Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
3544/10.2TBVNG-B.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: FILIPE CAROÇO
Descritores: DIVIDA LIQUIDÁVEL EM PRESTAÇÕES
FIADOR
PERDA DO BENEFÍCIO DO PRAZO
EMBARGOS DE EXECUTADO
Nº do Documento: RP202302093544/10.2TBVNG.P1
Data do Acordão: 02/09/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Indicações Eventuais: 3. ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - Na dívida liquidável em prestações, a perda do benefício do prazo prevista no art.º 781º do Código Civil quanto ao devedor não se estende ao fiador e demais garantes ou coobrigados do devedor, exceto se tiver sido convencionada pelas partes contratantes.
II -Com a perda do benefício do prazo não se confunde a constituição do fiador como principal pagador, nem a renúncia ao benefício da excussão prévia do património do devedor.
III - Se, na execução, a exequente liquida a responsabilidade do mutuário devedor alegando que o fiador responde na mesma medida daquele obrigado principal, mas vem a verificar-se, em sede de embargos de executado, que a medida responsabilidade deste é (significativamente) inferior à daquele, podendo mesmo não existir no momento da instauração da execução, e não tendo sido essa responsabilidade quantificada na fase introdutória da execução, não pode esta execução prosseguir contra ele, por iliquidez e inexigibilidade da obrigação exequenda.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Proc. nº 3544/10.2TBVNG-B.P1 – 3ª Secção (apelação)
Comarca do Porto - Juízos de Execução

Relator: Filipe Caroço
Adjuntos: Desemb. Judite Pires
Desemb. Aristides Rodrigues de Almeida



Acordam no Tribunal da Relação do Porto

I.
A exequente inicial Banco 1..., S.A. (entretanto substituída pela A..., SARL) deduziu execução para pagamento de quantia certa contra:
1. AA;
2. BB e
3. CC, todos melhor identificado no processo de execução (processo principal).
Como título executivo, a exequente apresentou dois contratos de mútuo outorgados por escritura pública, nos quais o 1º executado figura como mutuário e os 2º e 3º executados figuram como fiadores.
Alegou a exequente que concedeu os referidos empréstimos, tendo o mutuário deixado de os pagar, razão pela qual a credora considerou antecipadamente vencido o capital vincendo.
A exequente peticionou a cobrança coerciva da quantia de € 64.221,99 de capital, acrescida de juros de mora, desde o incumprimento/vencimento, ocorrido em 2007, bem como despesas.
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Entretanto:
- Os imóveis hipotecados em garantia dos créditos exequendos foram vendidos na execução;
- Em virtude do falecimento da 3ª executada, a exequente desistiu da instância contra a mesma.
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O executado BB (após procedência da arguida nulidade da sua citação) veio, por apenso à execução, deduzir embargos de executado, requerendo a extinção da execução contra si, alegando essencialmente:
1º - A ilegitimidade do embargante para a execução, porquanto foi penhorada a casa de morada de família, não podendo o embargante estar em Juízo desacompanhado do seu cônjuge, sob pena de preterição de litisconsórcio necessário, e a verdade é que a exequente desistiu da execução contra o cônjuge do embargante;
2º - A inexigibilidade da obrigação exequenda ao embargante, enquanto mero fiador dos contratos de mútuo, uma vez que não ocorreu a perda do benefício do prazo relativamente ao mesmo, o qual não foi interpelado para pagar as prestações em atraso e nem foi notificado do vencimento antecipado;
3º - O direito de libertação do credor, uma vez que a exequente não deu a possibilidade ao fiador de pagar a dívida e exercer o direito de sub-rogação; e
4º - O abuso de direito da exequente, ao reclamar do fiador o pagamento ao fim de 12 anos da interposição da execução, para além de o embargante, se soubesse que lhe poderia ser penhorada a sua casa, nunca teria prestado fiança, tendo-lhe sido dito que a fiança seria um “pró-forma”.
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A exequente contestou, basicamente para contrariar, de Direito, a alegação/pretensão do embargante, referindo, no essencial e de relevante que:
- Não existe situação de litisconsórcio necessário;
- A dívida é exigível, porque a prestação venceu-se e não foi paga;
- O embargante teve oportunidade de pagar a dívida e não o fez, sendo dilatória a alegação de não ter podido beneficiar da sub-rogação;
- Não existe abuso de direito, tendo todas as partes ficado cientes das obrigações
assumidas na outorga das escrituras.
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O tribunal recorrido entendeu que o estado dos autos permitia já, sem necessidade de mais provas, conhecer do mérito da ação e, dispensando a realização da audiência prévia e nova discussão sobre a matéria controvertida, que seria de considerar inútil, por ter sido suficientemente discutida nos articulados, proferiu despacho saneador-sentença que, depois de ter julgado improcedente a exceção dilatória do litisconsórcio necessário ativo, suscitada pelo embargante, culminou com o seguinte dispositivo, ipsis verbis:
«Em face do exposto, vistos os princípios expostos e as indicadas normas jurídicas, julgo procedentes os embargos de executado e, em conformidade, determino a extinção da execução quanto ao executado/embargante BB, com o inerente levantamento de penhora de bens deste.
Custas pela exequente.»
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Inconformada, apelou a exequente embargante formulando as seguintes CONCLUSÕES:
«1. O Tribunal a quo considerou a verificação da execeção inexigibilidade da quantia exequenda;
2. Acontece que o Tribunal a quo construiu o seu argumentário numa errónea apreciação da matéria de facto como da matéria de direito;
3. O Executado/Embargante, aqui Apelado, enquanto fiador no âmbito daqueles contratos, se constitui principal pagador e que se obriga ao cumprimento de todas as obrigações assumidas pelo mutuário, com expressa renúncia da excussão prévia;
4. O mesmo é dizer que a fiança ora constituída manter-se-á plenamente em vigor enquanto subsistir qualquer dívida de capital, juros ou despesas, contraída por qualquer forma imputável ao mutuário (Cfr. Artigo 627.º, n.º 1 do Código Civil);
5. No caso sub judice ocorreu somente a extinção parcial da dívida afiançada, não sendo esta uma das causas da liberação da fiança;
6. Em 23 de fevereiro de 2012, após decisão de adjudicação dos imóveis hipotecados e penhorados nos autos principais ao Banco 1..., S.A., a Sra. Agente de Execução decide prosseguir com a execução para pagamento do remanescente da quantia exequenda no montante de 46.258,22€;
7. Segundo nota discriminativa provisória emitida pela Sra. Agente de Execução, datada de 24/10/2022, o valor atualmente em dívida contabiliza-se em 89.687,08€;
8. Pelo que, não é verdade que a dívida exequenda esteja liquidada;
9. Perante situação de incumprimento, todas as restantes prestações venceram-se, por força do citado artigo 781.º do Código de Processo Civil;
10. Muito menos, se observa necessidade alguma numa convolação do requerimento executivo;
11. Atendendo que os títulos executivos que serviram de base à presente execução são os mesmos, isto é, respeita aos mesmos contratos de empréstimo que foram referidos e juntos com o Requerimento Executivo, não se verificando qualquer modificação do objeto no caso sub judice;
12. Posto isto, entende a Apelante que é inequívoco que estamos perante uma prestação exigível ao Executado/Embargante, ora Apelado;
13. Pelo que, deverá revogar-se a douta decisão impugnada, determinando-se improcedente os Embargos apresentados e, consequentemente, a prossecução da execução que corre termos nos autos principais.
A decisão sob censura violou, entre outros, os seguintes preceitos legais:
• Artigo 627.º, n.º 1 do Código Civil
• Artigo 628.º, n.º 1 do Código Civil
• Artigo 651.º do Código Civil
• Artigo 781.º do Código de Processo Civil» (sic)
Deste modo, visa a recorrente que a decisão recorrida seja revogada e substituída por acórdão que julgue os embargos de executado improcedentes, determinando a prossecução da execução.
*
A embargante apresentou contra-alegações defendendo a confirmação da decisão recorrida.
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Foram colhidos os vistos legais.
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II.
O objeto do recurso está delimitado pelas conclusões da apelação da exequente/embargada, acima transcritas, sendo que se apreciam apenas as questões invocadas e relacionadas com o conteúdo do ato recorrido e não sobre matéria nova, exceção feita para o que for do conhecimento oficioso (cf. art.ºs 608º, nº 2, 635º e 639º do Código de Processo Civil).
Está para apreciar e decidir se o valor do mútuo atualmente em dívida é exigível ao executado fiador.
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III.
A 1ª instância deu como assentes, com base no acordo das partes decorrente do articulado e dos documento com força probatória plena, os seguintes factos:[1]
1. A exequente deduziu execução hipotecária, em 08.04.2010, contra (1º) AA, (2º) BB e (3º) CC,
2. Alegando o que consta do requerimento executivo, que aqui se dá por reproduzido.
3. A exequente apresentou, como primeiro título executivo, a escritura pública de “compra e venda, mútuo com hipoteca e fiança” junta com o requerimento executivo, cujo teor aqui se dá por reproduzido, outorgada em 25.06.1999, na qual o 1º executado AA figura como segundo outorgante e mutuário, a “antecessora” da exequente figura como terceira outorgante e mutuante, e os 2º e 3º executados, BB e CC, figuram como quartos outorgantes e fiadores, contendo as cláusulas constantes de tal documento, com o respetivo documento complementar associado, entre as quais as seguintes:
“(…)
Que, pela presente escritura e pelo preço global de TREZE MIL CONTOS, já recebido, vendem ao segundo outorgante, o seguinte:...............................................................................................
= Por DOZE MIL E QUINHENTOS CONTOS, a fracção autónoma, designada pela letra “M”, correspondente a uma habitação no terceiro andar direito traseiras, com entrada pelo n.º ... e a área de sessenta e seis metros e cinquenta decímetros quadrados: e........................................................................................
= Por QUINHENTOS CONTOS, a fracção autónoma, designada pela letra “X”, correspondente a um lugar de garagem na cave, devidamente assinalada com a respectiva letra, com entrada pelo n.º ... e a área de onze metros quadrados..........................................
(…)
Que se confessa devedor ao Banco 2... Imobiliário, SA, que o terceiro outorgante representa, da importância de DOZE MIL E QUINHENTOS CONTOS, que do mesmo Banco recebeu a título de empréstimo, e que vai ser aplicada na procedente compra da fracção “M”...........................................................................................


(…)


(…)


(…)


Mutuário ao Banco 2..., S.A., bem como ao Banco 2... Imobiliário, S.A., para concessão do crédito. …………………………………………………………

(…)
4. A exequente apresentou, como segundo título executivo, a escritura pública de “mútuo com hipoteca e fiança” junta com o requerimento executivo, cujo teor aqui se dá por reproduzido, outorgada em 25.06.1999, na qual o 1º executado AA figura como primeiro outorgante e mutuário, a “antecessora” da exequente figura como segunda outorgante e mutuante, e os 2º e 3º executados, BB e CC, figuram como terceiros outorgantes e fiadores, contendo as cláusulas constantes de tal documento, com o respetivo documento complementar associado, entre as quais as seguintes:
“(…)



(…)


(…)

(…)


celebração da promessa de alienação do mesmo............................
c) Se se verificar o incumprimento de prestações pecuniários ou outra obrigação contratual.
d) Se se verificar a falência do Mutuário.............................................
e) Se se verificar inexactidão ou omissão intencional de informações prestadas pelo Mutuário ao Banco 2... Imobiliário, S.A., para a concessão do crédito. ....................................................
(…)”.
5. As quantias mutuadas através daqueles contratos foram efetivamente entregues ao executado mutuário.
6. O executado mutuário não pagou as prestações que se venceram em 25 de julho de 2007, relativamente ao 1º empréstimo referido, e em 05 de agosto de 2007, relativamente ao 2º empréstimo referido, nem as prestações que a seguir se venceram.
No âmbito da execução apensa, foram vendidos/adjudicados, pelos preços de €45.000,00 e €4.000,00, os imóveis hipotecados em garantia dos créditos exequendos, conforme título de transmissão junto na execução em 21.02.2012, 8. Sendo liquidada provisoriamente a quantia exequenda remanescente em €46.258,22, conforme nota de 01.03.2012.
9. Entretanto, na sequência do falecimento da executada CC, a exequente desistiu da instância executiva contra a mesma.
*
*
IV.
Conhecendo da apelação…
Argumenta a embargada/apelante que, nos dois contratos de mútuo, em que o executado se constituiu fiador, se consignou também a sua qualidade de principal pagador, obrigando-se ao cumprimento de todas as obrigações do mutuário, com expressa renúncia ao benefício da excussão prévia.
Após a adjudicação dos dois imóveis hipotecados e penhorados no processo principal, a Sr.ª Agente de execução decidiu prosseguir com a execução para pagamento do remanescente da quantia exequenda que, então, em outubro de 2012, contabilizou em €46.258,22.
Em 24.10.2022, logo após a oposição à execução, a Sr.ª Agente de execução emitiu uma nota discriminativa provisória da quantia então em dívida, estimando-a em €89.687,08.
Considera, por isso, a apelante/embargada que, por não se extinguir a fiança enquanto subsistir qualquer valor de dívida de capital, juros ou despesas, também por lhe ser exigível esse pagamento, deve o fiador executado pagar aquela quantia em dívida, sem necessidade de convolação do requerimento executivo, sendo de manter os títulos executivos dados à execução.
Vejamos!
A ação executiva para pagamento de quantia certa foi instaurada em 8.4.2010, contra o embargante, entre outros, designadamente o mutuário, peticionando-se a cobrança coerciva da quantia de €82.498,89, titulada pelos contratos de compra e venda e mútuo outorgados no dia 25.6.1999, conforme resulta dos factos provados.
Nos termos daqueles dois contratos, os empréstimos forma concedidos pelo prazo de 30 anos, a amortizar em 360 prestações mensais, de capital e juros, a primeira com vencimento no dia 5 de julho de 1999. Assim, numa situação de regular cumprimento das obrigações do mutuário, o mútuo ficaria cumprido, com a restituição do capital mutuado, respetivos juros e despesas, no ano de 2029.
Porém, o mutuário não pagou as prestações que se venceram em 25 de julho de 2007, relativamente ao 1º empréstimo referido, e em 5 de agosto de 2007, relativamente ao 2º empréstimo referido, nem as prestações que a seguir se venceram; razão pela qual a credora acionou as cláusulas 11º e 7º das condições gerais de cada um dos dois contratos de compra e venda e mútuo, considerando imediatamente exigível o pagamento de toda a dívida (vencida nessa data e a que se venceria no futuro), por força da aplicação do art.º 781º do Código Civil.
Situamo-nos em sede de interpretação e aplicação das regras de Direito, no que este tribunal não está sujeito às alegações das partes (art.º 5º, nº 3, do Código de Processo Civil).
A fiança concretiza-se no facto de um terceiro assegurar com o seu património o cumprimento de obrigação alheia, ficando pessoalmente obrigado perante o respetivo credor (art.º 627º, n.º 1, do Código Civil).
A acessoriedade da fiança (ao contrário da subsidiariedade) faz parte da sua natureza; não pode ser afastada pelas partes. Como tal, a fiança fica subordinada e acompanha a obrigação afiançada, não podendo exceder a dívida principal, nem ser contraída em condições mais onerosas (art.º 631º do Código Civil).
Dada a acessoriedade, nos casos típicos em que a obrigação do devedor principal é uma obrigação a termo certo e sabendo o fiador desde o início qual o momento de vencimento da obrigação principal, torna-se desnecessária a interpelação do fiador pelo credor para despoletar a aplicação plena do artigo 634º do Código Civil.
A figura da perda do benefício do prazo, que no art.º 779º do Código Civil aprioristicamente se tem por estabelecida a favor do devedor, está prevista no art.º 781º para o caso de dívida liquidável em duas ou mais prestações, posto que «a falta de realização de uma delas importa o vencimento de todas».
No entanto, nos termos do art.º 782º, tal perda não se estende aos coobrigados nem aos terceiros garantes do pagamento da dívida. Esta norma tem natureza supletiva. Vigora nesta matéria o princípio da liberdade contratual genericamente enunciado no art.º 405º do Código Civil. A inaplicabilidade aos fiadores da perda do benefício do prazo é afastada sempre que as partes convencionem de modo diverso. O mesmo é dizer que, não sendo convencionado o contrário, não vigora entre o credor e o fiador (como não vigora entre o credor e outros garantes ou coobrigados do devedor) a perda do benefício do prazo.
Vem sendo jurisprudência largamente maioritária que, mesmo quando contratualmente se estipule a perda a que alude o artigo 781º do Código Civil (relativa ao devedor), a mesma não é extensível aos garantes da obrigação que nesse contrato se vinculem, e ainda que, não obstante o regime do art.º 782º tenha natureza supletiva, podendo ser afastado pelas partes, de acordo com o princípio da liberdade contratual consagrado no artigo 405º do Código Civil, tal não se deve inferir da simples declaração do fiador de que se constitui principal pagador das obrigações emergentes do contrato de mútuo para o mutuário. Nem, por outro lado, se deve dar um tal alcance à renúncia ao benefício de excussão prévia, a qual, bem diferente do benefício do prazo, significa tão só que o fiador se vinculou afastando convencionalmente aquele benefício previsto na lei. Daí que não é defensável a pretensão de que daquela renúncia se deduza a intenção de também afastar o benefício do prazo.[2]
Expõe-se no saneador-sentença recorrido, citando um acórdão da Relação de Lisboa de 11.2.2014[3]:
«Quanto ao fiador, não vale, pois, a exigibilidade antecipada da obrigação que é determinada pela perda do benefício do prazo com que é sancionada a falta de satisfação de uma das prestações da obrigação que é fracionada.
Afigurando-se-nos que também aqui se está perante norma de natureza supletiva, nada obstará a que o seu regime seja derrogado por estipulação contratual das partes em sentido diverso.
Só nessa hipótese fará, naturalmente, sentido falar na necessidade de interpelação, dirigida pelo credor ao devedor/fiador, no sentido de este satisfazer imediatamente a totalidade das prestações, já que, doutro modo, o mesmo, por aplicação da regra do art. 782º, continuando a gozar do benefício do prazo, só está obrigado a satisfazer as prestações, nos termos e de acordo com o escalonamento temporal pré-estabelecido.
Ora, nos contratos dados à execução nada se encontra que evidencie de forma minimamente segura a manifestação de vontade dos fiadores no sentido de, renunciando ao benefício do prazo, se submeterem à aplicação da regra da sua perda, tal como o art. 781º a estabelece para o devedor principal que culposamente haja incumprido.
O facto de se terem constituído principais pagadores de todas as obrigações que para os mutuários emergiram dos contratos de mútuo, com renúncia ao benefício da excussão prévia, significa tão só que assumiram “a vinculação fidejussória sem esse benefício”, afastando, por convenção, aquilo que é uma caraterística natural da fiança.
Ao invés de poderem recusar o cumprimento da obrigação, enquanto o credor não tiver excutido todos os bens do devedor sem ter obtido a satisfação do seu crédito – nisto consistindo, nos termos do art. 638º, nº 1, o benefício da excussão -, os fiadores opoentes, porque renunciaram a tal benefício, respondem, em solidariedade com o devedor, pelo cumprimento das obrigações deste último. A sua responsabilidade que, em princípio e por via daquele benefício, seria subsidiária relativamente à do devedor principal, passou a ser, com a dita renúncia, solidária com a deste último, podendo o credor exigir de qualquer um deles a totalidade da dívida – cfr. o art. 640º, alínea a). Tal declaração dos opoentes fiadores é, pois, absolutamente inócua para efeitos de renúncia do benefício do prazo. Sem tal renúncia, não há funcionamento da regra do art. 781º que reclame a interpelação do devedor para cumprimento da totalidade das prestações, não fazendo o menor sentido afirmar, como se faz na sentença impugnada, que a existência de título executivo, quanto ao fiador que não renunciou ao benefício do prazo, está dependente da sua interpelação para cumprir por parte do credor. Tal interpelação para cumprimento seria absolutamente inidónea para afastar a regra do art. 782º e fazer funcionar o regime do art. 781º, com vencimento da totalidade das prestações.
Todavia, de acordo com o primeiro destes dispositivos legais, ao fiador que se encontre nessas condições são exigíveis as prestações já vencidas, e não pagas, à data da propositura da execução e respetivos juros.»
Mesmo nas situações em que as partes tenham afastado, por convenção, o benefício do prazo pelo fiador (ou de outros garantes ou coobrigados), sempre se impõe que o credor que não queira ter a desvantagem de não ter cobertura da garantia para todo o crédito --- ou seja, a desvantagem resultante da ineficácia, quanto ao fiador, do vencimento da totalidade da dívida resultante do incumprimento de alguma prestação --- terá o ónus de informar o fiador da interpelação ao devedor. A interpelação consiste, como é sabido, no “acto pelo qual o credor comunica ao devedor a sua vontade de receber a prestação. É a reclamação do cumprimento dirigida pelo primeiro ao segundo”[4].
Como se refere no acórdão da Relação de Coimbra de 7.6.2016[5], o art.º 782º, sendo interpretado pela doutrina como um desvio à regra do artigo 634º, constitui, no que à fiança se refere, manifestação de um princípio geral: o de que não são extensivas ao fiador as modificações de prazo com que ele não conte ou com que não possa razoavelmente contar: “Daqui não resulta, releve-se, uma beneficiação do fiador, já que o que se pretende evitar é que seja responsável para além da medida do risco que assumiu. Assim sendo, se o fiador não for informado pelo credor do vencimento da obrigação, isto é, se não for colocado em condições de poder cumprir nos mesmos termos em que o pode fazer o devedor, daí não poderá resultar um aumento do risco do fiador, ou seja: o fiador, quando for, mais tarde, intimado para cumprir, não estará vinculado a mais do que aquilo que estaria se fosse esse o momento do vencimento da obrigação tornado possível pela interpelação”.
No caso sub judice, as partes (incluindo o fiador) não convencionaram o afastamento da aplicação do art.º 782º do Código Civil, ou seja, o benefício do prazo de que o embargante beneficia nos termos supletivos da lei. E assim, como muito bem se explicita na sentença recorrida, com alargada citação doutrinal e jurisprudencial, “(…) a perda do benefício do prazo operada quanto ao mutuário não é extensível aos fiadores, de tal forma que à exequente apenas assiste o direito de exigir dos mesmos o pagamento das prestações contratuais que se venceram (até à data do requerimento executivo), de acordo com os prazos de pagamento acordados, ainda que acrescidas dos juros de mora (a responsabilidade dos fiadores pela mora do mutuário não depende de interpelação, bastando-se com a mora dos mutuários).»
Deste modo, a liquidação da quantia exequenda poderá não ser a mesma para o mutuário e para os fiadores. Uma vez que a dívida é liquidável em prestações, faltando ao cumprimento de uma delas, aquele responde pela totalidade do capital mutuado, respetivos juros e outros encargos (ainda não pagos), assim se incluindo, por vencimento antecipado, tudo quanto deveria ser pago nas prestações futuras previstas no contrato. Já quanto aos fiadores, como não perdem o benefício do prazo, apenas são responsáveis pelo pagamento das prestações que se encontrarem vencidas e não pagas no momento da instauração da execução; não lhes é exigível o pagamento das prestações futuras, ainda não vencidas quanto a eles.
Resulta dos artigos 10º a 13º do requerimento executivo a liquidação pela exequente do capital em dívida, pelo que seja a quantia exequenda no valor de €53.469.65, como sendo respeitante ao primeiro contrato, e no valor €10.752,34 relativo ao segundo contrato, no total de €64.221,99, acrescidos de juros. Estes valores foram obtidos por aplicação do critério da perda do benefício do prazo, dado que ali se remete para as cláusulas 11ª e 7ª do primeiro contrato e do segundo contrato, respetivamente, onde consta o direito do credor considerar vencido o empréstimo e imediatamente exigível toda a dívida, verificado que seja, entre outras situações alternativa, o incumprimento de prestações pecuniárias ou outra obrigação contratual.
A alegada responsabilidade dos fiadores pelo pagamento destes valores é reforçada ainda nos artigos 17º e 18º do requerimento executivo:
«17.º
Os executados BB e mulher CC constituíram-se fiadores de todas as obrigações emergentes dos contratos de mútuo com hipoteca que ora se executam, tendo renunciado expressamente ao benefício da excussão prévia – cf. Escrituras Públicas aludidas nos antecedentes n.ºs 1 e 2 e artigo 640.º alínea a) do Código Civil.
18.º
Os executados BB e mulher CC são, assim, igualmente responsáveis pela satisfação da quantia exequenda na mesma medida que o executado AA.»
Porém, já vimos que não é assim, que a responsabilidade dos fiadores está limitada ao capital, juros e despesas vencidos à data do requerimento executivo, sem contabilização do efeito da perda do benefício do prazo (vencimento das prestações futuras), aplicável apenas ao devedor, resultante daquele incumprimento de prestações nas datas contratualmente previstas.
Deveria, pois, reduzir-se a quantia exequenda da responsabilidade do embargante /fiador contabilizando as prestações regulares do mútuo vencidas e não pagas à data do requerimento executivo e os juros de mora relativos a cada uma delas, sem prejuízo de posterior ampliação em função do vencimento regular de novas prestações que não sejam pagas na respetiva data.
Acontece que, conforme alegado pela própria exequente, foi dado como provado (sem impugnação recursiva) que, no âmbito da execução (processo principal), foram vendidos/adjudicados, pelos preços de €45.000,00 e €4.000,00, os imóveis hipotecados em garantia dos créditos exequendos, conforme título de transmissão junto na execução em 21.2.2012, tendo sido liquidada provisoriamente a quantia exequenda remanescente em €46.258,22, conforme nota de 1.3.2012.
Entendeu o tribunal recorrido que, caso se imputasse aquele pagamento parcial no valor das prestações devidas até à data do requerimento inicial executivo, com a ficção da vigência do contrato, previsivelmente, não existiria naquela data do início da execução (8.4.2010), qualquer valor em dívida exigível ao embargante, enquanto fiador, sendo os valores já pagos suficientes para liquidar as prestações vencidas até abril de 2010, incluindo os juros de mora relativos a cada uma das prestações, devendo até admitir-se que o valor já recebido foi suficiente para liquidar algumas das prestações que se venceram depois da própria venda dos prédios.
É pacífico na doutrina e na jurisprudência que, a par de requisitos formais ou extrínsecos de exequibilidade, relacionados com o título executivo enquanto documento conferente de um grau de certeza que o sistema reputa suficiente para a admissibilidade da ação executiva, existem requisitos, ditos intrínsecos, materiais ou substanciais, que também condicionam a exequibilidade do direito, inviabilizando, na sua falta, a satisfação coativa da obrigação. Tal ocorre, por exemplo, quando a prestação não seja certa, exigível e líquida ou ainda quando ocorre ato extintivo ou modificativo da obrigação. A falta, não suprida, de qualquer destas condições materiais da prestação --- tal como a ausência de outros requisitos do mesmo género --- obsta à exequibilidade e constitui fundamento legal de oposição à execução, nos termos do art.º 729º, nº 1, al. e) e 731º, como meio processual próprio e adequado de discussão e decisão.
Sem a verificação daqueles requisitos intrínsecos não é admissível a satisfação coativa da pretensão, como decorre, expressamente, do citado art.º 713º que, tendo como epígrafe requisitos da obrigação exequenda, refere que “a execução principia pelas diligências, a requerer pelo exequente, destinadas a tornar a obrigação certa, exigível e líquida, se o não for em face do título excutivo”.
Quando não constem do título os requisitos da certeza, exigibilidade e liquidez da obrigação exequenda, devem ser preenchidos pelo exequente através dos procedimentos previstos nos art.ºs 714º a 716º.
A regra é a de que a obrigação é exigível quando se encontre vencida.
Ora, os títulos executivos expressam a exequibilidade extrínseca da obrigação, sendo através da verificação dos seus requisitos que se afere a idoneidade do objeto da pretensão executiva. Por isso mesmo, o título executivo, assume a natureza de um pressuposto processual específico da ação executiva, constituindo um dos requisitos de admissibilidade da mesma.
A ocorrência da situação de incumprimento dos contratos que servem de título executivo não se encontra abrangida pelo âmbito de exequibilidade do título apresentado, tornando-o insuficiente para a execução. Traduz-se em factos ocorridos na fase de execução daqueles negócios jurídicos, os quais são, portanto, posteriores à própria formação dos dois títulos em causa e carece de ser devidamente alegada no requerimento executivo e submetida ao escrutínio dos executados, em obediência ao disposto no art.º 716º, nº 1, do Código de Processo Civil.
A exequente não liquidou, no requerimento executivo, a obrigação do embargante fiador, mas apenas a obrigação do mutuário, considerando indevidamente que o pagamento desta é também exigível àquele, pelo mesmo montante.
Os fundamentos das alegações da recorrente em nada afastam a probabilidade justificativa da decidida procedência dos embargos; ou seja, a exequente não negou e não deixou de admitir que a imputação na dívida exequenda dos quantitativos já obtidos na execução pela adjudicação dos dois imóveis hipotecados é suficiente para liquidar as prestações em dívida à data da instauração da execução. E optou por defender, no recurso, que a responsabilidade do fiador é igual à responsabilidade do devedor mutuário e que a execução prossiga quanto àquele pelo valor liquidado no requerimento inicial da execução, que inclui o vencimento antecipado das prestações futuras.
Com efeito, a exequente não só não liquidou a responsabilidade do embargante/fiador, como, nos termos do requerimento inicial da execução, lhe atribuiu um âmbito que está longe de corresponder à sua real responsabilidade, dado que não perdeu o benefício do prazo no cumprimento dos dois contratos cujo termo apenas terminaria com o pagamento da totalidade das prestações, no ano de 2029.
A forte probabilidade de se encontrarem liquidadas as prestações pelas quais o fiador poderia ser responsabilizado e o desajustamento, quanto às responsabilidade dos fiadores, dos fundamentos do requerimento executivo aos títulos dados à execução, geram manifesta inviabilidade da presente execução relativamente ao embargante, designadamente por iliquidez da obrigação do fiador e inexigibilidade, não supridas na fase introdutória da execução (art.ºs 713º, 729º, al. e) e 731º do Código de Processo Civil).
De tudo quanto fica exposto decorre que a sentença merece inteira confirmação ao considerar extinta a execução relativamente ao fiador embargante, BB.
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SUMÁRIO (art.º 663º, nº 7, do Código de Processo Civil)
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V.
Pelo exposto, acorda-se nesta Relação em julgar improcedente a apelação da exequente e, em consequência, confirma-se o saneador-sentença recorrido.

A recorrente é responsável pelo pagamento das custas da apelação, por nela ter decaído totalmente (art.º 527º do Código de Processo Civil), levando-se em conta a taxa de justiça paga pela interposição do recurso.
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Porto, 9 de fevereiro de 2023
Filipe Caroço
Judite Pires
Aristides Rodrigues de Almeida
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[1] Por transcrição.
[2] Nesse sentido, os acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 10.5.2007 e da Relação do Porto de 23.6.2015, 14.6.2016, 19.6. 2015, 21.2.2017 e 27.4.2017, todos in www.dgsi.pt.
[3] Proc. 12878/09.8T2SNT-A.L1-7, in www.dgsi.pt.
[4] Galvão Telles, Direito das Obrigações, 5ª edição, pág. 218.
[5] Proc. 783/13.8TBLMG-A.C1, in www.dgsi.pt, seguindo, designadamente, na doutrina, a posição de Januário Gomes, in Assunção Fidejussória de Dívida, pág.s 946, 961 e 962 e jurisprudência citada, que aqui nós seguimos de perto.