Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
1883/21.6T8MAI.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: JERÓNIMO FREITAS
Descritores: NOÇÃO DE RETRIBUIÇÃO
ATRIBUIÇÃO DE VEÍCULO
Nº do Documento: RP202301231883/21.6T8MAI.P1
Data do Acordão: 01/23/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: RECURSO IMPROCEDENTE; CONFIRMADA A SENTENÇA.
Indicações Eventuais: 4. ª SECÇÃO (SOCIAL)
Área Temática: .
Sumário: I - A noção de retribuição, abrange quer a retribuição base, isto é, “aquela que, nos termos do contrato ou instrumento de regulamentação colectiva de trabalho, corresponde ao exercício da actividade desempenhada pelo trabalhador de acordo com o período normal de trabalho que tenha sido definido”, quer todas as demais prestações que tenham caráter regular e periódico, feitas directa ou indiretamente, em dinheiro ou espécie, quer seja por força da lei, quer por imposição de instrumento de regulamentação colectiva ou, ainda, decorrente de prática da empresa, também elas correspondendo ao direito do trabalhador como contrapartida do seu trabalho.
II - Provado que “Desde a data da sua admissão, em 6/01/2000, até 30 de junho de 2016, a Ré sempre proporcionou ao Autor um veículo ligeiro de passageiros para seu uso exclusivo, quer fosse na atividade profissional, quer fosse na sua vida privada, 24 horas por dia, feriados, folgas semanais, férias e qualquer outra ausência ao serviço, suportando a Ré, em exclusivo, todos os encargos da manutenção, combustível, via verde, seguros e impostos”, conclui-se que tal atribuição consubstancia uma prestação em espécie, regular e periódica que se traduz numa substancial vantagem económica, logo, com natureza retributiva, consequentemente integrando a sua retribuição e estando a entidade empregadora vinculada, com carácter de obrigatoriedade a assegurar-lhe essa prestação em contrapartida da prestação de trabalho.
III - A proposta efectuada pela Recorrente ao autor, para que este adquirisse a suas expensas viatura própria, comprometendo-se, em contrapartida, a pagar-lhe um subsídio de transporte mensal no valor de €365,00 e o valor de €0,36 por quilómetro percorrido em serviço, que este aceitou naqueles pressupostos, consubstancia uma alteração por acordo da estrutura remuneratória, que passou a vigorar em substituição da atribuição do veículo nos termos referidos em II.
IV - O pagamento do subsídio de transporte mensal no valor de €365,00 e do valor de €0,36 por quilómetro percorrido em serviço, tiveram em vista manter aquele direito do autor ao uso irrestrito e sem limites de veículo atribuído pela Ré, suportando esta todas as despesas inerentes a essa utilização, beneficiando, por isso, da garantia da irredutibilidade da retribuição.
V- Assim sendo, não podia a Ré unilateralmente ir contra o que propôs e acordou com o autor, deixando de proceder ao pagamento daquele subsídio, como o fez a partir de Janeiro de 2017, com essa conduta violando o disposto no art.º 129.º/1 al. d), do CT.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: APELAÇÃO n.º 1883/21.6T8MAI.P1
Secção Social


ACORDAM NA SECÇÃO SOCIAL DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DO PORTO

I. No Tribunal Judicial da Comarca do Porto, Juízo do Trabalho da Maia, AA intentou a presente acção declarativa de condenação sob a forma de processo comum contra B..., S.A., a qual veio a ser distribuída ao Juiz 1, pedindo que, na procedência da acção seja a Ré condenada no pagamento “(…) da quantia global de €16.790,00, a título de subsídio de transporte relativo aos anos de 2017, 2018, 2019 e 2020, acrescida de juros, vencidos e vincendos até efectivo e integral pagamento, computando-se os vencidos na presente data, 03/05/2021, em €1.600,48 - ut arts. 43.º e 44.º.”.
Alega, em síntese, que foi admitido como trabalhador da Ré no dia 6/01/2000, para exercer as funções de Técnico de Vendas na área geográfica do Grande Porto. Desde o início do contrato de trabalho a Ré atribuiu-lhe um veículo ligeiro de passageiros para o exercício das suas funções, que estava autorizado a utilizar irrestritamente para além do horário de trabalho, nomeadamente, aos fins-de-semana, feriados e férias, assim como nos dias úteis, fora do horário de trabalho, suportando a Ré, em exclusivo, as despesas associadas à utilização da viatura.
Em Junho de 2016, quando já se mostrava necessário substituir a viatura Citroen .. com matricula ..-FG-.., que à data lhe estava atribuída, a Ré propôs-lhe que adquirisse, a suas expensas, viatura própria, comprometendo-se, em contrapartida, a pagar um subsídio de transporte mensal no valor de €365,00 e o valor de €0,36 por quilómetro percorrido em serviço com o máximo de 3.000 quilómetros por mês, o que aceitou, tendo adquirido a viatura Audi A3 ... com a matrícula ..-RO-...
Em janeiro de 2017, a Ré comunicou-lhe que deixaria de proceder ao pagamento, nesse mês, do subsídio de transporte.
O contrato de trabalho existente ente a si e Ré caducou no dia 30/10/2020, na sequência da sua reforma.
Entende que a atribuição de viatura, desde o início da relação laboral, fazia parte da sua retribuição, estando garantida pelo princípio da irredutibilidade da retribuição, previsto no art.º 129.º, al. d) do CT e o pagamento do subsídio de transporte mensal, no valor de €365,00, assumido pela Ré perante si, a partir de 1.07.2016, pretendia manter incólume a retribuição, pelo que tal subsídio fazia parte da retribuição e a sua retirada, em Janeiro de 2017, por decisão unilateral da Ré, é ilícita, porquanto se traduz numa diminuição da retribuição que a lei proíbe.
Realizada a audiência de partes, não se logrou obter a resolução do litígio por acordo.
A ré veio apresentar contestação. Em síntese, impugnou que fosse permitido ao Autor o uso do veículo que lhe foi atribuído para fins particulares, nomeadamente para uso nas férias, embora houvesse alguma tolerância da sua parte. Por uma questão de facilidade e disponibilidade de horários de cada um, permite que alguns trabalhadores levem o veículo para casa, uma vez que trabalhadores como o Autor, por vezes, visitam clientes ao final do dia e logo no início do dia seguinte.
Impugna que tenha proposto a troca do veículo da empresa por veículo próprio e que se tenha comprometido a pagar ao autor o que quer que fosse. Apenas houve a disponibilidade para lhe pagar por mapa de quilómetros pela utilização de veículo próprio do trabalhador.
Entende que, ainda que se assuma que a atribuição do veículo se tratava de retribuição, a alteração de regime não consubstanciou uma redução da retribuição, uma vez que o Autor, com a quantia média anual que recebeu depois da alteração de regime para mapa de quilómetros, considerando os custos com a viatura (combustível, despesas de manutenção, seguro, IUC e portagens), ainda saiu beneficiado.
Findos os articulados, não foi realizada audiência prévia, tendo sido proferido despacho de saneamento do processo e dispensada a fixação do objeto do litígio e a enunciação dos temas de prova.
I.1 Realizada o julgamento, o Tribunal a quo proferiu sentença, fixando a matéria de facto e aplicando-lhe o direito, concluindo-a com o dispositivo seguinte:
Termos em que julgo totalmente procedente a presente ação e, em consequência:
- condeno a Ré a pagar ao Autor a quantia de €16.790,00 (dezasseis mil, setecentos e noventa euros);
- condeno a Ré a pagar juros de mora à taxa legal anual em vigor, contados sobre cada uma das prestações de €365,00 (trezentos e sessenta e cinco euros), desde a data do respetivo vencimento, até integral pagamento, computando-se o juros vencidos, à data de 03/05/2021, em €1.600,48 (mil e seiscentos euros e quarenta e oito cêntimos).
Custas pela Ré – cfr. art.º 527.º, ns 1 e 2 do C.P.C..
Registe e notifique.
[..]».

I.2 Inconformada com a sentença, a Ré apresentou recurso de apelação. As alegações de recurso foram sintetizadas nas conclusões seguintes:
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Conclui pedindo a procedência do recurso, sendo a sentença revogada e a acção julgada improcedente.

I.3 O recorrido apresentou contra-alegações, as quais sintetizou nas conclusões seguintes:
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I.4 O Digno Procurador-Geral Adjunto junto desta Relação emitiu o parecer a que alude o art.º 87.º3, do CPT, pronunciando-se no sentido de ser negado provimento ao recurso, no essencial, com base nas considerações seguintes:
-«[..]
Contudo quanto à matéria de direito mereceria análise a Cláusula 46.ª do Contrato coletivo entre a APEQ - Associação Portuguesa das Empresas Químicas e outras e a Federação de Sindicatos da Indústria, Energia e Transportes - COFESINT e outros - Boletim do Trabalho e Emprego, n.º 43, 22/11/2015. (que temos por não junto aos autos), que a recorrente invoca nos nº.s 141 e 167 da sua contestação e à qual atribui uma natureza excludente de segmentos que não integram o que se possa considerar como contrapartida da prestação de trabalho.
Conforme a doutrina e jurisprudência que se tem formado, por retribuição é considerada a prestação a que o trabalhador tem direito como contrapartida do seu trabalho e sendo constituída pela retribuição base e, pelo menos, por outras prestações regulares e periódicas que devam ser tidas por obrigatórias. São elementos essenciais o seu carácter patrimonial e obrigatório da prestação, bem como a correspectividade entre a prestação do empregador e a atividade do trabalhador. Todos estes elementos são de verificação cumulativa, que originam justificadas expectativas de vantagem, pelo que são dignas de tutela jurídica. Entre as partes foi estabelecida uma estrutura retributiva complexa, para recompensar o recorrido pela sua disponibilidade no âmbito das funções que lhe estavam acometidas. Cabe aqui o benefício que a recorrente concedeu ao recorrido – cfr. Pedro Romano Martinez, Direito do Trabalho, Coimbra, Almedina2015, pág. 593.
A sentença recorrida extraiu as devidas consequências jurídicas, com o sobredito reparo, no modo como declarou a natureza retributiva das prestações pecuniárias que foram pagas pela recorrente ao recorrido, de acordo com as regras do ónus da prova que àquele este cabia. Mais observou a jurisprudência que é conhecida - cfr. Ac. do STJ. de 25-06-2015 e 17-11-2016.
A argumentação da alegação do recorrente não pode subsistir em confronto com a fundamentação expendida na decisão sob recurso.
[..]».
I.4.1 Respondeu a recorrente, reiterando a posição assumida nas alegações.
I.5 Foram cumpridos os vistos legais, remetido o projecto aos excelentíssimos adjuntos e determinada a inscrição do processo para julgamento em conferência.
I.6 Delimitação do objecto do recurso
Sendo o objecto do recurso delimitado pelas conclusões das alegações apresentadas, salvo questões do conhecimento oficioso [artigos 87.º do Código do Processo do Trabalho e artigos 639.º, 640.º, 635.º n.º 4 e 608.º n.º2, do CPC, aprovado pela Lei n.º 41/2013, de 26 de Junho], as questões colocadas para apreciação consistem em saber o seguinte:
i) Se o Tribunal a quo errou na decisão sobre a matéria de facto, quanto aos factos não provados 5 e 6; e, por não ter considerado provado o alegado pela recorrente nos artigos 17, 51, 52, 157 e 158 da contestação [conclusões 2 e 3];
ii) Se o Tribunal a quo errou o julgamento na aplicação do direito ao concluir que a atribuição do veículo tem natureza retributiva, que foi substituída pelo pagamento de subsídio e que a retirada deste consubstanciou diminuição da retribuição [conclusões 4 a 17].

II. FUNDAMENTAÇÃO
II.1 MOTIVAÇÃO DE FACTO
O Tribunal a quo considerou o elenco factual que se passa a transcrever:
Factos Provados
1. A Ré é uma sociedade anónima que se dedica às atividades de fabrico e comercialização de tintas, vernizes e acessórios de pintura, venda, aluguer e cedência de equipamentos e tecnologia e ainda prestação de serviços e formação (cfr. Certidão Permanente junta como doc. 1 da contestação, aqui dado por reproduzido para todos os efeitos legais).
2. O Autor foi admitido no dia 6/01/2000, pela Ré, para exercer as funções de Técnico de Vendas, na área geográfica do Grande Porto, sob as ordens, direção e fiscalização desta e mediante retribuição (cfr. doc. 1 junto com a petição inicial aqui dado por reproduzido para todos os efeitos legais).
3. A Ré, desde o início do contrato de trabalho, no dia 6/01/2000, atribuiu ao Autor para o exercício das suas funções, um veículo ligeiro de passageiros.
4. O Autor, no âmbito das funções comerciais, necessitava de veículo automóvel, para, dessa forma, poder visitar clientes e acompanhar obras.
5. A compra/escolha do veículo sempre recaiu na Ré, que atribuía qualquer veículo que tivesse disponível aos seus trabalhadores.
6. Veículo esse que seria trocado apenas e só quando fosse estritamente necessário.
7. O Autor estava autorizado a usar o veículo irrestritamente, para além do horário de trabalho, nomeadamente, aos fins-de-semana, feriados e férias, como nos dias úteis, fora do horário de trabalho.
8. O Autor, desde 6/01/2000, passou a utilizar a viatura que lhe foi atribuída pela Ré, de forma regular e reiterada, quer para uso profissional, quer para uso pessoal, suportando esta, em exclusivo, as despesas associadas à utilização da mesma.
9. Todas as despesas associadas ao uso e manutenção da mesma viatura, inclusivamente as de combustível e via verde de viagens pessoais do Autor eram suportadas ou estavam a cargo da Ré.
10. Desde a data da sua admissão, em 6/01/2000, até 30 de junho de 2016, a Ré sempre proporcionou ao Autor um veículo ligeiro de passageiros para seu uso exclusivo, quer fosse na atividade profissional, quer fosse na sua vida privada, 24 horas por dia, feriados, folgas semanais, férias e qualquer outra ausência ao serviço, suportando a Ré, em exclusivo, todos os encargos da manutenção, combustível, via verde, seguros e impostos.
11. Em junho de 2016, quando já se mostrava necessário substituir a viatura Citroen .. com matricula ..-FG-.., que à data estava atribuída ao Autor, a Ré propôs ao Autor que este adquirisse, a suas expensas, viatura própria, comprometendo-se, em contrapartida, a pagar um subsídio de transporte mensal no valor de €365,00 e o valor de €0,36 por quilómetro percorrido em serviço.
12. No dia 30/06/2016, o Autor adquiriu a suas expensas a viatura Audi A3 ... com a matrícula ..-RO-.. (cfr. doc. 2 junto com a petição inicial aqui dado por reproduzido para todos os efeitos legais).
13. O Autor só acedeu adquirir a viatura própria perante a condição da Ré proceder ao pagamento do aludido subsídio de transporte mensal no valor de €365,00 e o valor de €0,36 por quilómetro percorrido em serviço.
14. Em janeiro de 2017, a Ré comunicou ao Autor que deixaria de proceder ao pagamento, nesse mês, do subsídio de transporte.
15. O Autor apenas recebeu o subsídio de transporte nos meses de julho a dezembro de 2016 (cfr. recibos de vencimento juntos sob o n.º 3 a 8 com a petição inicial, aqui dados por reproduzidos para todos os efeitos legais).
16. O contrato de trabalho existente ente a Autora e Ré caducou no dia 30/10/2020, na sequência da reforma do Autor.
17. Utilizando como exemplo o ano de 2015, por ser o último ano completo antes da alteração de regime, os custos da Ré com o veículo de serviço do Autor foram os seguintes:
- Combustível: €3.045,21;
- Manutenção/reparações: €1.321,30;
- Seguro: €298,51;
- Portagens: €40,35;
- IUC:120,44;
- TOTAL: €4.825,81 (cfr. docs. 2 a 6 juntos com a contestação aqui dados por reproduzidos para todos os efeitos legais)
18. O veículo era da Ré, já amortizado desde 2011 (cfr. doc. 7 junto com a contestação aqui dado por reproduzido para todos os efeitos legais).
19. Depois da alteração de regime para mapa de quilómetros (€0,36/km), o Autor passou a receber o seguinte:
- 2016 (jul a dez): €4.702,96 (cfr. doc. 8 junto com a contestação aqui dado por reproduzido para todos os efeitos legais);
- 2017: €11.371,50 (cfr. doc. 9 junto com a contestação aqui dado por reproduzido para todos os efeitos legais);
- 2018: €11.863,80 (cfr. doc. 10 junto com a contestação aqui dado por reproduzido para todos os efeitos legais);
- 2019: €11.538,88 (cfr. doc. 11 junto com a contestação aqui dado por reproduzido para todos os efeitos legais);
- 2020 (jan a Out): €9.849,24 (cfr. doc. 12 junto com a contestação aqui dado por reproduzido para todos os efeitos legais);
Média anual: €11.591,39.
20. A que corresponde uma média de 32.198,3 quilómetros anuais.
21. O preço médio da gasolina desde 2016 até 2020 foi de €1.49 (cfr. doc. 13 junto com a contestação aqui dado por reproduzido para todos os efeitos legais);
22. O veículo que o Autor conduzia antes, propriedade da Ré, custou, novo, €12.466,61 à Ré (cfr. doc. 15 junto com a contestação aqui dado por reproduzido para todos os efeitos legais).
23. O veículo que o Autor comprou tem um custo a partir de €25.750,00.
Factos Não Provados (com interesse à decisão, por ordem lógica e cronológica)
1. A proposta referida em 11 dos factos provados previa que os quilómetros percorridos em serviço tivessem o máximo de 3.000 quilómetros por mês.
2. No âmbito da alteração operada, houve um lapso de comunicação entre a administração e a contabilidade da Ré, sendo que a contabilidade entendeu que passaria a ser pago um subsídio de transporte ao Autor.
3. Lapso que foi detetado pelo controlador de gestão, no final do ano, que alertou a administração e a contabilidade para esta e outras situações irregulares.
4. Quando abordado o Autor o mesmo referiu que não tinha dado conta do lapso, dadas as alterações recentes na relação e nos pagamentos recebidos, e questionou, inclusive, se teria de proceder à devolução das quantias recebidas em excesso.
5. O trabalhador, tendo em conta os consumos médios do carro da gama igual à que tinha (6,5/100 km), terá gasto € 3.118,41 em gasolina.
6. Se acrescermos a esse custo as despesas de manutenção, seguro, IUC e portagens, concluímos que o trabalhador teria um custo anual médio de €4.899,01.
*
O restante que vem alegado é irrelevante à decisão da causa, é conclusivo, encerra matéria de direito ou são meras conjeturas (vg. a matéria alegada em 54 a 58 da contestação).

II.2 IMPUGNAÇÃO DA DECISÃO SOBRE A MATÉRIA DE FACTO
Insurge-se a recorrente contra a decisão sobre a matéria de facto, alegando que o Tribunal a quo errou quanto aos factos não provados 5 e 6; e, por não ter considerado provado o alegado por si nos artigos 17, 51, 52, 157 e 158 da contestação [conclusões 2 e 3];
Conforme decorre do n.º1 do art.º 662.º do CPC, a Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa. Nas palavas de Abrantes Geraldes, “(..) a modificação da decisão da matéria de facto constitui um dever da Relação a ser exercido sempre que a reapreciação dos meios de prova (sujeitos à livre apreciação do tribunal) determine um resultado diverso daquele que foi declarado na 1.ª instância” [Recursos no Novo Código de Processo Civil, Almedina, Coimbra, 2013, p. 221/222].
O mesmo autor, após observar que a possibilidade de alteração da matéria de facto deixou de ter carácter excepcional, acabando “por ser assumida como uma função normal do Tribunal da Relação, verificados os requisitos que a lei consagra”, logo prossegue advertindo que “Nesta operação foram recusadas soluções que pudessem reconduzir-nos a uma repetição do julgamento, tal como foi rejeitada a admissibilidade de recursos genéricos contra a errada decisão da matéria de facto, tendo o legislador optado por abrir apenas a possibilidade de revisão de concretas questões de facto controvertidas relativamente às quais sejam manifestadas e concretizadas divergências pelo recorrente“ [Op. cit., p. 123/124].
Pretendendo a parte impugnar a decisão sobre a matéria de facto, deve observar os ónus de impugnação indicados no art.º 640.º do CPC, ou seja, é-lhe exigível a especificação obrigatória, sob pena de rejeição, dos pontos mencionados no n.º1 e n.º2, enunciando-os na motivação de recurso, nomeadamente os seguintes:
- Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;
- Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;
- A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.
- Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, a indicação com exactidão das passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes.
No que concerne ao que se deve exigir nas conclusões de recurso quando está em causa a impugnação da matéria de facto, sendo estas não apenas a súmula dos fundamentos aduzidos nas alegações, mas atendendo sobretudo à sua função definidora do objeto do recurso e balizadora do âmbito do conhecimento do tribunal, é entendimento pacífico que as mesmas devem conter, sob pena de rejeição do recurso, pelo menos uma síntese do que consta nas alegações da qual conste necessariamente a indicação dos concretos pontos de facto cuja alteração se pretende e o sentido e termos dessa alteração [cfr. Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça: de 23-02-2010, Proc.º 1718/07.2TVLSB.L1.S1, Conselheiro FONSECA RAMOS; de 04/03/2015, Proc.º 2180/09.0TTLSB.L1.S2, Conselheiro ANTÓNIO LEONES DANTAS; de 19/02/2015, Proc.º 299/05.6TBMGD.P2.S1, Conselheiro TOMÉ GOMES; de 12-05-2016, Proc.º 324/10.9TTALM.L1.S1, Conselheira ANA LUÍSA GERALDES; de 27/10/2016, Proc.º 110/08.6TTGDM.P2.S1, Conselheiro RIBEIRO CARDOSO; e, de 03/11/2016, Proc.º 342/14.8TTLSB.L1.S1, Conselheiro GONÇALVES ROCHA (todos eles disponíveis em www.dgsi.pt)].
Para além disso, exige-se também que o recorrente fundamente “em termos concludentes, as razões da sua discordância, concretizando e apreciando criticamente os meios probatórios constantes dos autos ou da gravação que, no seu entender, impliquem uma decisão diversa” [cfr. Ac. STJ de 01-10-2015, Proc.º n.º 824/11.3TTLRS.L1.S1, Conselheira Ana Luísa Geraldes, disponível em www.dgsi.pt].
É também entendimento pacífico da jurisprudência dos tribunais superiores, mormente do STJ, que o recorrente não cumpre o ónus de especificação imposto no art.º 640º, nº 1, al b), do CPC, quando procede a uma mera indicação genérica da prova que, na sua perspetiva, justifica uma decisão diversa daquela a que chegou o Tribunal de 1.ª Instância, em relação a um conjunto de factos, sem especificar quais as provas produzidas quanto a cada um dos factos que, por as ter como incorretamente apreciadas, imporiam decisão diversa, fazendo a apreciação crítica das mesmas. Nesse sentido, acompanhando o entendimento afirmado nos acórdãos do STJ de 20-12-2017 e 5-09-2018 [respectivamente, nos processos n.ºs 299/13.2TTVRL.C1.S2 e 15787/15.8T8PRT.P1.S2, disponíveis em www.dgsi.pt], no acórdão de 20-02-2019, daquela mesma instância [proc.º 1338/15.8T8PNF.P1.S2, Conselheiro Chambel Mourisco, disponível em www.dgsi.pt], consignou-se no respectivo sumário o seguinte:
- I. O artigo 640.º, n.º 1, alínea b), do Código de Processo Civil estabelece que se especifique os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida, e determina que essa concretização seja feita relativamente a cada um daqueles factos e com indicação dos respetivos meios de prova, e quando gravados com a indicação exata das passagens da gravação em que se funda o recurso.
II - Não cumpre aquele ónus o apelante que nas alegações não especificou os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, relativamente a cada um dos factos concretos cuja decisão impugna, antes se limitando a proceder a uma indicação genérica e em bloco, para aquele conjunto de factos.
Ainda a este propósito, o recente Acórdão do STJ de 06-07-2022 [Proc.º 3683/20.1T8VNG.P1.S1, Conselheiro Mário Belo Morgado, disponível em www.dgsi.pt], após enunciar a “jurisprudência do STJ, norteada por critérios de proporcionalidade e de razoabilidade e rejeitando abordagens desta problemática de raiz essencialmente formal” – como nele se refere, consolidada, entre outros, nos acórdãos de 13.01.2022 [Proc. nº 417/18.4T8PNF.P1.S1], 27.10.2021 [Proc. n.º 1372/19.9T8VFR.P1-A.S1], de 14.07.2021 [Proc. n.º 19035/17.8T8PRT.P1.S1], de 19-05-2021 [Proc. n.º 4925/17.6T8OAZ.P1.S1] e de 14.01.2021 [Proc. nº 1121/13.5TVLSB.L2.S1] – sintetiza no respectivo sumário o entendimento seguinte:
I - As implicações das falhas evidenciadas no plano do cumprimento dos ónus de alegação previstos no art. 640.º, do CPC, avaliam-se em função das circunstâncias de cada caso concreto, tendo em conta, nomeadamente, o número de factos impugnados, o número e a conexão existente entre os factos integrantes de cada “bloco”, o número e a extensão dos meios de prova, a maior ou menor precisão na indicação dos meios de prova e na formulação das pretendidas alternativas decisórias e o grau de clareza com que tenham sido expostas as razões subjacentes ao peticionado, razões que devem ser nitidamente percecionáveis, pois não é suposto que o tribunal da Relação se dedique à descoberta de motivos e raciocínio não explicitados claramente.
II - Impugnar uma decisão significa refutar as premissas e os motivos que lhe subjazem, contrapondo-lhe um pensamento (racionalidade) alternativo, que não dispensa a justificação das afirmações e a expressão de argumentos (tendentes a demonstrar a bondade dos motivos apresentados como sendo “bons motivos”).
III - Independentemente das exigências especificamente contidas no art. 640.º, do CPC, o recorrente – em qualquer recurso – não pode dispensar-se de claramente explicitar os “fundamentos por que pede a alteração ou anulação da decisão” (art. 639.º, n.º 1, do mesmo diploma), resultando da articulação destas disposições legais que o recorrente é onerado com imposições (de motivação) situadas em dois planos que, sendo complementares, têm natureza diversa: i) por um lado, impõe-se-lhe a precisa delimitação do objeto do recurso; ii) por outro lado, exige-se-lhe a efetiva e clara compreensibilidade das razões em que assenta o recurso, por forma a que na sua apreciação o tribunal não se confronte com dificuldades desmesuradas, nem demore tempo excessivo.
Para encerrar estas notas, acresce dizer, que conforme o Supremo Tribunal de Justiça tem entendido, quando o recorrente não cumpra o ónus imposto no art.º 640.º do Código de Processo Civil não há lugar ao convite ao aperfeiçoamento, que está reservado para os recursos da matéria de direito [Cfr. acórdãos de 7-7-2016, processo n.º 220/13.8TTBCL.G1.S1, Conselheiro Gonçalves Rocha; e, de 27-10-2016, processo n.º 110/08.6TTGDM.P2.S1, Conselheiro Ribeiro Cardoso; (ambos disponíveis em www.dgsi.pt)].
Atentos os princípios enunciados, verifica-se que a recorrente cumpriu os ónus de impugnação, quer quanto ao que se entende necessário contar das conclusões, quer no que respeita às demais indicações que devem constar das alegações, nada obstando à apreciação do recurso nesta vertente.
II.2.1 Factos não provados 5 e 6
Alega a recorrente que deveriam ter sido considerados provados os factos não provados 5 e 6.
Na fundamentação da decisão recorrida, o Tribunal a quo refere que “[..] não foi feita qualquer prova sobre a factualidade que consta dos factos não provados em 5 e 6”.
No facto não provado 5, consta o seguinte:
- O trabalhador, tendo em conta os consumos médios do carro da gama igual à que tinha (6,5/100 km), terá gasto € 3.118,41 em gasolina.
Quanto às provas para sustentar a pretendida alteração deste facto, a recorrente refere o seguinte:
a) Documento 13 junto com a contestação da R. do qual resulta o preço médio da gasolina;
b) Documentos 8 a 12 juntos com a contestação: recibos de vencimento dos quais resultam os quilómetros realizados pelo A. nos respectivos anos;
c) Facto provado 20): “A que corresponde uma média de 32.198,3 quilómetros anuais”.
Alega que se resultou provado que o A. fazia uma média de 32.198,3 quilómetros por ano, então resulta do mero cálculo aritmético que, ao preço médio da gasolina indicado no Documento 13 junto, terá gasto €3.118,41 em gasolina.
Contrapõe o recorrido que os documentos juntos sob os n.ºs 8 a 13 com a Contestação, que serviram de apoio para os itens 19) e 21) dos factos provados, são manifestamente insuficientes para dar o referido facto como provado. O facto provado 20 resultou dos documentos a que no mesmo se alude - 8 a 12 juntos com a Contestação -, recibos de vencimento dos quais resultam os quilómetros realizados pelo A. no período compreendido entre 2016 e 2020, em serviço da Ré. A média de 32.198,3 quilómetros anuais corresponde aos quilómetros percorridos pelo Recorrido ao serviço da Recorrente, depois da alteração de regime para mapa de quilómetros (€0,36/km). Mas não resultou provada a média anual dos quilómetros percorridos pelo Recorrido na sua esfera pessoal, que é particularmente relevante para o caso.
Conclui, que não se trata de um simples cálculo aritmético apurar quanto é que gastou em gasolina anualmente, atento o que ficou provado nos factos 7 a 10. Desconhecendo-se a totalidade dos quilómetros que percorreu em cada um destes anos, nos quais se incluem as deslocações realizadas nas viagens pessoais, não é possível obter o valor total gasto em combustível, nem considerar provado que, tendo em conta os consumos médios do carro da gama igual à que tinha (6,5/100 km), terá gasto €3.118,41 em gasolina. Por isso foi o facto 5 julgado não provado.
Há que reconhecer razão ao recorrido. Dos factos 7 a 12, resulta que este, desde a sua admissão em 6/01/2000, até 30 de Junho de 2016, tinha atribuída viatura da Ré para uso profissional e pessoal, neste caso sem restrições, pois abrangia dias úteis, fins-de emana, feriados e férias, durante 34 horas dia, suportando a Ré todos os encargos da manutenção, combustível, via verde, seguros e impostos. Vale isto por dizer, que esse uso irrestrito e a expensas da Ré, traduzia-se numa vantagem económica para o recorrido autor.
Após 30 de Junho de 2016, com o esquema acordado – “a Ré propôs ao Autor que este adquirisse, a suas expensas, viatura própria, comprometendo-se, em contrapartida, a pagar um subsídio de transporte mensal no valor de €365,00 e o valor de €0,36 por quilómetro percorrido em serviço” – passaram a ser contabilizados os quilómetros percorridos em serviço, numa média de 32.198,3 quilómetros anuais [facto 20]. Encontrar o valor médio de combustível/gasolina gasto para os percorrer e o correspondente valor médio do custo total passa de facto por um cálculo aritmético, mas a ser efectuado desse modo, o resultado obtido não corresponde ao valor real gasto pelo recorrente, já que como este assinala não inclui um factor essencial, qual seja, os quilómetros percorridos em uso meramente pessoal, que a ser considerado levaria necessariamente a um valor mais elevado que aquele que se pretende provado através do facto 5.
Vale isto por dizer, que a acolher-se a pretensão da recorrente, estar-se-ia a incorrer num erro de raciocínio.
Avançando para o facto não provado 6, o seu conteúdo é o seguinte:
- Se acrescermos a esse custo as despesas de manutenção, seguro, IUC e portagens, concluímos que o trabalhador teria um custo anual médio de €4.899,01.
Alega a recorrente o seguinte:
-«Relativamente a este ponto, as concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida, são as seguintes:
a) Documentos 2 a 6 juntos com a contestação da R., dos quais resulta que os custos com a manutenção, seguro, IUC e portagens eram os seguintes:
Manutenção/reparações: €1.321,30;
Seguro: €298,51;
Portagens: €40,35;
IUC: 120,44;
b) Facto provado 17): “Utilizando como exemplo o ano de 2015, por ser o último ano completo antes da alteração de regime, os custos da Ré com o veículo de serviço do Autor foram os seguintes:
- Combustível: €3.045,21;
- Manutenção/reparações: €1.321,30;
- Seguro: €298,51;
- Portagens: €40,35; - IUC:120,44;
- TOTAL: €4.825,81 (cfr. docs. 2 a 6 juntos com a contestação aqui dados por reproduzidos para todos os efeitos legais)”.
Assim, resulta também do mero cálculo aritmético que o A. teria um custo anual médio de €4.899,01 com o automóvel (€3.118,41 com gasolina, €1.321,30 com manutenção/reparações, €298,51 com o seguro, €40,35 com portagens e €120,44 com o IUC)».
Contrapõe o recorrido, que os documentos invocados são insuficientes para dar o facto como provado, assim como o é a invocação do facto provado 17. Este resultou provado por via daqueles documentos, reportando-se os seus valores ao ano de 2015, antes da alteração do regime que resulta dos factos provados 7 a 10, dos quais resulta que tinha direito ao uso pessoal irrestrito da viatura atribuída pela Ré, suportando esta todos os custos.
Prossegue, referindo que a recorrente pretende extrair ilações relativamente ao período posterior, em Junho de 2016, ou seja, como provado em 11, após lhe ter proposto que adquirisse a suas expensas, viatura própria, comprometendo-se, em contrapartida, a pagar um subsídio de transporte mensal no valor de €365,00 e o valor de €0,36 por quilómetro percorrido em serviço. Assim atentas as distintas situações, é inviável ter como ponto de partida os elementos constantes do facto 17, para estimar os custos suportados por si depois de Junho de 2016, com a viatura que adquiriu a suas expensas. Por outro lado, não tendo resultado provado o facto não provado em 5), também a prova do facto não provado 6) fica comprometida, porquanto o custo anual médio de €4.899,01 com automóvel que pretende ver provado está alicerçado num consumo anual médio de combustível de €3.118,41. Diz, acrescer ainda, não ter resultado provado os custos suportados por si com a aquisição do veículo, via verde, manutenção, limitando-se a Recorrente a fazer uma extrapolação.
Diremos, desde já, que também aqui tem razão o Recorrido, sendo inteiramente pertinentes os argumentos que usa. Desde logo, não se provando o ponto 5 dos factos não provados, falta uma das bases para dar como provado o que se considerou não provado no ponto 6.
Mas para além disso, pelas razões que já explicámos na apreciação anterior, os elementos constantes do ponto 17 respeitam a uma realidade que não é idêntica à que passou a existir a partir de 30 de Junho de 2016, não podendo por isso servir de base para fazer uma projecção e concluir que acrescentando ao valor do facto 5 não provado “as despesas de manutenção, seguro, IUC e portagens, concluímos que o trabalhador teria um custo anual médio de €4.899,01”. Tratando-se de veículos de gama diferente – [22] O veículo que o Autor conduzia antes, propriedade da Ré, custou, novo, €12.466,61 à Ré; [23] O veículo que o Autor comprou tem um custo a partir de €25.750,00 – os valores de manutenção, seguro e IUC são previsivelmente diferentes, sendo de crer serem superiores os que se reportam ao veículo adquirido pelo autor.
Assim sendo, também quanto a este ponto improcede a impugnação.

II.2.2 Factos alegados e não provados
Discorda a recorrente da decisão sobre a matéria de facto, em razão do Tribunal a quo não ter considerado provado o que alegou na contestação sob os artigos 17, 51, 52, 157 e 158 [conclusões 2 e 3].
No art.º 17 da contestação, consta o seguinte: “É verdade que, por uma questão de facilidade e disponibilidade de horários de cada um, a R. tolera que alguns trabalhadores levem o veículo para casa”.
Para justificar a pretendida alteração, a recorrente alega o que segue:
«a) Tal facto não foi expressamente impugnado pelo A. motivo pelo qual deveria ter sido considerado provado por confissão.
b) Depoimento de parte do A., cujas passagens concretas em que se funda a impugnação se transcrevem (minutos/segundos: 00.05.27 até 00.05.58):
(Sra. Dra. Juiz): O Sr. não levaria a viatura para casa por ser conveniente para a B..., porque às vezes podia já precisar de ir visitar clientes fora de horas…ou visitar clientes ao fim de semana.
(A.): Sra. Dra., é assim.. Havia tolerância… Era… Era entregue para todo o uso, tipo de trabalho. Mesmo que eu fosse fora de horas tinha a viatura para ir, mesmo que não fosse também tinha sempre a viatura. A viatura estava sempre comigo».
Contrapõe o recorrido, que em termos processuais não poderia impugnar aquela alegação na contestação. Por outro lado, está provado o que consta dos 7 a 10.
Acresce que no seu depoimento infirmou que o uso que fazia do veículo decorresse da mera tolerância da Ré, não havendo prova daquela alegação, muito menos confissão sua.
Apreciando, começaremos por dizer, desde já, que não vimos qual a utilidade da impugnação da matéria de facto quanto ao alegado no art.º 17.º da contestação, face ao que consta provado s nos pontos 7 a 10 da matéria de facto assente, quando estes nem sequer foram impugnados. Não se percebe, pois, qual o raciocínio ou real propósito da recorrente.
Seja como for, a pretensão não pode ser acolhida.
Nos autos, como ponto de partida fulcral, está em causa saber se o autor tinha atribuído veículo para uso pessoal irrestrito, se tal era contrapartida da prestação da sua actividade e, logo, integrava a sua retribuição. O percurso seguinte para apreciar se assiste ao autor o direito reclamado na acção, pressupõe aquela alegação e demonstração.
Precisamente por isso o A. procedeu a essa alegação e logrou fazer prova do que consta nos factos 7 a 10, nomeadamente:
7. O Autor estava autorizado a usar o veículo irrestritamente, para além do horário de trabalho, nomeadamente, aos fins-de-semana, feriados e férias, como nos dias úteis, fora do horário de trabalho.
8. O Autor, desde 6/01/2000, passou a utilizar a viatura que lhe foi atribuída pela Ré, de forma regular e reiterada, quer para uso profissional, quer para uso pessoal, suportando esta, em exclusivo, as despesas associadas à utilização da mesma.
9. Todas as despesas associadas ao uso e manutenção da mesma viatura, inclusivamente as de combustível e via verde de viagens pessoais do Autor eram suportadas ou estavam a cargo da Ré.
10. Desde a data da sua admissão, em 6/01/2000, até 30 de junho de 2016, a Ré sempre proporcionou ao Autor um veículo ligeiro de passageiros para seu uso exclusivo, quer fosse na atividade profissional, quer fosse na sua vida privada, 24 horas por dia, feriados, folgas semanais, férias e qualquer outra ausência ao serviço, suportando a Ré, em exclusivo, todos os encargos da manutenção, combustível, via verde, seguros e impostos.
Sobre esta matéria, o tribunal a quo pronunciou-se como segue:
«Os factos provados em 7 a 10 resultam do depoimento de parte do legal representante da Ré, BB, que confirmou que os vendedores utilizam as viaturas no fim-de-semana e férias, sendo todos os custos suportados pela Ré, referindo que nunca fizeram controle de combustível ou portagens. Também as testemunhas CC, que foi comercial da Ré até 14/02/2018, e a testemunha DD, que foi
administrador delegado e diretor adjunto da Ré, confirmaram que a atribuição das viaturas
aos vendedores era para uso total e irrestrito, sendo todos os custos suportados pela Ré».
Na contestação a R. impugnou esses factos, e veio contrapor, no essencial:
17. É verdade que, por uma questão de facilidade e disponibilidade de horários de cada um, a R. tolera que alguns trabalhadores levem o veículo para casa.
18. Uma vez que, trabalhadores como o A., por vezes visitam clientes ao final do dia e logo no início do seguinte.
19. Por outro lado, é mentira que seja permitido o uso de veículo para fins particulares.
20. Nomeadamente para utilização em férias.
Vejamos.
Em primeiro lugar, como observa o recorrido, processualmente não poderia impugnar esse facto alegado na contestação, dado não se tratar de defesa por excepção, mas antes por impugnação. Conforme decorre do art.º 60.º do CPT, à defesa apresentada na contestação apenas pode haver resposta quanto à que consubstancie matéria de excepção, caso em que a resposta terá lugar na audiência prévia, ou não havendo lugar a ela, no início da audiência final [art.º 60.º n.º 5, CPT]. Ou seja, à matéria da contestação que consista em defesa por impugnação, não pode o autor responder. Não tem, pois, qualquer cabimento pretender a Recorrente que se dê como provada essa alegação por não ter sido impugnada.
Em segundo ligar, se a versão do Autor resultou provada - com base naqueles meios de prova -, não impugnando a recorrente essa matéria – factos 7 a 10 acima transcritos -, seria contraditório dar-se agora como demonstrado o que alegou em 17 da contestação, que embora aí se mencionando “alguns trabalhadores”, tinha por finalidade abranger o autor, ou seja, visava significar que contrariamente ao que aquele alegou, antes usaria o veículo por mera tolerância, naquelas circunstâncias e por aquelas razões.
Por outro lado, o breve extracto do depoimento de parte do autor que a recorrente invoca não pode ser visto isoladamente, ou seja, sem atender a todo o depoimento no seu conjunto, bem como à demais prova, designadamente, à referida pelo Tribunal a quo, onde se inclui o depoimento de parte do legal representante da Ré. Daí que, se porventura a Recorrente pretende sugerir que o autor confessou que apenas usava o veículo por mera tolerância, essa leitura não tem cabimento, não bastando para a sustentar o simples facto deste ter utilizado a expressão “tolerância”.
Na verdade, como o recorrido vem assinalar, no seu depoimento de parte, nomeadamente, no que a esse ponto concerne, declarou ainda, que levava a viatura para casa diariamente, inclusive ao fim de semana, nas férias, folgas e feriados, esclarecendo que “ quando... quando entrei na B..., foi precisamente nesse sentido: o... a viatura era para todo o serviço e tempo ilimitado de quilómetros e ilimitado de tudo, Sra. Dra. Juíza. [..] Nas férias e tudo.[..] a viatura estava sempre comigo. [..]foi acordado de início...Foi sempre assim”. O gasóleo e portagens, incluindo fins de semana e férias, era pago “ pela B...”. “Com essa viatura, cheguei a ir ao Algarve de férias... e para outros lados, para onde quer que me deslocasse.” Também estava tudo incluído [gasóleo e portagens, estas quando as apresentava]. “Foi assim o acordo que foi feito comigo no início, tinha gasolina, tinha... portagens pagas, tinha tudo. Foi assim que foi quando eu entrei para a firma”.
Assim, nesta parte improcede a impugnação.
Avançando para os artigos 51 e 52, da contestação, neles consta o seguinte:
51. “Sobrando-lhe”, pagas as despesas acima descritas, a módica quantia de €6.692,38 por ano.
52. Ou seja, a quantia de 557,70 por mês.
A recorrente indica os meios de prova [quanto ao depoimento de parte do A. precisa os tempos de gravação] e alega o seguinte:
a) Documentos 2 a 6 juntos com a contestação da R., dos quais resulta que os custos com a manutenção, seguro, IUC e portagens eram os seguintes:
Manutenção/reparações: €1.321,30;
Seguro: €298,51;
Portagens: €40,35;
IUC: 120,44;
b) Facto provado 17): “Utilizando como exemplo o ano de 2015, por ser o último ano completo antes da alteração de regime, os custos da Ré com o veículo de serviço do Autor foram os seguintes:
- Combustível: €3.045,21;
- Manutenção/reparações: €1.321,30;
- Seguro: €298,51;
- Portagens: €40,35; - IUC:120,44;
- TOTAL: €4.825,81 (cfr. docs. 2 a 6 juntos com a contestação aqui dados por reproduzidos para todos os efeitos legais)”.
c) Documento 13 junto com a contestação da R., do qual resulta o preço médio da gasolina;
d) Documentos 8 a 12 juntos com a contestação: recibos de vencimento dos quais resultam os quilómetros realizados pelo A. nos respectivos anos;
e) Facto provado 20): “A que corresponde uma média de 32.198,3 quilómetros anuais”.
f) Depoimento de parte do A., cujas passagens concretas em que se funda a impugnação se transcrevem: [..].
Das passagens invocadas retira-se que o Autor declarou, no essencial o seguinte:
- Recebia pelos km percorridos “À volta de €1.000,00, por aí… €900,00”;
- Umas semanas fazia mais Km outras menos, fazendo cerca de “3.000 kms por mês, por aí… [e por ano ] “…32, 33 mil… à volta disso”.
- Pagava 500 € mensais pelo renting da viatura que adquiriu, estando incluindo nesse valor “a manutenção da viatura e qualquer avaria, dentro de 2 anos na garantia, [..]; “O IUC também fazia parte”; [o seguro] Também fazia parte. [..] Do renting.
Conclui a recorrente, defendendo que da análise desses elementos probatórios e do mero cálculo aritmético, resulta que pagas as despesas que o A. tinha mensalmente com a aquisição de veículo próprio (€500,00 com o renting), lhe sobrava a quantia anual de €6.692,38.
Contrapõe o recorrido, no essencial, que a introdução deste facto na matéria dada como assente está condenada ao fracasso perante a improcedência da impugnação da impugnação dos pontos 5) e 6) não provados, porquanto o cálculo feito pela Ré é obtido com base no referido nesses pontos, como se constata face ao conteúdo dos arts. 47.º e 48.º da contestação.
Passando à apreciação. Diga-se, desde já, que os artigos 51.º e 52.º da contestação consistem em meras afirmações conclusivas, extraídas pela Ré do alegado nos artigos imediatamente precedentes, nomeadamente nos seguintes:
39. Olhemos, antes de mais, para a situação anterior a esta alteração.
40. Utilizando, como exemplo, o ano de 2015, por ser o último ano completo antes da alteração de regime, poderemos verificar que os custos da R. com o veículo de serviço do A. foram os seguintes:
Combustível: €3.045,21;
Manutenção/reparações: €1.321,30;
Seguro: €298,51;
Portagens: €40,35;
IUC: 120,44;
TOTAL: €4.825,81 – Docs. 2 a 6
41. O Carro era da R., já amortizado desde 2011 - Doc. 7.
42. Ou seja, o custo anual do veículo de serviço do A. era de €4.825,81, tendo sido aproximadamente de €7.942,46 nos quatro anos em que foi amortizado.
43. Por outro lado, depois da alteração de regime para mapa de quilómetros (€0,36/km), o A. passou a receber o seguinte:
2016 (jul a dez): €4.702,96 – Doc. 8;
2017: €11.371,50– Doc. 9;
2018: €11.863,80– Doc. 10;
2019: €11.538,88– Doc. 11;
2020 (jan a Out): €9.849,24 – Doc. 12;
44. Ou seja, a média dos anos completos foi de: €11.591,39.
45. A que corresponde uma média de 32.198,3 quilómetros anuais.
46. O preço médio da gasolina desde 2016 até 2020 foi de €1.49 – Doc. 13.
47. O que faz com que o trabalhador, tendo em conta os consumos médios do carro da gama igual á que tinha (6,5/100 km), terá gasto €3.118,41 em gasolina.
48. Ora, se acrescermos a esse custo as despesas de manutenção, seguro, IUC e portagens, concluímos que o trabalhador teria um custo anual médio de €4.899,01.
49. Recebendo, como vimos, o valor anual médio de €11.591,39.
50. Com as mesmas responsabilidades, funções e, em média, os mesmos quilómetros
percorridos.
Atento o conteúdo destes artigos, percebe-se que o alegado nos artigos art.ºs 51º e 52º, que a recorrente quer ver provados, está dependente da matéria não provada dos pontos 5 e 6, cuja impugnação acima apreciámos e considerámos improcedente.
A impugnação nesta parte improcede por duas razões.
Por um lado, os artigos 51.º e 52º não contêm alegações de factos concretos, mas antes conclusões como decorrência do alegado nos artigos anteriores. Tratando-se de meras alegações conclusivas, não podem dar-se como provadas. Conforme é entendimento pacífico da jurisprudência dos tribunais superiores, mormente do Supremo Tribunal de Justiça, as conclusões apenas podem extrair-se de factos materiais, concretos e precisos que tenham sido alegados, sobre os quais tenha recaído prova que suporte o sentido dessas alegações, sendo esse juízo conclusivo formulado a jusante, na sentença, onde cabe fazer a apreciação crítica da matéria de facto provada. Dito de outro modo, só os factos materiais são susceptíveis de prova e, como tal, podem considerar-se provados. As conclusões, envolvam elas juízos valorativos ou um juízo jurídico, devem decorrer dos factos provados, não podendo elas mesmas serem objecto de prova [cfr. Acórdão de 23.9.2009, Proc. n.º 238/06.7TTBGR.S1, Bravo Serra; e, mais recentemente, reiterando igual entendimento jurisprudencial: de 19.4.2012, Proc.º 30/08.4TTLSB.L1.S1, Pinto Hespanhol; de 23/05/2012, proc.º 240/10.4TTLMG.P1.S1, Sampaio Gomes; de 29/04/2015, Proc .º 306/12.6TTCVL.C1.S1, Fernandes da Silva; de 14/01/2015, Proc.º 488/11.4TTVFR.P1.S1, Fernandes da Silva; 14/01/2015, Proc.º 497/12.6TTVRL.P1.S1, Pinto Hespanhol; todos disponíveis em http://www.dgsi.pt/jstj].
Assim, as afirmações de natureza conclusiva devem ser excluídas do elenco factual a considerar, se integrarem o thema decidendum, entendendo-se como tal o conjunto de questões de natureza jurídica que integram o objeto do processo a decidir, no fundo, a componente jurídica que suporta a decisão. Daí que, sempre que um ponto da matéria de facto integre uma afirmação ou valoração de factos que se insira na análise das questões jurídicas a decidir, comportando uma resposta, ou componente de resposta àquelas questões, tal ponto da matéria de facto deve ser eliminado [Ac. STJ de 28-01-2016, Proc. nº 1715/12.6TTPRT.P1.S1, Conselheiro António Leones Dantas, www.dgsi.pt.].
Significando isto, que quando tal não tenha sido observado pelo tribunal a quo e este se tenha pronunciado sobre afirmações conclusivas, deve tal pronúncia ter-se por não escrita. E, pela mesma ordem de razões, que deve ser desconsiderado um facto controvertido cuja enunciação se revele conclusiva, desde que o mesmo se reconduza ao thema decidendum, não podendo esquecer-se que o juiz só pode servir-se dos factos alegados pelas partes e que “Às partes cabe alegar os factos essenciais que constituem a causa de pedir (..)” [art.º 5.º 1 do CPC].
O que importaria à recorrente provar eram alegações factuais que permitissem extrair depois, a jusante, na sentença, essas conclusões.
Por outro lado, tendo claudicado a impugnação quanto aos pontos não provados 5 e 6, em termos lógicos não pode também aqui proceder a impugnação quanto a estes artigos, por dependente da prova daqueles.
Assim, também nesta parte improcede a impugnação.
Seguimos para os artigos 157 e 158 da contestação, onde a Ré, agora recorrente, alegou o seguinte:
157. E baseia o seu pedido única e exclusivamente na garantia da MANUTENÇÃO DAS CONDIÇÕES.
158. Nunca em alegadas melhorias contratuais.
A recorrente alega e invoca os meios de prova seguintes:
a) Tal facto não foi expressamente impugnado pelo A. motivo pelo qual deveria ter sido considerado provado por confissão.
f) Depoimento de parte do A., cujas passagens concretas em que se funda a impugnação se transcrevem:
(Advogado da R.): Em algum momento alguém lhe propôs uma melhoria contratual, alguma promoção, algum aumento?
(A.): Sr. Dr., é assim. A mim foi-me feita uma proposta inicialmente. Eu aceitei essa proposta. Não houve mais conversação disso. Foi assunto que ficou fechado.
(Advogado da R.): A proposta era para deixar de utilizar o carro da empresa e passar a usar um carro seu.
(A.): Foi o que aconteceu. Deixei de usar o carro da empresa e passei a usar um carro meu
(Advogado da R.): E isso foi na sequência de alguma promoção, alguma melhoria, ou foi só para manter o estado das coisas, simplesmente trocava o carro da empresa por um seu?
(A.): A B... é que devia de dizer, Sr. Dr… Eu não sei se interessava à B... ser assim, por forma a que propôs a proposta a mim e aos meus colegas, é porque tinha interesse para a B..., devia ter algum interesse…
Contrapõe o recorrido, que também aqui não vê como poderia processualmente impugnar essas alegações da contestação. Acrescenta, que essas alegações são manifestamente irrelevantes para a decisão da causa.
Pois bem, como já deixámos explicado acima, o recorrido autor não poderia impugnar essas alegações da contestação, dado não consistirem defesa por excepção, mas antes por impugnação. Repetindo, conforme decorre do art.º 60.º CPT, à matéria da contestação que consista em defesa por impugnação, não pode o autor responder. À defesa apresentada na contestação apenas pode haver resposta quanto à que consubstancie defesa por excepção, caso em que o exercício do contraditório terá lugar na audiência prévia, ou não havendo lugar a ela, no início da audiência final [art.º 60.º n.º 5, CPT]. Assim, também aqui, não tem qualquer cabimento pretender a Recorrente que se dê como provadas estas alegações por não terem sido impugnadas.
Acresce, mais uma vez, que qualquer um destes artigos contêm alegações meramente conclusivas, que ademais nem sequer fazem sentido se vistas isoladamente. Elas surgem na contestação como decorrência da posição defendida pela recorrente na contestação, para além do mais, nos artigos 151 e seguintes, alegando, no essencial, que com o pagamento ao quilómetro o autor ficou beneficiado em termos retributivos e que nunca foi acordado ou sequer abordado o pagamento de € 365,00 mensais, o qual apenas foi efectuado temporariamente por lapso.
No que concerne a alegações conclusivas e insusceptibilidade de serem objecto de prova, valem aqui por inteiro as considerações deixadas no ponto antecedente. Para além disso, assinala-se que os factos alegados pela Recorrente para suportar estas conclusões nem tão pouco resultaram provados e não foram impugnados – cfr. pontos não provados 2 a 4 -, antes estando demonstrado – e sem que também tenha tal sido impugnado - [11] Em junho de 2016, quando já se mostrava necessário substituir a viatura Citroen .. com matricula ..-FG-.., que à data estava atribuída ao Autor, a Ré propôs ao Autor que este adquirisse, a suas expensas, viatura própria, comprometendo-se, em contrapartida, a pagar um subsídio de transporte mensal no valor de €365,00 e o valor de €0,36 por quilómetro percorrido em serviço”.
Por conseguinte, sem necessidade de outras considerações, improcede esta derradeira parte da impugnação da decisão sobre a matéria de facto.

II.3 MOTIVAÇÃO DE DIREITO
A recorrente impugna a sentença, alegando que mesmo que não proceda a impugnação da matéria de facto, o Tribunal a quo errou na aplicação do direito, violando o disposto nos arts. 129.º e 258.º, do Código do Trabalho.
Sobre esta questão, o Tribunal a quo pronunciou-se como segue:
A questão essencial a decidir nos autos diz respeito a apreciar se a falta de pagamento do subsídio de transporte ao Autor, no valor de €365,00, a partir de janeiro de 2017, consubstancia uma diminuição da retribuição do Autor por este não consentida e, porisso, ilícita.
*
A questão essencial a decidir supra enunciada pressupõe a apreciação do carácter retributivo, ou não, da atribuição de viatura ao Autor, pela sua entidade empregadora, aqui Ré, e que aquele subsidio se destinaria a substituir, concomitantemente com o pagamento dos quilómetros percorridos.
Da factualidade provada nos autos resulta que, desde o início do contrato de trabalho (06/01/2000), a Ré atribuiu ao Autor, para o exercício das suas funções, um veículo ligeiro de passageiros, estando o Autor autorizado a usar o veículo irrestritamente, para além do horário de trabalho, nomeadamente, aos fins-de-semana, feriados e férias, como nos dias úteis, fora do horário de trabalho. Todas as despesas associadas ao uso e manutenção da mesma viatura, inclusivamente as de combustível e via verde de viagens pessoais do Autor, eram suportadas ou estavam a cargo da Ré.
Em junho de 2016, quando já se mostrava necessário substituir a viatura Citroen .. com matricula ..-FG-.., que à data estava atribuída ao Autor, a Ré propôs ao Autor que este adquirisse, a suas expensas, viatura própria, comprometendo-se, em contrapartida, a pagar um subsídio de transporte mensal no valor de €365,00 e o valor de €0,36 por quilómetro percorrido em serviço. No dia 30/06/2016, o Autor adquiriu a suas expensas a viatura Audi A3 ... com a matrícula ..-RO-.. e só acedeu adquirir a viatura própria perante a condição da Ré proceder ao pagamento do aludido subsídio de transporte mensal no valor de €365,00 e o valor de €0,36 por quilómetro percorrido em serviço. Em janeiro de 2017, a Ré comunicou ao Autor que deixaria de proceder ao pagamento, nesse mês, do subsídio de transporte.
A propósito do conceito de retribuição, à data em que o contrato de trabalho em causa foi celebrado (06/01/2000) vigorava o artigo 82.º do Regime Jurídico do Contrato Individual de Trabalho, anexo ao Decreto-Lei n.º 49.408, de 24 de novembro de 1969 (LCT), que dispunha:
“1. Só se considera retribuição aquilo a que, nos termos do contrato, das normas que o regem ou dos usos, o trabalhador tem direito como contrapartida do seu trabalho.
2. A retribuição compreende a remuneração de base e todas as outras prestações regulares e periódicas feitas, directa ou indirectamente, em dinheiro ou em espécie.
3. Até prova em contrário, presume-se constituir retribuição toda e qualquer prestação da entidade patronal ao trabalhador.”
Entretanto, o Código do Trabalho de 2003, aprovado pela Lei n.º 99/2003 de 27/08, passou a dispor no art.º 249.º:
“1 - Só se considera retribuição aquilo a que, nos termos do contrato, das normas que o regem ou dos usos, o trabalhador tem direito como contrapartida do seu trabalho.
2 - Na contrapartida do trabalho inclui-se a retribuição base e todas as prestações regulares e periódicas feitas, directa ou indirectamente, em dinheiro ou em espécie.
3 - Até prova em contrário, presume-se constituir retribuição toda e qualquer prestação do empregador ao trabalhador.
4 - A qualificação de certa prestação como retribuição, nos termos dos n.os 1 e 2, determina a aplicação dos regimes de garantia e de tutela dos créditos retributivos previstos neste Código.”
Atualmente, dispõe o art.º 258.º do Código do Trabalho aprovado pela Lei n.º 7/2009, de 12 de fevereiro, sob epígrafe “Princípios gerais sobre a retribuição”, que:
“1- Considera-se retribuição a prestação a que, nos termos do contrato, das normas que o regem ou dos usos, o trabalhador tem direito em contrapartida do seu trabalho.
2- A retribuição compreende a retribuição base e outras prestações regulares e periódicas feitas, directa ou indirectamente, em dinheiro ou em espécie.
3- Presume-se constituir retribuição qualquer prestação do empregador ao trabalhador.
(…).
A noção legal de retribuição, conforme se deduz destes preceitos, será o conjunto de valores (pecuniários ou não) que o empregador está obrigado a pagar regular e periodicamente ao trabalhador em razão da atividade por ele desempenhada (ou, mais rigorosamente, da disponibilidade da força de trabalho por ele oferecida)(1).
No artigo 260.º, n.º 1 do atual Código do Trabalho, delimita-se, pela negativa, o conceito de retribuição. Trata-se de prestações que, pese embora verificando-se a regularidade e periodicidade no pagamento, não constituem retribuição, justamente porque têm uma causa distinta da remuneração do trabalho ou da disponibilidade da força de trabalho. Estas importâncias não visam pagar o trabalho ou sequer a disponibilidade para o trabalho e não representam qualquer ganho efetivo do trabalhador, não sendo, por isso, retribuição.
(2) Trata-se, apenas, de ressarcir o trabalhador de despesas que este suporta em virtude da prestação do trabalho. Por isso se compreende a exceção estabelecida na parte final da norma, que confere qualificação retributiva à parte das importâncias em causa que exceda os montantes normais das deslocações ou despesas que visa ressarcir, se aquelas importâncias foram previstas no contrato ou se devam considerar pelos usos como elemento integrante da remuneração do trabalhador.
Assim, provando o trabalhador o pagamento regular de uma determinada prestação, goza da presunção legal de que ela constitui retribuição (art.º 258.º, n.º 3 do CT), cabendo ao empregador ilidir tal presunção (art.º. 350º, nº 1, do Cód. Civil), demonstrando que a atribuição patrimonial por ele feita ao trabalhador constitui têm uma causa distinta da remuneração do trabalho ou da disponibilidade da força de trabalho.
Porque a retribuição é um meio de satisfação de necessidades pessoais e familiares do trabalhador, o legislador confere-lhe uma especial tutela jurídica.(3)
Como refere o Autor, esta tutela jurídica, está acautelada no art.º. 59.º da CRP, onde se garante ao trabalhador o direito “à retribuição do trabalho segundo a quantidade, natureza e qualidade, observando-se o principio de que para trabalho igual salário igual, de forma a garantir uma existência condigna”; e está patente em vários aspetos do ordenamento jurídico, onde se estatui, designadamente, que a retribuição do trabalho é parcialmente impenhorável, nos termos do art.º. 738.º, n.º 1, do CPC; insuscetível de cessão a terceiros na parcela da respetiva indisponibilidade, nos termos do art.º. 280.º do CT; os créditos remuneratórios do trabalhador beneficiam de privilégios creditórios e gozam de proteção acrescida, designadamente quando o empregador esteja inserido numa coligação societária, nos termos dos arts 333.º ss. Do CT; os créditos que o empregador tenha sobre o trabalhador não são compensáveis através da retribuição, nem este pode proceder a descontos na retribuição do trabalhador para se ressarcir diretamente na pendência do contrato de trabalho, a não ser nas situações previstas no art. 279.º n.º 2 do CT e a violação desta norma constitui contra- ordenação muito grave (art. 279.º n.º 5); o prazo de prescrição dos créditos remuneratórios só começa a ser contado a partir do dia seguinte ao da cessação do contrato de trabalho (art.º 337.º); o não pagamento pontual da retribuição na forma devida, além de fazer constituir em mora a entidade empregadora, obrigando-a a indemnizar - cfr. art.º 806.º do CC - consubstancia justa causa para o trabalhador resolver o contrato de trabalho, nos termos prescritos no art.º 394.º, n.ºs 1, 2, al. a), 3, al. c) e 5 do CT, bem como a ser fundamento da suspensão do contrato de trabalho, nos termos do art.º 325.º do CT.
O legislador, no âmbito desta tutela, proíbe o empregador, nos termos do art.º. 129.º, n.º 1, al. d) do CT, de “diminuir a retribuição, salvo nos casos previstos no CT ou em instrumento de regulamentação colectiva de trabalho”.
Assim, é proibido diminuir a retribuição do trabalhador, salvo nos casos previstos no Código do Trabalho (ou em instrumento de regulamentação colectiva de trabalho).(4)
Vejamos, então, se a atribuição de viatura ao Autor, para uso total e irrestrito, incluindo para uso pessoal, desde o início do seu contrato (06/01/2000) até 30/06/2016, suportando a Ré todas as despesas, integra a retribuição do Autor.
A propósito desta questão, seguimos de perto o acórdão do STJ de 20/04/2014 (proc.714/11.00TTPRT.P1.S1) em cujo sumário se refere:
“1. Tendo-se provado que o empregador distribuiu ao trabalhador um veículo ligeiro de passageiros para seu uso exclusivo, ficando todos os encargos, manutenção, seguros, portagens e combustível a cargo daquela e que o trabalhador utilizava a viatura para uso exclusivo, nas deslocações da residência para o local de trabalho, nos fins-de-semana e férias, para efeitos pessoais, a mencionada atribuição de veículo automóvel assume natureza retributiva, estando o empregador vinculado a efectuar, com carácter de obrigatoriedade, essa prestação.
2. Tratando-se de uma prestação em espécie com carácter regular e periódico e um evidente valor patrimonial, que assume natureza de retribuição, beneficia, por isso, da garantia de irredutibilidade, prevista nos artigos 21.º, n.º 1, alínea c), da LCT, 122.º, alínea d), do Código do Trabalho de 2003 e 129.º, alínea d), do Código do Trabalho de 2009.
3. Presumindo-se constituir retribuição toda e qualquer prestação do empregador ao trabalhador, competia ao empregador provar que o uso de veículo automóvel atribuído ao trabalhador se tratava de mera liberalidade ou de um acto de mera tolerância, ónus que não se mostra cumprido.”
Refere-se ainda neste acórdão “Sobre a questão de saber se o uso de veículo automóvel atribuído ao trabalhador pelo empregador tem ou não natureza retributiva, este Supremo Tribunal tem seguido a orientação de que a atribuição de veículo automóvel, com despesas de manutenção a cargo do empregador, para o serviço e uso particular do trabalhador, constitui ou não retribuição, conforme se prove que o empregador ficou vinculado a efectuar essa prestação ou a referida atribuição configura um acto de mera tolerância (cf., sobre esta problemática, o Acórdão, de 5 de Março de 1997, em Colectânea de Jurisprudência, Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, Ano V, tomo I, p. 290, e, ainda, os Acórdãos, de 3 de Maio de 2000, Processo n.º 342/99, de 24 de Outubro de 2001, Processo n.º 3917/2000, de 20 de Fevereiro de 2002, Processo n.º 1963/2001, de 15 de Outubro de 2003, Processo n.º 281/2003, de 19 de Outubro de 2004, Processo n.º 2601/2004, de 21 de Abril de 2010, Processo n.º 2951/04.4TTLSB.S1, e de 27 de Maio de 2010, Processo n.º 684/07.9TTSTB.S1, todos da 4.ª Secção).”
Concluímos, pois, que a atribuição de viatura ao Autor, para uso total e irrestrito incluindo para uso pessoal, desde o início do seu contrato (06/01/2000) até 30/06/2016, suportando a Ré todas as despesas, integrava a retribuição do Autor.
Em junho de 2016, quando já se mostrava necessário substituir a viatura Citroen .. com matricula ..-FG-.., que à data estava atribuída ao Autor, a Ré propôs ao Autor que este adquirisse, a suas expensas, viatura própria, comprometendo-se, em contrapartida, a pagar um subsídio de transporte mensal no valor de €365,00 e o valor de €0,36 por quilómetro percorrido em serviço, tendo procedido ao pagamento daquele subsidio entre julho e dezembro de 2016.
O subsídio de transporte mensal no valor de €365,00 e o valor de €0,36 por quilómetro percorrido em serviço, correspondem à contrapartida, acordada com o Autor, pela utilização, doravante, de viatura própria. Há que concluir, pois, que subsídio de transporte mensal no valor de €365,00 trata-se de prestação substitutiva da retribuição em espécie que até então era paga pela Ré através de atribuição de uma viatura para uso irrestrito, com pagamento de todas as despesas. Nessa medida, tal subsídio fazia parte da retribuição do Autor, garantida pelo princípio da irredutibilidade da retribuição.
Tal significa que a retirada do subsídio de transporte, em janeiro de 2017, por decisão unilateral da Ré, é ilícita, perante o disposto no art. 129.º al. d) do CT, porquanto se traduz numa diminuição da retribuição daquele que a lei proíbe, não se enquadrando em algum dos casos que o Código do Trabalho prevê que possa ocorrer.
Considera a Ré que, caso se entenda que a atribuição do veículo ao Autor se tratava de retribuição, a alteração de regime não consubstanciou uma redução da retribuição, uma vez que o Autor, com a quantia média anual que recebeu depois da alteração de regime para mapa de quilómetros, considerando os custos com a viatura (combustível, despesas de manutenção, seguro, IUC e portagens), ainda saiu beneficiado.
Com o devido respeito por tal opinião, afigura-se que tal situação é manifestamente irrelevante, uma vez que as componentes retributivas do Autor, para vigorar a partir de julho de 2016, foram acordadas entre as partes, como provado, passando a fazer parte da retribuição do Autor o valor de um subsídio mensal no valor de €365,00, em substituição da anterior prestação em espécie consistente na disponibilização de viatura para uso total.
Não poderia, pois, aquele subsidio ser retirado, por decisão unilateral da Ré, o que viola o princípio da irredutibilidade da retribuição previsto no art. 129.º al. d) do CT.
Deve, pois, a Ré ao Autor, a tal título, o valor total de €16.790,00 (€365,00 x 46meses).
[..]».
A recorrente, no essencial, defende que a utilização do veículo para uso pessoal por parte do A. constituía uma mera liberalidade da sua parte, não podendo considerar-se que tal atribuição tem caráter retributivo. Mesmo que assim não se considere, nunca houve um decréscimo da retribuição.
Mais alega, que o alegado subsídio de transporte no valor de € 365,00 que foi pago durante 6 meses ao A., não se trata de retribuição. Não foi acordada como contrapartida da actividade do trabalhador e apenas foi paga durante seis meses, não tendo carácter de regularidade e periodicidade, desconsiderando o conceito de retribuição nos termos da lei (art. 258º do Código do Trabalho).
Alega, ainda, que nos termos da Cláusula 46º n.º 1 da CCT aplicável ao contrato em causa, tal subsídio de transporte é expressamente excluído do conceito de retribuição.
Por último, defende que após Julho de 2016 até à caducidade do contrato de trabalho, o A. nunca recebeu menos a título de retribuição do que aquilo que recebia anteriormente a Julho de 2016.
Contrapõe o recorrido que tal como entendeu o Tribunal a quo a atribuição de viatura para uso pessoal e irrestrito constitui retribuição. O pagamento o pagamento do subsídio de transporte mensal, no valor de €365,00, assumido pela Recorrente, a partir de 01/07/2016, pretendia manter incólume a retribuição do Recorrido, em obediência ao previsto no art. 129.º, al. d) do CT, compensando este pelos custos, que a partir dessa data passou a suportar com a aquisição e utilização da viatura A3 ..., que até essa data sempre foram suportados pela Recorrente. O subsídio de transporte corresponde a uma prestação substitutiva acordada entre as partes da retribuição em espécie que era paga pela Recorrente, que está, desse modo, garantida pelo princípio da irredutibilidade da retribuição.
Refere, ainda, que a tal não obsta disposto na Cláusula 46.ª, n.º 1 da CCT aplicável (Contrato coletivo entre a APEQ - Associação Portuguesa das Empresas Químicas e outras e a Federação de Sindicatos da Indústria, Energia e Transportes - COFESINT e outros - Boletim do Trabalho e Emprego, n.º 43, 22/11/2015), n.º 3, porquanto o subsídio de transporte a que se reportam os autos tem natureza retributiva prevista no n.º 1 da cláusula, correspondendo à prestação substitutiva, acordada entre as partes, da retribuição em espécie paga pela Recorrente, até Junho de 2016, através do seu uso exclusivo das viaturas atribuídas ao Recorrido.
II.3.1 O fulcro da questão prende-se com a noção de retribuição e o princípio da irredutibilidade da retribuição, mostrando-se útil começar por deixar as notas essenciais a esse propósito, ainda que não se logrando evitar repetir alguma da fundamentação do Tribunal a quo, para tanto devendo ter-se presente que a relação laboral entre o autor e a Ré iniciou-se [facto 2] no dia 6/01/2000, ou seja, ainda na vigência do regime jurídico do contrato individual de trabalho, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 49408, de 24 de novembro, usualmente designado por LCT.
Seguiremos de perto a fundamentação constante do acórdão de 8 de Junho de 2022, proferido na apelação n.º 2887/20.1T8PRT.P1 [disponível em www.dgsi.pt], relatado pelo aqui relator e com intervenção deste mesmo colectivo.
A LCT, lei vigente à data da admissão do autor, nos artigos 82.º e seguintes, dispunha:
- Artigo 82.º (Retribuição)
1. Só se considera retribuição aquilo a que, nos termos do contrato, das normas que o regem ou dos usos, o trabalhador tem direito como contrapartida do seu trabalho.
2. A retribuição compreende a remuneração de base e todas as prestações regulares e periódicas feitas, directa ou indirectamente, em dinheiro ou em espécie.
3. Até prova em contrário, presume-se constituir retribuição toda e qualquer prestação da entidade patronal ao trabalhador.
- Artigo 84.º (Retribuição certa e retribuição variável)
1. É certa a retribuição calculada em função do tempo de trabalho.
2. Para determinar o valor da retribuição variável tomar-se-á como tal a média dos valores que o trabalhador recebeu ou tinha direito a receber nos últimos doze meses ou no tempo da execução do contrato, se este tiver durado menos tempo.
3. Se não for praticável o processo estabelecido no número anterior, o cálculo da retribuição variável far-se-á segundo o disposto nas convenções colectivas ou nas portarias de regulamentação de trabalho e, na sua falta, segundo o prudente arbítrio do julgador.
A partir de 1 de Dezembro de 2003, entrou em vigor o Código do Trabalho de 2003, que quanto a esta matéria determinava o seguinte:
Artigo 249º Princípios gerais
1. Só se considera retribuição aquilo a que, nos termos do contrato, das normas que o regem ou dos usos, o trabalhador tem direito como contrapartida do seu trabalho.
2. Na contrapartida do trabalho inclui-se a retribuição base e todas as prestações regulares e periódicas feitas, directa ou indirectamente, em dinheiro ou em espécie.
3. Até prova em contrário, presume-se constituir retribuição toda e qualquer prestação do empregador ao trabalhador.
4. (..)».
- Artigo 251º Modalidades de retribuição
A retribuição pode ser certa, variável ou mista, isto é, constituída por uma parte certa e outra variável.
- Artigo 252º Retribuição certa e retribuição variável
1. É certa a retribuição calculada em função do tempo de trabalho.
2. Para determinar o valor da retribuição variável toma-se como tal a média dos valores que o trabalhador recebeu ou tinha direito a receber nos últimos 12 meses ou no tempo da execução do contrato, se este tiver durado menos tempo.
3 (..)
4 (..)» .
Importa deixar uma primeira nota. O confronto entre as disposições da LCT e do CT/03, evidencia a correspondência das normas em termos substantivos, isto é, este último diploma não introduziu alterações de natureza substantiva quanto à noção de retribuição e suas modalidades. O mesmo pode dizer-se relativamente às correspondentes normas do actual CT/09, nomeadamente, os artigos 258.º e 261.º, dispondo:
Artigo 258º Princípios gerais sobre a retribuição
1 - Considera-se retribuição a prestação a que, nos termos do contrato, das normas que o regem ou dos usos, o trabalhador tem direito em contrapartida do seu trabalho.
2 - A retribuição compreende a retribuição base e outras prestações regulares e periódicas feitas, directa ou indirectamente, em dinheiro ou em espécie.
3 - Presume-se constituir retribuição qualquer prestação do empregador ao trabalhador.
4 – (..).
Artigo 261º Modalidades de retribuição
1 - A retribuição pode ser certa, variável ou mista, sendo esta constituída por uma parte certa e outra variável.
2 - É certa a retribuição calculada em função de tempo de trabalho. 3 - Para determinar o valor da retribuição variável, quando não seja aplicável o respectivo critério, considera-se a média dos montantes das prestações correspondentes aos últimos 12 meses, ou ao tempo de execução de contrato que tenha durado menos tempo.
4 - Caso o processo estabelecido no número anterior não seja praticável, o cálculo da retribuição variável faz-se segundo o disposto em instrumento de regulamentação colectiva de trabalho ou, na sua falta, segundo o prudente arbítrio do julgador.
Vale isto por dizer que sendo as questões suscitadas por esta problemática, quanto ao essencial idênticas, quer se tenham colocado à luz da LCT quer posteriormente face ao CT/03 ou ao actual CT/09, igualmente têm inteira aplicação ao caso as posições da doutrina e da jurisprudência que adiante se citarão, independentemente de terem sido produzidas na vigência de um ou outro daqueles regimes.
Da noção legal de retribuição retira-se que a mesma compreende o conjunto de valores que a entidade empregadora está obrigada a pagar regular e periodicamente ao trabalhador em contrapartida da actividade por ele desempenhada, presumindo-se, até prova em contrário, constituir retribuição toda e qualquer prestação da entidade patronal ao trabalhador (art.º 82.º LCT/art.º 249.º CT/03/art.º 258.º CT/09). De acordo com as regras gerais da repartição do ónus de prova, cabe ao empregador ilidir a presunção.
Como melhor elucida Monteiro Fernandes, reportando-se ao actual art.º 258.º do CT/09 - correspondente ao art.º 249.º do CT/03 e 82.º da LCT -, a noção legal de retribuição consiste no conjunto de valores (pecuniários ou não) que a entidade patronal está obrigada a pagar regular e periodicamente ao trabalhador em razão da actividade por ele desempenhada (ou, mais rigorosamente, da disponibilidade da força de trabalho por ele oferecida) [Direito do Trabalho, 14.ª Edição, Almedina, Coimbra, 2009, p. 479].
Assim, esta noção mais ampla de retribuição, abrange quer a retribuição base, isto é, “aquela que, nos termos do contrato ou instrumento de regulamentação colectiva de trabalho, corresponde ao exercício da actividade desempenhada pelo trabalhador de acordo com o período normal de trabalho que tenha sido definido”, quer todas as demais prestações que tenham caráter regular e periódico, feitas directa ou indiretamente, em dinheiro ou espécie, quer seja por força da lei, quer por imposição de instrumento de regulamentação colectiva ou, ainda, decorrente de prática da empresa, também elas correspondendo ao direito do trabalhador como contrapartida do seu trabalho.
A Lei não diz quando deve considerar-se que uma prestação é regular e periódica nem estabelece um critério para calcular um valor médio. Mas não se vê sequer que o pudesse fazer, pois a regularidade e a periodicidade dependerá sempre da prestação em concreto, que não se limita à retribuição base.
Com a expressão “regular”, a lei refere-se a uma prestação não arbitrária, que segue uma regra permanente, sendo, pois, constante. E ao exigir o carácter “periódico” para que a prestação se integre na retribuição, a lei considera que ela deve ser paga em períodos certos no tempo ou aproximadamente certos, de forma a inserir-se na própria ideia de periodicidade típica do contrato de trabalho e das necessidades recíprocas dos dois contraentes [Cfr. Ac. do STJ de 13.01.93 CJ/STJ, Ano I, Tomo 1º, pág. 226; e, Acórdão da Relação de Lisboa, de 08-11-2006, proc.º n.º 7257/2006-4 FERREIRA MARQUES, disponível em www.dgsi.].
À luz desse entendimento, admitia-se, p. ex. que uma prestação paga, pelo menos, 6 vezes ao ano fosse susceptível de ser considerada regular e periódica, integrando o conceito de retribuição. Mas como é sabido, acontece que o entendimento da jurisprudência divergiu quanto a saber quando deve considerar-se, atentos os pagamentos efectuados ao longo de um ano, que determinada prestação é regular e periódica.
O Acórdão de 1 de Outubro de 2015, do STJ, com o valor do proferido em julgamento ampliado da revista, em processo civil, que fixou a interpretação da cláusula 12.ª do Regulamento de Remunerações, Reformas e Garantias Sociais, integrado no AE entre a TAP — Air Portugal, S. A. e o SNPVA, para chegar a essa interpretação acabou por “estabelecer um critério orientador que permita aferir o que é e o que não é regular e periódico”, em concreto: “considerar-se regular e periódica e, consequentemente, passível de integrar o conceito de retribuição, para os efeitos em causa, a atribuição patrimonial cujo pagamento ocorre todos os meses de atividade do ano”.
Dito por outras palavras, há luz deste critério, que vem sendo seguido pela jurisprudência, segundo cremos quase unanimemente, considera-se regular e periódica uma prestação pecuniária que seja paga ao trabalhador pelo menos 11 meses no período de um ano de trabalho.
Dando de novo a palavra a Monteiro Fernandes, assinala este autor que “O problema da qualificação jurídica de cada uma das atribuições patrimoniais feitas pelo empregador ao trabalhador, por referência ao conceito de retribuição, ganhou uma acuidade singular com a amplificação do leque daqueles atribuições, na contratação colectiva e na prática das empresas. (.. ). Em muitos casos, com efeito, o trabalhador não recebe apenas da entidade patronal a quantia certa, paga no fim de cada semana, quinzena ou mês, que vulgarmente se designa salário, ordenado ou vencimento (e a que, tecnicamente, se costuma aplicar o rótulo de vencimento base). Certo é que essa prestação regular e periódica é aquela que não só pretende corresponder directamente a uma certa «medida» da prestação de trabalho, mas também acompanha um dado «ritmo» de satisfação de necessidades – a das necessidades correntes, do dia a dia – do trabalhador e da sua família” [Op. cit. pp. 476/477].
Na verdade, é sabido existir um vasto leque de outras prestações complementares que tanto poderão ser regulares e periódicas – p. ex. acompanhando o pagamento da retribuição base ou, trimestral, semestral ou anual – como nem sequer terem periocidade – p. ex. por estar dependente de serem atingidos determinados resultados pela empresa. Por um lado, por efeito da lei ou de instrumento de regulação colectiva, a par da retribuição base são devidas outras prestações pecuniárias de diversa natureza e periodicidade. Por outro, como também assinala Monteiro Fernandes, «(..) por razões diversas – desde as que se relacionam com propósitos de aligeiramento da carga fiscal e para-fiscal até às derivadas da intenção de ladear limitações governamentais em matéria de políticas de rendimentos – se registou, sobretudo a partir dos anos oitenta do século passado, uma considerável proliferação de «títulos» pelos quais são efectivadas vantagens económicas aos trabalhadores. Essa proliferação originou uma nebulosa de conceitos (subsídios, abonos, compensações, indemnizações, prémios, complementos de prestações de segurança social, valores de uso de bens da empresa) que, referidos ou não ao pilar central do «sistema» remuneratório (a retribuição «certa» ou «de base» que o empregador está obrigado a pagar por mês ou com diferente periodicidade, transportam consigo uma certa indeterminação quanto ao nexo de correspectividade com a prestação de trabalho» [Op. cit, p. 476].
Essas prestações complementares, embora não se possa dizer que essa seja a regra, em muitos casos estão ligadas a particularidades da prestação do trabalho. Assim acontece, com mais evidência, entre outros, nos casos da prestação de trabalho suplementar, da prestação de trabalho nocturno, da deslocação em trabalho, do trabalho com penosidade ou com perigo ou, ainda, com determinados níveis de produtividade.
Nesses casos, em que são pagas como contrapartida da prestação de trabalho em determinadas condições, por regra, essas prestações complementares apenas são devidas quando se verifique uma efectiva prestação de trabalho no condicionalismo que justificou o seu estabelecimento e apenas integrarão o conceito de retribuição se forem percebidas com uma regularidade e periodicidade tal que criem no trabalhador uma legítima expectativa quanto ao seu recebimento.
Nesse pressuposto, de acordo com o entendimento pacífico dos tribunais superiores, mormente do Supremo Tribunal de Justiça - assinalado no acórdão de 22-09-2011 - consistem em “(..) prestações complementares auferidas em função da natureza das funções ou da especificidade do desempenho (subsídio nocturno, isenção de horário e outros subsídios) [que] apenas são devidas enquanto persistirem as situações que lhes servem de fundamento, podendo a entidade empregadora suprimir as mesmas logo que cesse a situação específica que esteve na base da sua atribuição, sem que isso implique violação do princípio da irredutibilidade da retribuição“ [proc.º 913/08.1TTPNF.P1.S1, SAMPAIO GOMES, disponível em www.dgsi.pt].
Recorrendo mais uma vez ao ensinamento de Monteiro Fernandes, pronunciando-se sobre a especifica função desempenhada pelo critério legal de retribuição, conclui que o mesmo «(..) constitui, assim, o instrumento de despiste dos valores que, no seu conjunto, têm um nexo de correspectividade com a posição obrigacional do trabalhador, encarada também na sua globalidade. Ele serve, então, para definir a posteriori uma base de cálculo para certos valores derivados.», mas assinalando «que isso não legitima que o mesmo critério seja linearmente utilizado como chave-mestra de todo o regime jurídico da retribuição. Uma prestação abarcável no amplo padrão retributivo definido pelo art.º 258.º pode ter que ser afastada do campo de aplicação deste ou daquele preceito referente a retribuição. Pode ser, por exemplo, que um certo subsídio, embora pertencente à estrutura da retributiva de harmonia com o art.º 258.º, não tenha que ser incluído no cálculo do subsídio de férias ou de Natal (..)». Conclui mais adiante, nestes termos:
- “Há, pois, que assentar no seguinte: a qualificação de certa atribuição patrimonial como elemento padrão retributivo definido pelo art.º 258.º CT não afasta a possibilidade de se ligar a essa atribuição patrimonial uma cadência própria, nem a de se lhe reconhecer irrelevância para o cálculo deste ou daquele valor derivado da «retribuição».
O «ciclo vital» de cada elemento da retribuição depende do seu próprio regime jurídico, cuja interpretação há-se pautar-se pela específica razão de ser ou função desse elemento na fisiologia da relação de trabalho” [Op. cit., pp. 487/488].
Estes ensinamentos permitem retirar uma ideia fulcral para a apreciação da questão propostas no recurso, em suma, não basta o mero recebimento regular e periódico de uma dada prestação para lhe atribuir a natureza de retribuição, por força da presunção (ilidível) estabelecida na lei (n.º3, do art.º 82.º da LCT; n.º 3 do artigo 249.º do CT/03; e, n.º3, do art.º 258.º CT/09), impondo-se, concomitantemente, num trabalho de interpretação sobre a sua fonte legal ou convencional, indagar sobre a razão de ser da sua atribuição.
O princípio da irredutibilidade da retribuição consta actualmente consagrado no art.º 129.º/1 al. d), do CT, ao estabelecer: (1) É proibido ao empregador: [d)] Diminuir a retribuição, salvo nos casos previstos neste Código ou em instrumento de regulamentação colectiva de trabalho.
Porém, como flui do que já ficou exposto, a irredutibilidade da retribuição não significa que não possam diminuir-se ou extinguir-se certas prestações retributivas complementares.
Com efeito, o princípio da irredutibilidade da retribuição não incide sobre a globalidade da retribuição, mas apenas sobre a retribuição estrita, ficando afastadas as parcelas correspondentes a maior esforço ou penosidade do trabalho, a situações de desempenho específicas, como é o caso, a título de mero exemplo, da isenção de horário de trabalho, ou a maior trabalho, como ocorre com a prestação de trabalho além do período normal de trabalho (vulgo, trabalho suplementar), ou quando se tratam dos referidos prémios ou incentivos abrangidos pela previsão do art.º 260.º/1/al. c). Como observado no aresto do STJ acima citado, essas prestações remuneratórias não se encontram submetidas ao princípio da irredutibilidade da retribuição, por essa razão apenas sendo devidas enquanto perdurar a situação em que assenta o seu fundamento, sendo permitido à entidade empregadora suprimi-las quando cesse a situação específica que esteve na base da sua atribuição.
Os tribunais superiores já se pronunciaram múltiplas vezes quanto à questão de saber se a atribuição de veículo automóvel, atendendo às circunstâncias concretas de caso, integra a retribuição do trabalhador ou é um mero instrumento de trabalho e a sua utilização pessoal apenas decorre de tolerância, um acto de liberalidade, da entidade empregadora, sendo patente que a distinção entre uma situação e outra assenta num entendimento convergente. Em termos elucidativos, no acórdão desta Secção Social do Tribunal da Relação do Porto de 17 de Setembro de 2012 [Proc.º n.º 749/10.0TTPRT.P1, Desembargador Ferreira da Costa, disponível em www.dgsi.pt], - citado pelo tribunal a quo - observa-se que “sendo a retribuição a contrapartida da atividade prestada pelo trabalhador em sede de contrato individual de trabalho, ela é paga normalmente em numerário. Tal não impede que uma parte da retribuição, pelo menos, não possa ser paga em espécie, como sucede com a atribuição de alimentos, refeições, ou o uso de viaturas. Porém, a utilização de um veículo automóvel da empresa, com todos os custos a cargo desta, tanto pode configurar um mero instrumento de trabalho, porque é usada durante e por causa da prestação laboral, como pode configurar uma parcela da retribuição do trabalhador, quando o empregador autoriza o trabalhador a usar o veículo irrestritamente, para além do horário normal de trabalho, maxime, em fins de semana, feriados e férias. Nesta situação, evitando o trabalhador de adquirir viatura própria para se deslocar de e para o trabalho e em toda a sua vida pessoal e familiar, o empregador confere-lhe uma vantagem patrimonial, suscetível de avaliação em numerário, que integra a designada retribuição em espécie, como se tem entendido (Cfr. Júlio Manuel Vieira Gomes, in Direito do Trabalho, volume I, Relações Individuais de Trabalho, Coimbra Editora, 2007, págs. 775 a 777, Bernardo da Gama Lobo Xavier, com a colaboração de P. Furtado Martins, A. Nunes de Carvalho, Joana Vasconcelos e Tatiana Guerra de Almeida, in Manual de Direito do Trabalho, Verbo, 2011, pág. 550 e Maria do Rosário Palma Ramalho in Direito do Trabalho, Parte II – Situações Laborais Individuais, Almedina, 2006, págs. 551 e 552, nota 657. Na jurisprudência, cfr. in www.dgsi.pt os seguintes Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de: 2006-02-09, Processo 05B4187; 2006-03-22, Processo 05S3729; 2008-06-18, Processo 07S4480; 2009-11-04, Processo 4/08.5TTAVR.C1.S1 e 2011-01-12, Processo 1104/08.7TTSTB.E1.S1).”
Ainda desta Relação e secção, de entre a jurisprudência publicada [em www.dgsi.pt], no mesmo sentido encontra-se os acórdãos seguintes:
i) De 14-05-2012 [Procº 243/10.9TTPRT.P1, Desembargadora Paula Leal de Carvalho]
-“ I - A atribuição de viatura também para uso pessoal do trabalhador, utilização essa que podia ter lugar em fins de semana, férias, feriados, baixas médicas, tem natureza retributiva (retribuição em espécie), cujo valor pecuniário corresponde ao beneficio económico obtido pelo trabalhador por via do uso pessoal da mesma”.
ii) De 24-01-2018 [Proc.º 736/11.0TTPRT-A.P1, Desembargador Rui Penha]
I - Tem natureza de retribuição em espécie a atribuição ao trabalhador de um ligeiro de passageiros para seu uso exclusivo, na atividade profissional, que este também usava na sua vida privada, 24 horas por dia, feriados, folgas semanais, férias e qualquer outra ausência ao serviço, com conhecimento e aceitação da entidade patronal, suportando esta todos os encargos da manutenção, combustível, seguros e impostos”.
Por último, para situação similar à presente no que a esta questão concerne – e citado pelo Tribunal a quo - veja-se ainda o acórdão do STJ de 30 de Abril de 2014 [Proc.º n.º 714/11.00TTPRT.P1.S1, disponível em www.dgsi.pt], em cujo sumário
1. Tendo-se provado que o empregador distribuiu ao trabalhador um veículo ligeiro de passageiros para seu uso exclusivo, ficando todos os encargos, manutenção, seguros, portagens e combustível a cargo daquela e que o trabalhador utilizava a viatura para uso exclusivo, nas deslocações da residência para o local de trabalho, nos fins-de-semana e férias, para efeitos pessoais, a mencionada atribuição de veículo automóvel assume natureza retributiva, estando o empregador vinculado a efectuar, com carácter de obrigatoriedade, essa prestação.
2. Tratando-se de uma prestação em espécie com carácter regular e periódico e um evidente valor patrimonial, que assume natureza de retribuição, beneficia, por isso, da garantia de irredutibilidade, prevista nos artigos 21.º, n.º 1, alínea c), da LCT, 122.º, alínea d), do Código do Trabalho de 2003 e 129.º, alínea d), do Código do Trabalho de 2009.
3. Presumindo-se constituir retribuição toda e qualquer prestação do empregador ao trabalhador, competia ao empregador provar que o uso de veículo automóvel atribuído ao trabalhador se tratava de mera liberalidade ou de um acto de mera tolerância, ónus que não se mostra cumprido.

II.3.2 Como se retira da fundamentação da sentença acima transcrita, o Tribunal a quo afirmou estes mesmos princípios que acabámos de enunciar, merecendo, pois, a nossa concordância o enquadramento jurídico delineado para enquadrar o caso. Para além disso, diremos desde já, concordamos igualmente com a aplicação do direito ao elenco factual apurado.
Passamos a justificar esta asserção.
Em primeiro lugar, contrariamente ao que a recorrente sugere ao dizer “mesmo que se entendesse que não havia lugar à alteração da decisão sobre a matéria de facto, a sentença recorrida não faz uma aplicação correcta do [direito]”, todos os argumentos que vem esgrimir em seguida, excepto o sustentado na cláusula 46º n.º 1 da CCT alegadamente aplicável, estariam dependentes da alteração da matéria de facto e, sublinha-se, que deveria ir até para além da impugnação que foi feita pela recorrente. Na verdade, como já deixámos referido na apreciação da impugnação da decisão sobre a matéria de facto, mal se percebe o raciocínio e o propósito da recorrente ao impugnar determinada matéria, sem que o tenha feito quanto a factos provados essenciais, nomeadamente, os que constam sob os números 7 a 11, onde se lê:
7. O Autor estava autorizado a usar o veículo irrestritamente, para além do horário de trabalho, nomeadamente, aos fins-de-semana, feriados e férias, como nos dias úteis, fora do horário de trabalho.
8. O Autor, desde 6/01/2000, passou a utilizar a viatura que lhe foi atribuída pela Ré, de forma regular e reiterada, quer para uso profissional, quer para uso pessoal, suportando esta, em exclusivo, as despesas associadas à utilização da mesma.
9. Todas as despesas associadas ao uso e manutenção da mesma viatura, inclusivamente as de combustível e via verde de viagens pessoais do Autor eram suportadas ou estavam a cargo da Ré.
10. Desde a data da sua admissão, em 6/01/2000, até 30 de junho de 2016, a Ré sempre proporcionou ao Autor um veículo ligeiro de passageiros para seu uso exclusivo, quer fosse na atividade profissional, quer fosse na sua vida privada, 24 horas por dia, feriados, folgas semanais, férias e qualquer outra ausência ao serviço, suportando a Ré, em exclusivo, todos os encargos da manutenção, combustível, via verde, seguros e impostos.
11. Em junho de 2016, quando já se mostrava necessário substituir a viatura Citroen .. com matricula ..-FG-.., que à data estava atribuída ao Autor, a Ré propôs ao Autor que este adquirisse, a suas expensas, viatura própria, comprometendo-se, em contrapartida, a pagar um subsídio de transporte mensal no valor de €365,00 e o valor de €0,36 por quilómetro percorrido em serviço.
Mas para além desses, outros dois revelam-se também determinantes, em concreto, os seguintes:
12. No dia 30/06/2016, o Autor adquiriu a suas expensas a viatura Audi A3 ... com a matrícula ..-RO-...
13. O Autor só acedeu adquirir a viatura própria perante a condição da Ré proceder ao pagamento do aludido subsídio de transporte mensal no valor de €365,00 e o valor de €0,36 por quilómetro percorrido em serviço.
Aplicando a este conjunto de factos os princípios que se deixaram enunciados no ponto antecedente, imediata e forçosamente conclui-se que a atribuição da viatura ao autor consubstancia uma prestação em espécie, regular e periódica que se traduz numa substancial vantagem económica, logo, com natureza retributiva, consequentemente integrando a sua retribuição e estando a entidade empregadora vinculada, com carácter de obrigatoriedade a assegurar-lhe essa prestação em contrapartida da prestação de trabalho.
A proposta efectuada pela Recorrente ao autor, que este aceitou, mas no pressuposto “perante a condição da Ré proceder ao pagamento do aludido subsídio de transporte mensal no valor de €365,00 e o valor de €0,36 por quilómetro percorrido em serviço”, constitui uma alteração à estrutura remuneratória vigente desde o início do contrato de trabalho até 29 de Junho de 2016, a qual caracterizava-se, no essencial, pela atribuição de veículo automóvel para uso pessoal irrestrito e sem limites, assumindo a Recorrente todas as despesas daí decorrentes, designadamente, com seguro, manutenção, combustível e via verde. Essa alteração foi estabelecida por acordo entre a entidade empregadora e o trabalhador, passando a vigorar em substituição daquela a partir de 30 de Junho de 2016, ou seja, com a aquisição pelo autor de viatura automóvel, a qual passou a utilizar não só para fins pessoais, mas também no exercício das suas funções, o que vale por dizer, no interesse e benefício da recorrente.
Como bem ajuizou o Tribunal a quo, o pagamento do subsídio de transporte mensal no valor de €365,00 e do valor de €0,36 por quilómetro percorrido em serviço, tiveram em vista manter aquele direito do autor ao uso irrestrito e sem limites de veículo atribuído pela Ré, suportando esta todas as despesas inerentes a essa utilização, beneficiando, por isso, da garantia da irredutibilidade da retribuição. Assim sendo, não podia a Ré unilateralmente ir contra o que propôs e acordou com o autor, deixando de proceder ao pagamento daquele subsídio, como o fez a partir de Janeiro de 2017 [facto 14], com essa conduta violando o disposto no art.º 129.º/1 al. d), do CT.
Por conseguinte, a recorrente não tem qualquer fundamento para defender que a utilização do veículo para uso pessoal por parte do A. constituía uma mera liberalidade da sua parte, não tendo caráter retributivo.
Assim como também não o tem, quando vem dizer que “nunca houve um decréscimo da retribuição”, apesar de ter deixado de pagar o subsídio de transporte no valor de € 365,00. Com efeito, a recorrente faz tábua rasa da matéria assente - que nem sequer impugnou -, nomeadamente, estar provado que acordou esse pagamento com o autor e que este aceitou a proposta de ver alterada a estrutura remuneratória que vigorou desde 06/01/2000, até 30 de junho de 2016, “perante a condição da Ré proceder ao pagamento do aludido subsídio de transporte mensal no valor de €365,00”. Como é bom de ver, o ponto não é saber se o A. manteve, ou não, os mesmos valores de retribuição, mas antes se a Ré podia unilateralmente deixar de cumprir o que acordou.
O argumento seguinte também não colhe. Se a Ré após seis meses sobre a proposta que fez ao autor e que aquele aceitou, violou o acordado e deixou de lhe pagar o subsídio de transporte no valor de €365,00, não tem sentido vir aquela defender que este não tem o carácter de regularidade e periodicidade. Como é óbvio, se a R. deixou de cumprir passados seis meses do que acordou, não poderia pagamento desta prestação, se vista isoladamente, atingir o tempo necessário para à luz do critério afirmado pelo STJ se considerar regular e periódico.
Mas o ponto fulcral não é esse, antes consistindo no facto de ter acordado esse pagamento em substituição de uma prestação regular e periódica - a atribuição de veículo automóvel para uso pessoal irrestrito e sem limites, assumindo a Recorrente todas as despesas daí decorrentes -, estando-lhe vedado romper esse acordo unilateralmente, por se traduzir na violação do principio da irredutibilidade da retribuição.
Por último, o argumento fundado na Cláusula 46º n.º 1 da CCT alegadamente aplicável ao contrato de trabalho entre as partes. Alega a recorrente, que de acordo com a Cláusula 46º n.º 1 da CCT aplicável (Contrato coletivo entre a APEQ - Associação Portuguesa das Empresas Químicas e outras e a Federação de Sindicatos da Indústria, Energia e Transportes - COFESINT e outros - Boletim do Trabalho e Emprego, n.º 43, 22/11/2015), “Só se considera retribuição aquilo a que, nos termos do contrato, das normas que o regem ou dos usos, o trabalhador tem direito, regular e periodicamente, como contrapartida da prestação de trabalho”. E que o nº 3 da mesma Cláusula 46º, refere que “Não se consideram como integrando a retribuição designadamente as ajudas de custo, os abonos de viagem, as despesas de transporte, os abonos de instalação, a retribuição por trabalho suplementar, o subsídio de refeição, o subsídio do serviço de prevenção, os abonos para falhas, a retribuição especial por trabalho noturno, a participação nos lucros da empresa, prémios de desempenho, mérito ou assiduidade, bem como quaisquer gratificações ou prestações extraordinárias concedidas pela entidade empregadora”.
Defende que, mesmo que se entendesse que o valor de €365,00 pago pudesse integrar o conceito de retribuição definido pelo artigo 258º do Código de Trabalho, “a verdade é que a CTT aplicável exclui expressamente as despesas de transporte do conceito de retribuição”.
Contrapõe o recorrido que o subsídio de transporte a que se reportam os autos, “tem natureza retributiva prevista no n.º 1 da cláusula, correspondendo à prestação substitutiva, acordada entre as partes, da retribuição em espécie paga pela Recorrente, até Junho de 2016, através do seu uso exclusivo das viaturas atribuídas ao Recorrido, quer fosse na actividade profissional, quer fosse na sua vida privada, 24 horas por dia, feriados, folgas semanais, férias e qualquer outra ausência ao serviço, suportando a Recorrente, em exclusivo, todos os encargos da manutenção, combustível, via verde, seguros e impostos”.
Importa começar por relembrar que os instrumentos de regulamentação colectiva de trabalho contém normas reguladoras das relações individuais de trabalho (art.º 1.º CT), “ombreando com aquelas que o Estado emite, nomeadamente sob a forma de leis” [Monteiro Fernandes, Op. cit, p. 12].
A sua aplicação no que diz respeito ao âmbito pessoal, assenta no princípio da dupla filiação: obrigam apenas aqueles que estiverem filiados ou se filiarem nas entidades outorgantes (associações patronais e sindicatos) e ainda as entidades patronais que neles outorguem directamente (art.º 496.º/1 CT). Para além disso a sua aplicação poderá ser estendida a determinado sector de actividade, independentemente da filiação, por via de portaria de extensão (art.º 514.º CT) [cfr. Ac. STJ de 09-03-2017, Proc.º 161/15.4T8VRL.G1.S, Conselheiro Leones Dantas, disponível em www.dgsi.pt].
Pretendendo invocar a aplicação de um instrumento de regulamentação colectiva de trabalho, sobre a parte que faça essa invocação recai o ónus de alegar os factos necessários para demonstrar que tal se justifica, nomeadamente, consoante quem o alega, a filiação da entidade empregadora ou do trabalhador em entidade outorgante, ou no caso de entidade empregadora, também a eventual outorga directa; ou, então, a aplicação por via de portaria de extensão. Essa alegação constitui matéria de facto, susceptível de prova, recaindo sobre a parte o ónus de alegação e demonstração [art.º 342.º1, do CC].
No caso em apreço não resulta dos factos assentes matéria que permita concluir aplicar-se à relação laboral em presença o Contrato coletivo entre a APEQ - Associação Portuguesa das Empresas Químicas e outras e a Federação de Sindicatos da Indústria, Energia e Transportes - COFESINT e outros -, publicada no Boletim do Trabalho e Emprego, n.º 43, 22/11/2015.
Não obstante, admitindo que seja aplicável, visto o autor não ter posto em causa a alegação da recorrente quanto a esse aspecto, sempre se dirá que não assiste razão àquela.
A cláusula 46.º, cujos n.ºs 1 e 3, apresentam a redacção que a recorrente invoca, não se desvia do disposto no CT. Com efeito, o n.º 1 da aludida cláusula corresponde ao n.º 1, do art.º 258.º, e o n.º 3 condensa numa só disposição o que consta das alíneas do n.º 1, do art.º 260.º do C/T, onde se lê:
1 - Não se consideram retribuição:
a) As importâncias recebidas a título de ajudas de custo, abonos de viagem, despesas de transporte, abonos de instalação e outras equivalentes, devidas ao trabalhador por deslocações, novas instalações ou despesas feitas em serviço do empregador, salvo quando, sendo tais deslocações ou despesas frequentes, essas importâncias, na parte que exceda os respectivos montantes normais, tenham sido previstas no contrato ou se devam considerar pelos usos como elemento integrante da retribuição do trabalhador;
b) As gratificações ou prestações extraordinárias concedidas pelo empregador como recompensa ou prémio dos bons resultados obtidos pela empresa;
c) As prestações decorrentes de factos relacionados com o desempenho ou mérito profissionais, bem como a assiduidade do trabalhador, cujo pagamento, nos períodos de referência respectivos, não esteja antecipadamente garantido;
d) A participação nos lucros da empresa, desde que ao trabalhador esteja assegurada pelo contrato uma retribuição certa, variável ou mista, adequada ao seu trabalho.
[..]».
Ou seja, também o CT prevê que não se considera retribuição as “despesas de transporte” [salvo quando, sendo tais deslocações ou despesas frequentes, essas importâncias, na parte que exceda os respectivos montantes normais, tenham sido previstas no contrato ou se devam considerar pelos usos como elemento integrante da retribuição do trabalhado].
Ora, importa não esquecer que o ponto fulcral para aplicação quer do disposto no CT quer na cláusula do CCT, no caso em concreto, no que respeita ao “subsídio de transporte”, pressupõe que se esteja mediante uma prestação que tenha em vista custear despesas realizadas pelo trabalhador para se fazer transportar para o serviço/local de trabalho ou para outros locais onde se deva dirigir em razão da prestação da sua actividade. Não basta a designação atribuída pela entidade empregadora a determinada prestação para a qualificar como tal.
No caso, não é isso que está aqui em causa. A Ré designa esta prestação por subsídio de transporte, mas a razão subjacente à sua atribuição foi a que já vimos, isto é, substituir uma determinada componente do esquema remuneratório pela prestação da actividade – a atribuição de veículo não só para o trabalho, mas também para uso pessoal irrestrito e ilimitado, suportando aquela todos os custos inerentes-, por outras prestações, em contrapartida deste passar a usar veículo adquirido por si para ambos os fins e suportando as despesas inerentes, sem que daí lhe resultasse diminuição da retribuição. Justamente por isso, o Autor só acedeu ao proposto “perante a condição da Ré proceder ao pagamento do aludido subsídio de transporte mensal no valor de €365,00”.
Em suma, a Recorrente não pode alhear-se da realidade decorrente dos factos provados, mormente, do que propôs ao autor e por este foi aceite “perante a condição da Ré proceder ao pagamento do aludido subsídio de transporte mensal no valor de €365,00”.
Concluindo, concorda-se com a fundamentação e consequente decisão do Tribunal a quo, não existindo razões de facto ou de direito para acolher a pretensão recursiva da recorrente.

III. DECISÃO
Em face do exposto, acordam os Juízes desta Relação em julgar o recurso nos termos seguintes:
i) Improcedente a impugnação da decisão sobre a matéria de facto;
ii) Improcedente a impugnação por alegado erro de direito, confirmando-se a sentença.

Custas da acção a cargo da recorrente, atento o decaimento (art.º 527.º CPC).

Porto, 23 de Janeiro de 2023
Jerónimo Freitas
Nélson Fernandes
Rita Romeira