Acórdão do Tribunal da Relação do Porto | |||
| Processo: |
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| Nº Convencional: | JTRP000 | ||
| Relator: | ISABEL FERREIRA | ||
| Descritores: | PROCEDIMENTO CAUTELAR COMUM DIREITO DE AÇÃO AÇÃO POPULAR AMBIENTE DIREITOS DE PERSONALIDADE | ||
| Nº do Documento: | RP202409123642/22.0T8STS.P2 | ||
| Data do Acordão: | 09/12/2024 | ||
| Votação: | UNANIMIDADE | ||
| Texto Integral: | S | ||
| Privacidade: | 1 | ||
| Meio Processual: | APELAÇÃO | ||
| Decisão: | REVOGADA | ||
| Indicações Eventuais: | 3. ª SECÇÃO | ||
| Área Temática: | . | ||
| Sumário: | I – A não utilização de linguagem simples e clara de acordo com o art. 9º-A do C.P.C. não constitui causa de nulidade da sentença, nem tem prevista qualquer cominação, designadamente quando estejam em causa actos decisórios do tribunal. II – Intentado procedimento cautelar ao abrigo do exercício do direito de acção popular, para que seja decretada a providência cautelar comum requerida necessário se torna que se verifiquem os requisitos previstos na lei para o efeito. III – O facto de uma actividade estar a ser exercida a coberto de determinada legislação e de uma licença não significa que a mesma possa pôr em causa o ambiente e os direitos de personalidade de outras pessoas. IV - Não é um qualquer prejuízo que justifica o decretamento de uma providência cautelar, tem de tratar-se de um prejuízo que, ainda que o requerente obtenha vencimento na acção principal, em virtude da demora na resolução desta seja irreparável ou de difícil reparação, a avaliar segundo critérios objectivos e de normalidade, não podendo estar-se apenas perante uma situação de simples dúvida, conjectura ou receio subjectivo, que ainda não se concretizou, nem se mostra na iminência de concretizar-se. | ||
| Reclamações: | |||
| Decisão Texto Integral: | Processo nº 3642/22.0T8STS.P2 (Comarca do Porto – Juízo Local Cível de Santo Tirso – J2) Relatora: Isabel Rebelo Ferreira 1º Adjunto: João Venade 2º Adjunto: Carlos Portela * Acordam no Tribunal da Relação do Porto * I – Invocando o exercício do direito de Acção Popular, ao abrigo do disposto no art. 52º, nº 3, da C.R.P. e na Lei nº 83/95, de 31/08, AA e BB intentaram, no Juízo Local Cível de Santo Tirso do Tribunal Judicial da Comarca do Porto, em representação dos cidadãos residentes em ..., o presente procedimento cautelar comum contra “A..., Lda.”, com sede na freguesia ..., ... e ..., concelho ..., pedindo: a) que se ordene que a requerida cesse de imediato o funcionamento do Centro Crematório e se abstenha de utilizar o estabelecimento de que é proprietária sito na Rua ..., ..., para desenvolver a sua actividade comercial de Agência Funerária, designadamente através da utilização de forno ilegal construído para cremar cadáveres humanos, determinando-se a sua remoção e desmantelamento, com custos a suportar pela requerida; b) que se fixe a quantia de € 2.500,00 a título de sanção pecuniária compulsória por cada dia de atraso no cumprimento das medidas decretadas; “c) de absterem-se futuramente deste tipo de atividade e comportamentos”. Requereram ainda que a providência fosse decretada sem audiência prévia da requerida. Por despacho de 12/12/2022 indeferiu-se a não audição prévia da requerida e determinou-se a citação desta para deduzir oposição. Citada a requerida, a mesma deduziu oposição, impugnando os factos alegados pelas requerentes para fundamentar a sua pretensão e defendendo não se verificarem no caso os requisitos para o decretamento da providência requerida. Procedeu-se à audiência final, com a produção da prova indicada pelas partes. Após, foi proferida decisão, na qual se decidiu julgar improcedente o procedimento cautelar. De tal decisão vieram as requerentes interpor recurso, pretendendo o decretamento da providência cautelar requerida. A requerida apresentou contra-alegações, defendendo a manutenção da sentença recorrida. O recurso foi admitido no tribunal a quo, por despacho de 11/04/2023, como sendo de apelação, com subida imediata, nos próprios autos e efeito suspensivo. O recurso foi recebido neste Tribunal da Relação, tendo sido proferido pela relatora, em 18/05/2013, o seguinte despacho: “O presente procedimento cautelar foi instaurado pelas requerentes invocando o exercício do direito de Acção Popular, ao abrigo do disposto no art. 31º do C.P.C. e na Lei nº 83/95, de 31/08. Compulsados os autos, verifica-se que não foram citados os titulares dos interesses em causa na acção e não intervenientes nela, nos termos e para os efeitos do disposto no art. 15º da referida Lei nº 83/95. Afigura-se-nos que tal situação poderá configurar um caso de nulidade por falta de citação, nos termos do art. 187º do C.P.C., até perante os efeitos do trânsito em julgado para aqueles interessados previstos no art. 19º, nº 1, da Lei nº 83/95, a qual é de conhecimento oficioso e a todo o tempo, atento o disposto nos arts. 196º e 200º do C.P.C.. Assim, e uma vez que esta é uma questão nova, há que ouvir as partes, de modo a cumprir o princípio do contraditório. Notifique, pois, as partes para se pronunciarem, no prazo de dez dias.” Apenas a recorrida se pronunciou, por requerimento de 02/06/2023, defendendo que não se verificou qualquer nulidade processual, não sendo a citação dos interessados obrigatória em sede cautelar. Após, foi proferida decisão sumária, ao abrigo do disposto no art. 656º do C.P.C., onde se decidiu: - “anular todo o processado subsequente ao despacho proferido em 12/12/2022, com excepção da oposição de 23/12/2022 e dos requerimentos de 09/01/2023 e 18/01/2023, devendo proferir-se, para além daquele, um outro despacho que determine a citação dos titulares dos interesses em causa na acção e não intervenientes nela, nos termos e para os efeitos do disposto no art. 15º da Lei nº 83/95, de 31/08, seguindo-se os ulteriores termos legalmente previstos”. Desta decisão veio a recorrida reclamar para a conferência, nos termos do disposto no art. 652º, nº 3, do C.P.C., reafirmando não haver lugar a citação dos interessados no procedimento cautelar, atenta a sua natureza urgente e sumária. Notificada a parte contrária, a mesma não se pronunciou dentro do prazo de que dispunha para o efeito. Por acórdão deste Tribunal da Relação do Porto de 28/09/2023 foi decidido desatender a reclamação apresentada e, em consequência, manter a decisão reclamada, que anulou todo o processado subsequente ao despacho proferido em 12/12/2022, com excepção da oposição de 23/12/2022 e dos requerimentos de 09/01/2023 e 18/01/2023. Regressados os autos à Primeira Instância, determinou-se a citação dos titulares dos interesses em causa na acção e não intervenientes nela, nos termos e para os efeitos do disposto no art. 15º da Lei nº 83/95, de 31/08. Efectuada a citação, os interessados CC, DD e EE, FF, GG, HH e II, “B... Lda.”, JJ, “C...”, KK, LL e MM, NN e OO, PP, QQ, RR e SS, TT e UU, VV e WW, XX e YY, ZZ e AAA, BBB, CCC, DDD e EEE, FFF, GGG, HHH e III, JJJ e KKK, LLL e MMM, NNN, OOO, PPP e QQQ, RRR, SSS e TTT, UUU, VVV, WWW, XXX e YYY, ZZZ, AAAA, BBBB e CCCC, DDDD, EEEE, FFFF e GGGG declararam aceitar a representação das requerentes (requerimentos de 15/12/2023 e 20/12/2023). Nenhum titular dos interesses em causa se excluiu da representação. Procedeu-se à audiência final, com a produção da prova indicada pelas partes. Após, foi proferida decisão, na qual se decidiu julgar procedente o procedimento cautelar e, consequentemente, determinar que a requerida “se abstenha de utilizar o Centro Crematório descrito nos itens 11) e 12) dos factos indiciariamente provados, com referência ao estabelecimento sito na Rua ..., ..., e proceda à sua remoção/desmantelamento”. De tal decisão veio a requerida interpor recurso, tendo, na sequência da respectiva motivação, apresentado as seguintes conclusões (!), que se transcrevem: «I.O presente recurso vem interposto da sentença proferida à data de 23 de fevereiro de 2024, a qual julgou parcialmente procedente a providência cautelar intentada nestes autos, decretando que a ora Recorrente “se abstenha de utilizar o Centro Crematório descrito nos itens 11) e 12) dos factos indiciariamente provados, com referência ao estabelecimento sito na Rua ..., ..., e proceda à sua remoção/desmantelamento.” II.Com o presente recurso, ademais da arguição da nulidade da Sentença proferida, peticiona-se a alteração da matéria de facto dada como provada, recorrendo-se a prova gravada, bem assim como dos fundamentos de direito empregues pelo Tribunal a quo. III.Primeiramente, sempre se dirá que a Sentença recorrida padece de evidentes nulidades, desde logo por violação do princípio da simplicidade, sendo certo que através do Decreto-Lei n.º 97/2019, foi aditado ao Código de Processo Civil o seu artigo 9º. A, que apenas clarifica o que já era um princípio implícito no processo civil definindo-se que “o tribunal deve, em todos os seus atos, e em particular nas citações, notificações e outras comunicações dirigidas diretamente às partes e a outras pessoas singulares e coletivas, utilizar preferencialmente linguagem simples e clara”, visando-se, como corolário do próprio Estado de Direito que as decisões sejam compreensíveis para todos os intervenientes processuais. IV.A verdade é que a Sentença recorrida adota uma linguagem erudita e exclusiva, dificultando a sua leitura e compreensão, assim sendo sobretudo no que respeita à fundamentação de Direito, onde se apresenta como um texto de natureza académica, dissertando o Meritíssimo Juiz a quo sobre quadros normativos abstratamente aplicáveis à situação controvertida, num exercício técnico jurídico louvável e de interesse para atores forenses, mas sem que permita, sobretudo para as próprias partes, depreender com a clareza legalmente imposta a motivação da concreta posição do Tribunal, a qual, com relevo também para o que infra se dirá, chega a não se depreender – tornando assim nula a Sentença por violação do artigo 9º.A do Código de Processo Civil. V.A Sentença recorrida, ademais de perspetivarmos o seu demérito de fundo nas questões que decidiu, é omissa na fundamentação da verificação de alguns dos elementos essenciais para a procedência duma providência cautelar. VI.Pois, após anunciar do ponto de vista da aplicabilidade abstrata todos estes requisitos, salvo devido respeito, a Sentença recorrida deu um salto de raciocínio, decretando as medidas cautelares sem qualquer fundamentação para julgar verificados a generalidade dos pressupostos supra melhor identificados, designadamente o periculum in mora, adequação e proporcionalidade. VII.Efetivamente, lida a Sentença recorrida nada se verifica quanto à concreta verificação daqueles pressupostos, sendo absolutamente omissa a fundamentação do periculum in mora, adequação e proporcionalidade das medidas cautelares, o que representa uma nulidade da sentença nos termos e para os efeitos do art. 615º, nº 1, al. b) do CPC, o que expressamente se invoca. VIII.Entendendo v/as. Exas. não se verificarem as nulidades invocadas, sempre se dirá que o Tribunal a quo não procedeu a uma correta avaliação da prova produzida nos presentes autos, menos ainda a sua subsunção ao direito. IX.O que está em causa nos presentes autos é essencialmente os eventuais malefícios para a saúde e qualidade de vida das populações vizinhas, da colocação nas instalações de centro funerário em construção pela Recorrente, dum forno crematório e seu posterior funcionamento, o que caberia às Recorridas demonstrar. X. Isto contíguo a um local onde há seguramente mais de 70 anos é exercida a atividade funerária pela Recorrente e seus antecessores, que ora, diligenciando pela adaptação a novas exigências, essas sim, dum ambiente sadio, decidiu dotar-se das condições para efetuar cremações, apoiando-se, para tanto em técnicos de elevada reputação e conhecimentos, tudo de modo a assegurar condições de não lesar direitos de terceiros e sem impacto ambiental negativo. XI.Quanto à prova por declarações de parte e testemunhal produzida pelas Recorridas é patente e manifesto o cariz emotivo e passional da mesma, desprovida quanto à discussão dos autos de qualquer razão de ciência, o que acaba por ser mesmo expressamente admitido (…) XII.Resultando evidente que da prova produzida pelas Recorridas e requerentes da providência em momento algum se demonstrou o por si alegado malefício ambiental e para a saúde, também não o demonstrando o estudo mandado juntar aos autos pelo Tribunal, estudo aquele que na sua conclusão refere expressamente não ser conclusivo. XIII.Por seu turno, a prova produzida pela recorrente foi marcada pelo saber empírico, bem com técnico e cientifico, sendo assim evidentes as razões de ciência (…) (…) XV.Da prova produzida resultaram cabalmente demonstrados factos diversos dos considerados pelo Tribunal a quo, factos esses com relevo para a correta decisão dos presentes autos.XVI.Assim, desde logo quanto ao ponto 1 dado como provado o mesmo deveria ser complementado no sentido de indicar que o estabelecimento ora explorado pela sociedade aqui Recorrente conta já com mais de 70 anos de atividade naquele local. (…) XX.Face ao exposto deverá o ponto 1 dos factos provados ser alterado e passar a ter a seguinte redação: 1 – A Requerida é uma sociedade que se dedica à prestação de serviços fúnebres desde o ano de 2002, explorando o estabelecimento sito na Rua ..., freguesia e concelho ..., estabelecimento esse existente no local há 40 anos e nas suas imediações há 80 anos, sendo o centro funerário em construção contíguo às atuais instalações.XXI.Quanto ao ponto 2 dos factos tidos como provados a mesma documentação que permitiu ao Tribunal a quo indicar que o HHHH é responsável técnico da recorrente, também deveria levar à consideração de que também o é a IIII, sendo também ambos gerentes da sociedade recorrente – vide certidão permanente e docs. 28 da oposição – resultando dever ser alterado nos seguintes termos: 2 – Desde 02 novembro de 2010, HHHH e IIII exercem o cargo de gerentes e responsáveis técnicos da Requerida. XXII. No que diz respeito ao ponto 9 dos factos tidos como provados indiciariamente deveria ser alterado no sentido de, diga-se em abono da correção jurídica, torna-lo um facto e não alegação, passando a constar o que a ora Recorrente comunicou a intenção de colocar o forno crematório e não que apenas declarou comunicar, para tal convergem precisamente os elementos que levaram o Tribunal a quo a tal conclusão. (…) XXV.Considerados tais elementos representa a melhor leitura da prova produzida a alteração do ponto 9 nos seguintes termos: 9 – Em 11 fevereiro de 2022, efetivou-se uma reunião na Câmara Municipal ... sobre a eventual colocação dum forno crematório nas instalações do centro funerário em construção, intenção que pelo menos desde 18 de janeiro de 2022 é do conhecimento da dita Câmara Municipal ....XXVI.Por outro lado, no que diz respeito ao ponto 11 dos factos tidos como provados dispunha o Tribunal a quo dos elementos probatórios necessários para, com precisão cronológica, identificar o momento da colocação do forno crematório e chaminé, resultando de forma pacífica da posição das partes que tal ocorreu em novembro de 2022, sendo precisamente nesse sentido que, alguns dias após é intentada esta providência cautelar. (…) XXVIII.Do exposto resulta dever ser dado como provado que: 11 – Durante o ano de 2022, a Requerida instalou na sobredita obra um forno crematório composto por duas câmaras, uma primeira para cremação ou incineração com dois queimadores alimentados a diesel/gasóleo, e uma segunda câmara de pós-combustão, com um queimador localizado acima da câmara de incineração, que realiza a pós-combustão dos gases gerados durante o processo de incineração a uma temperatura mínima de 850ºC, os quais são orientados para uma chaminé.XXIX.Acresce ainda que, complementando as características do equipamento, deveriam ser aditadas as suas valências tecnológicas do equipamento e que serão capazes de demonstrar cabalmente todo o tipo de emissões que o mesmo poderá ter, eventuais avarias, necessidade de manutenção (…) (…) XXXIII.Face aos elementos probatórios indicados, haveria de ser aditado à lista de factos provados o seguinte: 11-A – O forno crematório instalado pela Requerida permite monitorizar em tempo real e em modo contínuo toda a sua operacionalização, podendo ainda armazenar e/ou exportar via internet todos os dados relativos às emissões atmosféricas, consumos, ciclos de funcionamento, paragens, avarias.XXXIV.Quanto aos factos referentes aos eventuais efeitos adversos para a saúde e ambiente da utilização do forno crematório versam os factos 13 e 14 da lista de factos indiciariamente tidos como provados, os quais, apesar de mesmo na configuração dada pelo Tribunal a quo não resultam concluir por concretos malefícios, mas que, ainda assim, merecem o nosso reparo, não correspondendo à correta apreciação da prova produzida. (…) XLV.Aqui chegados, existe vasta prova de que o equipamento adquirido pela Recorrente é dotado duma tecnologia avançada, com a preocupação de não causar malefícios ambientais e para a saúde de populações vizinhas, obedecendo na forma como é confecionado a to[XLVI. Por seu turno o ponto 14 tido como provado apesenta-se descabido na forma como foi previsto, referindo-se a diversos elementos químicos e referindo que os mesmos são tóxicos para os seres humanos sem qualquer preocupação de contraponto e medida, sendo os elementos em questão retirados do estudo canadiano sobredito, por referência aos elementos potencialmente advindos da inceneração – e não referentes ao concreto equipamento aqui em causa, cujas fichas técnicas especificam as emissões previsíveis após a depuração feita pela segunda câmara – e nesse estudo ao contrário da linguagem pouco correta empregue pelo Tribunal a quo o que é referido é que tais elementos são POTENCIALMENTE adversos para a saúde humana, adversidade que dependerá naturalmente de diversos fatores e da densidade daqueles elementos, sendo sempre certo e de conhecimento comum que muitos daqueles elementos são também libertados com a utilização de lareiras, churrasqueiras, recuperadores de calor, ambientadores, bem como no caso dos metais pesados, como mercúrio, em peixes de profundidade, mariscos, tal como os poluentes orgânicos estão presentes em líquidos engarrafados em plástico, bem como em charcutaria. XLVII.De facto, uma descrição genérica como esta nada acrescenta – nem poderia sustentar o raciocínio que lhe seguiu o Tribunal a quo – dependendo os malefícios daqueles elementos das medidas dos mesmos, sendo outrossim certo que da prova aqui analisada o que resulta é inexistirem evidências científicas de que o forno crematório da Recorrente emita poluentes em quantidades passíveis de causar malefícios ao ambiente e/ou saúde humanas, pelo que o ponto 14 haveria outrossim ditar o seguinte: 14- Não existem evidências científicas do forno crematório em causa nestes autos emitir quaisquer poluentes em quantidades potencialmente nocivas para o ambiente e/ou saúde humana. XLVIII.Se assim não se entendesse, no máximo – e sem relevo por se tratar de consideração genérica – poderia ser dado como provado que: 14- Os poluentes orgânicos, nomeadamente dioxinas, dibenzofuranos, e os metais pesados, designadamente, mercúrio, são potencialmente adversos para a saúde dos seres humanos. XLIX. Também as características do local onde foi instalado o forno crematório não foram apuradas com correção (…) L.Ademais, os documentos juntos pelas próprias Recorridas na audiência de 17 de janeiro de 2024 a realidade verificável no local, sendo imagens de satélite onde é perfeitamente percetível a existência de amplos espaços verdes, dum armazém e de meia dúzia de habitações, pelo que haveria o ponto 15 de ser alterado, correspondendo à prova produzida que: 15- Nas imediações do prédio indicado em 5), designadamente, na Rua ..., sita na união de freguesias ..., ... (... e ...), localizam-se algumas habitações, terrenos sem edificações e um armazém. LI.Também no respeitante ao ponto 20 dado como provado, considerando o procedimento administrativo junto ao processo, deverá igualmente ser dado como provado a data da notificação à ora Recorrente do indeferimento do pedido referenciado em 16) bem assim como a intenção manifestada de impugnar tal ato administrativo (…), pelo que resulta que o ponto 20 deveria ter a seguinte redação: 20- Em 07/12/2023, o Presidente da Câmara Municipal ... proferiu despacho que consignou o “indeferimento do pedido” referenciado em 16), o qual foi notificado à requerida a 8 de janeiro de 2024, podendo ser ainda alvo de impugnação judicial. LII.Por fim, há um facto de relevo que também deverá constar da lista de factos indiciariamente provados e que é absolutamente pacífico na prova produzida: o forno crematório não chegou a entrar em funcionamento, aguardando a Recorrente para que tenha licenciamento para o efeito antes de o colocar em funcionamento. (…) LIV.Assim considerando, deveria ser dado como provado que, aditando-se à lista de factos provados: 22 – O forno crematório nunca foi colocado em funcionamento, sendo que a Requerida aguarda o seu licenciamento, pois será responsável para o colocar a funcionar pela primeira vez o técnico responsável pela segurança e salubridade do equipamento o Prof. Dr. JJJJ.LV.Feita que está a impugnação da matéria de facto, importa delimitar o que está em causa nestes autos: uma providência cautelar prévia a uma ação popular, pela qual se pretende obstar ao funcionamento do forno crematório da Recorrente alegando que o mesmo colide com o direito à saúde e ambiente das populações vizinhas. LVI.Sendo o presente um procedimento cautelar não especificado – art. 362º. do CPC – para que a pretensão das Requerentes tenha sucesso é imprescindível ficar demonstrado: a) A probabilidade séria de que o funcionamento do forno crematório ponha em causa a saúde, qualidade de vida ou ambiente; b) Que existe uma situação de perigo que determine a imprescindibilidade duma decisão provisória de modo a acautelar aqueles eventuais riscos para a saúde, qualidade de vida ou ambiente; c) Ser a medida cautelar adotada adequada aos perigos existentes e proporcional aos prejuízos que dela poderão advir. LVII.Aferindo desde logo o periculum in mora, analisada toda a prova produzida, quer considerando a lista de factos provados tida em consideração na Sentença recorrida, quer ora reforçada pela peticionada inclusão de que o forno em questão nos autos jamais foi colocado em funcionamento e que para que o seja será necessária a conclusão do seu licenciamento, com a presença física no local, no primeiro momento, do técnico responsável pela segurança daquele equipamento, haveríamos desde logo de concluir que a presente providência teria que improceder pela não verificação do periculum in mora. LVIII.É que mesmo que as Recorridas tivessem logrado demonstrar o seu direito (o que não se crê e entende nem resultar da factualidade provada, mesmo na versão considerada pelo Tribunal a quo), em momento algum no requerimento inicial veio alegada alguma circunstância que consubstancie um perigo, legitimando a aplicação duma medida provisória, muito menos tal fora provado. LIX.Resultando da peticionada alteração da prova provada o acréscimo de que o forno nunca entrou em funcionamento, assim sendo por aguardar o licenciamento do mesmo, risco algum existe que justifique a providência, mais sabendo-se do indeferimento camarário e do tempo espectável de demora da impugnação judicial, permitindo perfeitamente que se prossiga, sem perigo, com a normal tramitação da ação popular. LX.Não se verificando o periculum in mora, como se crê, teria necessariamente de ser decretado improcedente a presente providência cautelar. LXI.Igualmente se dirá quanto à probabilidade séria do direito invocado, pois as Recorridas não lograram fazer qualquer prova dos malefícios invocados, não tendo demonstrado que o funcionamento do forno crematório da Recorrente viole os direitos fundamentais invocados. LXII.Sendo sempre certo ter resultado como não provado pelo Tribunal a quo que da incineração de corpos e restos humanos sairão da chaminé melhor descrita em 12) cheiros ou que do funcionamento do forno seja gerado ruído audível. LXIII.Ademais, quanto à emissão de poluentes, reitere-se ainda que sem a alteração por nós peticionada, apenas se deu como indiciariamente provado que: 13- Em consequência da incineração de corpos e restos humanos no sobredito forno sairão pela chaminé enunciada em 12) para o espaço exterior gases de combustão, designadamente, monóxido de carbono, óxidos de nitrogénio, dióxido de enxofre e compostos orgânicos voláteis, poluentes orgânicos, nomeadamente dioxinas, dibenzofuranos, e metais pesados, designadamente, mercúrio, em quantidades não concretamente apuradas. e que 14- Os poluentes orgânicos, nomeadamente dioxinas, dibenzofuranos, e os metais pesados, designadamente, mercúrio, são tóxicos para os seres humanos. LXIV. Ou seja, mesmo desprovido das alterações à matéria de facto por nós peticionada não há, tão-pouco, determinação do nível de emissões geradas e se as mesmas poderão ser efetivamente nocivas para o ambiente e saúde da população vizinha, ficando-se explanado nos factos provados menções meramente conclusivas e genéricas que não poderão levar à conclusão de que o nível de emissões atmosféricas provocadas pelo funcionamento do forno crematório da Recorrente sejam efetivamente potenciadoras dos alegados malefícios. LXV.Ainda mais assim será considerando a alteração pela qual pugnamos, com a consideração de que a Recorrente implementou um sistema tecnológico de última geração, precisamente com o fito de filtrar quaisquer malefícios e impurezas do processo de cremação, de modo a que, no final, o que acaba por ser expelido não traduza qualquer malefício para o ambiente e saúde do ser humano, dotando-se o equipamento de procedimentos de depuração dos gases gerados, através da segunda câmara, bem assim como da capacidade de fiscalização in loco e de forma permanente da atividade do forno, nomeadamente das suas emissões atmosféricas – resultando assim, ademais da não demonstração em concreto de malefícios, demonstrado que, à luz do atual estado da artes, se demonstra a ausência de riscos para a saúde e ambiente através da utilização do forno crematório. LXVI. Aliás, é expressamente assegurado pelos fabricantes do equipamento, devidamente certificado, por entidades independentes, bem como pelo técnico inquirido nestes autos que o equipamento respeita toda a legislação relativas às emissões poluentes, prevenção da poluição de ar, incineração, segurança de equipamentos – Diretiva 2015/2193 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 25 de novembro de 2015, Diretiva 89/369/CEE do Conselho, de 8 de junho de 1989, Diretiva 2000/76/CEE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 4 de dezembro de 2000, Diretiva 89/392/CEE do Conselho, de 14 de junho de 1989, com a subsequentes alterações e a Diretiva 2010/75/EU do Parlamento Europeu e do Conselho e respetiva Decisão de Execução da Comissão, de 12 de novembro de 2019, publicada no Jornal Oficial, com as melhores técnicas disponíveis para a incineração, existindo já equipamentos iguais em funcionamento, incluindo em locais urbanos. LXVII. Não se demonstrando concretamente a probabilidade séria do forno crematório violar os direitos invocados pelas Recorridas, ter-se-á de ter por não preenchida a probabilidade séria do direito a ser exercido em sede de ação popular, devendo – também por isso – ser revogada a Sentença recorrida, improcedendo a presente providência cautelar. LXVIII. Ademais, não poderão ter acolhimento neste Douto Tribunal da Relação os fundamentos empregues pelo Tribunal a quo para ter dado providência parcial ao procedimento, pois que extravasou por completo o âmbito dos presentes autos, ignorando tratar-se duma ação popular e decidindo com base em questões de licenciamento (e mesmo assim com uma aplicação do Direito que n[ LXIX. Admitindo, como prática académica, que seria legítima a fundamentação emprega[da], começa o Tribunal a quo por considerar que, em virtude de não ter sido ainda criada a regulamentação prevista no artigo 18º. Decreto-Lei n.º 411/98, de 30 de Dezembro existirá uma lacuna legal, que não será passível de ser preenchida, sendo por tal raciocínio ilegal qualquer forno crematório existente em território nacional. LXX. Como é evidente, tal não poderá ser o entendimento acolhido, existindo no nossos ordenamento e conjugadamente com as normas comunitárias existentes, ferramentas para colmatar essa falta de regulamentação existente há mais de vinte anos, não podendo ser a atividade crematória no seu todo paralisada neste período – como não foi. LXXI. Aliás, a nossa Lei – vide desde logo art. 10º. do Código Civil – oferece ferramentas de preenchimento e lacunas, existindo ainda normas comunitárias, bem assim como normativos nacionais – posteriores ao sobredito regime jurídico da cremação – que suprem essa necessidade de preenchimento. LXXII. Neste sentido diz-nos a Lei – quanto à atividade funerária e crematória – designadamente o Decreto-Lei n.º 10/2015, de 16 de Janeiro, que disciplina o acesso às atividades de comércio, serviços e restauração, o seguinte: Artigo 108.º (Exercício da atividade funerária) 1 - Para efeitos da presente subsecção entende-se por «Atividade funerária» a prestação de quaisquer dos serviços relativos à organização e à realização de funerais, de transporte, de inumação, de exumação, de cremação, de expatriação e de trasladação de cadáveres ou de restos mortais já inumados. (…) 3 – (…) d) «Centro funerário», o edifício destinado exclusivamente à prestação integrada de serviços fúnebres, podendo incluir a conservação temporária e a preparação de cadáveres, a celebração de exéquias fúnebres e a cremação de restos mortais não inumados ou provenientes de exumação; Artigo 113.º (Instalações) 1 - As instalações exploradas por agências funerárias ou por IPSS ou entidades equiparadas onde se desenvolva a atividade funerária, bem como todos os locais de que se faça uso na realização de velórios, devem assegurar a privacidade, o conforto e a segurança dos utilizadores. LXXIII. Assim, estabelece-se desde logo, de forma inequívoca e por opção expressa do legislador que a atividade crematória se insere no comércio e prestação de serviços, como um dos componentes da atividade funerária, devendo as instalações ser aptas a assegurar a privacidade, conforto e segurança dos utilizadores, devendo por isso a legalização de tal atividade prosseguir os termos aplicáveis para a atividade funerária globalmente considerada. LXXIV. Quanto aos equipamentos de cremação, existindo do ponto de vista das emissões atmosférica diversa regulamentação comunicaria – já supra descrita – que se aplica in casu, encontrando-se já casuisticamente cumprida – a legalização dos equipamentos estará cumprida pelo cumprimento de tal legislação e obtenção de certificados de conformidade, como aqui existe. LXXV. Na situação controvertida, estando em causa um local apto – como é há mais de 70 anos – para a prática de atividades funerárias, também o é para a cremação, desde que os equipamentos em questão obedeçam às normas legalmente imanadas, como obedecem. LXXVI. Ademais, será sempre certo que, existindo dúvidas interpretativas da legalidade da implementação de determinada atividade económica, nomeadamente para efeitos de depreender a licitude da sua implementação, estará sempre o interprete condicionado por princípios e Direitos Fundamentais, sendo que aqui se postula que se observe a máxima latina «in dubio favorabilia sunt amplianda et odiosa restringenda», não podendo assim merecer acolhimento o argumento da falta de possibilidade de licenciamento, por omissão de regulamentação, devendo outrossim, também considerado tal argumento, revogada a Sentença recorrida e absolvendo-se a recorrente do peticionado. LXXVII.Igualmente, quando se refere ao indeferimento do aditamento à licença da Recorrente no que respeita à colocação do forno crematório, mais uma vez ignorando que não é esse o cerne desta ação e também que tal indeferimento é passível de impugnação – como será e cuja preparação está em curso – a discutir nos Tribunais Administrativos – não assiste razão ao Tribunal a quo. LXXVIII. As motivações para o indeferimento camarário são também elas desprovidas de fundamento jurídico, baseando-se num entendimento de que a cremação é uma atividade industrial incompatível com a função residencial – entendimento este em melhores termos rebatido pelo parecer do Prof. Dr. KKKK, docente na Faculdade de Direito da Universidade ... e Doutor em Direito, especialista em Direito Administrativo – cujo parecer se acha junto ao procedimento administrativo, por seu turno junto aos presentes autos. LXXIX.A atividade funerária, incluindo a vertente da cremação, é inequivocamente uma atividade de serviços, assim como as legalmente designadas atividades conexas, estando completamente fora de causa, em termos jurídiconormativos, a hipótese de a operação de cremação qua[ LXXX.Por outro lado, sendo o local de instalação de predominância habitacional, por modo a verificar a compactabilidade de funções, apenas poderia a autarquia indeferir o pedido da Recorrente nos termos do artigo 21º. do PDM ... estipula de forma muito precisa as condições de verificação da incompatibilidade de funções, como sendo uma função que: a) Dê lugar à produção de ruído que ultrapasse os valores sonoros admissíveis previstos em legislação específica; b) Dê lugar à produção de resíduos, águas residuais, ou emissões atmosféricas poluentes, ou agravem as condições de salubridade; c) Acarrete riscos de incêndio, explosão ou toxicidade; d) Perturbe as condições de circulação viária, pedonal e de estacionamento, por sobrecarga sobre a via existente ou com operações de carga e descarga. LXXXI. Inexistindo, como inexiste, demonstração de qualquer dessas realidades, não existe fundamento ou pressuposto legal para a prática de um ato administrativo de indeferimento, alegadamente nos termos do disposto na alínea a) do n.º 1, do artigo 24.º do Decreto-Lei n.º 555/99, de 16 de Dezembro (RJUE), gerando-se, pelo contrário, um vício de violação de lei (ou de regulamento) por erro nos pressupostos vinculados de direito, determinando a sua invalidade. LXXXII. Sendo claro o legislador na sua opção de tratar a cremação como qualquer outra valência incluída na mais ampla atividade funerária, não poderá ser a administração local a impor, por motivos alheios às previsões normativas, o indeferimento da pretensão da Recorrente, pelo que sempre será anulável o ato de indeferimento, tal como se pugnará em sede de impugnação judicial do mesmo. LXXXIII. Desta feita, ainda que tivessem acolhimento num processo como o que está em causa nestes autos – ação popular – os argumentos empregues pelo Tribunal a quo, a verdade é que os mesmos não têm o alcance explanado na Sentença recorrida, pelo que, sempre deverá, também por isso, ser revogada a Sentença recorrida, substituindo-a por uma outra que absolva a ora Recorrente dos pedidos formulados. LXXXIV. Ainda que assim não se entenda, deverá a decisão proferida ser devidamente retificada desde logo porque o conceito de centro crematório não corresponde, que se saiba, a nenhuma realidade de facto, e seguramente não tem correspondência com qualquer realidade jurídica, existindo outrossim o conceito legal de centro funerário – estipulado no artigo 108º. nº.2 do DL 10/2015, de 16 de junho – o qual pode ou não ter a valência crematório, sendo que o edifício em construção pela Recorrente e melhor descrito no ponto 5 dos factos indiciariamente provados é precisamente um centro funerário, o qual, como se apurou, no seguimento da construção se decidiu acrescentar-se a vertente crematória – o que se fez com a colocação do forno e edificação duma chaminé. LXXXV. Assim, sempre será necessário que, na hipótese de se entender que existem fundamentos para decretar a presente providência, seja expressamente esclarecido que o objeto da medida decretada é precisamente o forno crematório e a chaminé, o que aliás se entende ser o pretendido dizer pelo Tribunal a quo quando faz remição para os factos 11) e 12) tidos como provados na Sentença recorrida. LXXXVI. De todo o modo, ademais de, como já se referiu a Sentença recorrida padecer de nulidade por falta de pronuncia, designadamente quanto ao preenchimento dos requisitos da adequação proporcionalidade das medidas cautelares, a medida decretada – ficcionando-se a admissibilidade de alguma medida, o que não se crê ser devido – é claramente desadequada e desproporcional. LXXXVII. Não tendo o forno jamais entrado em funcionamento, precisamente por ainda não se encontrarem preenchidas as medidas de licenciamento necessárias para o efeito, e que o processo de licenciamento a impugnar judicialmente será necessariamente moroso, a tramitação regular duma ação popular acautela de forma cabal os eventuais direitos das Recorridas, tornando sempre desnecessária, sem apurar da probabilidade séria de tal direito, a tomada de medidas cautelares. LXXXVIII. Não obstante, sempre será certo que uma medida cautelar que determina a “remoção/desmantelamento” daquele forno e chaminé releva uma absoluta ausência de ponderação quanto à proporcionalidade das medidas, visto que obriga a Recorrente que já teve investimento de elevada monta com a aquisição dos equipamentos crematórios e chaminé a mais investimentos com a remoção e, no caso da Recorrente demonstrar o seu direito a manter aquele forno em funcionamento, novo investimento para voltar a coloca-lo, pelo que, no caso de se entender ser de manter alguma medida cautelar – impor-se a obrigação da Recorrente se abster de utilizar o forno crematório até decisão final da ação definitiva a intentar. LXXXIX. Decidindo como decidiu, o Tribunal a quo fez uma errada interpretação e aplicação da Lei, nomeadamente, do artigo 108º. e 113º. do DL10/2015, de 16 de janeiro, artigo 10.º do Código Civil, do DL nº. 411/98, de 30 de dezembro, do PDM ... e do Lei n.º 83/95, de 31 de maio, violando o princípio da segurança jurídica (artigo 2.º da Constituição da República Portuguesa). XC. Aqui chegados, ao revogar a Sentença recorrida nos termos supra, farão v/as. Exas. a acostumada JUSTIÇA!». As recorridas apresentaram contra-alegações, defendendo o não provimento do recurso e a manutenção da decisão recorrida. * Colhidos os vistos legais, cumpre decidir. *** II – Considerando que o objecto do recurso, sem prejuízo de eventuais questões de conhecimento oficioso, é delimitado pelas suas conclusões (cfr. arts. 635º, nº 4, e 639º, nº 1, do C.P.C.), são as seguintes as questões a tratar: a) nulidade da sentença; b) impugnação da matéria de facto; c) (im)procedência da pretensão formulada pelas requerentes. ** Apreciemos a primeira questão. A recorrente invoca a nulidade da decisão recorrida por “violação do princípio da simplicidade”, por não utilizar linguagem simples e clara de acordo com o art. 9º-A do C.P.C., e por falta de fundamentação quanto ao “periculum in mora” e à adequação e proporcionalidade da medida nos termos da alínea b) do nº 1 do art. 615º do C.P.C.. As causas de nulidade da sentença são as que estão taxativamente previstas no art. 615º, nº 1, do C.P.C., não se incluindo entre as nulidades da sentença “o chamado erro de julgamento, a injustiça da decisão, a não conformidade dela com o direito substantivo aplicável, o erro na construção do silogismo judiciário” (Antunes Varela, Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, Manual de Processo Civil, 2ª ed. revista e actualizada, 1985, pág. 686). Aí se prevê a nulidade da sentença quando: a) Não contenha a assinatura do juiz; b) Não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão; c) Os fundamentos estejam em oposição com a decisão ou ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível; d) O juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento; e) O juiz condene em quantidade superior ou em objecto diverso do pedido. Como se vê da simples leitura do preceito, não consta como nulidade da sentença a não utilização de linguagem simples e clara. Ademais, no art. 9º-A do C.P.C., onde actualmente se prevê o princípio da utilização de linguagem simples e clara, também não está prevista qualquer cominação para o não cumprimento desse princípio, designadamente quando estejam em causa actos decisórios do tribunal. Aliás, nem se trata de uma obrigação (como se diz na epígrafe do artigo trata-se de um princípio), posto que o que se pretende é que se utilize preferencialmente a linguagem simples e clara, e em particular nas citações, notificações e outras comunicações dirigidas directamente às partes e a outras pessoas singulares e colectivas. Ora, “estamos perante uma norma que, implicando diretamente com o teor das comunicações dirigidas às partes ou a terceiros, deve ser interpretada cum granu salis quando se trate de decisões judiciais. Sendo desejável que as citações, notificações, avisos, anúncios, etc., sejam facilmente compreendidos pelos cidadãos sem formação jurídica, já quando se trate de decisões judiciais não pode abandonar-se o rigor terminológico ou conce[p]tual, ao ponto de afetar a correta subsunção do caso às normas jurídicas aplicáveis. Por exemplo, a “resolução de contrato” que constitua o objeto do processo não se confunde nem com o termo corrente de "rescisão" nem com o conceito de “denúncia” ou de “revogação” (…). Nestes e noutros casos, não pode dispensar-se o rigor conce[p]tual, mesmo que as diferenças não sejam imediatamente apreendidas pelos interessados, mais a mais quando estejam judiciariamente patrocinados. Embora qualquer decisão judicial deva ser compreendida pelos seus destinatários, não deve ceder-se à tentação de, através de uma indevida ou exagerada simplificação terminológica (ou de linguagem “Simplex”), confundir conceitos ou categorias legais” (cfr. António Santos Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta, Luís Filipe Pires de Sousa, Código de Processo Civil anotado, Vol. I, 3ª ed., Almedina, pág. 40). Portanto, nesta parte, sem necessidade de mais considerações, é de concluir que não se verifica a invocada nulidade da decisão recorrida. Quanto à situação prevista na alínea b) do nº 1 do art. 615º do C.P.C., que se reconduz à falta de fundamentação, para que se verifique a nulidade em causa tem de tratar-se de uma falta absoluta, “embora esta se possa referir só aos fundamentos de facto ou só aos fundamentos de direito”, não bastando que “a justificação da decisão seja deficiente, incompleta, não convincente” (Antunes Varela, Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, ob. cit., pág. 687). Anote-se ainda, quanto aos fundamentos de direito, que “não é indispensável, conquanto seja de toda a conveniência, que na sentença se especifiquem as disposições legais que fundamentam a decisão: essencial é que se mencionem os princípios, as regras, as normas em que a sentença se apoia” (idem, págs. 687 e 688). No caso concreto, a sentença recorrida contém efectivamente os fundamentos de facto (enumeração dos factos considerados provados e dos considerados não provados e fundamentação da convicção do tribunal) e de direito (discussão do aspecto jurídico da causa) em que se baseou para chegar à decisão de procedência do procedimento cautelar – pode-se concordar ou não com os mesmos, mas eles constam da decisão. Com efeito, na fundamentação de direito o tribunal tem que analisar a verificação dos pressupostos de que depende a aplicação de uma providência cautelar, mas não tem que o fazer por itens, separando a análise de cada um deles, sendo que, vista a decisão recorrida, se percebe, da argumentação expendida no ponto 1 [Da probabilidade séria da existência do direito invocado, do fundado receio de lesão grave e dificilmente reparável e das providências requeridas], que se considerou que estavam preenchidos todos os pressupostos, incluindo o denominado “periculum in mora”, e que não se entendeu desproporcional a providência decretada perante a situação da requerida, como também se resume no último parágrafo deste ponto. Aliás, vistos os argumentos invocados pela recorrente percebe-se que o que está em causa é a sua discordância quanto ao teor da decisão, que percebeu. Simplesmente discorda da apreciação que o tribunal fez da prova produzida. Ora, pode-se entender que existiu erro de julgamento ou que a decisão não é correcta e é injusta, mas isso não significa que exista falta de fundamentação. Não ocorre também, portanto, esta causa de nulidade invocada pela recorrente. É, pois, de concluir que não ocorre a nulidade da decisão invocada pela recorrente. Não merece, assim, provimento o recurso nesta parte. * Passemos à segunda questão. O recurso pode ter como objecto a impugnação da decisão sobre a matéria de facto e a reapreciação da prova gravada (cfr. art. 638º, nº 7, e 640º do C.P.C.). Neste caso, o recorrente deve obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição (nº 1 do art. 640º): a) Os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados; b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida; c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas. No que respeita à alínea b) do nº 1, e de acordo com o previsto na alínea a) do nº 2 da mesma norma, quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respectiva parte, indicar com exactidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes. Uma vez que a impugnação da decisão de facto não se destina a que o tribunal de recurso reaprecie global e genericamente a prova valorada em primeira instância, a lei impõe ao recorrente um especial ónus de alegação, no que respeita à delimitação do objecto do recurso e à respectiva fundamentação. No caso concreto, verifica-se que a recorrente deu cumprimento às referidas exigências, especificando os concretos factos que põe em causa e indicando as razões da sua discordância, nomeadamente por referência aos meios de prova que, em seu entender, sustentam a solução que propugna. Apreciemos então. Pretende a recorrente que: 1) O ponto 1º da matéria de facto indiciada, e que corresponde a factos alegados nos arts. 1º e 3º da oposição [A Requerida é uma sociedade que se dedica à prestação de serviços fúnebres desde o ano de 2002, explorando o estabelecimento sito na Rua ..., freguesia e concelho ....], seja considerado provado, com a seguinte redacção, acrescentando-se a parte final: “A Requerida é uma sociedade que se dedica à prestação de serviços fúnebres desde o ano de 2002, explorando o estabelecimento sito na Rua ..., freguesia e concelho ..., estabelecimento esse existente no local há 40 anos e nas suas imediações há 80 anos, sendo o centro funerário em construção contíguo às atuais instalações.”; 2) O ponto 2º da matéria de facto indiciada, não alegado em qualquer dos articulados [Desde 02 de novembro de 2010, HHHH exerce o cargo de responsável técnico da Requerida.], seja considerado provado, com a seguinte redacção: “Desde 02 novembro de 2010, HHHH e IIII exercem o cargo de gerentes e responsáveis técnicos da Requerida.”; 3) O ponto 9º da matéria de facto indiciada, não alegado em qualquer dos articulados [Em fevereiro de 2022, efetivou-se uma reunião na Câmara Municipal ..., no âmbito da qual a Requerida declarou comunicar à diretora do departamento de obras da mesma a colocação no sobredito centro funerário de um forno crematório/forno incinerador de corpos e restos humanos.], seja considerado provado, com a seguinte redacção: “Em 11 fevereiro de 2022, efetivou-se uma reunião na Câmara Municipal ... sobre a eventual colocação dum forno crematório nas instalações do centro funerário em construção, intenção que pelo menos desde 18 de janeiro de 2022 é do conhecimento da dita Câmara Municipal ....”; 4) Que seja acrescentado ao ponto 11º da matéria de facto indiciada que o facto aí referido ocorreu em Novembro (embora haja um lapso nas alegações e nas conclusões, pois a redacção deste ponto que a recorrente propõe é exactamente a mesma que consta da decisão recorrida, percebe-se que aquela pretende que se diga “Em Novembro de 2022” em lugar de “Durante o ano de 2022”). Tendo em conta a questão que está em causa nos presentes autos – apreciação da possibilidade de lesão do direito ao ambiente e dos direitos à saúde e integridade física da população de ..., com o exercício da actividade de cremação por parte da requerida – esta concreta factualidade objecto de impugnação por parte da recorrente não tem qualquer utilidade para a apreciação do mérito da causa e do presente recurso, posto que os factos acabados de referir que aquela pretende acrescentar/alterar em nada interferem com o conhecimento da questão colocada nos autos, qual seja a de saber se estão verificados no caso os pressupostos para decretar uma providência cautelar comum, nomeadamente nos termos solicitados pelas requerentes. Face a tal circunstancialismo é irrelevante a alteração factual pretendida pela recorrente quanto aos pontos 1º, 2º, 9º e 11º da matéria de facto indiciada. Sendo irrelevante tal factualidade para a apreciação do mérito da causa, e a fim de não se praticarem actos inúteis no processo (o que até se proíbe no art. 130º do C.P.C.), não há que conhecer da impugnação deduzida nesta parte (neste sentido cfr. António Santos Abrantes Geraldes, Recursos em Processo Civil, Almedina, 2022, 7ª edição actualizada, pág. 334, nota 526, e, entre outros, o Ac. do STJ de 23/1/2020 (proc. 4172/16.4TFNC.L1.S1), C.J.S.T.J., tomo I, pág. 13, e o Ac. da R.P. de 05/11/2018, publicado na Internet, em www.dgsi.pt, com o nº de processo 3737/13.0TBSTS.P1). Donde, em face do que acaba de se analisar, não se conhece da impugnação da matéria de facto apresentada pela recorrente quanto aos pontos 1º, 2º, 9º e 11º da matéria de facto indiciada; 5) Que seja aditado à matéria de facto indiciada um ponto 11º-A, com a seguinte redacção: “O forno crematório instalado pela Requerida permite monitorizar em tempo real e em modo contínuo toda a sua operacionalização, podendo ainda armazenar e/ou exportar via internet todos os dados relativos às emissões atmosféricas, consumos, ciclos de funcionamento, paragens, avarias.”. Este facto que a recorrente pretende incluir na matéria de facto indiciada não foi alegado nos articulados, designadamente na oposição (posto que se trata de facto favorável à posição defendida pela requerida) – a única matéria aqui alegada atinente às características do forno crematório é a que consta do art. 34º da oposição e não contempla a referida factualidade, tratando-se da referência a características diferentes. De acordo com o princípio do dispositivo, que vigora em processo civil, e que se encontra plasmado, nomeadamente, no art. 5º do C.P.C., apenas podem ser tidos em conta os factos essenciais alegados pelas partes (os que constituem a causa de pedir e aqueles em que se baseiam as excepções invocadas), com excepção unicamente dos factos instrumentais que resultem da instrução da causa, dos factos notórios e dos conhecidos pelo juiz por virtude do exercício de funções, e dos factos que sejam complemento ou concretização dos factos alegados pelas partes e que resultem da instrução da causa (neste caso, desde que as partes sobre eles tenham tido a possibilidade de se pronunciar). Conforme se diz no Ac. da R.P. de 13/06/2023, publicado em www.dgsi.pt, com o nº de proc. 7695/21.0T8PRT.P1, «confere-se, pois, ao juiz, a possibilidade de investigar, mesmo oficiosamente, e de considerar na decisão, desde logo os factos instrumentais que resultem da instrução e discussão da causa. E “factos instrumentais são os que interessam indiretamente à solução do pleito, por servirem para demonstrar a verdade ou falsidade dos factos pertinentes; não pertencem à norma fundamentadora do direito e são-lhe, em si, indiferentes, servindo apenas para, da sua existência, se concluir pela existência dos próprios factos fundamentadores do direito ou da exceção”. Num outro plano se apresentam os chamados “factos complementares” – os que sejam complemento ou concretização dos factos essenciais que integram a causa de pedir ou em que se baseiam as exceções invocadas –, também eles passíveis de ser considerados pelo juiz, quando resultem da instrução da causa, mas desde que sobre eles tenham tido as partes a possibilidade de se pronunciar. Como se deixou bem notado no acórdão da RC de 7.11.2017, “para que se possam dar como provados os factos complementares ou concretizadores é necessário que os factos essenciais de que eles sejam complemento ou concretização tenham ficado provados, não sendo de admitir que não sendo provados esses factos essenciais da causa de pedir, se julgue a acção procedente com base nos ditos complementares ou concretizadores mas que afinal substituam os da causa de pedir que não se tenham provado”. O que se deixou dito quanto à causa de pedir vale, naturalmente, para as exceções invocadas pelo réu.» No caso, o facto em questão, para além de não ter sido alegado por qualquer das partes, nomeadamente pela requerida, ora recorrente, em qualquer articulado, e não constituir facto notório ou de conhecimento oficioso (como é manifesto), não é facto instrumental, pois não serve para comprovar qualquer dos factos essenciais do procedimento alegados, e também não complementa ou concretiza qualquer facto alegado, nomeadamente no referido art. 34º da oposição, posto que dizer que o forno crematório permite monitorizar em tempo real e em modo contínuo toda a sua operacionalização e pode armazenar e/ou exportar via internet todos os dados relativos às emissões atmosféricas, consumos, ciclos de funcionamento, paragens, avarias não complementa ou concretiza o facto de o equipamento permitir o controlo à distância do volume de gases e fumos libertados, tratando-se de características distintas do equipamento, cada uma respeitante a uma função diferente. E sendo assim, porque o referido facto só poderia ser um facto essencial à pretensão da requerida, de excepção ao direito invocado pelas requerentes, e não foi alegado pela requerida, em conformidade com o que se analisou supra, o mesmo não pode ser considerado pelo tribunal, nem ser inserido na matéria de facto indiciada, sendo desnecessário averiguar se o mesmo resultou ou não da prova produzida - a integração na factualidade indiciada da decisão recorrida deste facto consistiria numa violação do princípio do dispositivo previsto no art. 5º do Código de Processo Civil (que vigora nos procedimentos cautelares da mesma forma que nas acções declarativas); 6) Seja alterada a redacção do ponto 13º da matéria de facto indiciada [Em consequência da incineração de corpos e restos humanos no sobredito forno sairão pela chaminé enunciada em 12) para o espaço exterior gases de combustão, designadamente, monóxido de carbono, óxidos de nitrogénio, dióxido de enxofre e compostos orgânicos voláteis, poluentes orgânicos, nomeadamente dioxinas, dibenzofuranos, e metais pesados, designadamente, mercúrio, em quantidades não concretamente apuradas.], para que passe a ser “Em consequência da incineração de corpos e restos humanos no sobredito forno sairão pela chaminé enunciada em 12) é previsível a emissão atmosférica de dióxido de nitrogénio (inferior a 300mg/Nm3), dióxido de enxofre (inferior a 200mg/Nm3), partículas (inferior a 50mg/Nm3), monóxido de carbono (inferior a 100mg/Nm3), ácido clorídrico (inferior a 30mig/Nm3).”; 7) Seja alterada a redacção do ponto 14º da matéria de facto indiciada [Os poluentes orgânicos, nomeadamente dioxinas, dibenzofuranos, e os metais pesados, designadamente, mercúrio, são tóxicos para os seres humanos.], para que passe a ser “Não existem evidências científicas do forno crematório em causa nestes autos emitir quaisquer poluentes em quantidades potencialmente nocivas para o ambiente e/ou saúde humana.” ou então “Os poluentes orgânicos, nomeadamente dioxinas, dibenzofuranos, e os metais pesados, designadamente, mercúrio, são potencialmente adversos para a saúde dos seres humanos.”. Diga-se, desde já, que a matéria que a recorrente pretende seja dada como indiciada nos referidos pontos 13º e 14º (em qualquer das duas alternativas indicadas) não se encontra alegada em qualquer dos articulados, para além de ser conclusiva: de forma evidente no que respeita à primeira redacção alternativa do ponto 14º, mas igualmente quanto ao ponto 13º, posto que, se atentarmos na redacção proposta, o que se pretende dar como indiciado é que “é previsível” a emissão de determinados componentes, e quanto à segunda opção de redacção proposta para o ponto 14º, na medida em que se pretende incluir nos factos indiciados que os elementos referidos “são potencialmente adversos” – ora, ainda que em sede cautelar e lidando com indícios, do que se trata é de apurar factos e não previsões ou possibilidades, de apurar o comportamento do concreto forno crematório que foi instalado pela requerida e não o que é previsível genericamente e em abstracto. Assim, quer pelo que já se analisou anteriormente a propósito da necessidade de alegação de factos essenciais pelas partes, quer porque no elenco dos factos provados/indiciados e não provados/indiciados apenas devem constar “factos” e não matéria conclusiva e/ou de direito, não há que considerar a redacção alternativa proposta pela recorrente para os dois pontos da matéria indiciada em causa [No sentido da exclusão da matéria conclusiva do elenco dos factos provados da sentença, por via do disposto no art. 607º, nº 4, do C.P.C., cfr. o Ac. do STJ de 29/04/2015, publicado em www.dgsi.pt, com o nº de proc. 306/12.6TTCVL.C1.S1, e o Ac. da R.E. de 28/06/2018, publicado no mesmo sítio da Internet, com o nº de proc. 170/16.6T8MMN.E1. Como se refere neste último acórdão, “na decisão sobre a matéria de facto apenas devem constar os factos provados e os factos não provados, com exclusão de afirmações genéricas, conclusivas e que comportem matéria de direito”.] Mas, ainda assim, há que apreciar se devem manter-se os pontos 13º e 14º dos factos indiciados, na medida em que, o efectivamente pretendido pela recorrente, como se percebe do por si alegado, é que a matéria ali constante deve ser excluída. Compulsados os articulados (requerimento inicial e oposição), verifica-se que a matéria em causa não foi neles alegada, designadamente no requerimento inicial (visto que se trata de matéria aparentemente favorável à pretensão das requerentes), tendo sido inserida no elenco da matéria de facto por iniciativa do juiz, podendo quando muito entender-se que o facto do ponto 13º será concretização do alegado no art. 53º do requerimento inicial [“uma vez a funcionar em pleno, este tipo de estrutura produz ruído, resíduos e emissões atmosféricas poluentes”]. O mesmo já não podendo dizer-se do facto do ponto 14º, o qual nem com muito boa vontade se pode considerar provir do alegado no art. 54º do requerimento inicial [“O que além de colocar questões de saúde pública”], sendo certo que “colocar questões de saúde pública” se trata de matéria conclusiva, nos mesmos termos já antes referidos. Por outro lado, há ainda que ter em conta que, segundo resulta da motivação da decisão recorrida, a matéria destes dois pontos foi retirada de um “estudo elaborado pelo National Collaborating Centre for Environmental Health, do Canadá: “FIELD INQUIRY: CREMATORIA EMISSIONS AND AIR QUALITY IMPACTS” obtido no site www.ncceh.ca”, cuja junção aos autos foi ordenada por iniciativa do juiz do processo, encontrando-se a respectiva cópia no histórico do “citius” com data de 06/02/2024 e a referência 456728139. Analisado o “estudo” em causa, constata-se que se trata de um denominado “Field inquiry”, ou seja um “inquérito de campo”, elaborado em língua inglesa, em Março de 2020, que pretendeu ajudar a responder (“help answer”) a quatro questões genéricas (“1. Do crematoria emit harmful pollutants? 2. Is there evidence of health impacts due to exposure to crematoria emissions? 3. What is standard practice for siting of crematorium in proximity to residential areas? 4. What steps can be taken to minimize crematoria emissions to reduce exposure risks?”), na sequência de objecções levantadas por residentes vizinhos de uma funerária que pretendeu instalar um forno crematório, os quais ficaram “preocupados com a potencial exposição a emissões prejudiciais”, situação ocorrida no Canadá, sendo o método utilizado unicamente a consulta de literatura, nomeadamente mediante a pesquisa na Internet. No que respeita à primeira pergunta (que se pode traduzir como “Os fornos crematórios emitem poluentes prejudiciais que sejam motivo de preocupação para a saúde pública?”) aduz-se que a cremação produzirá emissões associadas à combustão do combustível fóssil utilizado bem como relacionadas com o material a incinerar, as quais podem incluir (“can include”): gases de combustão, como monóxido de carbono, óxidos de nitrogénio, dióxido de enxofre e compostos orgânicos voláteis; partículas e poeira fina: PM10 e PM2,5; poluentes orgânicos, resultantes de processos incompletos de combustão ou formados pela reacção dos compostos orgânicos com cloro existente em materiais como os plásticos, os quais podem incluir, entre outros, dibenzo-p-dioxinas policloradas (PCDD) e dibenzofuranos policlorados (PCDF), e hidrocarbonetos policíclicos aromáticos (PAH); e metais pesados, como mercúrio, proveniente da volatilização do existente nas amálgamas dentárias, e uma pequena quantidade de metais variados nos tecidos dos indivíduos ou em objectos pessoais “memoriais” incluídos no caixão. Acrescentando-se que os poluentes de maior preocupação serão os conhecidos como tóxicos para os humanos, que se podem bioacumular nos tecidos (PCDD, PCDF e Mercúrio), e as partículas PM2,5. Mas também que a contribuição relativa de um crematório individual para a poluição local do ar dependerá das outras potenciais fontes de poluentes existentes na vizinhança, do número de cremações e da composição dos restos mortais e do caixão, do “design” do sistema, do modo de operação do forno crematório e das medidas de controlo de emissões; e que existem poucos estudos que tenham medido a concentração no ambiente dos poluentes do ar. No sumário elaborado a final, conclui-se que os processos de combustão podem gerar poluentes potencialmente prejudiciais como os compostos orgânicos (PCDD, PCDF), o mercúrio e as partículas PM2,5, embora não tenham sido encontrados estudos que mostrem ligações causais entre as emissões dos fornos crematórios e efeitos de saúde adversos, e a ausência de dados das emissões limite a capacidade de avaliar completamente as exposições e os impactos na saúde. Ou seja, mesmo dando-se relevância ao dito “estudo”, sempre se verifica que este não permite afirmar como indiciado o facto que ficou a constar do ponto 13º, que afirma que todos os aí referidos elementos irão sair pela chaminé das instalações da requerida em consequência do funcionamento do concreto forno crematório aí instalado. Com efeito, trata-se de um “estudo” genérico, que não avaliou equipamentos concretos, nomeadamente este forno, o qual, segundo os depoimentos prestados (e que ouvimos), é de um modelo recente, portanto seguramente mais avançado do que os existentes em Março de 2020, para além de que, como resulta daquele “estudo”, os tipos de emissões a produzir dependem de outras variáveis, como o material dos caixões utilizados (e não está alegado, nem demonstrado que serão utilizados em material plástico) e a colocação ou não de objectos dentro dos mesmos, ou a presença ou não de amálgamas dentárias nos cadáveres a incinerar (sendo que já existe regulamentação a nível da União Europeia para eliminar gradualmente a utilização destas amálgamas nos tratamentos dentários – cfr. Regulamento (UE) 2017/852 do Parlamento Europeu e do Conselho de 17/05/2017). Anote-se, ademais, que se trata aqui de um documento particular, proveniente de terceiro, acessível na Internet, livremente apreciável pelo tribunal, o qual, sendo genérico e não abordando o caso concreto dos autos directamente, não pode ser considerado como um parecer técnico, nem merecer outro tipo de valoração pelo tribunal, nomeadamente sem apoio em qualquer outra prova produzida (sobre o assunto pode ver-se, entre outros, os Acs. da R.L. de 20/02/2020, com o nº de proc. 1279/13.3TVLSB-D.L1-1, e de 05/12/2023, com o nº de proc. 25512/15.8T8LSB.L1-7, ambos publicados em www.dgsi.pt). Ora, vista a prova produzida, quanto ao concreto forno instalado pela requerida, e que resulta apenas do depoimento da testemunha JJJJ (as restantes nada sabiam em concreto sobre esta matéria) e do documento junto com a oposição intitulado “Dossier Preliminar para Licenciamento de UTI+C-Unidade Tecnológica de Incineração+Cremação”, que esta testemunha elaborou e explicou, o que se verifica é que o equipamento só pode ser avaliado e licenciado “in loco”, com a presença de autoridades que irão avaliar o seu funcionamento, só podendo ser colocado em funcionamento nessas circunstâncias e só então sendo possível verificar quais as emissões produzidas em concreto, sendo aquele documento um relatório “preliminar”, pelo que o que dele consta quanto a emissões atmosféricas deste equipamento, como aí se diz, são “características previsíveis”. Ainda assim, tendo presente as regras da experiência e o que decorre da referida prova (nomeadamente na parte em que o aludido documento se refere ao concreto equipamento em causa), considerando o facto alegado pelas requerentes no art. 53º do requerimento inicial e a sua concretização, pode considerar-se indiciariamente provado que “Uma vez em funcionamento, o sobredito forno produzirá emissões atmosféricas de dióxido de azoto (NO2), dióxido de enxofre (SO2), partículas, monóxido de carbono (CO) e ácido clorídrico (HCL)”. Já quanto às dioxinas (esclarecendo-se que nelas também se incluem os dibenzofuranos – como se pode ler na página da ASAE, no endereço https://www.asae.gov.pt/seguranca-alimentar/dioxinas-e-pcb-o-que-sao-e-onde-estao.aspx, dioxinas é “o nome genérico dado ao conjunto de 75 dibenzo-p-dioxinas policloradas (PCDD) e 135 dibenzofuranos policlorados (PCDF), dos quais 17 apresentam toxicidade revelante. As dioxinas não são produzidas intencionalmente, ocorrem numa série de processos químicos, e formam-se em pequena quantidade em quase todos os processos de combustão.”), do documento em questão apenas resulta que nos processos de incineração de resíduos em geral, “a tecnologia de depuração elimina a maior parte da contaminação dos gases de combustão antes de ser libertada, e apenas vestígios de dioxinas saem das chaminés” – o que não permite inferir que assim sucederá no caso da específica actividade de cremação e do concreto equipamento em apreço, e sendo certo que se fala apenas de “vestígios”. Note-se que, o que está em causa, obviamente, é o funcionamento normal do equipamento e não uma eventual má utilização, com incumprimento das directrizes de manutenção do mesmo (como foi aflorado nas inquirições das testemunhas). Assim, concluindo, tendo em conta a consideração dos factos (e apenas esses, não conclusões) efectivamente alegados pelas partes e o que resulta da prova produzida, há que eliminar o ponto 14º da matéria de facto indiciada e alterar a redacção do ponto 13º da mesma nos termos supra referidos, procedendo nesta parte a impugnação da matéria de facto. 8) Seja alterada a redacção do ponto 15º da matéria de facto indiciada [Nas imediações do prédio indicado em 5), designadamente, na Rua ..., sita na união de freguesias ..., ... (... e ...), localizam-se diversas habitações.], para que passe a ser “Nas imediações do prédio indicado em 5), designadamente, na Rua ..., sita na união de freguesias ..., ... (... e ...), localizam-se algumas habitações, terrenos sem edificações e um armazém.”. Quer dizer, a alteração pretendida consiste em substituir a palavra “diversas” por “algumas” e em acrescentar “terrenos sem edificações e um armazém”! Antes de mais, cumpre referir que, mais uma vez, estamos perante matéria que não foi alegada nos articulados, sendo apenas aflorado de forma genérica que existem habitações próximas do prédio em causa nos arts. 55º (“as habitações próximas”) e 63º (“habitações à volta do perímetro em causa”) do requerimento inicial e nos arts. 73º (“habitações … próximas do local …”) e 110º (“existência de residências próximas”) da oposição. O que significa que, nos mesmos termos já antes referidos, não há que acrescentar a localização de “terrenos sem edificações e um armazém” e quanto à alteração de “diversas” por algumas”, para além de igualmente não encontrar apoio na matéria alegada, não se vê qual o seu interesse, não sendo a mesma relevante para o conhecimento da questão de direito, posto que relevante será a existência de habitações, independentemente do seu número, sendo que a indefinição deste tanto se traduz na expressão “diversas” como na expressão “algumas”. Não há, pois, que alterar a redacção deste ponto nos termos pretendidos pela recorrente. 9) Seja acrescentado à redacção do ponto 20º da matéria de facto indiciada [Em 07/12/2023, o Presidente da Câmara Municipal ... proferiu despacho que consignou o “indeferimento do pedido” referenciado em 16)], que “o qual foi notificado à requerida a 8 de janeiro de 2024, podendo ser ainda alvo de impugnação judicial”. Este ponto respeita a uma situação ocorrida posteriormente aos articulados, já no decurso do processo, resultando do teor de certidão junta aos autos emitida pela Câmara Municipal ..., sendo este facto passível de ser relevante na apreciação da verificação dos pressupostos da providência cautelar comum requerida. Já quanto ao que a recorrente pretende acrescentar, temos que a parte final (“podendo ser ainda alvo de impugnação judicial”) constitui matéria de direito, que resulta directamente da lei, não sendo por isso matéria de facto, conforme anteriormente já se analisou, e que, quanto à data da notificação, a mesma é irrelevante, nada acrescentando ao que foi decidido, pois, com ou sem essa data, o certo é que apenas pela data da decisão era verificável que esta ainda não era definitiva e podia ser impugnada pela requerida (e é essa a circunstância que essencialmente a recorrente quer assinalar, que a decisão não era definitiva e ainda podia ser por si impugnada), nem sendo importante para o que se pretende decidir no presente recurso, na medida em que, como já se disse, o que está aqui em causa é a “apreciação da possibilidade de lesão do direito ao ambiente e dos direitos à saúde e integridade física da população de ..., com o exercício da actividade de cremação por parte da requerida”, e não a questão administrativa do licenciamento, ou não, desta actividade. Veja-se que, ainda que a actividade tivesse sido (ou venha a ser) licenciada, isso não impede que a mesma possa colocar em causa aqueles direitos e se assim suceder que seja impedida de funcionar. Não há também, pois, que alterar a redacção deste ponto nos termos pretendidos pela recorrente. 10) Que seja aditado à matéria de facto indiciada um ponto 22º, com a seguinte redacção: “O forno crematório nunca foi colocado em funcionamento, sendo que a Requerida aguarda o seu licenciamento, pois será responsável para o colocar a funcionar pela primeira vez o técnico responsável pela segurança e salubridade do equipamento o Prof. Dr. JJJJ”. Trata-se, porém, de pretensão manifestamente irrelevante. Com efeito, que o forno não foi colocado em funcionamento é pressuposto da presente acção, a qual visa precisamente impedir que ocorra essa entrada em funcionamento, perpassando tal situação já da redacção, nomeadamente, dos pontos 9º a 12º, 16º e 20º da matéria de facto indiciada, não se vendo qualquer necessidade de aditar um facto a reafirmar essa circunstância. E quanto ao mais que a recorrente pretende aditar, trata-se apenas da justificação do facto de o forno não estar em funcionamento, o motivo pelo qual, segundo aquela, tal sucede, o que não tem qualquer utilidade na economia do procedimento cautelar, valendo aqui o que acabou de se dizer no ponto anterior quanto ao que está em causa na presente acção e à (ir)relevância do licenciamento. Donde, não há que acrescentar esta matéria aos factos indiciados. É, assim, de concluir que a impugnação da matéria de facto por parte da recorrente apenas merece provimento parcial na parte da alteração da redacção do ponto 13º e na eliminação do ponto 14º da matéria de facto indiciada, nos termos acabados de referir, não merecendo provimento na parte restante. * Resta apreciar a terceira questão. Tendo em conta o resultado do tratamento da questão anterior, a factualidade a ter em conta para apreciação da pretensão da recorrente é a que consta dos factos dados como indiciados na decisão recorrida, com a alteração da redacção do ponto 13º e a eliminação do ponto 14º nos termos ora decididos, conforme se passa a descrever: “1. A Requerida é uma sociedade que se dedica à prestação de serviços fúnebres desde o ano de 2002, explorando o estabelecimento sito na Rua ..., freguesia e concelho .... 2. Desde 02 de novembro de 2010, HHHH exerce o cargo de responsável técnico da Requerida. 3. Em 05 de julho de 2019 lavrou-se escritura pública no Cartório Notarial de LLLL com a epígrafe “Compra e Venda”, no âmbito da qual DD e CC declararam vender à Requerida A... LDA, que declarou comprar, os seguintes prédios: a) prédio urbano composto de casa, sito em ..., inscrito na matriz sob o art.º ...15, anteriormente sob o art.º ....º da extinta freguesia ..., descrito na Conservatória do Registo Predial de Santo Tirso sob o n.º ...20; b) prédio urbano composto de casa, sito em ..., inscrito na matriz sob o art.º ...07, anteriormente sob o art.º ....º da extinta freguesia ..., descrito na Conservatória do Registo Predial de Santo Tirso sob o n.º ...15; c) uma parcela de terreno de 96,50 m2 desanexada do prédio rústico composto de terreno sito em ..., inscrito na matriz da freguesia ... sob o artigo ...79 descrito na Conservatória do Registo Predial de Santo Tirso sob o n.º ...21; d) uma parcela de terreno de 928,50 m2 desanexada do prédio rústico composto de terreno sito em ..., inscrito na matriz da freguesia ... sob o artigo ...79 descrito na Conservatória do Registo Predial de Santo Tirso sob o n.º ...21. 4. Na escritura pública indicada em 2) consignou-se que “os prédios urbanos se destinam a habitação e que a compra é feita para prossecução do objeto da sociedade”. 5. Em 2021, a Requerida apresentou pedido de licenciamento na Câmara Municipal ... com referência à “obra de construção de um estabelecimento de comércio/serviços Agência Funerária, contribuinte n.º ...33, com sede na Rua ..., união de freguesias ..., ... (... e ...) do concelho ..., representada por HHHH, contribuinte n.º...91, pretende levar a efeito num terreno de que é proprietária, localizado no Largo ..., lugar de ..., união de freguesias ..., ... (... e ...) do concelho ..., que se encontra registado na Conservatória do Registo Predial de Santo Tirso sob o artigo n.º...21, e que se encontra registado na matriz Urbana.” 6. Em 20 de maio de 2021, a Câmara Municipal ... deliberou reconhecer o “especial interesse público” do projeto de investimento enunciado em 5) para o Município .... 7. Em 28 de outubro de 2021, o Presidente da Câmara Municipal ... emitiu o Alvará n.º ...1 com referência à obra descrita em 5), consignando-se a área total de construção de 236,00 m2, volumetria de 861,77 m3, área de implantação de 236,00 m2, número de pisos acima da cota da soleira -1, número de pisos abaixo da cota da soleira – 0, cércea de 4,00 m, destinando-se a construção a comércio e serviços. 8. Após, a Requerida iniciou os trabalhos de construção enunciados em 5). 9. Em fevereiro de 2022, efetivou-se uma reunião na Câmara Municipal ..., no âmbito da qual a Requerida declarou comunicar à diretora do departamento de obras da mesma a colocação no sobredito centro funerário de um forno crematório/forno incinerador de corpos e restos humanos. 10. No circunstancialismo mencionado em 9), a Requerida iniciou a execução de trabalhos na obra referida em 5) para a colocação do antedito forno crematório. 11. Durante o ano de 2022, a Requerida instalou na sobredita obra um forno crematório composto por duas câmaras, uma primeira para cremação ou incineração com dois queimadores alimentados a diesel/gasóleo, e uma segunda câmara de pós-combustão, com um queimador localizado acima da câmara de incineração, que realiza a pós-combustão dos gases gerados durante o processo de incineração a uma temperatura mínima de 850ºC, os quais são orientados para uma chaminé. 12. No circunstancialismo referenciado em 11), a Requerida edificou uma chaminé com uma altura de cerca de 6 metros.” 13. Uma vez em funcionamento, o sobredito forno produzirá emissões atmosféricas de dióxido de azoto (NO2), dióxido de enxofre (SO2), partículas, monóxido de carbono (CO) e ácido clorídrico (HCL). “15. Nas imediações do prédio indicado em 5), designadamente, na Rua ..., sita na união de freguesias ..., ... (... e ...), localizam-se diversas habitações. 16. Em 05 de dezembro de 2022, a Requerida apresentou requerimento na Câmara Municipal ... com referência ao mencionado em 11) e 12), declarando solicitar alteração ao Alvará indicado em 7) para “legalização do centro de incineração e cremação”. 17. No dia 01 de julho de 2021 lavrou-se escritura pública no Cartório Notarial sito em ... com a epígrafe “Doações”, no âmbito da qual DD e CC declararam doar às Requerentes os seguintes prédios: a) prédio urbano sito em ..., inscrito na matriz sob o art.º ...88, da freguesia ..., ... e ..., descrito na Conservatória do Registo Predial de Santo Tirso sob o n.º ...16; b) prédio rústico inscrito na matriz sob o art.º ...79, da freguesia ..., ... e ..., descrito na Conservatória do Registo Predial de Santo Tirso sob o n.º ...21. 18. Pela ap. ...74 de 2021/09/02 afigura-se registada a aquisição a favor das Requerentes dos prédios enunciados em 17). 19. No ano de 2021, as Requerentes apresentaram requerimento na Câmara Municipal ..., no qual pediram licença para a construção de duas moradias no prédio descrito em 17), alínea a). 20. Em 07/12/2023, o Presidente da Câmara Municipal ... proferiu despacho que consignou o “indeferimento do pedido” referenciado em 16). 21. O prédio descrito em 5) afigura-se localizado numa área classificada no Plano Diretor Municipal de ... como Espaço habitacional tipo III.” Há que ter em conta também os factos constantes dos factos não provados (transcrição): “Em consequência da incineração de corpos e restos humanos no sobredito forno sairão pela predita chaminé cheiros dos mesmos. O funcionamento do antedito forno gerará um ruído audível nas habitações mencionadas em 15).” Como se disse na decisão sumária proferida por este Tribunal da Relação e se reafirmou no acórdão de 28/09/2023, o direito de acção popular está constitucionalmente previsto e destina-se a promover a prevenção, a cessação ou a perseguição judicial das infracções contra a saúde pública, os direitos dos consumidores, a qualidade de vida e a preservação do ambiente e do património cultural, podendo exercer-se mediante a instauração de procedimentos cautelares. Aliás, “as providências comuns têm aqui um largo campo de aplicação, como forma de tutela desses interesses”, apresentando-se como “um dos melhores instrumentos para impedir a concretização dos danos ambientais, na saúde pública ou noutras áreas cada vez mais na mira do legislador constitucional e comum”, nada impedindo que sejam requeridas providências cautelares “por dependência de acções populares” (como refere A. Abrantes Geraldes, in Temas da Reforma do Processo Civil, III vol., págs. 79 a 81). Não obstante, mesmo tratando-se de uma acção popular, para que seja decretada uma providência cautelar comum necessário se torna que se verifiquem os requisitos previstos na lei para o efeito. Dispõe-se no art. 362º, nº 1, do C.P.C., sob a epígrafe “Âmbito das providências cautelares não especificadas”, que sempre que alguém mostre fundado receio de que outrem cause lesão grave e dificilmente reparável ao seu direito, pode requerer a providência conservatória ou antecipatória concretamente adequada a assegurar a efectividade do direito ameaçado. Assim, para além de estarmos perante uma situação a que não convém nenhuma das providências tipificadas na lei, é ainda necessário que: - ocorra a probabilidade séria de existência do direito invocado; - exista um receio justificado de que a demora natural na resolução do litígio cause prejuízo irreparável ou de difícil reparação; - a providência requerida seja em concreto adequada a assegurar aquele direito. Em face do disposto no art. 364º, nº 1, do C.P.C., de acordo com o qual o procedimento cautelar é dependência de uma causa que tenha por fundamento o direito acautelado, configura também requisito do decretamento desta providência cautelar a sua instrumentalidade relativamente à acção a instaurar, ou seja, o direito que se pretende acautelar com a providência tem de ser o fundamento da acção principal. No caso, quanto ao direito invocado, afigura-se-nos que, não obstante as referências no requerimento inicial a situações de ilegalidade, falta de requisitos legais e de violação do PDM, tendo em conta tudo o mais que aí vem alegado, nomeadamente quanto à acção popular e aos direitos que as requerentes pretendem acautelar, o concreto pedido formulado e a circunstância de ter sido instaurada uma acção civil e não uma acção administrativa (em cujo âmbito também é possível instaurar acções populares), estamos no âmbito do direito ambiental e estão em causa direitos atinentes à saúde, à qualidade de vida e a um ambiente sadio e equilibrado. Estamos, assim, e segundo os entendimentos que vêm sendo defendidos na doutrina e na jurisprudência, no âmbito de direitos de personalidade, os quais vêm ganhando relevo nos dias de hoje, em detrimento da propriedade, defendida primacialmente na tradição clássica, até porque “a propriedade como espaço de realização pessoal foi perdendo importância com as conquistas da técnica”, que possibilitam que o indivíduo possa ser “atingido na sua personalidade física ou moral” mesmo “quando refugiado no seu santuário tradicional - a sua propriedade (por ruídos, calor, fumos, radiações, etc.)”. Donde a transformação do direito de propriedade, cada vez mais, “num direito de vizinhança” e o novo facies do direito de personalidade clássica, englobando os “direitos à saúde, ao descanso, ao sono, a um ambiente são e equilibrado”, que originam que, “no campo das relações intersubjectivas”, se passe da necessidade de assegurar “o direito a um espaço físico” para a necessidade de assegurar “o direito a um espaço de realização vital” (J.M. Araújo de Barros, “Direito Civil e Ambiente”, págs. 225 e 226, in Ambiente, Textos, Centro de Estudos Judiciários, 1994, págs. 221 a 244). Como concretizações de tais direitos existe desde logo o art. 66º, nº 1 da C.R.P., onde se prevê que todos têm direito a um ambiente de vida humano, sadio e ecologicamente equilibrado e o dever de o defender, preceito que beneficia do regime dos direitos, liberdades e garantias, sendo directamente aplicável e oponível a todos (art. 18º da C.R.P.), já que “o direito ao ambiente, dada a sua inerência ao homem como indivíduo”, tem “natureza análoga aos direitos, liberdades e garantias” - cfr. art. 17º da C.R.P. (J.M. Araújo de Barros, ob. cit., pág. 227). Este princípio está ainda vertido também no art. 5º da actual Lei de Bases da Política de Ambiente. Segue-se o art. 70º do Código Civil (tutela geral da personalidade), onde se determina que a lei protege os indivíduos contra qualquer ofensa ilícita ou ameaça de ofensa à sua personalidade física ou moral, podendo requerer-se as providências adequadas a evitar a consumação ou a atenuar os efeitos da ofensa já cometida. E conjugando ambos os artigos citados, temos que, abrangidos pela tutela geral da personalidade são “também os elementos componentes da relação existencial do homem com a Natureza” cujo equilíbrio permanente é essencial para a sobrevivência e desenvolvimento daquele, ainda que socialmente inserido, englobando não só um direito positivo a acção do Estado para defesa do ambiente como um direito negativo a abstenção por parte de todos de actos nocivos para o ambiente (Capelo de Sousa, O Direito Geral de Personalidade, págs. 295 a 297, bem como doutrina e jurisprudência aí citadas). Ora, em face do acabado de referir, é de concluir que a população de ..., em cujo interesse as requerentes instauraram o presente processo, tem um direito a ver respeitado o ambiente onde vive, o seu direito à saúde, à qualidade de vida e a um ambiente sadio e equilibrado, direito esse também em face da requerida e perante a actividade que esta desenvolve. Direito este que é um direito absoluto de todas as pessoas e um direito que beneficia do regime dos direitos, liberdades e garantias, como se disse, sendo oponível a todos, tendo de ser respeitado, mesmo no exercício de actividades legais e devidamente licenciadas. Com efeito, o facto de uma actividade estar a ser exercida a coberto de determinada legislação e de uma licença não significa que a mesma possa pôr em causa o ambiente e os direitos de personalidade de outras pessoas, designadamente por intermédio de poluição (neste sentido, entre outros, Ac. da R.C. de 16/03/2010, com o nº de proc. 216/06.6TBSRE.C1, publicado em www.dgsi.pt), sendo que poluir é “criar a possibilidade de uma alteração das características das águas, dos solos ou do ar; ou de tornar impróprios para as suas utilizações estes componentes ambientais, ou, provocar ruído, afectando negativamente a qualidade de vida do homem, «maxime» a sua saúde e bem-estar” (Teresa Quintela de Brito, O Crime de Poluição: Alguns Aspectos da Tutela Criminal do Ambiente no Código Penal de 1995, pág. 338, in Anuário de Direito do Ambiente, 1995, págs. 331 a 367). Está, pois, verificado o primeiro requisito, sem que se torne necessário apreciar quaisquer das questões que foram analisadas na decisão recorrida sobre as questões da falta de regulamentação da legislação atinente à actividade de cremação, da operação urbanística e do licenciamento. Quanto ao segundo requisito, há que assinalar que não é um qualquer prejuízo que justifica o decretamento de uma providência cautelar - tem de tratar-se de um prejuízo que, ainda que o requerente obtenha vencimento na acção principal, em virtude da demora na resolução desta seja irreparável ou de difícil reparação. E tem de ser um prejuízo avaliável segundo critérios objectivos e de normalidade, pois, ao exigir que o receio seja fundado, pretende a lei que o mesmo seja “apoiado em factos que permitam afirmar, com objectividade e distanciamento, a seriedade e actualidade da ameaça e a necessidade de serem adoptadas medidas tendentes a evitar o prejuízo”. “A gravidade da lesão previsível deve ser aferida tendo em conta a repercussão que determinará na esfera jurídica do interessado”, sendo certo que na protecção cautelar se abarcam também os prejuízos imateriais ou morais, “por natureza irreparáveis ou de difícil reparação”. E para preencher os conceitos indeterminados de que a lei se socorre há que ter em conta “o surgimento de novos valores”, designadamente “relacionados com o bem estar social ou com a qualidade de vida” (cfr. A. Geraldes, Temas da Reforma do Processo Civil, III vol., págs. 84 a 87). Em termos de danos na saúde, no ambiente e na qualidade de vida, há que considerar que se trata de danos com um efeito cumulativo, pois pode não se produzir qualquer lesão, ou pelo menos sintoma, no imediato, mas a exposição aos agentes agressores de forma mais ou menos continuada e permanente causar efeitos muito gravosos e por vezes, até, irreversíveis. Donde, a necessidade de avaliar à luz de tais considerações o prejuízo grave e dificilmente reparável, não podendo estar-se apenas perante uma situação de simples dúvida, conjectura ou receio subjectivo, que ainda não se concretizou, nem se mostra na iminência de concretizar-se. No caso concreto, o que decorre da matéria de facto indiciada é apenas que, uma vez em funcionamento, o forno crematório instalado pela requerida produzirá emissões atmosféricas de dióxido de azoto (NO2), dióxido de enxofre (SO2), partículas, monóxido de carbono (CO) e ácido clorídrico (HCL). Sendo que esse forno não está em funcionamento, pois foi indeferido o pedido do respectivo licenciamento. Não decorre, nem tal foi alegado, que a requerida pretenda colocar o equipamento em funcionamento de forma “ilegal”, antes de estar decidida a questão administrativa do seu licenciamento (o que até parece que nem será possível, a avaliar pelo que foi explicado pela testemunha JJJJ), sendo que, com o indeferimento, apenas na sequência de impugnação, com a demora que isso acarreta, poderá ser a situação alterada, acaso seja dada razão à requerida. E mesmo que para breve estivesse esse funcionamento, da matéria apurada não resulta que quantidades de emissões seriam produzidas e em que período de tempo, não sendo possível aferir que fossem ultrapassados os limites previstos para tais emissões, nem que tais quantidades fossem em valor susceptível de colocar em causa a saúde humana pelo menos no período de tempo que fosse necessário para ser proferida decisão na acção principal (que, um ano e nove meses depois da instauração do presente processo, ainda não foi instaurada, de acordo com o que consta do “citius”, o que sempre nos permite colocar a questão sobre se a situação demanda a urgência invocada, posto que as requerentes não parecem assim tão interessadas na definição definitiva do litígio). Ademais, perante esta singela matéria de facto indiciada, não é possível convocar o princípio da precaução, o qual “não foi adoptado como critério de decisão da prova, não podendo com base na mera falta de certeza da não produção de danos ambientais ou para a saúde pública o julgador concluir pela existência de receio de produção de danos ambientais e para a saúde pública, de difícil reparação ou irreversíveis, quando não se demonstra positivamente, mesmo de forma sumária, a existência de uma probabilidade séria de eles virem a ocorrer” (cfr. Ac. da R.G. de 14/06/2012, publicado em www.dgsi.pt, com o nº de proc. 244/2002.G1, citando o Ac. do S.T.A. de 02/12/2009, com o nº de proc. 0438/09). Verifica-se, pois, que não se apurou a existência de receio justificado de ocorrência de prejuízo irreparável ou de difícil reparação com a demora natural na resolução do litígio – no caso não resultaram indiciados factos concretizadores da existência de quaisquer prejuízos irreparáveis ou de difícil reparação, conforme resulta dos factos elencados (aliás, muito genericamente alegados no requerimento inicial) – e que determine a necessidade do decretamento da providência requerida. De tudo o exposto, haverá que concluir que não existe um receio fundado e actual de que esteja iminente uma lesão grave e dificilmente reparável do direito invocado pelas requerentes (cfr. Alberto dos Reis, C.P.C. anotado, vol. I, pág. 684). Não estão, portanto, preenchidos os requisitos exigidos pelos arts. 362º, nº 1, e 364º, nº 1, do C.P.C., o que determina a improcedência do procedimento cautelar e, por conseguinte, a obtenção de provimento do recurso interposto. * Em face do resultado do tratamento das questões analisadas, é de concluir pela alteração da matéria de facto indiciada nos termos analisados na segunda questão e pela obtenção de provimento do recurso interposto pela requerida, com a consequente alteração da decisão recorrida, julgando-se improcedente o procedimento cautelar.* Considerando o decaimento das recorridas, mas que não se trata de uma situação de manifesta improcedência do pedido, aquelas serão responsáveis pelo pagamento dos encargos a que tenham dado origem no processo, mas ficarão isentas de taxa de justiça, nos termos do art. 4º, nº 1, al. b), nº 5 e nº 6, do R.C.P. (cfr. Salvador da Costa, As Custas Processuais, análise e comentário, 6ª ed., 2017, Almedina, págs. 102, 121 e 122). *** III - Por tudo o exposto, acorda-se em: a) alterar a decisão proferida quanto à matéria de facto indiciada, nos seguintes termos: 1. alterar a redacção do ponto 13 do elenco dos factos indiciados, que passa a ser a seguinte: - “13. Uma vez em funcionamento, o sobredito forno produzirá emissões atmosféricas de dióxido de azoto (NO2), dióxido de enxofre (SO2), partículas, monóxido de carbono (CO) e ácido clorídrico (HCL).”; 2. eliminar o ponto 14 do elenco dos factos indiciados; b) conceder provimento ao recurso e, consequentemente, julgar improcedente o procedimento cautelar. * Custas pelas recorridas, com responsabilidade pelos encargos, mas isenção de taxa de justiça (art. 527º, nºs 1 e 2, do C.P.C. e art. 4º, nº 1, al. b), nº 5 e nº 6, do R.C.P.).* Notifique. ** Sumário (da exclusiva responsabilidade da relatora - art. 663º, nº 7, do C.P.C.): ………………………… ………………………… ………………………… * datado e assinado electronicamente * Porto, 12/9/2024. Isabel Ferreira João Venade Carlos Portela |