Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
206/12.0YRPRT
Nº Convencional: JTRP000
Relator: HENRIQUE ARAÚJO
Descritores: TRIBUNAL ARBITRAL
FUNDAMENTAÇÃO DA DECISÃO
AMPLIAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
ANULAÇÃO DA DECISÃO
Nº do Documento: RP20121203206/12.0YRPRT
Data do Acordão: 12/03/2012
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: ANULADA
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - A fundamentação da decisão arbitral deve conter os fundamentos de facto e de direito que justifiquem a decisão em termos que não diferem do regime do CPC para a sentença judicial.
II – A necessidade de ampliação da matéria de facto tem como consequência a anulação da decisão arbitral.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: PROC. N.º 206/12.0YRPRT
REL. N.º 791
Relator: Henrique Araújo
Adjuntos: Fernando Samões
Vieira e Cunha
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ACÓRDÃO NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DO PORTO:

I. RELATÓRIO

B…, residente na Rua …, n.º …, freguesia …, concelho de Ponte de Lima, apresentou reclamação no Centro de Informação, Mediação, Provedoria e Arbitragem de Seguros (CIMPAS) contra “C…, S.A.”, com sede na …, n.º ., ..º, em Lisboa, pedindo que esta seja condenada a efectuar a reparação total do seu veículo, calculada no valor de 9.839,37 €.
Alega para o efeito que:
- No dia 08.07.2011, cerca das 22 horas, ocorreu um acidente de viação, na freguesia …, Ponte de Lima, que envolveu o veículo ligeiro de passageiros, com a matrícula ..-FP-.., propriedade do reclamante e por si conduzido, e o veículo ligeiro de passageiros, com a matrícula UD-..-.., propriedade de D… e por si conduzido;
- Quando o reclamante efectuava a manobra de marcha-atrás, para aceder à sua habitação, ocupando parcialmente a hemi-faixa esquerda da via, atento o sentido de marcha do veículo UD (sentido … – …), foi violentamente embatido, a meio da sua viatura, na lateral direita, por aquele veículo, sendo que o seu condutor seguia a mais de 100 km/hora e sem a necessária atenção à condução;
- Desse embate resultaram danos no veículo do reclamante, cuja reparação ascende a 9.839,37 €, sendo responsável pelo seu pagamento a reclamada, face ao contrato de seguro existente.

A reclamada “C…, S.A.” contestou,

Foi realizada audiência de julgamento arbitral, tendo-se julgado improcedente a acção.

O reclamante recorreu da decisão arbitral.
O recurso foi admitido como sendo de apelação, com efeito devolutivo.

Nas conclusões do recurso, o apelante pede que se revogue a decisão do tribunal arbitral, com fundamento nas seguintes conclusões:
A. O presente recurso merecerá com certeza provimento, quer por uma questão de facto, quer por uma questão de direito.
B. O Mmº Juiz julgou totalmente improcedente a reclamação apresentada, considerando que a colisão se ficou a dever exclusivamente à manobra de marcha-atrás.
C. Decidindo que o condutor do veículo FP, que pretendia entrar na sua garagem, ao efectuar a manobra de marcha-atrás invadiu a hemi-faixa onde circulava o veículo UD.
D. A verdade é que, da prova produzida relativa à dinâmica do acidente resulta de forma clara, manifesta e inequívoca a responsabilidade exclusiva do condutor do veículo UD, na produção do acidente.
E. De facto, resulta, não só da prova testemunhal como documental produzida em audiência de discussão e julgamento, que o condutor do FP efectuava a manobra de marcha-atrás num espaço reduzido, encontrando-se aquém do eixo da via.
F. E observando todas as regras de trânsito que lhe eram exigíveis, não prejudicando o exercício da condução com segurança por parte dos outros condutores, cumprindo, por isso, o disposto no artigo 11º, n.º 2, e 46º do CE.
G. Provas que o Mmº Juiz não teve em consideração para formar a sua convicção.
H. Pois, a prova produzida sustenta o contrário dos factos considerados provados na douta decisão.
I. Na verdade, quer da análise dos documentos e das fotografias juntas em audiência de discussão e julgamento, quer do depoimento da testemunha, resulta que o veículo UD circulava com manifesto excesso de velocidade, o que o levou a entrar em despiste ao sair da curva, perdendo o controlo da viatura, violando o disposto no artigo 27º do CE.
J. Ora, o acidente ocorreu numa via com boa visibilidade, marginada por edificações e o piso estava escorregadio, devido à chuva.
K. Acontece que o condutor do veículo UD não atendeu ao tipo de via em que circulava nem às condições do piso, violando, por isso, o disposto no artigo 25º, n.º 1, alíneas c), f) e h) do CE, ao não moderar especialmente a velocidade.
L) Em consequência do despiste, o veículo UD veio a colidir violentamente com o veículo do recorrente, que se encontrava na hemi-faixa esquerda da faixa de rodagem atento o sentido de trânsito do UD.
M) O que fica também comprovado pelo facto de o veículo FP ter sido embatido a meio da viatura, que se encontrava na hemi-faixa esquerda da faixa de rodagem atento o sentido de trânsito do UD.
N) Porém, o tribunal a quo limitou-se a concluir que terá sido a manobra de marcha-atrás que provocou a colisão, sem analisar devidamente todos os meios de prova.
O) Por outro lado, deu o tribunal recorrido como provado que o veículo FP ao efectuar a manobra de marcha-atrás invadiu a hemi-faixa por onde circulava o UD.
P) Não fundamentando o tribunal a quo em quanto o veículo FP invadiu aquela hemi-faixa.
Q) Nem se a manobra efectuada pelo condutor do FP impedia a circulação do veículo UD, de modo a não poder evitar a colisão.
R) Ora, estabelece o artigo 13º, alínea e), do Regulamento do Serviço de Mediação e Arbitragem de Seguros que da sentença arbitral constam os fundamentos de direito e de facto da decisão.
S) No mesmo sentido dispõe o artigo 23º, n.º 3, da LAV ao referir o dever de fundamentação da sentença arbitral.
T) O padrão da fundamentação deve ser, num processo actual, o da inteligibilidade da decisão pelas partes, isto é, o que interessa é que o tribunal (judicial ou arbitral ou outro) consiga explicar às partes porque decidiu assim.
U) Assim, só há cumprimento do dever de fundamentação quando resulte claro, para uma pessoa média, o caminho e a razão da decisão.
V) Na douta decisão não foram devidamente explanadas as razões que levaram o Mmº Juiz a decidir em determinado sentido.
W) E a circunstância de neste processo se ter decidido com fundamento em equidade, não poderia, de alguma forma, omitir-se o dever de fundamentação.
X) Pelo contrário, na decisão segundo a equidade o dever de fundamentação é ainda acrescido, ou seja, estando em causa critérios que não estão publicamente escritos, torna-se ainda mais importante, ao nível das garantias das partes e da justiça do processo, a sua explanação e explicação.
Y) Aliás, de acordo com Paula Costa e Silva “Só através da fundamentação é possível afastar o arbítrio da solução do caso concreto, sendo de afastar qualquer caminho que permita que a arbitragem em equidade se transforme em arbitragem-arbítrio.”
Z) Face à factualidade supra alegada verifica-se que a douta decisão foi insuficientemente fundamentada e nela se fez uma incorrecta interpretação dos factos.

A apelada contra-alegou, batendo-se pelo não provimento do recurso.
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Sendo o objecto do recurso balizado pelas conclusões do recorrente – artigos 684º e 685º-A, n.º 1, do CPC – as questões que urge dirimir são, pela ordem que nos parece adequada, as de saber se a decisão arbitral está devidamente fundamentada e se deveria imputar-se ao condutor do veículo UD a responsabilidade pelo acidente.
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II. FUNDAMENTAÇÃO

OS FACTOS

Na decisão arbitral foram dados como provados os seguintes factos:

A. No dia 8 de Julho de 2011, cerca das 22 horas, na Rua …, …, em Ponte de Lima, ocorreu um acidente de viação em que foram intervenientes os veículos ligeiros de passageiros de matrícula ..-FP-.., conduzido pelo seu proprietário, o aqui reclamante, e o de matrícula UD-..-.., conduzido por D… e propriedade do mesmo, com responsabilidade civil automóvel transferida para a reclamada, mediante contrato de seguro titulado pela apólice 01482996.

B. O Reclamante, pretendendo entrar e estacionar na sua garagem, procedeu a uma manobra de marcha-atrás, invadindo a faixa de rodagem por onde circulava o UD, provocando, assim, a colisão.

C. Esta colisão ficou, assim, a dever-se exclusivamente à manobra de marcha-atrás do FP.

D. Em consequência desse embate, o FP sofreu danos estimados em 7.999,49 €.

O DIREITO

Nos termos previstos no artigo 12º, alínea i), dos Estatutos do Cimpas – Centro de Informação, Mediação, Provedoria e Arbitragem de Seguros, o Serviço de Mediação e Arbitragem de Seguros rege-se pelo Regulamento aprovado pela Assembleia Geral de 31 de Maio de 2010, ao qual se aplicam as normas da Lei da Arbitragem Voluntária (Lei 31/86[1], de 29 de Agosto) e, em caso de omissão, subsidiariamente, as regras e princípios do Código de Processo Civil, adaptados à natureza marcadamente abreviada e informal do procedimento arbitral – artigo 14º do Regulamento.
De acordo com o artigo 7º desse Regulamento, qualquer das partes pode submeter o litígio à arbitragem, mediante apresentação do respectivo requerimento e pagamento das custas, sendo o tribunal arbitral constituído por um único árbitro que decidirá de acordo com o direito constituído (artigo 12º).
No julgamento pode ser produzida qualquer prova admitida em direito, podendo, o tribunal arbitral, por sua própria iniciativa, recolher depoimentos das partes, ouvir testemunhas ou terceiros, obter a entrega de documentos que entenda necessários, nomear peritos, mandar proceder a análise ou exames directos – artigo 14º do Regulamento da Arbitragem e Custas, aprovado em reunião realizada naquela mesma data.
Da decisão arbitral terão de constar os respectivos fundamentos de facto e direito – artigo 23º, n.º 3, da Lei de Arbitragem Voluntária e artigo 13º alínea e), do Regulamento.

Vista a forma como se processa o litígio perante o tribunal arbitral, vejamos seguidamente se o recurso interposto da decisão ali proferida tem condições para proceder.

Defende o apelante que o acidente ficou a dever-se ao comportamento estradal do condutor do UD que, segundo afirma, circulava com manifesto excesso de velocidade. Terá sido esta circunstância que o levou a entrar em despiste ao sair da curva, perdendo o controlo da viatura e embatendo no veículo do apelante.
Na sua opinião, é isso que resulta, quer da análise dos documentos e das fotografias juntas em audiência de discussão e julgamento, quer do depoimento da testemunha ouvida nessa audiência.
Entende ainda o apelante que a decisão arbitral não está devidamente fundamentada – conclusão V) –, na medida em que, nomeadamente, não esclarece se a manobra efectuada pelo condutor do FP impedia a circulação do veículo UD, de modo a não poder evitar a colisão.
É por esta última questão que iniciaremos a análise do recurso.

Já vimos que a Lei de Arbitragem Voluntária (LAV) impõe, no seu artigo 23º, n.º 3, a fundamentação da decisão arbitral.
Segundo Paula Costa Silva a exigência do n.º 3 do artigo 23º encontra a sua justificação na necessidade de se evitar a arbitrariedade do processo arbitral, podendo dizer-se que “uma sentença é provida de fundamentos sempre que seja possível compreender a motivação do árbitro. Assim, mesmo que a motivação seja deficiente, medíocre ou errada, estaremos perante uma sentença motivada, devendo as deficiências da sua fundamentação, que não geram nulidade, ser arguidas em via de recurso. Só a falta absoluta de motivação implicará uma nulidade da sentença arbitral, invocável através da acção de anulação. Sempre que a motivação seja deficiente e não havendo lugar a anulação, deve essa deficiência ser suprida através de recurso interposto contra a sentença arbitral”.[2]
A fundamentação das decisões tem um duplo objectivo: por um lado, cumpre uma função de índole endoprocessual, impondo ao juiz um momento de verificação e controlo crítico da lógica e habilitando as partes, em caso de recurso, a exprimir em termos mais seguros, um juízo concordante ou divergente; por outro lado, cumpre uma função extraprocessual, na medida em que garante o controlo externo e geral sobre a fundamentação factual, lógica e jurídica[3].
Cumpre-se esse dever se o juiz declarar quais os factos que julga provados e quais os que julga não provados, depois de analisar criticamente as provas e especificar os fundamentos que foram decisivos para a sua convicção – artigo 653º, n.º 2, do CPC.
No caso dos autos, o discurso fundamentador do julgamento sobre a matéria de facto resumiu-se ao seguinte:
“Tendo em conta a posição assumida pelas partes nos seus articulados, os documentos juntos aos autos, a prova testemunhal produzida, e as regras da experiência e da normalidade da vida, ficaram provados, apenas, os seguintes factos: …”.
Esta fórmula não cumpre, manifestamente, o dever de fundamentação de que se falou, pois que, além de não especificar, em relação aos factos em causa, qual o concreto meio de prova em que o árbitro se baseou para formar a sua convicção, é também totalmente despida de qualquer análise crítica sobre a prova produzida.
Apesar da natureza mais informal e prática do processo arbitral, “a fundamentação deve conter os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão em termos que não diferem do regime do CPC (artigo 659º, números 1 a 3) para a sentença judicial, pois, de outro modo, tornar-se-ia difícil a sua apreciação pelo tribunal judicial em caso de recurso ou de acção de anulação.”[4]
Não menos flagrante é, na nossa perspectiva, a completa omissão de pronúncia do tribunal arbitral em relação a factos alegados pelo apelante, cuja importância não pode ser descurada no âmbito do litígio. Com efeito, na reclamação de fls. 1 a 3, o apelante alegou que o veículo UD circulava a uma velocidade superior a 100 km/h e que terá sido esse facto que originou o despiste desse veículo, perdendo o seu condutor o seu controlo ao fazer a curva que antecede o local do embate.
Essa factualidade, não constando dos factos provados, também não foi dada como não provada, devendo assinalar-se que, para além da descrição dos factos provados (e o ponto C. dos factos provados até contém matéria nitidamente conclusiva, pelo que se impunha a sua eliminação do respectivo rol), nenhuma menção é feita aos factos não provados.
Deriva do exposto não estarem reunidas as condições para avaliar a justeza da decisão recorrida.
Neste contexto, mostrando-se essencial para a causa a indagação da factualidade omitida, teria de anular-se ex officio a decisão arbitral, ao abrigo do n.º 4 do artigo 712º do CPC, para que se alargasse a discussão aos factos sobre os quais o tribunal arbitral se não pronunciou, repetindo-se o julgamento.
Todavia, o artigo 25º da LAV estabelece que o poder jurisdicional do árbitro finda com a notificação do depósito da decisão que ponha termo ao processo ou, quando tal depósito seja dispensado, com a notificação da decisão às partes.
A extinção do poder jurisdicional do árbitro inviabiliza, por isso, a repetição do julgamento.
Deste modo, a consequência das falhas detectadas na decisão arbitral será estritamente a sua anulação.
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III. DECISÃO

Em conformidade com o exposto, na procedência da apelação, anula-se a decisão arbitral.
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Custas pela apelada.
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PORTO, 3 de Dezembro de 2012
Henrique Luís de Brito Araújo
Fernando Augusto Samões
José Manuel Cabrita Vieira e Cunha
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[1] Diploma aplicável ao caso dos autos, dado que a recente Lei de Arbitragem Voluntária (Lei 63/2011, de 14.12) apenas entrou em vigor em 24 de Março de 2012 (a reclamação deu entrada no C.I.M.P.A.S. em 24 de Janeiro de 2012.
[2] “Anulação e Recursos da Decisão Arbitral”, na Revista da Ordem dos Advogados, Ano 52, Lisboa, Dezembro de 1992, páginas 938/939.
[3] Abrantes Geraldes, “Temas da Reforma do Processo Civil”, II Volume, página 256.
[4] Manuel Pereira Barrocas, “Manual de Arbitragem”, 2010, página 515.