o sangue estava seco; e em relação às peças dentárias 11, 21 e 22 descritas no relatório de autópsia, a Dr.ª LL esclareceu que as lesões apresentadas, com infiltração sanguínea, já pressupõem traumatismo dos tecidos moles contra os dentes, contusões.
Acresce, no enquadramento factual das suas causas, ter explicado que qualquer das lesões poderia congregar o resultado de queda (embate na superfície) ou embate em objectos, inexistindo uma única que inequivocamente lhe permitisse excluir natureza acidental; com o mesmo rigor, expôs as razões que a levam a considerar a possibilidade de tais lesões poderem constituir também o resultado de acção de terceiros, tendo sido com base nessa premissa que esta opção foi levada ao relatório de autópsia, mas só depois de apurarem a morte violenta da vítima.
Donde, a impossibilidade de assentar, sem reservas, que as lesões “físicas” tenham sido provocadas no dia 10.06.2021 e que a causa das mesmas resida necessariamente em acção de terceiro(s), máxime, da mesma pessoa que terá provocado as do hábito interno.
Aqui chegados, assume também indiscutível relevância o facto de ter sido encontrado na zaragatoa subungueal esquerda da vítima, um perfil genético de ADN de mistura (que não sangue), de, no mínimo, dois contribuintes, o da vítima e de terceira pessoa.
Porém, veio a apurar-se que tal perfil não era compatível com os perfis dos arguidos AA (que o carregou e transportou) e de CC, o que também fragiliza a tese da acusação, não obstante as mãos da vítima terem sido protegidas no local de modo a preservar a possibilidade de colheita – cfr. documento de fls. 828 e relatórios periciais de fls. 1074/1075 e 1093.
É de realçar que este tipo de material genético se assume determinante na investigação, o que se explica pelo facto de, no caso de agressão mortal, se tornar possível identificar por essa via subungueal o perfil do agressor, obtido a partir dos movimentos de defesa da vítima.
De notar que também não foi encontrado sémen no corpo da vítima, nem qualquer vestígio de ADN do arguido, embora aqui a Sr.ª Perita tenha esclarecido que por não haver suspeita de agressão sexual, terão previamente à autópsia procedido à limpeza do corpo.
De outra sorte, por estabelecer ficou se esses livores no tronco constituem o resultado de o corpo ter permanecido sentado nos caixotes na construção anexa (ou noutro lugar) ainda que inclinado para o lado direito, pois existe desse lado e muito perto um frigorífico que o podia amparar, ou se previamente ainda permaneceu deitado em posição de decúbito dorsal, o que faz sentido; como vimos, a fotografia n.º 106, de fls. 214, patenteia a existência de livores na região dorsal.
Face à prova produzida, depois dos arguidos CC, DD e BB, o corpo foi visto pela primeira vez pelo arguido AA na “barraca”; mas não foram detectados sinais de arrastamento nem sangue no exterior e no interior do anexo, no chão, com excepção do local por baixo dos caixotes; e da inspecção feita ao campo nenhum vestígio relevante foi recolhido.
É de anotar que a Sr.ª Perita não afastou a possibilidade, em teoria, de a vítima ter conseguido deslocar-se após a ocorrência das lesões traumáticas que ditaram a sua morte.
Em suma, não foi possível determinar o concreto lugar onde EE foi agredido e/ou perdeu a vida.
Da conjugação destas circunstâncias, não podemos, pois, extrair ter o arguido CC transportado o corpo para a construção onde veio a ser encontrado.
A ausência de prova sobre o que se passou, compromete igualmente o apuramento da indumentária da vítima quando AA o encontrou.
Convém repetir que o inspector II deixou claro que as primeiras diligências de investigação efectuadas na noite do dia 10.06.2021, foram desenvolvidas no pressuposto de morte não violenta da vítima e, como tal, restringidas aos factos susceptíveis de integrar a profanação de cadáver, explicando que, por essa razão, entre o dia 10.06 e o dia 14.06, a investigação se limitou à realização de interrogatório dos arguidos, sem qualquer outra deslocação, inspecção e exame dos locais.
Quer isto dizer, como afirmou, que o campo do arguido, mormente, a roulotte e a construção anexa não foram isolados/lacrados durante aqueles quatro dias (de Quinta a Segunda-feira) até receber a análise preliminar da causa de morte.
Portanto, durante esse período toda a área onde o corpo foi encontrado, ficou acessível a quem ali se quisesse dirigir.
Em termos indiciários, é seguro afirmar a presença de manchas hemáticas nos caixotes e no chão do anexo, por baixo deles, em resultado do escorrimento, e o que demais consta do auto de exame efectuado na noite do dia 10.06.
Todavia, a esta distância não tem o Tribunal como saber o que se passou ao longo desses quatro dias, se alguém ou os arguidos fizeram desaparecer vestígios que ali pudessem existir e não tivessem sido recolhidos no dia 10 (cfr. depoimento de II sobre as fracas condições de visibilidade no campo), se por exemplo o local foi limpo, desinfectado e desimpedido de objectos associados à morte do ofendido, ao ponto de no dia 14.10.2021 quando os Inspectores da PJ regressaram já não ser possível avançarem na investigação.
Tal como também se ignoram, porque não apuradas, eventuais deslocações de e para as estufas por diferentes trajectos, durante este intervalo temporal, com esse propósito.
Defende ainda o Ministério Público que CC terá tirado a vida à vítima estando reunidas um conjunto de circunstâncias em que tanto um como o outro se encontravam alcoolizados, face à constatação de rolha e cápsula de alumínio de garrafa de vinho do Porto encontrados no anexo.
É incontroversa a problemática associada ao consumo abusivo de bebidas alcoólicas por arguido e vítima, especialmente por esta, agravada após o período de almoço nos restaurantes a que se dirigiam, como foi testemunhado por quem conhecia os seus hábitos e fragilidades.
No entanto, dando por reproduzidas as considerações já tecidas sobre esta questão, ignora-se a quantidade ingerida, encontrando-se-nos, assim, vedada a possibilidade de sustentar convicção no sentido propugnado.
O arguido CC atrasou a entrega da encomenda de alfaces, sustentando a acusação que tal atraso se deve às contingências em que tirou a vida ao ofendido; e refere também que a justificação para o atraso não foi sempre a mesma, a uns disse que o EE não apareceu para trabalhar, a outros terá referido que estava bêbedo e não o ajudou.
Em traços gerais, é suspeito; o ofendido ainda trabalhou nesse dia, pelo menos, até se deslocarem ao estabelecimento do FF.
Como suspeitas são as cautelas entre os arguidos CC, DD e BB, nas comunicações telefónicas efectuadas entre eles, relegando para os encontros pessoais ou para chamadas através de outros números de telefone, as conversações sobre os assuntos relacionados com os factos.
Sucede, ao que tudo indica, que era recorrente o arguido atrasar-se nas entregas, conforme resulta da transcrição de fls. 1199 e ss., no segmento em que o arguido AA comenta “o CC tipo … Se tivesses o artigo para entregar às nove tu tinhas que dizer a ele que tinha que ser às oito e meia (…) O CC atrasar-se já era normal” – cfr. fls. 1202.
E no que concerne às justificações, não sendo concordantes, convergem na necessidade última de transmitir ter tratado sozinho da encomenda; mas fica a dúvida.
De salientar, como vimos, que também não se provou a existência de ferimento na testa do arguido. Destarte, sem outra prova concludente, a factualidade assente não possui a virtualidade indiciária que o Ministério Público lhe confere.
No que tange ao comportamento posterior do arguido, importa atentar ao seguinte,
Partindo do pressuposto que tivesse sido ele a matar EE, estranha-se como após a entrega na “B...” só regressa às estufas cerca das 17H30, já com a sua mãe, não cuidando, entretanto, de diligenciar pelo encobrimento do corpo e desaparecimento dos indícios que o pudessem incriminar, caso fosse esse o seu propósito; na realidade, após circular na EN ...3 pouco depois das 12H00 - quando telefonou à mãe -, nada mais se apurou sobre as suas movimentações até ao momento em que pouco depois das 17H00 a foi buscar, depondo o Sr. Inspector no sentido de não poder garantir que entre a saída para a “B...” e as 17H00 ninguém tenha entrado ou saído das estufas.
Esta questão acaba por entroncar naqueloutra referente à incerteza da hora da morte, na medida em que a partir das 12H04, nada mais se sabe sobre o seu paradeiro nem o que fez até às 17H00.
Sob a égide do expectável e inteligível, também não se percebe como é que alguém que alegadamente matou uma pessoa em circunstâncias tão violentas, presta o seu acordo a levá-la para a residência da sua progenitora, que também já foi a sua, um dos centros da sua intimidade e vida familiar.
Acresce, AA ter dado a entender, subliminarmente, que CC não se mostrou logo contrariado perante a sua sugestão de chamar a ambulância ou as autoridades ao campo, como resulta da transcrição de fls. 1201, nos segmentos alusivos às respostas do arguido “E ele: É, não é?”, “E depois vai … e ele disse: É melhor, não é? E a roulotte?”, o que levanta reservas sobre o expectável comprometimento que devia assistir a quem não desejaria a presença de autoridades no local.
Também na premissa da sua autoria, surpreende ter sido o primeiro a admitir ao Inspector logo na noite de 10.06 que afinal EE tinha morrido no campo e não em casa de sua mãe, e que nessa sequência, tenha colaborado, indicando a casa-de-banho onde se encontrava o cesto com as calças que o AA usava quando deslocou o corpo, deslocando-se com o Inspector às estufas sem os demais arguidos e indicando o local onde encontrou a vítima sentada, autorizando o exame do seu telemóvel, disponibilizando-se para a recolha de zaragatoas (saliva), etc.
O relatório preliminar de perícia médico-legal de fls. 1565 a 1568-v.º e o relatório final de fls. 1573 a 1576, sem dúvida, desfavoráveis ao arguido face às questões e conclusões levantadas sobre a sua personalidade, não permitem responder a todas os paradigmas.
Em relação à roupa vestida pelo arguido CC, o Sr. Inspector referiu que nesse dia 10 terá trocado de roupa pelo menos duas vezes, que ele lhe entregou uma T-shirt e talvez uns chinelos que trazia quando esteve a trabalhar, explicando que as peças não continham perfil genético da vítima, mas que as T-shirts (camisola vermelha) não eram iguais.
Efectivamente, da análise da 3ª fotografia de fls. 299 e das que constam de fls. 223/225 as semelhanças e diferenças saltam à vista: pese embora tenha envergado e entregue T-shirt vermelha e calças azuis com lista branca vertical, as letras brancas são inteiramente circundantes na T-shirt que vestia na manhã do dia 10, não o sendo na que entregou ao investigador, que contém a expressão “...” não visionada na outra camisola; quanto às calças azuis, a lista branca lateral é mais carregada (larga) nas que usou no dia 10 comparando com as que entregou.
Sucede que a fls. 222 do relatório de exame pericial consta coisa diferente: que o arguido indicou e entregou a roupa e calçado que terá usado quando, conjuntamente com AA, movimentou o cadáver de EE.
Também custa a aceitar que pudesse manter naturalmente na lavandaria de sua casa, a roupa com que alegadamente agrediu a vítima.
Nesta conformidade, do facto de o arguido ter facultado roupa diversa daquela que teria envergado na manhã do dia 10.06 não se extrai, sem mais, que houvesse o propósito de ocultar eventuais vestígios.
Perante todo o exposto, permitirão estes elementos de prova directa e indirecta imputar a morte da vítima ao arguido CC? Entendemos que não. Não, porque a dúvida instalada não foi dissipada. O Ministério Público, ao sedimentar a morte violenta da vítima nos termos que constam da acusação, entendemos que tal perspectiva merecia crédito indiciário. Ocorre, por tudo quanto ficou dito, que não foi suficiente a prova produzida sobre a versão que daí consta sendo que o Tribunal, com tais elementos, não pode ir tão longe e deduzir uma específica actuação e intenção do arguido, nos termos em que vem acusado. Convoca-se aqui o que foi dito pelo Sr. Inspector II sobre a circunstância de não ter sido encontrado o objecto ou instrumento utilizado nas agressões, não terem visto marcas de arrastamento do corpo, mormente, para a construção anexa, não terem conseguido localizar o local concreto da morte, e não terem apurado a motivação subjacente (a título de exemplo, o exame ao telemóvel do arguido no segmento em que não se demonstrou pesquisa de pornografia de cariz homossexual). Ou seja, não é possível estabelecer um juízo lógico, seguro, causal, sequencial, preciso, directo e unívoco da actuação imputada ao arguido CC. Por outras palavras, não possui o Tribunal elementos de prova sólidos que permitam concluir, e não apenas suspeitar, que o arguido tenha praticado tais actos hediondos. Assim, sem outra prova redutora e sem o conhecimento presencial e directo de testemunhas com reconhecida razão de ciência, não foi possível demonstrar a responsabilidade e culpabilidade do arguido, subsistindo a dúvida sobre a sua participação directa nos factos, pese embora se posicione como a pessoa que é vista com EE pela última vez.
Tudo isto para dizer que perante a dúvida razoável sobre a autoria do arguido, insanável em face dos elementos probatórios coligidos, não pode este Tribunal concluir pela sua responsabilização nos exactos termos em que vem acusado.
O princípio da livre convicção constitui regra de apreciação da prova em Direito Penal, em que, para se concluir pela condenação, tal prova deve ser plena, impondo-se, na decisão de factos incertos e na dúvida gerada, a necessária absolvição, desta feita, de harmonia com o Princípio da Inocência que enforma também o direito processual-penal e tem consagração constitucional (artigo 32º da Constituição.)
Funciona, pois, em relação ao arguido e à comissão deste ilícito, o princípio “in dubio pro reo”, via que impõe a sua absolvição da prática do crime de Homicídio Qualificado na forma consumada.
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Atendeu-se ainda:
- Ao termo de entrega de fls. 13 e registo de entrada no INML de fls. 14.
- Ficha de identificação de fls. 446.
- Assentos de nascimento de fls. 1330 a 1333 e 1355.
- Autos de apreensão de fls. 431, 433, 533, 535 (1405).
- Autos de exame dos telemóveis dos arguidos de fls. 151 e 438 (leitura dos equipamentos), e respectivos Termos de Consentimento.
- Relatório de exame forense de fls. 1151 (computadores).
- Restantes transcrições das escutas telefónicas.
- Autos de Busca.
- No tocante aos antecedentes criminais, foram valorados os respectivos Certificados de Registo Criminal de fls. 1547, 1548, 1549 e 1550, indicativos da inexistência de antecedentes criminais por parte dos arguidos (facto n.º 49).
- Relativamente às condições pessoais, sociais e económicas dos arguidos, foram valorados os relatórios sociais (factos nºs 50 a 112)
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- Aos depoimentos das testemunhas UU e VV, que conhecem bem AA, sendo o segundo seu amigo, e WW e XX, que demonstraram ser pessoas próximas de BB, tendo crescido juntas.
Foi neste contexto em que, com isenção e conhecimento do relatado, se pronunciaram sobre as condições de vida e personalidade de cada um dos arguidos, explicitando aquilo que deles conhecem e salientando as suas qualidades pessoais e profissionais, bem como o tipo de vida que levam, tendo os seus depoimentos sido valorados em conjugação com o que resulta dos respectivos relatórios sociais.
Abonaram, pois, os seus comportamentos e modo de vida.
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3 - ASPECTO JURÍDICO DA CAUSA:
SUBSUNÇÃO DOS FACTOS AO ORDENAMENTO JURÍDICO-PENAL:
Importa, pois, verificar se estão ou não preenchidos os elementos objectivos e subjectivos dos tipos de crimes imputados aos arguidos.
(…)
C - Do Crime De Profanação de Cadáver
Dispõe o art. 254º do Código Penal:
“1 – Quem:
a) Sem autorização de quem de direito, subtrair, destruir ou ocultar cadáver ou parte dele, ou cinzas de pessoa falecida;
b) Profanar cadáver ou parte dele, ou cinzas de pessoa falecida, praticando actos ofensivos do respeito devido aos mortos; ou
c) Profanar lugar onde repousa pessoa falecida ou monumento aí erigido em sua memória, praticando actos ofensivos do respeito devidos aos mortos;
é punido com pena de prisão até 2 anos ou com pena de multa até 240 dias.
2 – A tentativa é punível.” Damião da Cunha in Comentário Conimbricense, pág. 653 refere que com esta incriminação está em causa a protecção dos sentimentos de “piedade” para com defuntos, por parte da colectividade, independentemente de uma qualquer fé religiosa, correspondendo, pois, a um bem jurídico imaterial. O bem jurídico que aqui vem protegido é o respeito devido pelo cadáver de uma pessoa – assim, Paulo Pinto de Albuquerque, obra cit., pág. 996. Para este insigne Jurista, trata-se de um crime de dano (quanto ao grau de lesão dos bens jurídicos protegidos) e de resultado (quanto à forma de consumação do ataque ao objecto da acção), consistindo o tipo objectivo na subtracção, destruição ou ocultação de cadáver ou de parte dele ou de cinzas de pessoa falecida, na profanação do cadáver ou de parte dele ou das cinzas de pessoa falecida, impedindo assim que se dê a este o destino normal em termos de manifestação daqueles sentimentos, ou na profanação do lugar onde repousa pessoa falecida ou monumento aí erigido em sua memória. O que a lei penal protege (e neste particular tem ela carácter constitutivo, e não meramente sancionatório) não é a paz dos mortos (como se tem pretendido, com abstração do axioma de que os mortos não têm direitos), mas o sentimento de reverência dos vivos para com os mortos. É em obséquio aos vivos, e não aos mortos (…) que surge a incriminação. O respeito aos mortos (…) é um relevante valor ético-social, e, como tal, um interesse jurídico digno, por si mesmo, da tutela penal – Nélson Hungria in Comentários ao Código Penal, vol. VIII, cap. II, pág. 79. Objecto do facto será o cadáver, parte dele ou cinzas, cfr. Damião da Cunha, pág. 654, que refere a fls. 657/658 “(…) nem todos os actos que ofendam o respeito devido aos mortos terão por efeito a produção deste evento – a profanação. (…) quaisquer expressões ultrajosas que possam, em geral, afectar o “culto dos mortos” ou que possam tão-só dirigir-se aos sentimentos dos parentes não cabem no âmbito deste tipo legal. O acto ofensivo tem pois de produzir um efeito sobre o cadáver, parte do cadáver (…). A profanação de restos mortais (alínea a) do n.º 1) implica atuações de ultraje ou ofensa em relação ao cadáver ou às cinzas de pessoa falecida; constitui o acto de retirar a algo o seu carácter sagrado, ou o tratamento desrespeitoso a algo que é considerado sagrado por um indivíduo ou grupo de indivíduos. Ao profanar, por conseguinte, desonra-se, ultraja-se uma coisa que, pelas suas características, merece respeito. Leal-Henriques e Simas Santos, comentando o artigo 226.º da versão inicial do Código Penal, definem o ocultar como «fazer desaparecer, mas sem que haja destruição» dando como exemplo a «mãe que oculta o cadáver do filho, escondendo-o ou sepultando-o no quintal» - O Código Penal de 1982, 1986, Vol. 3, pág. 137. Profanação significa fazer mau uso de “coisas” dignas de apreço (v. dicionário priberan.pt). Quanto à noção de cadáver, não é unívoca, pois comporta diversos sentidos. Comporta um sentido comum, abrangente, em que estão compreendidos todos os despojos ou restos de um ser humano após a morte, e outro, mais restrito, em que apenas se considera como tal o corpo de uma pessoa falecida, ou seja, em que, no todo ou em parte, perdura a conformação morfológica em vida, por não ter sido inteiramente finalizado o processo de decomposição – assim, Ac. RG no âmbito do Processo n.º 115/02.0TAFAF, datado de 08.03.2010, relatado pelo Sr. Desembargador Fernando Ventura. O tipo subjectivo admite qualquer modalidade de dolo, não se exigindo dolo específico. Mas é indiferente o fim último do agente: apagar vestígio de crime, frustrar uma sucessão, obter lucro com a ulterior venda do cadáver, vingança contra os parentes do morto, necrofilia, etc. – Nélson Hungria, obra cit., pág. 84. Damião da Cunha considera que para efeitos das als. b) e c) é necessário que o agente tenha consciência do carácter ofensivo da conduta quanto ao respeito devido aos mortos e a consciência de ofender (profanar) o cadáver. Por seu turno, “autorização de quem de direito”, por parte dos familiares do falecido ou, na falta destes, das entidades à guarda de quem se encontra o cadáver, já afastará a tipicidade da conduta relativa ao cadáver, salvo o caso de vontade expressa do falecido nesse sentido. Sendo admissível a comparticipação no cometimento do crime, nos termos gerais, cumpre ainda salientar que o agente comete tantos crimes quantos os cadáveres subtraídos, destruídos, ocultados ou profanados. Relacionado com o caso dos autos, chama-se a atenção para o acórdão da R.P. de 06.05.1992 in CJ, XVII, Tomo 3, pág. 314, no qual se decidiu que “(…) transporte de um para o outro lado de partes móveis de cadáver ainda inconsumpto integra o crime previsto no art. 226º, n.º 2, do CP” (versão anterior).
Revertendo agora ao caso que nos ocupa: Confrontados os factos provados vertidos sob os n.ºs 25 a 43, resulta dos mesmos que os arguidos CC, DD, AA e BB, ao verificarem que o cidadão EE se encontrava morto na construção anexa existente no campo do arguido CC, o fizeram deslocar no veículo Opel de matrícula ..-..-CG, no lugar do passageiro, ao lado do banco do seu condutor AA, com o intuito, concretizado, de o transportar para a residência da arguida DD situada a cerca de 6 kms de distância, de modo a evitar que as autoridades comparecessem nas estufas e tomassem conhecimento das condições em que a vítima vivia. Mais se provou que já na residência da arguida lhe vestiram umas calças e o sentaram em cima de duas cadeiras que juntaram, não obstante a vítima se encontrar a sangrar pela região anal, agindo nas narradas circunstâncias com o intuito de fazer crer, indignamente, às autoridades de saúde e policiais chamadas ao local que a vítima ali vivia, e não na roulotte, e que tinha sido encontrada nesse local sem vida. Com as suas condutas, faltaram ao respeito que era devido ao cadáver, posto que ao instrumentaliza-lo daquela forma, o ofenderam e lhe dirigiram tratamento desrespeitoso, no lugar de providenciarem para que tivesse o tratamento e as devidas exéquias, fúnebres, dignos, com inteiro respeito pelo corpo e pelas condições onde deveria ser depositado.
Ao agirem nos termos e com o propósito descrito, não ignoravam que vilipendiavam e desconsideravam um corpo humano sem vida, pondo em causa o respeito comunitário devido aos mortos, sendo manifesto que agiram com dolo, isto é, representaram e quiseram agir conforme o demonstrado, estando conscientes que os seus comportamentos eram proibidos por lei, pelo que, não temos quaisquer dúvidas que se mostra igualmente preenchido o elemento subjectivo, impondo-se, por isso, as suas condenações.
À semelhança do que ocorreu no preenchimento dos elementos do tipo, inexiste qualquer dúvida sobre a efectiva actuação conjunta dos arguidos que, claramente, agiram em todas as situações apuradas em conjugação de esforços e obediência ao plano previamente delineado pelos arguidos DD, BB e CC, ao qual AA manifestamente aderiu, combinando e definindo as actuações de cada um nas vertentes do transporte e da criação das condições necessárias à simulação do lugar da morte, com o intuito de ludibriarem as autoridades, certo que todos possuíam o domínio dos factos e resolviam em conjunto os problemas que iam surgindo, sendo nessa concertação de esforços que os factos assentes são praticados, ou seja, em co-autoria material.
*
Em conclusão, dúvidas não restam de que os quatro arguidos praticaram, em co-autoria material, um crime de Profanação de Cadáver, p. e p. pelo art. 254º, n.º 1, als. a) e b), do Código Penal, já que se verificam os seus elementos típicos, objectivos e subjectivos, inexistindo qualquer causa de exclusão da culpa ou da ilicitude.
(…)”

B – De jure:
Do erro notório na apreciação da prova;
§ 1 - O Ministério Público recorrente impugna a decisão da matéria de facto vertida nos factos provados 12, 13 e 28, 29 e 30 e no segmento em que considera não provados os factos 17, 18, 19, 20 e 26.
Para tanto, invoca alegados erros de raciocínio na formação da convicção do tribunal, plasmados na fundamentação da decisão recorrida, conjugados com meios concretos de prova que identifica.
Por conseguinte, impugna a decisão da matéria de facto nos termos do disposto no artigo 412º, nº 3, do Código de Processo Penal e, em consequência, pretende a condenação do arguido pela prática, em autoria material e sob a forma consumada, de um crime de homicídio qualificado, na forma consumada, p. e p. pelos arts. 131º e 132º, nºs 1 e 2, al. d), do Código Penal.
Para tanto, alega, em suma, que o tribunal apreciou a prova de forma segmentada, sem relacionar os vários meios concretos de prova indireta, que, no entender do recorrente, evidenciam ter sido o arguido a cometer o referido crime, impondo a sua condenação.
§ 2 – Na sua resposta à motivação do recurso, o arguido CC pugnou pela confirmação do acórdão, essencialmente, com base na fundamentação da decisão da matéria de facto.
§ 3 - No seu parecer junto nesta instância, o Ministério Público concluiu que o tribunal a quo violou as regras da experiência comum e da lógica ao dar como provado que as agressões que levaram à morte do ofendido EE foram provocadas pela ação de pessoa não identificada – e não pelo arguido CC -. Alega que tal conclusão não tem qualquer sustentabilidade fáctica e é contrária ao que resulta dessa mesma prova.
Daí que, havendo manifesto erro de julgamento, porque contrário às regras da lógica e da experiência comum, violou o tribunal a quo o princípio da livre apreciação da prova, devendo a decisão de absolvição do arguido CC ser revogada e substituída pela decisão de condenação pelo crime pelo qual vinha pronunciado.
Cumpre apreciar e decidir.
De jure
Da impugnação da decisão da matéria de facto
§ 1 – O Tribunal da Relação conhece de facto e de direito (artigo 428º do Código de Processo Penal (CPP), representando os recursos um meio de impugnação das decisões judiciais, cuja finalidade consiste na eliminação dos erros, defeitos ou lapsos das mesmas através da sua análise por outro órgão jurisdicional, desse modo constituindo um instrumento processual de consagração prática dos princípios constitucionais de acesso ao direito e de garantia do duplo grau de jurisdição (artigos 20.º, n.º 1, e 32.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa).
É consabido e pacificamente aceite que a modificação da matéria de facto apenas é viável, para além dos casos dos vícios documentados no texto da própria decisão, de harmonia com o preceituado no artigo 410º, nº 2, quando a prova tiver sido impugnada nos precisos termos do n.º 3 do art. 412º, ou seja quando o recorrente especifique os concretos pontos de facto da discórdia, as provas que impõem decisão diversa da recorrida e as provas que devem ser renovadas.
E, no caso da reapreciação da prova gravada, acresce ainda o ónus das duas primeiras especificações deverem ser feitas por referência à ata e com indicação concreta [ou transcrição se a ata for omissa – neste sentido, o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça n.º 3/2012, de 8 de Março de 2012, publicado no Diário da República, Série I-A, n.º 77, de 18 de Abril de /2012] das passagens em que se funda a impugnação, consoante decorre do n.º 4, do mesmo normativo legal.
O Ministério Público recorrente impugnou certos factos, indicando alguns meios concretos de prova que, no seu entender, devem sustentar uma decisão diversa mas, quanto à prova oral produzida em julgamento, não indicou concretamente as passagens em que funda a impugnação, como exigido pelo artigo 412º, nº 4, do Código de Processo Penal (“vide” conclusão 55).
Tanto na motivação de recurso, como no parecer formulado, o Ministério Público ainda formulou críticas específicas aos segmentos mais relevantes da fundamentação da convicção do tribunal expressa no acórdão recorrido, procurando demonstrar uma alegada irracionalidade da mesma tanto com base nos argumentos plasmados no próprio texto da decisão, como na prova produzida em julgamento.
Por conseguinte, o Ministério Público pugna pela alteração da decisão da matéria de facto em termos substanciais, tanto por via de um vício formal de erro notório na apreciação da prova, como pela impugnação da decisão da matéria de facto – mesmo que não tenha formalmente invocado aquele vício -.
Antes de se proceder à aferição do mérito da motivação de recurso do Ministério Público, importa recordar que as sentenças judiciais constituem atos decisórios necessariamente fundamentados, como decorre dos artigos 205º, número 1, da Constituição da República Portuguesa e 97º, números 1, alínea a) e 5, do Código de Processo Penal -, integrando, obrigatoriamente, além do mais, a enumeração dos factos provados e não provados, como garantia, para além de qualquer dúvida, de que o tribunal contemplou todos os factos relevantes à boa decisão da causa submetidos à sua apreciação - os factos juridicamente relevantes para a existência ou inexistência do crime, a punibilidade ou não punibilidade do arguido e a determinação da pena ou da medida de segurança aplicáveis -, como decorre da conjugação do disposto nos artigos 124º, nº 1 e 374º, nº 2, ainda do mesmo texto legal.
O dever de fundamentação contempla, ainda, a necessidade da indicação e exame crítico da prova, de modo a assegurar o efetivo exercício do direito ao recurso, permitindo ao interessado ponderar a necessidade e oportunidade da impugnação da decisão da matéria de facto, bem como concretizar os seus motivos específicos para a impugnar e, por outro lado, dotar o tribunal ad quem de uma base concreta – um raciocínio lógico e com bom senso - que permita aferir a correção da decisão da matéria de facto, quando chamado a decidir um recurso com impugnação da decisão da matéria de facto e/ou arguição de vício da sentença[4].
Os vícios da sentença, exclusivamente emergentes da análise da sua fundamentação, consubstanciam patologias tipificadas no número 2 do artigo 410º, que podem levar à modificação da matéria de facto se o tribunal “ad quem” puder colmatá-las, conforme decorre do disposto no artigo 430º, nº 1, ambos, ainda, do mesmo texto legal.
Sendo inviável corrigi-las, as mesmas inquinam, total ou parcialmente, o próprio julgamento, como decorre do estatuído no artigo 426º, do mesmo Código.
Tais patologias devem patentear-se no texto da decisão, por si ou em conjugação com as regras de experiência, sem esforço de análise ou apelo a elementos que lhe sejam estranhos - o que justifica o seu conhecimento oficioso - devendo, pois, ser declarados independentemente de requerimento nesse sentido ou mesmo que a impugnação se limite a matéria de direito.
O elenco legal destes vícios abrange as seguintes alíneas do nº 2 do artigo 410º do CPP:
a) A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada (reportada, essencialmente, a hiatos factuais que podiam e deviam ter sido averiguados e se mostram necessários à formulação de juízo seguro de condenação ou absolvição);
b) A contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão (relativa a contradições materiais ou de lógica e desdobrável em três hipóteses: contradição insanável de fundamentação, contradição entre os fundamentos e a decisão e contradição entre os factos); e
c) O erro notório na apreciação da prova (em regra associado a desconformidades de tal modo evidentes que não passam despercebidas a qualquer pessoa minimamente atenta, ou seja é um erro patente que não escapa ao homem comum) .
Ora, conforme já referido, o Ministério Público suscitou substancialmente, embora não formalmente, o último destes vícios – de erro notório na apreciação da prova – ao concluir que ocorreu um manifesto erro de julgamento, porque contrário às regras da lógica e da experiência comum, conclusão que foi obtida mediante uma análise de segmentos da fundamentação da convicção do tribunal.
§ 2 - Nestes termos, importa proceder a uma análise da fundamentação do tribunal coletivo da primeira instância vertida no acórdão, de modo a aferir se existiram juízos contrários às regras da lógica e da experiência comum, conforme alegado pelo Ministério Público, impondo a correção da decisão, de modo a reconhecer que o arguido CC foi o autor material do homicídio qualificado em causa nos autos.
A - Dos alegados erros notórios na apreciação da prova invocados pelo recorrente:
Começa-se por identificar os juízos que o recorrente identifica como sendo contrários às regras da lógica e da experiência comum, destacando-se a negrito a passagem que evidencia o erro genérico principal:
“(…) Na parte da fundamentação da decisão em matéria de facto, em que se aprecia a autoria das lesões sofridas pelo ofendido EE, o tribunal a quo admite, em tese, o recurso à prova indirecta.
No entanto, na decisão em apreço denota-se não se ter tido em devida conta um conjunto de factos e elementos de prova documentais, periciais e testemunhais que, conjugados com regras da experiência comum, apontavam de forma segura para o arguido CC como o autor das lesões fatais apuradas. (…) Assim, faltou, designadamente, ao tribunal a quo a capacidade de relacionar os factos apurados, designadamente, quanto ao comportamento do arguido no dia 10 de Abril de 2021, com o enquadramento vivencial de arguido e ofendido, no que se apurou quanto aos hábitos e tipo de relacionamento mantido no quotidiano e nos últimos anos. Também se omite reflexão crítica e substancial quanto ao comportamento posterior do arguido após a verificação do óbito e confrontado com a actuação investigatória da polícia judiciária, assim como quanto ao apurado em sede de exame médico-legal de psiquiatria forense a que foi sujeito o arguido.
Pelo contrário, optou-se na decisão recorrida por, relativamente a cada uma das circunstâncias relevantes para a aferição da culpabilidade do arguido CC, fazer uma análise particularizada e não conjugada com os demais factos e circunstâncias, limitando-se o tribunal a quo a constatar a inexistência de certezas ou a constatar a existência de meras probabilidades relativamente a cada meio de prova indiciador, como se o princípio in dúbio pro reo se apresentasse como o único critério de avaliação em cada momento da produção de prova, sem possibilidade de conjugação dos indícios que implicam o arguido na prática dos factos.
Mas, mais do que isso, mesmo relativamente aos meios de prova que mais claramente apontam para o envolvimento do arguido na morte de EE., opta-se na decisão recorrida para destacar a falta de certezas, como se não fosse isso mesmo que caracterizasse a prova indiciária ou indirecta.
Ao agir desta forma, o tribunal a quo nega, na prática, a relevância de prova indirecta ou indiciária que, no caso, pela sua abundância, impunha distinta decisão, a final.
Decorre do princípio geral contido no art. 125º do CPP, serem admissíveis todas as provas que não forem proibidas por lei.
Ora, as presunções legais ou de direito resultam da própria lei. Enquanto as presunções de facto - judiciais, naturais ou hominis - fundam-se nas regras da experiência comum.
(…)
No que concerne aos factos que mereceriam apreciação diversa, temos desde logo os factos não provados relativos à autoria das lesões fatais narradas nos autos - incidente nos factos não provados 12, 13, 28, 29 e 30, respeitantes à autoria das lesões que redundaram na morte do ofendido:
«12) No dia 10.06.2021, entre as 8h03m e as 11h15m, o arguido CC agrediu o EE provocando-lhe as lesões descritas no facto provado n.º 17.
13) Nesse dia 10.06.2021, entre as 08h03 e as 11h15, foi o arguido CC quem procedeu do modo descrito e provocou as lesões referidos no facto provado n.º 18.
28) O arguido CC, ao introduzir na região anal do EE o objecto contundente não identificado, provocando-lhe as referidas lesões e hemorragia, quis e conseguiu causar a morte daquele, o que sabia e representou como consequência directa e necessária da sua conduta.
29) Sabia ainda que aquele seu acto era cruel e que com ele aumentava o sofrimento do EE, o que também quis.
30) Em toda a actuação supra descrita o arguido CC agiu deliberada, livre e conscientemente, sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei.»
Também se pretende impugnar a matéria respeitante aos factos não provados 17, 18, 19, 20. e 26, respeitantes a matéria instrumental relevante para a prova dos factos integradores do crime de homicídio imputado:
«17) Nos contactos telefónicos mencionados no facto provado n.º 24, que o arguido CC tenha dado conhecimento à sua mãe da morte do EE.
18) Nas circunstâncias descritas no facto provado n.º 27, os arguidos aí id. agiram com o objectivo de destruir vestígios que relacionassem o arguido CC com a morte do EE, e nesse local vestiram-no com roupa lavada.
19) Os arguidos CC e DD colocaram uma camisola vermelha e umas boxers no corpo do EE e carregaram a viatura da marca Opel com diversos objectos, designadamente as garrafas de vinho do Porto, tendo a seguir o arguido CC ido colocar esses objectos num contentor do lixo nas imediações.
20) Que as calças mencionadas no facto provado n.º 31 fossem as que a vítima vestia na manhã do dia 10.06.2021, e que o arguido CC não tivesse conseguido localizar o telemóvel.
26) Que tivesse sido o arguido CC a remover da roulotte os objectos descritos no facto provado n.º 44, e a colocá-los, juntamente com as calças mencionadas nos factos provados nºs 31 e 45, debaixo dos plásticos.»”

Importa, oram, aferir o mérito da alegação do Ministério Público, considerando para o efeito a fundamentação da decisão recorrida.

B – Da fundamentação da decisão da matéria de facto controvertida:
A decisão recorrida procedeu a uma análise crítica da prova que, ora, se escrutina:
“(…) Vejamos agora o que se apurou quanto à autoria das lesões,
Ninguém viu o facto acontecer; não se sabe onde concretamente aconteceu.
Não se apurou o instrumento utilizado na agressão, pese embora a Sr.ª Perita tenha afirmado a possibilidade de vários utensílios agrícolas utilizados no campo, se mostrarem idóneos a configurar o objecto contundente a que aludiu no relatório.
Quanto ao pau apreendido na deslocação ao campo do arguido, apenas continha perfil de ADN da vítima.
Nesta conformidade, a prova produzida sobre o seu enquadramento factual é, essencialmente, indirecta. (…)
No caso vertente, os elementos probatórios trazidos por provas directas e indirectas foram conjugados entre si pelo Tribunal.
Neste desiderato, salienta-se o depoimento isento, livre e objectivo (pelo menos no que tange às conclusões enquanto investigador) do Inspector da Polícia Judiciária, II, que, começando por referir não conhecer os arguidos, descreveu o seu grau de envolvimento na investigação, a inspecção judiciária que realizou ao corpo da vítima e aos locais referenciados (residência da arguida DD e campos de estufas), as reportagens fotográficas, a localização e recolha dos vestígios hemáticos examinados, os objectos e roupas apreendidos e demais diligências realizadas na noite do dia 10.06.2021.
Explicou também como a partir do momento em que na segunda-feira seguinte - 14.06.2021 – recebe a informação preliminar provinda do INML a dar conta das causas do óbito de EE, a investigação passa então, para além da profanação, a seguir o rumo do homicídio, seguindo-se as ulteriores diligências de averiguação que detalhou, e todo o apreendido.
Pois bem, não oferece dúvida que a vítima não morreu na residência da arguida DD, tendo para lá sido transportada já cadáver, nas narradas circunstâncias.
Dos elementos que à investigação foi possível coligir, é inquestionável que a vítima foi vista pela última vez na companhia do arguido CC no percurso para as estufas.
Sobre o que se passou desde aí até ao momento em que o arguido abandonou o campo em direcção às instalações da “B...”, ninguém o presenciou.
Testemunhas que conhecem bem a zona e o campo do arguido, vieram dizer que se trata de uma considerável área rural onde se encontram implantados campos e estufas, agrícolas, sem vedações, que ali coexistem com estradas e caminhos, parte em terra batida.
É o caso do campo do arguido, ladeado por caminhos, outras estufas e campos, e sem vedações.
Conforme resulta do depoimento do Sr. Inspector e dos inúmeros fotogramas juntos, em relação a trajectos da parte da frente, de e para as estufas, foi possível fazer a sua cobertura através dos circuitos de videovigilância existentes nas residências e estabelecimentos situados nas imediações, não o tendo sido, porém, em relação a outras entradas/saídas e acessos da parte de trás, por não se ter conseguido aceder a tais sistemas e recolhido imagens, esclarecendo a propósito a testemunha que se pode ir para outros locais pelas traseiras, que até ficariam mais perto.
Aliás, o arguido não observava sempre o mesmo trajecto, consoante resulta do auto de visualização de fls. 288 e ss., posto que tanto circulava pela Rua ... como pela Rua ... (fls. 289, 290 e 296).
No que tange à encomenda de alface, tendo em conta que quando foram lanchar parte já se encontrava colhida, também se desconhece o remanescente por cortar e o período que levaria.
Foi ainda possível apurar que, pelas 10H09 quando CC devolve a “chamada não atendida” a GG, pelas 10H38 quando recebe os três sms`s da E- Redes, pelas 10H54 quando telefona novamente para o GG e este lhe devolve a chamada pelas 10H57 (contactos que a testemunha confirmou para saber do estado da encomenda), a célula BTS accionada é “CRIAZ FDD3” (cfr. documento remetido pela Altice, a fls. 1007), que o inspector II explicou tratar-se da que abrange a área das estufas.
No sentido de se perceber o alcance geográfico coberto pelo transmissor BTS da zona das estufas, foi junta pela PJ a informação já mencionada sobre a localização desta BTS CRIAZ FDD3, da qual resulta a localização das BTS alusivas à designação “CRIAZ”, na EN...3, junto de um armazém (primeiras imagens do documento), sendo que o emissor “CRIAZ FDD3” que cobre a zona das estufas do arguido, corresponde a uma espécie de cone delimitado na Imagem 1 pelas linhas azul e vermelha, de cuja análise se infere uma extensa área geográfica onde se inclui esse campo (vd. localização da “roulotte”), emergindo de forma esclarecedora a representação da quantidade de campos e estufas cobertas por tal transmissor, dimensões e respectiva organização geográfica.
A tal conclusão se chegou igualmente por força da visualização daquela zona durante a audiência, através do recurso à plataforma “Google Maps”.
Uma derradeira nota para deixar claro que quando o arguido telefonou a GG a dar conta da entrega da encomenda, na EN ...3 onde circulava, a célula então activada também foi a CRIAZ FDD3 (fls. 1007), o que demonstra a amplitude geográfica do transmissor.
Perante o quadro fáctico vindo de expor, é nossa convicção não podermos asseverar, para além da mera probabilidade, que durante o período definido na acusação, nem o arguido nem a vítima saíram das estufas ou que mais ninguém ali tenha entrado, nem que o arguido ali tivesse efectuado ou recebido os telefonemas e os sms`s, porquanto se poderia encontrar noutro qualquer lugar abrangido por esse transmissor.
Sem prejuízo, na hipótese de lá terem permanecido todo o tempo após as O8H03, sempre esbarraríamos com o desconhecimento do que ali se passou de concreto, entre o mais, o exacto local da plantação de alfaces, se havia mais do que um lote e neste caso se teriam sido, ou não, colhidas por ambos no mesmo lote, se o arguido se teria apercebido do sucedido à vítima.
Para além daquilo que já resulta do antes transcrito, convirá reforçar não ter sido possível, a partir das declarações, depoimentos, prova pericial e documentos, estabelecer o específico local onde a vítima morreu nem a hora da morte.
Afora as declarações do Sr. Inspector da PJ, foram considerados determinantes os depoimentos dos técnicos do INEM, o enfermeiro OO e o técnico TT, a par dos esclarecimentos prestados em audiência pela Sr.ª Perita Médica Dr.ª LL, por referência ao relatório de autópsia.
Tanto OO como a Sr.ª Perita explicaram adequadamente a relevância e o significado médico-legal da presença de livores corporais, os quais reflectem a posição predominantemente assumida pelo corpo após o decesso; entre os diversos fenómenos cadavéricos, os livores, em paralelismo com o grau de rigidez cadavérica instalado, assumem importância como referência para definir a hora provável de morte, nos termos por ela especificados.
A Sr.ª Perita também explicou o significado de “livores”; que quando alguém morre o sangue deixa de circular permanecendo dentro dos vasos sanguíneos e, que, ao fim de certo período de tempo, carrega-se numa parte do corpo e o que sucede é que o sangue já não circula porque se fixou dentro desses vasos, ou seja, os livores atingem o estado de fixos.
No caso vertente, os dois responsáveis do INEM confirmaram a existência de livores predominantemente para o lado direito do tronco do corpo da vítima, na zona do abdómen, abaixo do que a camisola vermelha ligeiramente levantada permitia observar, que comprovaram pelo corte da mesma efectuado por TT com vista à colocação das pás (por lhes ter sido transmitida situação de paragem cardiorrespiratória), explicando OO de forma perceptível ao Tribunal, indiciar esta localização que o corpo esteve predominantemente posicionado em decúbito dorsal direito.
Assim que se apercebeu disso, contou que não fez mais nada nem deixou que mexessem no corpo até à chegada das autoridades, pelo que nada soube adiantar sobre a eventual presença de livores na zona inferior do corpo, nos membros inferiores, o que se afigura relevante considerando que o corpo se encontrava sentado, na vertical, e os livores acompanham, como se disse, a posição assumida pelo mesmo.
Cumpre aqui realçar que a deslocação do corpo ocorreu menos de uma hora antes da chegada dos técnicos do INEM.
Referiu também que a boca já não mexia, confirmando rigidez articular consumada e, nesse pressuposto, que devia estar falecido há algumas horas, dizendo que já teria sido deslocado cadáver naquela posição.
Por sua vez, a propósito do fotograma de fls. 167, esclareceu que os livores não estavam fixos nem imutáveis, face ao resultado obtido com o simples movimento de pressão na pele.
Da análise do auto de inspecção judiciária, a fls. 26-v.º, decorre igualmente que os livores constatados eram “ténues e não fixos”; e a fls. 154 pode igualmente ver-se “livores ainda não fixos a convergirem para o lado direito” e “rigidez cadavérica instalada”.
Sob este prisma, a Sr.ª Perita também expôs de forma clara e em traços gerais, toda a dialética que envolve a análise e constatação da presença de livores, rigidez cadavérica e períodos horários associados, dizendo que no período post mortem, a rigidez se instala a partir da zona da cabeça para os pés e, em média, no espaço de duas horas na zona da mandíbula, quatro horas os membros superiores, seis horas a zona torácica e abdominal, e doze horas o corpo todo.
Mais referiu que os livores se fixam, em média, 12 horas após a morte, face aos factores que o podem influenciar.
Sucede, como a própria afirmou que, não obstante as primeiras informações veiculadas pelos técnicos do INEM, ao não ter sido solicitada a comparência de equipa médico-legal no local, nem ela nem outro médico legista puderam examinar o corpo, sobressaindo das suas declarações a importância de nada saber sobre o estado em que se encontravam os membros inferiores para daí poder extrair as conclusões reputadas como necessárias.
Ora, a fls. 154 do relatório pericial nada de particular foi referido quanto aos pés do ofendido, e na fotografia de fls. 212 onde se observam nitidamente os pés sujos com areia, também não foram mencionados livores e estado dos mesmos.
Por conseguinte, face aos dados a que acedeu, entre o mais, fotografias e o estado do tronco, onde a rigidez cadavérica estaria estabelecida, considera ser possível afirmar que a morte teria, em média, mais de seis horas, de acordo com os parâmetros supra mencionados.
Depois de confrontada com os fotogramas de fls. 167 e 168, corroborou que efectivamente os livores cadavéricos não estavam fixos, mas sim, móveis, ou seja, ainda vão acompanhar a mexida do cadáver, concluindo, assim e, em média, não se afigurar como líquido ir mais além do que as 8, 9 ou 10 horas de morte da vítima sobre a hora daquelas fotografias; acrescentou ainda que a cor das mãos visualizada na fotografia de fls. 168 não correspondia a nenhum fenómeno cadavérico.
Nesta explicação, a Sr.ª Perita declarou ignorar a hora a que as fotografias foram retiradas, no entanto, analisando o relatório de exame pericial de fls. 153 e ss. e o aí mencionado quanto à hora de início, o momento da captura das imagens andará à volta das 00H00.
Já em relação às imagens de fls. 207 e ss. – onde se inclui a de fls. 214 referente à presença de livores não fixos na região dorsal –, os Srs. Inspectores explicaram, a fls. 155, que antes de passarem ao exame do cadáver, aguardariam pela chegada do Delegado de Saúde a fim de comprovar o óbito (como é habitual nestas circunstâncias), resultando do Auto de Verificação de fls. 65, que a Sr.ª Delegada de Saúde constatou o óbito pelas 00H39 do dia 11.06.2022.
Donde, a conclusão que tais fotografias não terão sido captadas antes dessa altura, presumivelmente, até bem mais tarde, pois, de acordo com o relatado a fls. 175 ainda se deslocaram previamente ao campo e só depois de regressarem à residência da DD é que efectuaram o complemento fotográfico do cadáver (vd. fls. 202); em reforço, deve anotar-se que a fls. 28-v.º do auto de inspecção judiciária se apontam as 04:00 como o termo das diligências no local.
Nesta medida, forçoso é concluir que, ainda que recuássemos 12 horas (na hipótese, não verificada, de os livores se encontrarem fixos) a partir da hora em que se procedeu ao registo fotográfico, temos que na fixação da hora provável da morte não podemos ir mais além, isto é, para trás das cerca de 12H00 desse dia (sem olvidar que face ao estado dos livores a Sr.ª Perita admitiu um máximo de 10 horas de intervalo, ou até menos).
Este intervalo temporal encurta se olharmos a que a fotografia n.º 106 de fls. 214 foi captada posteriormente ao regresso das estufas, pela noite dentro, e os livores continuavam por fixar.
A conclusão semelhante se chega a partir da observação do enfermeiro OO; não tendo examinado a parte inferior do corpo (membros inferiores), teremos de valorar, pelo menos, os livores não fixos na zona do abdómen e rigidez cadavérica torácica, de que resulta, pelo menos, uma média de seis horas post mortem até à hora em que compareceram no local (próximo das 21H30).
Aliás, especificamente questionado sobre a questão, OO, com cerca de 14 anos de experiência ao serviço do INEM, admitiu como possível hora da morte, face ao que observou, algures no início da tarde desse dia, revelando não se sentir seguro considerar a hipótese colocada do início da tarde para trás.
Neste contexto, afirmar como certo e seguro que o falecimento da vítima tenha ocorrido no período descrito na acusação – entre as 08H03 e as 11H15 –, é temerário, dada a dúvida em estabelecer de forma arraigada a hora da morte de EE, máxime, que seja a indicada no despacho de acusação.
Ainda em relação às lesões causais do óbito, a nossa convicção vai no sentido de afastar a possibilidade de terem sido autoinfligidas, com tudo que isso representa.
Neste parâmetro, acompanhamos o que a Sr.ª Perita ressaltou, ao esclarecer que, embora não hajam elementos científicos que o excluam, no caso concreto as lesões não são compatíveis com autoagressão, desde logo, por existir mais do que um trajecto; pelo facto da sua localização corresponder a áreas anatómicas com muitos nervos, onde dói muito, não sendo curial que face ao primeiro impulso, se insistisse num segundo face à dor sentida; em virtude de as lesões autoinfligidas se caracterizarem normalmente por lesões superficiais e neste caso se constatar a sua relevante profundidade; e, bem ainda, por não se mostrarem compatíveis com acção voluntária do próprio para satisfação sexual.
Outro dos pilares da acusação reside na existência de várias lesões físicas nas zonas da cabeça, face, membros superiores e inferiores.
A Sr.ª Perita referiu que todas essas lesões eram agudas e parecidas, podendo serem todas compatíveis com dois ou três dias de existência, ou simultâneas às lesões internas que provocaram a morte; relativamente ás que observou, OO foi mais longe dizendo que não eram feridas daquele momento, que não eram de agora, o sangue estava seco; e em relação às peças dentárias 11, 21 e 22 descritas no relatório de autópsia, a Dr.ª LL esclareceu que as lesões apresentadas, com infiltração sanguínea, já pressupõem traumatismo dos tecidos moles contra os dentes, contusões.
Acresce, no enquadramento factual das suas causas, ter explicado que qualquer das lesões poderia congregar o resultado de queda (embate na superfície) ou embate em objectos, inexistindo uma única que inequivocamente lhe permitisse excluir natureza acidental; com o mesmo rigor, expôs as razões que a levam a considerar a possibilidade de tais lesões poderem constituir também o resultado de acção de terceiros, tendo sido com base nessa premissa que esta opção foi levada ao relatório de autópsia, mas só depois de apurarem a morte violenta da vítima.
Donde, a impossibilidade de assentar, sem reservas, que as lesões “físicas” tenham sido provocadas no dia 10.06.2021 e que a causa das mesmas resida necessariamente em acção de terceiro(s), máxime, da mesma pessoa que terá provocado as do hábito interno.
Aqui chegados, assume também indiscutível relevância o facto de ter sido encontrado na zaragatoa subungueal esquerda da vítima, um perfil genético de ADN de mistura (que não sangue), de, no mínimo, dois contribuintes, o da vítima e de terceira pessoa.
Porém, veio a apurar-se que tal perfil não era compatível com os perfis dos arguidos AA (que o carregou e transportou) e de CC, o que também fragiliza a tese da acusação, não obstante as mãos da vítima terem sido protegidas no local de modo a preservar a possibilidade de colheita – cfr. documento de fls. 828 e relatórios periciais de fls. 1074/1075 e 1093.
É de realçar que este tipo de material genético se assume determinante na investigação, o que se explica pelo facto de, no caso de agressão mortal, se tornar possível identificar por essa via subungueal o perfil do agressor, obtido a partir dos movimentos de defesa da vítima.
De notar que também não foi encontrado sémen no corpo da vítima, nem qualquer vestígio de ADN do arguido, embora aqui a Sr.ª Perita tenha esclarecido que por não haver suspeita de agressão sexual, terão previamente à autópsia procedido à limpeza do corpo.
De outra sorte, por estabelecer ficou se esses livores no tronco constituem o resultado de o corpo ter permanecido sentado nos caixotes na construção anexa (ou noutro lugar) ainda que inclinado para o lado direito, pois existe desse lado e muito perto um frigorífico que o podia amparar, ou se previamente ainda permaneceu deitado em posição de decúbito dorsal, o que faz sentido; como vimos, a fotografia n.º 106, de fls. 214, patenteia a existência de livores na região dorsal.
Face à prova produzida, depois dos arguidos CC, DD e BB, o corpo foi visto pela primeira vez pelo arguido AA na “barraca”; mas não foram detectados sinais de arrastamento nem sangue no exterior e no interior do anexo, no chão, com excepção do local por baixo dos caixotes; e da inspecção feita ao campo nenhum vestígio relevante foi recolhido.
É de anotar que a Sr.ª Perita não afastou a possibilidade, em teoria, de a vítima ter conseguido deslocar-se após a ocorrência das lesões traumáticas que ditaram a sua morte.
Em suma, não foi possível determinar o concreto lugar onde EE foi agredido e/ou perdeu a vida.
Da conjugação destas circunstâncias, não podemos, pois, extrair ter o arguido CC transportado o corpo para a construção onde veio a ser encontrado.
A ausência de prova sobre o que se passou, compromete igualmente o apuramento da indumentária da vítima quando AA o encontrou.
Convém repetir que o inspector II deixou claro que as primeiras diligências de investigação efectuadas na noite do dia 10.06.2021, foram desenvolvidas no pressuposto de morte não violenta da vítima e, como tal, restringidas aos factos susceptíveis de integrar a profanação de cadáver, explicando que, por essa razão, entre o dia 10.06 e o dia 14.06, a investigação se limitou à realização de interrogatório dos arguidos, sem qualquer outra deslocação, inspecção e exame dos locais.
Quer isto dizer, como afirmou, que o campo do arguido, mormente, a roulotte e a construção anexa não foram isolados/lacrados durante aqueles quatro dias (de Quinta a Segunda-feira) até receber a análise preliminar da causa de morte.
Portanto, durante esse período toda a área onde o corpo foi encontrado, ficou acessível a quem ali se quisesse dirigir.
Em termos indiciários, é seguro afirmar a presença de manchas hemáticas nos caixotes e no chão do anexo, por baixo deles, em resultado do escorrimento, e o que demais consta do auto de exame efectuado na noite do dia 10.06.
Todavia, a esta distância não tem o Tribunal como saber o que se passou ao longo desses quatro dias, se alguém ou os arguidos fizeram desaparecer vestígios que ali pudessem existir e não tivessem sido recolhidos no dia 10 (cfr. depoimento de II sobre as fracas condições de visibilidade no campo), se por exemplo o local foi limpo, desinfectado e desimpedido de objectos associados à morte do ofendido, ao ponto de no dia 14.10.2021 quando os Inspectores da PJ regressaram já não ser possível avançarem na investigação.
Tal como também se ignoram, porque não apuradas, eventuais deslocações de e para as estufas por diferentes trajectos, durante este intervalo temporal, com esse propósito.
Defende ainda o Ministério Público que CC terá tirado a vida à vítima estando reunidas um conjunto de circunstâncias em que tanto um como o outro se encontravam alcoolizados, face à constatação de rolha e cápsula de alumínio de garrafa de vinho do Porto encontrados no anexo.
É incontroversa a problemática associada ao consumo abusivo de bebidas alcoólicas por arguido e vítima, especialmente por esta, agravada após o período de almoço nos restaurantes a que se dirigiam, como foi testemunhado por quem conhecia os seus hábitos e fragilidades.
No entanto, dando por reproduzidas as considerações já tecidas sobre esta questão, ignora-se a quantidade ingerida, encontrando-se-nos, assim, vedada a possibilidade de sustentar convicção no sentido propugnado.
O arguido CC atrasou a entrega da encomenda de alfaces, sustentando a acusação que tal atraso se deve às contingências em que tirou a vida ao ofendido; e refere também que a justificação para o atraso não foi sempre a mesma, a uns disse que o EE não apareceu para trabalhar, a outros terá referido que estava bêbedo e não o ajudou.
Em traços gerais, é suspeito; o ofendido ainda trabalhou nesse dia, pelo menos, até se deslocarem ao estabelecimento do FF.
Como suspeitas são as cautelas entre os arguidos CC, DD e BB, nas comunicações telefónicas efectuadas entre eles, relegando para os encontros pessoais ou para chamadas através de outros números de telefone, as conversações sobre os assuntos relacionados com os factos.
Sucede, ao que tudo indica, que era recorrente o arguido atrasar-se nas entregas, conforme resulta da transcrição de fls. 1199 e ss., no segmento em que o arguido AA comenta “o CC tipo … Se tivesses o artigo para entregar às nove tu tinhas que dizer a ele que tinha que ser às oito e meia (…) O CC atrasar-se já era normal” – cfr. fls. 1202.
E no que concerne às justificações, não sendo concordantes, convergem na necessidade última de transmitir ter tratado sozinho da encomenda; mas fica a dúvida.
De salientar, como vimos, que também não se provou a existência de ferimento na testa do arguido.
Destarte, sem outra prova concludente, a factualidade assente não possui a virtualidade indiciária que o Ministério Público lhe confere.
No que tange ao comportamento posterior do arguido, importa atentar ao seguinte,
Partindo do pressuposto que tivesse sido ele a matar EE, estranha-se como após a entrega na “B...” só regressa às estufas cerca das 17H30, já com a sua mãe, não cuidando, entretanto, de diligenciar pelo encobrimento do corpo e desaparecimento dos indícios que o pudessem incriminar, caso fosse esse o seu propósito; na realidade, após circular na EN ...3 pouco depois das 12H00 - quando telefonou à mãe -, nada mais se apurou sobre as suas movimentações até ao momento em que pouco depois das 17H00 a foi buscar, depondo o Sr. Inspector no sentido de não poder garantir que entre a saída para a “B...” e as 17H00 ninguém tenha entrado ou saído das estufas.
Esta questão acaba por entroncar naqueloutra referente à incerteza da hora da morte, na medida em que a partir das 12H04, nada mais se sabe sobre o seu paradeiro nem o que fez até às 17H00.
Sob a égide do expectável e inteligível, também não se percebe como é que alguém que alegadamente matou uma pessoa em circunstâncias tão violentas, presta o seu acordo a levá-la para a residência da sua progenitora, que também já foi a sua, um dos centros da sua intimidade e vida familiar.
Acresce, AA ter dado a entender, subliminarmente, que CC não se mostrou logo contrariado perante a sua sugestão de chamar a ambulância ou as autoridades ao campo, como resulta da transcrição de fls. 1201, nos segmentos alusivos às respostas do arguido “E ele: É, não é?”, “E depois vai … e ele disse: É melhor, não é? E a roulotte?”, o que levanta reservas sobre o expectável comprometimento que devia assistir a quem não desejaria a presença de autoridades no local.
Também na premissa da sua autoria, surpreende ter sido o primeiro a admitir ao Inspector logo na noite de 10.06 que afinal EE tinha morrido no campo e não em casa de sua mãe, e que nessa sequência, tenha colaborado, indicando a casa-de-banho onde se encontrava o cesto com as calças que o AA usava quando deslocou o corpo, deslocando-se com o Inspector às estufas sem os demais arguidos e indicando o local onde encontrou a vítima sentada, autorizando o exame do seu telemóvel, disponibilizando-se para a recolha de zaragatoas (saliva), etc.
O relatório preliminar de perícia médico-legal de fls. 1565 a 1568-v.º e o relatório final de fls. 1573 a 1576, sem dúvida, desfavoráveis ao arguido face às questões e conclusões levantadas sobre a sua personalidade, não permitem responder a todas os paradigmas.
Em relação à roupa vestida pelo arguido CC, o Sr. Inspector referiu que nesse dia 10 terá trocado de roupa pelo menos duas vezes, que ele lhe entregou uma T-shirt e talvez uns chinelos que trazia quando esteve a trabalhar, explicando que as peças não continham perfil genético da vítima, mas que as T-shirts (camisola vermelha) não eram iguais.
Efectivamente, da análise da 3ª fotografia de fls. 299 e das que constam de fls. 223/225 as semelhanças e diferenças saltam à vista: pese embora tenha envergado e entregue T-shirt vermelha e calças azuis com lista branca vertical, as letras brancas são inteiramente circundantes na T-shirt que vestia na manhã do dia 10, não o sendo na que entregou ao investigador, que contém a expressão “...” não visionada na outra camisola; quanto às calças azuis, a lista branca lateral é mais carregada (larga) nas que usou no dia 10 comparando com as que entregou.
Sucede que a fls. 222 do relatório de exame pericial consta coisa diferente: que o arguido indicou e entregou a roupa e calçado que terá usado quando, conjuntamente com AA, movimentou o cadáver de EE.
Também custa a aceitar que pudesse manter naturalmente na lavandaria de sua casa, a roupa com que alegadamente agrediu a vítima.
Nesta conformidade, do facto de o arguido ter facultado roupa diversa daquela que teria envergado na manhã do dia 10.06 não se extrai, sem mais, que houvesse o propósito de ocultar eventuais vestígios.
Perante todo o exposto, permitirão estes elementos de prova directa e indirecta imputar a morte da vítima ao arguido CC? Entendemos que não.
Não, porque a dúvida instalada não foi dissipada.
O Ministério Público, ao sedimentar a morte violenta da vítima nos termos que constam da acusação, entendemos que tal perspectiva merecia crédito indiciário.
Ocorre, por tudo quanto ficou dito, que não foi suficiente a prova produzida sobre a versão que daí consta sendo que o Tribunal, com tais elementos, não pode ir tão longe e deduzir uma específica actuação e intenção do arguido, nos termos em que vem acusado.
Convoca-se aqui o que foi dito pelo Sr. Inspector II sobre a circunstância de não ter sido encontrado o objecto ou instrumento utilizado nas agressões, não terem visto marcas de arrastamento do corpo, mormente, para a construção anexa, não terem conseguido localizar o local concreto da morte, e não terem apurado a motivação subjacente (a título de exemplo, o exame ao telemóvel do arguido no segmento em que não se demonstrou pesquisa de pornografia de cariz homossexual). Ou seja, não é possível estabelecer um juízo lógico, seguro, causal, sequencial, preciso, directo e unívoco da actuação imputada ao arguido CC. Por outras palavras, não possui o Tribunal elementos de prova sólidos que permitam concluir, e não apenas suspeitar, que o arguido tenha praticado tais actos hediondos. Assim, sem outra prova redutora e sem o conhecimento presencial e directo de testemunhas com reconhecida razão de ciência, não foi possível demonstrar a responsabilidade e culpabilidade do arguido, subsistindo a dúvida sobre a sua participação directa nos factos, pese embora se posicione como a pessoa que é vista com EE pela última vez.
Tudo isto para dizer que perante a dúvida razoável sobre a autoria do arguido, insanável em face dos elementos probatórios coligidos, não pode este Tribunal concluir pela sua responsabilização nos exactos termos em que vem acusado.

C - Dos alegados erros notórios (em concreto) na sentença:
Conforme já se explicou, o vício formal existe quando o tribunal valora a prova contra as regras da experiência comum ou contra critérios legalmente fixados, aferindo-se o requisito da notoriedade pela circunstância de não passar o erro despercebido ao cidadão comum, por ser grosseiro, ostensivo, evidente[5], permitindo a sua apreciação oficiosa ou a requerimento.
O acórdão recorrido enumerou os factos necessários e relevantes para a correta apreciação e decisão do seu thema decidendum e especificou os meios concretos de prova que sustentam a sua convicção e as razões que servem de esteio à solução encontrada.
Deste modo, a existir algum erro notório na apreciação da prova, o mesmo poderá ser facilmente identificado, pela completude da fundamentação, tendo sido respeitados os deveres de enumeração factual, bem como de indicação probatória e do seu exame crítico.
Como já se referiu anteriormente, a distinção fulcral entre os vícios da decisão e os erros de julgamento reside na circunstância daqueles terem de resultar do texto da sentença, por si ou em conjugação com as regras de experiência mas sempre sem possibilidade de apelo a outros elementos que lhe sejam estranhos, designadamente a análise de prova junta aos autos ou produzida em audiência.
Analisada a fundamentação, começa-se por destacar a sua conclusão final, essencial para a compreensão da ratio decidendi do tribunal: “Perante todo o exposto, permitirão estes elementos de prova directa e indirecta imputar a morte da vítima ao arguido CC? Entendemos que não. Não, porque a dúvida instalada não foi dissipada. (…)”.
Considerando a globalidade da fundamentação produzida que antecedeu essa afirmação, o tribunal procedeu a uma análise da prova produzida em julgamento, de acordo com uma lógica que explicou, permitindo deste modo ao tribunal ad quem aferir a existência de algum erro grosseiro na avaliação da prova.
Do texto da decisão resulta um conjunto de dados – provas circunstanciais - que confirma a existência de fortes indícios da prática do crime de homicídio qualificado por parte do arguido CC, que resulta da prova produzida em julgamento e que o tribunal coletivo também reconheceu existir, designadamente:
a) os antecedentes comportamentais de alguns episódios de violência verbal e física ligeira exercida pelo arguido sobre a vítima que aconteceram em alturas em que aquele se encontrava irritado pelo fraco desempenho profissional do seu trabalhador (facto provado 10.);
b) a perícia médico-legal de psiquiatria forense junta aos autos - e mencionada na fundamentação da convicção do tribunal - revela alguns dados da personalidade do arguido CC, marcadamente narcísica e autodesresponsabilizante, compatíveis com emoção de frustração marcada perante uma oposição aos seus intentos e com uma postura de ocultação posterior;
c) a circunstância do arguido ter sido a última pessoa que foi vista em público com a vítima do homicídio – pelas 8h03m, à saída da mercearia, onde comprou duas garrafas de vinho do Porto, que levaram consigo (facto provado 15);
d) a circunstância da vítima ainda apresentar uma taxa de alcoolemia muito elevada (pelo menos de 2,21grs./l) quando foi autopsiada (relatório de autópsia, analisado na fundamentação da decisão e facto provado 16);
e) o facto do arguido também ter evidenciado ter consumido em excesso bebidas alcoólicas quando procedeu à entrega das paletes de alfaces pelas 11h15m (facto provado 21);
f) o facto do arguido ter dado duas versões distintas a pessoas diferentes para justificar o atraso na entrega das paletes com as alfaces colhidas nessa manhã - a um disse que o EE não apareceu para trabalhar, a outro referiu que não o ajudou – conforme factos provados 22 e 23 -;
g) as cautelas nas comunicações telefónicas efetuadas entre os arguidos CC, DD e BB, relegando para os encontros pessoais ou para chamadas através de outros números de telefone, as conversas sobre assuntos relacionados com os factos – conforme evidenciado na fundamentação da convicção do tribunal no acórdão recorrido -;
h) a remoção do cadáver do local das estufas para a casa onde viria a ser recuperado pelas autoridades - efabulando os arguidos uma história de modo a evitar o relacionamento do cadáver com a zona das estufas onde a vítima foi morta – factos provados 27 a 48 -;
i) a remoção do cadáver também é significativa para a solução da questão em apreço, uma vez que:
a. o corpo evidenciava notoriamente ter sofrido uma morte violenta, produzida por outra pessoa, pois tinha perdido muito sangue pelo ânus e evidenciava inúmeras lesões, mesmo exteriores (conforme descrito no relatório de autópsia), o que deveria qualquer pessoa a questionar, de forma mais vincada, a intencionalidade envolvida nessa operação, dificilmente explicável como forma de evitar uma inspeção da ASAE sobre as condições de trabalho da vítima…;
b. perante as evidências de morte violenta que o cadáver apresentava, dificilmente as pessoas envolvidas no seu transporte teriam outra motivação na sua conduta que não seja a de evitar o apuramento da responsabilidade criminal do homicida, necessariamente da sua família ou das suas relações pessoais mais próximas;
No entanto – e, segundo o Ministério Público, estranhamente perante a associação de indícios tão fortes –, a prova indireta não permitiu ao tribunal reconhecer a esta densidade a consistência probatória necessária para comprovar a autoria do homicídio, tendo por agente do crime o arguido CC, pelas razões concretizadas pelo tribunal na fundamentação da decisão.
O próprio tribunal coletivo do julgamento reconheceu a existência de suspeitas em relação ao arguido quanto à autoria do homicídio, mas entendeu dever fazer prevalecer a presunção de inocência do arguido, por subsistirem, no essencial, as seguintes dúvidas:
a) não se ter determinado o local, nem a hora exata da agressão bárbara que conduziu à morte da vítima;
b) não ter sido identificado o instrumento contundente concreto utilizado para causar as lesões fatais;
c) não terem sido recolhidos vestígios de ADN do arguido na vítima;
d) não terem sido identificados vestígios de ADN do arguido no pau apreendido que se suspeitou ter sido utilizado nas fatídicas agressões; e
e) a circunstância do local das estufas onde o corpo foi inicialmente encontrado ter vários acessos não vigiados, podendo qualquer pessoa lá ter acedido e cometido o crime; e
f) por não se ter apurado qualquer motivação que o arguido poderia ter para cometer um ato tão hediondo;
Porém, salvo o devido respeito, algumas dessas interrogações não têm total correspondência com a realidade objetiva apurada de acordo com a própria decisão, negligenciando aspetos essenciais em detrimento de pormenores secundários.
Concretizando.
Tendo-se estabelecido a causa da morte nos factos 18 e 19 (exsanguinação em resultado das graves lesões interiores produzidas com a introdução na região anal da vítima, pelo menos por duas vezes, um objeto de natureza contundente que não foi possível identificar[6]), constitui um facto notório que a morte apenas terá ocorrido algum tempo (podendo ser horas) depois do início das perdas hemorrágicas (causadas pelas agressões fatais)[7], quando a perda de sangue tiver ultrapassado níveis críticos, que variam consoante a condição física da pessoa em causa;
Ora, o raciocínio que o tribunal fez para considerar não provada a intervenção do arguido na agressão bárbara que conduziu à morte de EE tem subjacente uma confusão entre “hora da morte” e a hora em que foram infligidas as agressões fatais na vítima:
“Para além daquilo que já resulta do antes transcrito, convirá reforçar não ter sido possível, a partir das declarações, depoimentos, prova pericial e documentos, estabelecer o específico local onde a vítima morreu nem a hora da morte.
(…)
Depois de confrontada com os fotogramas de fls. 167 e 168, corroborou que efectivamente os livores cadavéricos não estavam fixos, mas sim, móveis, ou seja, ainda vão acompanhar a mexida do cadáver, concluindo, assim e, em média, não se afigurar como líquido ir mais além do que as 8, 9 ou 10 horas de morte da vítima sobre a hora daquelas fotografias; acrescentou ainda que a cor das mãos visualizada na fotografia de fls. 168 não correspondia a nenhum fenómeno cadavérico.
Nesta explicação, a Sr.ª Perita declarou ignorar a hora a que as fotografias foram retiradas, no entanto, analisando o relatório de exame pericial de fls. 153 e ss. e o aí mencionado quanto à hora de início, o momento da captura das imagens andará à volta das 00H00.
(…)
Neste contexto, afirmar como certo e seguro que o falecimento da vítima tenha ocorrido no período descrito na acusação – entre as 08H03 e as 11H15 –, é temerário, dada a dúvida em estabelecer de forma arraigada a hora da morte de EE, máxime, que seja a indicada no despacho de acusação. (…)”

Não obstante a pormenorizada apreciação dos meios concretos de prova, evidenciando um manifesto esforço em ser rigoroso, o tribunal coletivo prejudicou a racionalidade da decisão ao confundir a hora da morte com a hora em que a vítima sofreu as agressões fatais – que pode ter sucedido horas antes do óbito -, contaminando esse erro notório a apreciação da prova.
Por outro lado, o local (geográfico) onde foram produzidas as lesões fatais na vítima depreendem-se dos factos provados 18 (imediatamente antes de terem sido produzidas as lesões fatais, alguém despiu as calças à vítima) e 46 (essas calças foram recuperadas mais tarde, estando molhadas e impregnadas de areia das estufas, contendo nos bolsos o telemóvel da vítima, um maço de tabaco e um isqueiro e, numa das pernas, uma peúga enrolada).
De resto, a fundamentação da convicção do tribunal também alude à fotografia de fls. 212 onde se observam nitidamente os pés sujos com areia – certamente também oriunda das estufas, mas que, pelas regras da normalidade, apenas terão ficado com areia após terem sido despidas as respetivas meias no local onde a vítima foi despida e seguidamente violentada -.
Tendo sido considerado provado que as calças estavam molhadas e também impregnadas de areia das estufas, tal constitui um indício forte no sentido do local do crime ter sido nas estufas exploradas em sociedade pelo arguido CC, as quais se situam junto da roulotte onde pernoitava a vítima e a pequena construção que servia de cozinha, onde o corpo foi encontrado sentado numas caixas pela mãe do arguido (facto provado 25), para onde foi levada pelo seu filho, ora coarguido. Não se percebe, assim, como o tribunal não conseguiu identificar o lugar onde o homicídio foi cometido.
A não identificação do instrumento concreto utilizado na produção das lesões fatais apenas não contribuiu para a identificação do homicida pela circunstância de, assim, tal objeto não ter sido relacionado com o mesmo, seja por vestígios de ADN identificados, ou pela sua apreensão na posse do agente do crime.
A circunstância do local das estufas onde o corpo foi inicialmente encontrado ter vários acessos não vigiados, podendo qualquer pessoa lá ter acedido e cometido o crime, tem uma importância que depende, em muito, da determinação da hora em que teve lugar a agressão fatídica, pois foi considerado provado que:
a) após as 5h30m, o arguido CC (…) dirigiu-se (…) para as suas estufas, onde, juntamente com EE, que ali vivia, colheram várias caixas de alfaces;
b) Pelas 7h55m desse dia o arguido CC e EE dirigiram-se na mesma carrinha à mercearia/café denominada “FF”, sita na Rua ..., em ..., Póvoa de Varzim, que confina com a Rua ... e a Rua ...;
c) Nessa mercearia o arguido CC adquiriu 2 garrafas de vinho do Porto de 75 cl cada após o que se dirigiu de novo com o EE para as estufas, onde chegaram por volta das 8h03m.
d) Nesse local, ambos consumiram daquele vinho, vindo o EE a apresentar uma TAS de pelo menos 2,21 g/l..
Considerando o compromisso assumido pelo arguido CC de entregar as paletes com as alfaces às 10h no armazém, faltando ainda colher exemplares dessa verdura quando ambos regressaram às estufas às 8h03m, a circunstância do local do crime ter sido nas estufas onde as alfaces eram colhidas - como se depreende dos vestígios de areia das estufas nos pés descalços da vítima e nas calças que mais tarde foram recuperadas -, se o crime foi praticado até às 11h15m daquele dia (altura em que resultou provado ter o arguido CC saído da zona das estufas e se dirigiu sozinho ao armazém da sociedade “B...”, onde se apresentou alcoolizado, com as paletes de alfaces), as regras da experiência comum aplicadas a esse conjunto de evidências reveladas na fundamentação da convicção do tribunal apontariam no sentido do arguido CC ser o homicida em causa.
No entanto, o tribunal não investigou a hora da produção das lesões fatais na vítima - o que resulta do texto da fundamentação da decisão –, o que podia ter feito:
a) pedindo mais esclarecimentos às senhoras peritas que realizaram a autópsia [artigos 158º, 1, a) e 350º, do Código de Processo Penal], salientando-se que o relatório da autópsia mostra a participação de uma perita médica responsável (Dra. YY) e de três médicas assistentes de Medicina Legal – Dras. LL, ZZ e AAA –, apesar de se mostrar assinado, apenas, pela Dra. LL e pelo Dr. BBB (que apenas coloca a sua assinatura digital no lugar da assinatura da Dra. YY, não aparecendo ambos na identificação dos peritos médicos, nem do técnico que participou na autópsia), podendo e devendo esclarecer-se também as razões dessa confusão de ordem “administrativa”; ou
b) pedindo a renovação da perícia ao I.N.M.L., visando o esclarecimento, se possível, da hora provável da produção das lesões fatais na vítima, tendo em conta, designadamente, a hora estimada do óbito e a extensão e localização das lesões que provocaram a exsanguinação, as fotografias do cadáver juntas aos autos, as demais informações constantes dos autos de diligência, do teor do relatório de autópsia e, obviamente, os dados da ciência médica; ou
c) pedindo mesmo uma nova perícia , nos termos do disposto no artigo 158º, 1, al. b), do Código de Processo Penal, com o objeto definido na alínea anterior.
O apuramento desse facto revela-se útil para decidir o mérito da acusação relativamente à autoria do crime de homicídio qualificado, na forma consumada, p. e p. pelos artigos 131º e 132º, números 1 e 2, al. d), do Código Penal, nomeadamente, para esclarecer os factos impugnados pelo Ministério Público recorrente e, também, como consequência, a motivação dos arguidos na prática do crime de profanação de cadáver, p. e p. no art. 254º, n.º 1, als. a) e b), do Código Penal que constitui o objeto do processo, traduzindo-se numa insuficiência da matéria de facto provada para a decisão.
Como já referido anteriormente, a insuficiência para a decisão da matéria de facto provada prevista na alínea a) do art. 410º, nº 2, do Código de Processo Penal é aquela decorre da omissão de pronúncia, pelo tribunal, sobre factos alegados ou resultantes da discussão da causa que sejam relevantes para a decisão, ou seja, a que decorre da circunstância de o tribunal não ter dado como provados ou como não provados todos os factos que, sendo relevantes para a decisão da causa, tenham sido alegados pela acusação e pela defesa ou resultado da discussão – o que é o caso da determinação da hora da produção das fatídicas lesões na vítima do homicídio, exigência que resultou da discussão.
Apenas esse apuramento permitirá ao tribunal aferir devidamente o valor probatório dos demais meios concretos de prova produzidos a respeito do homicídio, tanto mais que não houve prova direta da autoria do crime.
Tendo ocorrido esse vício da decisão – revelado através do apuramento de outro vício da decisão, o de erro notório na apreciação da prova - então o tribunal de julgamento deixou de considerar um facto essencial postulado pelo objeto do processo, isto é, deixou por esgotar o thema probandum.
Por força do disposto no artigo 426º, 1, do Código de Processo Penal, existindo tais vícios formais da decisão e não sendo por isso possível decidir a causa, uma vez que o processo não dispõe dos elementos necessários para sanar os vícios, impõe-se a este Tribunal determinar o reenvio parcial do processo para novo julgamento limitado aos factos afetados por tais vícios, a saber, aqueles que integram a acusação do arguido CC pela prática de um crime de homicídio qualificado, na forma consumada, p. e p. pelos artigos 131º e 132º, números 1 e 2, al. d), do Código Penal, bem como a motivação dos arguidos na prática, em coautoria material, de um crime de profanação de cadáver, p. e p. no art. 254º, n.º 1, als. a) e b), do Código Penal imputado na acusação, incluindo:
a) o segmento do facto considerado provado 18, onde consta a referência a “pessoa cuja identidade não se apurou e em local também não concretamente determinado”;
b) os factos considerados não provados no acórdão recorrido sob os números 9 a 26 e 28 a 30; e
c) o apuramento da hora da produção das lesões fatais na vítima.
Mantém-se como provada toda a demais factualidade considerada provada no acórdão recorrido - por não ter sido afetada pelos vícios formais da decisão e não ter sido impugnada pelos recorrentes -.
Em consequência do reenvio parcial do julgamento acima decidido, referente ao crime de homicídio qualificado, encontra-se prejudicada a apreciação das demais questões suscitadas pelo Ministério Público recorrente, relacionadas com esse objeto do processo.
Abrangendo o reenvio parcial o julgamento dos arguidos pela prática, em coautoria material, de um crime de profanação de cadáver, p. e p. no art. 254º, n.º 1, als. a) e b), do Código Penal – sem prejuízo da factualidade já considerada provada a esse respeito -, a apreciação do recurso dos arguidos AA e BB também se encontra prejudicada.
*
Das custas:
Não há lugar ao pagamento de quaisquer custas, nos termos do disposto no artigo 513°, 1, “a contrario sensu”, do Código de Processo Penal.
III – DECISÃO
Nos termos e pelos fundamentos expostos, acordam em conferência e por unanimidade os juízes subscritores da 2ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto:
a) Reconhecer na decisão recorrida, oficiosamente, o vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada e de erro notório na apreciação da prova e, por conseguinte, determinar o reenvio parcial do processo para novo julgamento a realizar pelo tribunal previsto no artigo 426º-A, do Código de Processo Penal, limitado:
- Ao objeto da acusação do arguido CC pela prática de um crime de homicídio qualificado, na forma consumada, p. e p. pelos artigos 131º e 132º, números 1 e 2, al. d), do Código Penal;
- Ao apuramento da motivação dos arguidos nas condutas suscetíveis de integrarem a prática, em coautoria material, de um crime de profanação de cadáver, p. e p. no art. 254º, n.º 1, als. a) e b), do Código Penal e concretizar as necessárias consequências jurídicas à luz da acusação;
- À reapreciação do segmento do facto considerado provado 18, onde consta a referência a “pessoa cuja identidade não se apurou e em local também não concretamente determinado”;
- Aos factos considerados não provados no acórdão recorrido sob os números 9 a 26 e 28 a 30; e
- Ao apuramento da hora da produção das lesões fatais na vítima.
b) Manter como provada toda a demais factualidade já considerada provada no acórdão recorrido.
c) Considerar prejudicada a apreciação das demais questões suscitadas pelos recorrentes.

d) Sem custas.


Nos termos do disposto no art. 94º, 2, do Código de Processo Penal, aplicável por força do art. 97º, 3, do mesmo texto legal, certifica-se que o acórdão foi elaborado e integralmente revisto pelo relator.



Porto, em 18 de Outubro de 2023.
Jorge Langweg
Maria Dolores da Silva e Sousa
Manuel Soares
___________________
[1] Parecer subscrito pela Procuradora-Adjunta Dra. Judite Babo.
[2] Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, III, 2ª edição revista e atualizada, Editorial Verbo, 2000, pág. 335, V.
[3] Como decorre já de jurisprudência datada do século passado, cujo teor se tem mantido atual, sendo seguido de forma uniforme em todos os tribunais superiores portugueses, até ao presente: entre muitos, os acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, de 19 de Outubro de 1995 (acórdão de fixação de jurisprudência obrigatória), publicado no Diário da República 1ª-A Série, de 28 de Dezembro de 1995, de 13 de Maio de 1998, in B.M.J., 477º,-263, de 25 de Junho de 1998, in B.M.J., 478º,- 242 e de 3 de Fevereiro de 1999, in B.M.J., 477º,-271 e, mais recentemente, de 16 de Maio de 2012, relatado pelo Juiz-Conselheiro Pires da Graça no processo nº. 30/09.7GCCLD.L1.S1.
[4] Caso tal dever de fundamentação estivesse omisso – o que não é caso do acórdão recorrido, como se depreende da sua leitura e análise -, a decisão recorrida incorreria numa nulidade de conhecimento oficioso, por força do estatuído no artigo 379º, números 1, alínea a) e 2, do Código de Processo Penal.
[5] Segundo Germano Marques da Silva, in Curso de Processo Penal, Vol. III, 2ª, Edição, Editorial Verbo, pág. 341.
[6] As lesões encontram-se provadas e descritas no relatório de autópsia, designadamente as lesões traumáticas da região perineal (peri-anal com extensão para a região escrotal), anal e do cólon sigmóide/descendente, infiltração sanguínea ao nível da camada serosa do cólon sigmóide; na mucosa interna anal, duas soluções de continuidade superficiais, e áreas de infiltração sanguínea adjacentes; a 15 cm da mucosa anal, várias infiltrações sanguíneas da mucosa colónica; a 22 cm da mucosa anal, e numa extensão com 37 cm, infiltração sanguínea abundante de todas as camadas da parede do cólon sigmóide/descendente, com múltiplas soluções de continuidade superficiais da mucosa colónica, sobretudo no terço mais distal; a 4 cms acima do final dessa área de infiltração sanguínea, uma área de infiltração sanguínea da mucosa; a 6 cm acima dessa área, outra área de infiltração sanguínea da mucosa; a 11 cm acima dessa área, outra área de infiltração sanguínea da mucosa; a 13 cm acima dessa área, outra área de infiltração sanguínea da mucosa.
Essas lesões traumáticas, que levaram a perda hemorrágica abundante, provocaram, direta e necessariamente, a morte do ofendido.
[7] Esta conclusão, aliás, foi admitida nos esclarecimentos da perita médica, ao referir “se fosse exclusivamente pela perda sanguínea a morte não seria imediata”.