Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
17743/19.8T8PRT-D.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: JOSÉ IGREJA MATOS
Descritores: MAIOR ACOMPANHADO
EXAME PERICIAL
Nº do Documento: RP2020092417743/19.8T8PRT-D.P1
Data do Acordão: 09/24/2020
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGAÇÃO
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I – A decisão relativa ao processo de acompanhamento de maior deve procurar fixar a data a partir da qual as medidas decretadas se tornaram convenientes, impondo-se que o relatório pericial de natureza médica precise a data provável do início da afeção de que sofre o beneficiário (899.º, 900.º CPC)
II – Existindo dúvidas fundadas, nomeadamente por força da junção de documentos médicos, quanto à comprovação da data constante daquele relatório, deve o tribunal proceder às diligências tidas como necessárias, designadamente através da obtenção de esclarecimentos junto do perito responsável pela elaboração daquele relatório.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo 17743/19.8T8PRT-D.P1
I – Relatório
Na presente acção especial de acompanhamento ao maior intentada por B… foi deduzido o presente recurso, relativamente a uma decisão proferida em primeira instância, em 2 de Junho passado e que ora se transcreve na íntegra:
Veio o autor, notificado do relatório pericial, requerer a realização de segunda perícia e, subsidiariamente, a prestação de esclarecimentos pelo Exmo. Perito.
Discorda, em suma, da data apontada pelo Exmo. Perito como a do início da afecção de que o requerido padece.
Iniciemos esta análise pelo pedido de realização de segunda perícia.
Conforme decorre expressamente art.º 899.º, n.º 2, do CPC, realizado o relatório pericial, caso ainda persistam dúvidas, o juiz poderá autorizar uma prova pericial “especial”: o exame em clínica especializada, com internamento nunca superior a um mês e sob responsabilidade do director respectivo.
Este regime, porque especial, afasta o geral da prova pericial previsto nos arts. 487º e segs. Do CPC.
Assim, a realizar-se segunda perícia, a mesma sempre se realizaria nos moldes previstos no mencionado art. 899º, nº 2.
Conforme decorre do referido preceito, a realização desse “exame especial” assume caracter excepcional, devendo ficar reservado àqueles casos em que existe dúvida pertinente para a boa decisão da causa. Atente-se, designadamente, na especificidade dessa diligência, aqui incluindo o internamento do beneficiário em clínica da especialidade, sob a responsabilidade do director respectivo, o que constituiu uma compressão significativa dos direitos fundamentais do beneficiário.
No mais, importa sublinhar que, nos presentes autos, cumpre averiguar, essencialmente, se se justifica a aplicação de medida de acompanhamento ao beneficiário e, em caso afirmativo, determinar o respectivo conteúdo.
Assim, é especialmente relevante averiguar, em sede de exame pericial, a afecção de que o beneficiário sofre, as suas consequências e os meios de apoio e de tratamento aconselháveis. Tais matérias são absolutamente essenciais para a boa decisão da causa.
Pelo contrário, o apuramento da data a partir da qual a medida a aplicar se tornou necessária reveste natureza lateral e secundária.
Assim sendo, face à clareza da situação do requerido descrita naquele relatório – designadamente, as suas condições psíquicas e físicas -, o esclarecimento ora pretendido, porque atinente a questão secundária e complementar, nunca se revelaria essencial à boa decisão da causa nem justificaria a submissão do acompanhado àquele exame “especial”.
Note-se, para este efeito, que, formalmente, o processo de acompanhamento de maiores não pode ser considerado um processo de jurisdição voluntária (pois não se insere no Título XV do CPC, referente a tal tipo de processos).
Porém, é certo que, em termos substanciais, face ao disposto no art. 891º, nº 1, do CPC, o processo de acompanhamento de maiores reveste tal natureza: com efeito, o juiz, nos termos do art. 986º, nº 2, do CPC, para o qual aquele remete, pode investigar livremente os factos, coligir as provas, ordenar os inquéritos e recolher as informações convenientes.
Mais: com particular relevo para o caso em preço, nos termos da parte final do referido nº 2 do art. 986º do CPC, é-lhe igualmente conferida a prerrogativa de apenas admitir as provas que considere necessárias para a boa decisão da causa.
Assim, tal como mencionado no Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 26-9-2019, in wwww.dgsi.pt, “(…) atendendo ao carácter urgente do processo, tudo aponta para que tenha o legislador querido introduzir no processo de acompanhamento de maior uma clara simplificação de procedimentos, reduzindo-os inclusive, sendo a regra a realização no mesmo de apenas um exame pericial e ainda assim por determinação do Juiz.” (os sublinhados são nossa autoria).
Ainda assim, de todo o modo, a questão relativa à data de início da afecção encontra-se clara e vastamente dilucidada no relatório pericial, não padecendo o mesmo de qualquer obscuridade, deficiência ou contradição justificativa, quer do esclarecimento suscitado (nos termos do art. 485º, nº 2, do CPC), quer da realização do exame pericial especialíssimo previsto no art. 899º, nº 2.
Atento o exposto, cumpre indeferir a realização da segunda perícia, bem como a notificação do Exmo. Perito para prestar os esclarecimentos suscitados; consequentemente, indefere-se a realização das diligências instrumentais também requeridas pelo autor.
Pelo exposto, indefiro a realização da segunda perícia, bem como a notificação do Exmo. Perito para prestar os esclarecimentos suscitados e, bem assim, a realização das diligências inerentes a tais fins, requeridas pelo autor.
Notifique.
*
O autor B… é o autor do recurso em apreço onde formula as seguintes conclusões que ora amplamente se reproduzem:
I. O Tribunal a quo indeferiu a realização da segunda perícia, bem como a notificação do Exmo. Perito para prestar os esclarecimentos suscitados e, ainda, a realização das diligências instrumentais também requeridas pelo aqui recorrente no sentido do apuramento e determinação da data fixada para a incapacidade.
II. Não concorda o recorrente com tal despacho, nomeadamente, com a rejeição do meio de prova que consubstancia quer o pedido de esclarecimento (para o qual, aliás, o ora recorrente foi expressamente notificado) quer a junção de documentos e pedido de inquirição que visam provar e esclarecer a data provável do início da incapacidade, motivo pelo qual é oportuno o presente recurso.
III. Não se pretendendo, de todo, o internamento do beneficiário em clínica da especialidade, conforme previsto no artigo 889º, nº2 do CPC, o Recorrente pretende sim que se corrijam as inexactidões do relatório.
IV. Objetivo que o levou a reclamar do relatório pericial nos termos do artigo 485º do CPC do qual foi notificado também para essa possibilidade.
V. A reclamação apresentada alicerça-se nas deficiências e obscuridades do relatório pericial nomeadamente quanto ao ponto 4 das conclusões na medida em que a sua fundamentação é insuficiente e deficiente no que se refere à fixação da incapacidade definitiva como ocorrendo em Junho de 2019 e não antes,
VI. Pois que a fixação da data da incapacidade é da maior importância desde logo para determinar a validade dos actos praticados pelos acompanhados, ou seja, para se poderem considerar válidos ou inválidos actos praticados pelos beneficiários antes dessa data – arts. 257º, nº1 do CC “ex vi” artigo 154º, nº3 também do CC.
VII. Note-se o conteúdo e alcance do acompanhamento expressamente previsto no artigo 140º, nº1 do CC onde podemos ler “o acompanhamento a maior visa assegurar o seu bem-estar, a sua recuperação, o pleno exercício de todos os seus direitos e cumprimento dos seus deveres, salvo as exceções legais ou determinadas por sentença.
VIII. Se assim não fosse, a lei não exigiria tal determinação – art.889 do CPC.
IX. Essa a razão pela qual é admissível legalmente reclamar do relatório pericial, enquanto meio de prova, ato para o qual o recorrente foi notificado.
X. A este propósito, vejam-se, entre outros, o acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 16.01.2020, da Relação de Coimbra de 12.12.2017 e do STJ de 22.02.2018 (de que se reproduzem excertos).
XI. Com efeito, o beneficiário é seguido por neurologia pelo Dr. C…, pelos menos desde 2017, tomarias medicação vária ali discriminada, apesar de haver registo de manifestações da doença desde 2014.
XII. Por sua vez, a data a que a perícia se reporta no ponto 4. das conclusões, é a data em que o beneficiário deu entrada no Lar onde reside, ou seja, a informação a que o relatório se refere para determinar tal data foi apenas obtida para instruir o processo de admissão ao Lar, dada a urgência na situação em que o Beneficiário fora colocado e afere uma situação à data e não o momento em que a situação se tornou definitiva quanto à incapacidade e doença do Beneficiário, constatação aliás que o mesmo não refere.
XIII. Já em Julho de 2019 o Beneficiário apresentava um quadro demencial altamente incapacitante que não era recente como a própria direção do Lar pode comprovar para além de poder ser comprovado pelo referido médico neurologista.
XIV. Ao contrário do que entendeu o Tribunal “a quo” o apuramento da data a partir da qual a medida a aplicar se tornou necessária é indispensável à boa decisão da causa e faz parte do conteúdo desta como a lei, aliás, determina.
XV. Com efeito, “averiguar, em sede de exame pericial, a afecção de que o beneficiário sofre, as suas consequências e os meios de apoio e de tratamento aconselháveis” matérias, segundo o Tribunal “a quo”, “absolutamente essenciais para a boa decisão da causa”, depende direta e necessariamente do apuramento da data do início da afecção.
XVI. O Tribunal “a quo” também indeferiu a “realização das diligências inerentes a tais fins requeridos”, entre elas, a junção dos documentos apresentados pelo Recorrente no seu requerimento de 21 de Maio de 2020; a audição quer do médico do beneficiário quer da Directora do Lar e ainda a solicitação de informação aos HUC.
XVII. Ora, não tendo o relatório e o perito recorrido a outras fontes, quando o podia e devia fazer, nomeadamente, junto do referido médico neurologista que acompanha o beneficiário o que é do conhecimento de todos, junto da Diretora do Lar, ou agora junto dos HUC, não obteve daqueles informação e elementos suficientes que teriam permitido clarificar, complementar e esclarecer devidamente os factos constantes do relatório nomeadamente a data da incapacidade definitiva do beneficiário que ocorreu claramente antes de Julho de 2019, tudo em defesa dos interesses deste e no cumprimento da lei.
XVIII. Tal omissão também contribuiu para a deficiente e obscura fundamentação do relatório e para a falta de fundamentação daquela conclusão 4.
XIX. O tribunal “a quo” podia e devia ter admitido as diligências requeridas porquanto das mesmas poderia colmatar-se aquela deficiente e obscura fundamentação do relatório pericial.
XX. Pois que, pese embora o processo de acompanhamento a maiores não se insira sistematicamente nos processos de jurisdição voluntária no que respeita aos poderes do juiz, ao critério de julgamento e à alteração das decisões com fundamento em circunstâncias supervenientes são-lhe aplicáveis aquelas disposições por força do disposto no artigo 891º do CPC nomeadamente o estatuído no artigo 986º, n2 do CPC.
XXI. O entendimento do recorrente foi corroborado pelo próprio Magistrado do Ministério Público na vista datada de 29.05.2020 onde admite que “com base na apreciação dos elementos fornecidos pelo requerente se proceda a reapreciar e eventualmente aperfeiçoar a que foi realizada no tocante à determinação da data a partir da qual se tornou necessário o acompanhamento.
XXII. Sem prescindir, ainda que o tribunal “a quo” indeferisse, como fez, “realização das diligências inerentes a tais fins requeridos” sempre devia ter admitido a junção dos três documentos juntos a 21 de Maio.
XXIII. Pois que aqueles documentos são da maior importância enquanto prova documental por si só admissível e necessária a instruir o processo de tomada de decisão final.
XXIV. Ora, ao indeferir a notificação do Exmo. Perito para prestar os esclarecimentos solicitados e ainda a realização das diligências instrumentais também requeridas o tribunal “a quo” violou o disposto nos arts. 140º, nº1, 154º, nº3, 257º, nº1 todos do CC e ainda os artigos 485º, 581º, 891º, 899, 986ºº, nº2 todos do CPC.
XXV. Porquanto da interpretação e aplicação das normas supra referenciadas, em atenção ao interesse do beneficiário, o tribunal “a quo” só poderia concluir pela admissibilidade dos esclarecimentos suscitados e pela realização das diligências em causa e, ainda, da junção dos documentos.
XXVI. Concretamente mal andou ao considerar que o esclarecimento em causa “nunca se revelaria essencial à boa decisão da causa”.
XXVII. Pois que, quer dos elementos constantes dos autos, quer dos meios probatórios requeridos a 21 de Maio, quer dos documentos cuja junção por si só ali se requereu, impunham decisão diversa.
XXVIII. Face ao exposto, o tribunal “a quo” devia ter decidido admitindo: os esclarecimentos requeridos pelo ora recorrente; a realização das diligências instrumentais também por ele requeridas; a junção dos documentos também ela requerida.
Termina o apelante peticionando a revogação da decisão em apreço no sentido supra exposto.
Houve resposta por parte do Ministério Público na qual termina pedindo que seja negado provimento ao recurso, na parte em que alude à realização de 2ª perícia, revogando-se no entanto a decisão recorrida, na parte em que rejeitou o eventual aperfeiçoamento da 1ª perícia, quanto à eventual re-determinação da data a partir da qual se tornou necessário o acompanhamento.

II – Delimitação do objecto do recurso; questões a apreciar;
O objecto do recurso é delimitado pelas alegações e decorrentes conclusões, não podendo este Tribunal de 2.ª instância conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser em situações excepcionais que aqui não relevam.
À luz do recurso deduzido, resulta que não está em causa aferir da validade do indeferimento de uma segunda perícia médico-legal uma vez que o recorrente entende agora não se justificar a mesma, designadamente por força de um decorrente e inevitável internamento hospitalar do beneficiário.
Deste modo, está, sim, em questão decidir da procedência dos pedidos feitos relativamente aos esclarecimentos requeridos pelo ora recorrente, à realização das diligências instrumentais e à junção de documentos também por ele requeridas.

III – Fundamentação de Direito
Por força da aprovação da Lei n.º 49/2018, de 14 de Agosto, que entrou em vigor no dia 10 de Fevereiro de 2019, foi criado o regime jurídico do maior acompanhado, o qual além de eliminar os institutos da interdição e da inabilitação, veio introduzir alterações processuais no Código de Processo Civil, modificando a redacção dos seus artigos 16.º, 19.º, 20.º, 27.º, 164.º, 453.º, 495.º, 891.º a 904.º, 948.º a 950.º, 1001.º, 1014.º e 1016.º, além de revogar, desse mesmo Código, o n.º 3 do artigo 20.º, o artigo 905.º e a alínea d) do artigo 948.º.
O presente processo iniciado em Setembro de 2019 surge, pois, em plena vigência deste novo regime jurídico.
Neste sentido, por força do disposto no artigo 891.º, nº1, do CPC, o processo em apreço “tem carácter urgente, aplicando-se-lhe, com as necessárias adaptações, o disposto nos processos de jurisdição voluntária no que respeita aos poderes do juiz, ao critério de julgamento e à alteração das decisões com fundamento em circunstâncias supervenientes.”
Ou seja, como já se aventa doutamente na decisão recorrida, muito embora não esteja inserido no Título XV do Livro V do Código de Processo Civil relativo aos processos de jurisdição voluntária, certo é que, por força daquele preceito citado, é conferida, em concreto, ao juiz a possibilidade de investigar livremente os factos, coligir as provas, ordenar os inquéritos e recolher as informações convenientes ao mesmo tempo que lhe é conferida a prerrogativa de apenas admitir as provas que considere necessárias para a boa decisão da causa (cfr. art.º 986.º, n.º 2, do CPC).
Em termos de enquadramento normativo, temos ainda que, nos termos do n.º 1, do art.º 899º, do CPC, o relatório pericial, uma vez determinado, deve precisar, sempre que possível, “a afecção de que sofre o beneficiário, as suas consequências, a data provável do seu início e os meios de apoio e de tratamento aconselháveis” (sublinhado nosso).
Uma eventual “segunda” perícia, por sua vez, está prevista no nº 2 do mesmo preceito quando estatui que “permanecendo dúvidas, o juiz pode autorizar o exame numa clínica da especialidade, com internamento nunca superior a um mês e sob responsabilidade do director respectivo, ou ordenar quaisquer outras diligências”. Aliás, em termos gerais, estando em causa um processo de carácter urgente, salvo a existência das tais dúvidas sérias, a opção deve privilegiar a regra de um único exame pericial e mesmo este, segundo alguns, apenas caso o tribunal o repute como necessário (neste sentido, Nuno Luís Lopes Ribeiro, em O Maior Acompanhado – Lei 49/2018, acessível em CEJ, Colecção Formação contínua FEV 2019, pág. 103).
Pois bem.
Como vimos acima, o recorrente terá já, de alguma forma, descartado este segundo exame na medida em que sempre acarretaria um internamento hospital, à luz do preceito legal que permite tal diligência suplementar. Donde, o apelante pretende, por um lado, que seja admitida a junção de três documentos que trouxe aos autos (documento clínico subscrito pelo Dr. C… relativo à doença de que padece o maior; declaração do Lar onde este se encontra concernentes ao estado de saúde aquando da admissão em 7 de Julho de 2019; documentação dos Hospitais … relativos a um episódio de urgência ocorrido com o maior em causa em 15 de Setembro de 2018) e, por outro lado, requer que sejam prestados esclarecimentos pelo Exmo. Sr. Perito quanto à sua conclusão 4ª, no que se refere à fixação da data a que se reporta a incapacidade real do Beneficiário e aos fundamentos para determinação da mesma e que seja recolhida informação pertinente junto do neurologista Dr. C…, que segue o beneficiário pelo menos desde 2017, bem como junto da Diretora do Lar onde o maior reside, que não foi ouvida, bem como junto do Hospital … onde ocorreu o episódio de urgência em 2018 que atesta o estado já incapacitante em que se encontraria o beneficiário.
Todas estas diligências visam carrear prova de molde a concluir por uma fixação da data de incapacidade alegadamente mais próxima da data real, sempre antes de julho de 2019, algures entre 2017 e 2018.
No entendimento do tribunal apelado, a questão da data de início da afecção encontra-se “clara e vastamente dilucidada no relatório pericial”.
Salvo o devido respeito, entendemos não ser evidente tal conclusão tendo o requerente carreado para os autos elementos bastantes que permitem pôr em causa a resposta constante do dito relatório. Desde logo, anote-se que, pelo próprio teor do mesmo, é referido que o quadro clínico que remete para a doença de Alzheimer terá sido notado já em 2014 e que a opção pela data de Julho de 2019 por parte do perito, segundo a leitura do relatório (vide capítulo 4), decorre tão-somente do que resulta de um outro relatório médico precisamente datado de 5 de Julho de 2019 do médico neurologista Dr. C….
Ora, um dos documentos juntos pelo requerente é justamente do médico em causa, Dr. C…, o qual declara, nomeadamente, que em Outubro de 2017 a doença estaria em fase moderada, sendo que já então a comunicação verbal era difícil com um “notório atingimento da linguagem”.
Igualmente o documento do Hospital … revela que, em Setembro de 2018, aquando do episódio de urgência, o beneficiário apresentava desorientação no tempo e no espaço, “troca as coisas”, “já se perdeu várias vezes”, sendo diagnosticada “doença de Alzheimer já com vários anos de evolução com atingimento notório da linguagem”.
Em síntese, a questão da data do início da incapacidade mantem-se em aberto à luz dos elementos trazidos pelo recorrente e da sua confrontação com a fundamentação da própria conclusão extraída na perícia médica que assenta de modo praticamente exclusivo em elementos externos, designadamente a avaliação médica do médico neurologista Dr. C…, que acompanhou o paciente ao longo dos últimos anos e que aponta para uma possível data anterior para a perda das capacidades do doente (pelo menos, notoriamente, as da linguagem).
Resta discernir de um último argumento aduzido na douta decisão segundo o qual “o apuramento da data a partir da qual a medida a aplicar se tornou necessária reveste natureza lateral e secundária”.
Ao invés do regime da interdição e inabilitação que seguia um modelo com “preocupações vincadamente patrimoniais, descurando a vertente pessoal dos cuidados a prestar à pessoa a incapacitar (artigos 139.º, 142.º; 148.º, 149.º, 153.º, 154.º e 156.ºCódigo Civil)” (citando o Acórdão desta Relação de 21 de Novembro de 2019, processo nº 528/16.0T8VNG.S1.P1O disponível no sítio da DGSI), o regime do maior acompanhado tem uma vertente reforçada de assistência pessoal como decorre da instituição de medidas de apoio (145.º, n.º 2, alínea e) do Código Civil).
Porém, como não poderia deixar de ser, essa dimensão patrimonial não desapareceu, longe disso; daí que o artigo 145.º, n.º 2, alínea c), d) do Código Civil preveja que possa ser cometido ao acompanhante, em função de cada caso e mesmo independentemente do que haja sido pedido ao tribunal, a administração total ou parcial de bens ou a autorização prévia para a prática de determinados atos ou categorias de atos. A estas consequências na vertente patrimonial do maior não é indiferente uma outra disposição segundo a qual as medidas de acompanhamento se iniciam com “a data a partir da qual as medidas decretadas se tornarem convenientes” a fixar pelo tribunal, sempre que possível (900.º, nº1 do CPC).
Daí que no artigo legal anterior se preveja que o relatório pericial faça constar a data provável do início da afeção.
Mas, salvo melhor entendimento, o núcleo da questão nem será propriamente o da “lateralidade” eventual deste tópico; cabe sempre ao tribunal, se possível, fixar uma data relativamente à conveniência das medidas de acompanhamento a decretar; na definição dessa data não será, seguramente, indiferente – a lei assim o determina – conhecer a data do início da incapacidade que determinou a necessidade de acompanhamento.
Donde, independentemente das consequências a extrair dessa fixação ou da relevância que lhe seja, ou venha a ser atribuída, cumpre proceder à fixação dessa data com o rigor probatório possível, na ponderação de todos os elementos probatórios que surjam disponibilizados.
Destarte, sempre descartando a realização de nova perícia, irá proceder o recurso deduzido nos moldes que a seguir se discriminam e sem prejuízo de outras opções complementares do tribunal “a quo” a partir do que vier, entretanto, a ser apurado nos autos.
Assim, temos que deverá o perito médico ser notificado para que esclareça o teor da conclusão 4 e preste os demais esclarecimentos solicitados pelo apelante devendo receber cópia dos três documentos carreados por este (emanados do médico Dr. C…, do Lar e dos HUC …), cuja junção ora se determina.
Em função do que vier a ser comunicado pelo perito médico, deverá ser ponderada a possível audição do médico neurologista Dr. C… ou, mais remotamente, da Directora do Lar onde o maior se encontra.
*
Há finalmente que proceder à sumariação prevista no artigo 663º, nº7 do Código do Processo Civil.
………………………………
………………………………
………………………………

V – Decisão
Pelo exposto, decide-se julgar procedente o recurso deduzido, revogando-se o despacho em crise e ordenando-se que o tribunal “a quo” proceda às diligências probatórias suplementares acima devidamente elencadas.
Sem custas.

Porto, 24 de Setembro de 2020
José Igreja Matos
Rui Moreira
João Diogo Rodrigues