Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
1871/10.8TBVCD-C.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: JOSÉ IGREJA MATOS
Descritores: RECURSO DE REVISÃO
SIMULAÇÃO PROCESSUAL
TERCEIRO PREJUDICADO COM A SENTENÇA
Nº do Documento: RP201609131871/10.8TBVCD-C.P1
Data do Acordão: 09/13/2016
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO, (LIVRO DE REGISTOS N.º 729, FLS.148-154)
Área Temática: .
Sumário: I - Criado pelo Código do Processo Civil de 1939, o recurso extraordinário de revisão, hoje previsto no art. 696º, visa a alteração de uma decisão já transitada em julgado apenas em situações limite, taxativamente previstas na lei.
II - Designadamente uma decisão transitada em julgado pode ser objeto de revisão quando “se apresente documento de que a parte não tivesse conhecimento, ou de que não tivesse podido fazer uso, no processo em que foi proferida a decisão a rever e que, por si só, seja suficiente para modificar a decisão em sentido mais favorável à parte vencida.”
III - Os documentos atendíveis como fundamento da revisão da decisão transitada em julgado nos termos estabelecidos na al. c) do art. 696º terão de preencher, cumulativamente, os requisitos da novidade e da suficiência; este último exige que esses documentos, o seu teor, infirmem, de “per si”, os fundamentos da decisão a rever.
IV - Nos casos em que as partes, de comum acordo, criam a aparência dum litígio para obter uma sentença cujo efeito pretendem, mas que lesa um direito de terceiro ou viola uma lei imperativa predisposta no interesse geral, a simulação assume a dimensão de uma fraude processual.
V - A alínea g) do art. 696.º permite a revisão de uma sentença transitada em julgado quando se alegue estarmos perante um litígio assente sobre acto simulado das partes.
VI - Sintomaticamente a lei coloca o acento tónico no litígio e não no comportamento das partes. Deste modo, para apurar da verificação liminar deste requisito, importa apurar se foi alegado que o litígio vertido nos articulados – petição, contestação – teria sido assente exclusivamente numa fraude, ou simulação, processual.
VII - Deste modo, ainda que uma das partes desconheça essa eventual simulação mas tenha subscrito uma contestação, conjuntamente com o então marido, a qual corporize esse acto simulado, teremos de concluir que o litígio foi falsamente erigido, estando, assim, “assente sobre acto simulado das partes”.
VIII - O recurso de revisão assente na verificação da alínea g) do art. 696.º do CPC apenas “pode ser interposto por qualquer terceiro que tenha sido prejudicado com a sentença”.
IX - Fazem parte deste conceito de “terceiro” os herdeiros legitimários, conforme entendimento já consagrado pela doutrina no Código do Processo Civil de 1939 para o então denominado recurso extraordinário de oposição de terceiro de teor mais restrito que o regime actual.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: 1871/10.8TBVCD-C.P1

Acordam no Tribunal da Relação do Porto
Recorrente(s): B… e C….
Recorrido(s): “D…, Lda”.
Comarca do Porto – Póvoa de Varzim - Instância Central - 2ª Secção Cível

I - Relatório
B… e C…, representadas pelo avô materno E…, filhas dos réus dos autos principais, F… e G…, interpuseram recurso de revisão, invocando como fundamento as alíneas c) e g) do art. 695º do C. P. Civil.
O tribunal recorrido decidiu no sentido de não haver sustentação legal para tal pedido, tendo, nos termos do art. 699º do C. P. Civil, indeferido o presente recurso de revisão.
Transcreva-se integralmente a decisão liminar em apreço para sua melhor elucidação em sede de recurso quanto aos fundamentos e parte dispositiva:
Dispõe o art. 695º (haverá aqui lapso pois trata-se do 696.º) do C. P. Civil que a decisão transitada em julgado – como é o caso da decisão proferida nos autos principais – só pode ser objecto de revisão quando, alínea c), se apresente documento de que a parte não tivesse conhecimento, ou de que não tivesse podido fazer uso, no processo em que foi proferida a decisão a rever e que, por si só, seja suficiente para modificar a decisão em sentido mais favorável à parte vencida e, quando, nos termos da alínea g), o litígio assente sobre acto simulado das partes e o Tribunal não tenha feito uso do poder que lhe confere o art. 612º do C. P. Civil por não se ter apercebido da fraude.
Quanto a este fundamento, o da alínea g), a legitimidade para a sua interposição está estabelecida no art. 631º, nº3, do C. P. Civil, sendo a mesma conferida a terceiros que sejam prejudicados com a sentença.
Ora, não se vê como as filhas dos réus possam ser prejudicadas com a sentença.
O que está em causa é o património dos pais e não o seu, não havendo que lhes assegurar um putativo direito de herança, pois que, tratando-se de herdeiras legitimárias, a legitimidade dos herdeiros para agir quanto ao acto simulado em vida do simulador apenas existe quando o acto foi praticado com o intuito de o prejudicar. Estes factos não foram alegados, nem se admitem, no contexto da alegação das requerentes – art. 242º, nº2, do C. Civil.
Acresce que, mesmo na versão das requerentes, a alegada simulação não envolveu todas as partes, pois que a mãe não agiu simuladamente, pelo que não se verifica verdadeira simulação processual já que o litígio discutido pela R. era real e não simulado.
A alínea g) do art. 696º do C. P. Civil invocada pelas requerentes não permite assim a revisão da sentença proferida.
Quanto à alínea c) do mesmo normativo, as requerentes juntam aos autos documento que, em seu entender, comprova que a quantia que foi entregue ao marido pela autora do processo principal foi utilizada em proveito próprio deste, para benefício de uma sociedade que este constituíra.
Centram-se assim tais documentos na questão da finalidade do mútuo e da utilização da quantia mutuada.
Porém, como resulta claro da decisão proferida, e foi matéria apreciada no recurso de apelação que interpôs, o fundamento da comunicabilidade da dívida à ré, apesar de contraída apenas pelo réu, não foi o disposto no art. 1691º, nº1, alíneas c) e d), do C. Civil mas na alínea a) do mesmo normativo, ou seja, que a dívida foi contraída pelo réu dos autos principais com o consentimento da aqui requerente.
Ora, o documento apresentado não afasta este consentimento – agora negado mas que foi dado como provado na sentença e aceite pela ré nas suas conclusões das alegações de recurso a fls. 423 – pelo que os documentos juntos pelas requerentes não são suficientes para modificar a decisão em sentido mais favorável à parte vencida.
Não foi apresentado qualquer documento que abale este facto – o consentimento – pelo que, com os fundamentos invocados, não há motivo para a revisão da sentença proferida.
Pelo exposto, nos termos do art. 699º do C. P. Civil, o Tribunal indefere o presente recurso de revisão.
Custas pelas requerentes.
*
Inconformadas as requerentes interpuseram o recurso de apelação ora em apreciação, cujas conclusões são as seguintes:
1ª. As recorrentes, enquanto presuntivas herdeiras legitimárias de seus pais, têm plena legitimidade para invocarem, em vida destes, a simulação processual e por essa via interporem o recurso de revisão da sentença posta em crise no seu requerimento inicial.
2ª. Não é correcta a afirmação contida no despacho recorrido de que “não se vê como as filhas dos réus possam ser prejudicadas com a sentença, pois que o que está em causa é o património dos pais e não o seu, não havendo que lhes assegurar um putativo direito de herança”, uma vez que, impondo a sentença revidenda a condenação dos pais das recorrentes no pagamento de uma obrigação pecuniária de € 195.000,00, acrescida dos juros moratórios vincendos após a sua citação, calculados à taxa legal, esta dívida constitui obviamente uma significativa diminuição do património dos seus pais, dessa forma prejudicando directamente a futura legítima das recorrentes.
3ª. As razões que justificaram o tratamento específico dado aos herdeiros legitimários pelo nº 2 do artigo 242.º do Código Civil prendem-se com a particular natureza dos direitos sucessórios que lhes são reconhecidos, pois que a consistência prática do seu direito à legítima poderia ser posta em causa se não lhes fosse reconhecido o poder de, em vida do autor da sucessão, reagir contra actos simulados celebrados com a intenção de os prejudicar.
4ª. O que está em causa não é um direito realmente existente, mas a expectativa jurídica que aos herdeiros legitimários a ordem jurídica reconhece, em vista da tutela preventiva dos interesses que a atribuição da quota legitimária visa assegurar, concedendo-lhes meios para invalidar actos lesivos das suas expectativas de, pela via sucessória, adquirir os bens dos seus pais.
5ª. Nesta configuração legal e doutrinária, não podem as recorrentes conformar-se com a alegação do despacho recorrido de que as mesmas não alegaram factos de onde se extraia que o acto simulado foi praticado com o intuito de as prejudicar, já que o que estaria “em causa é o património dos pais e não o seu, não havendo que lhes assegurar um putativo direito de herança”, o que é uma conclusão errada face à ratio da lei.
6ª. Efectivamente, a tutela pretendida pelas ora recorrentes com a interposição do recurso de revisão aqui em crise não tem em vista assegurar-lhes um putativo direito de herança mas uma efectiva protecção da expectativa jurídica que aos herdeiros legitimários a ordem jurídica reconhece, em vista da tutela preventiva dos interesses que a atribuição da quota legitimária visa assegurar.
7ª. O direito dos filhos à herança dos pais é um direito próprio, que deriva do nascimento, não dependendo da abertura da herança, tendo os filhos, por isso, o direito de fazer garantir a sua legítima, mesmo futura, pelos meios legais, conforme resulta da lei e ficou expresso no Assento de 19 de Dezembro de 1941, que definiu a doutrina que veio a ficar consagrada no artº 242º, nº 2 do Cód. Civil, segundo o qual “Os filhos podem pedir, mesmo em vida dos pais, a anulação de dívidas por estes simuladamente contraídas, com o intuito de os prejudicar, não sendo, portanto, preciso demonstrar a efectividade do prejuízo.” (in D.G., 1ª Série, de 3-1-42).
8ª. Esta protecção da expectativa jurídica da sua legítima está expressamente prevista no nº 2 do artº 242º do Cód. Civil, ao permitir que o herdeiro, filho legitimário, aja em vida do autor da herança, visando conceder-lhe meios para invalidar actos lesivos das suas expectativas de, pela via sucessória, adquirir os bens dos seus pais, exigindo-se que os actos impugnáveis sejam intencionalmente consumados com o fim de prejudicar a legítima dos herdeiros legitimários.
9ª. Esse intuito de prejudicar a legítima das aqui recorrentes, ao contrário do alegado no despacho recorrido, foi expressamente alegado pelas recorrentes no articulado inicial, designadamente, nos seus artºs 8º, 45º, 46º, 47º, 48º, 57º, 58º, 68º, 82º, 83º, 95º, 99º e 100º, dos quais resulta pretenderem as recorrentes pugnar pela defesa dos interesses patrimoniais dos bens que compõem o património comum do dissolvido casal de seus pais, donde decorre a sua legitimidade para o pleito, a qual resulta claramente ajuizada pelos fundamentos que constituem a causa de pedir da pretensão deduzida;
10ª. Resultando ainda, ao longo do articulado, a alegação de factos reais que foram propositadamente omitidos na acção em que foi proferida a sentença revidenda, assim permitindo que essa mesma sentença viesse a impor solidariamente a ambos os progenitores das aqui recorrentes a obrigação de pagamento da quantia que foi aí determinada e os juros moratórios, sujeitando assim o respectivo património comum do entretanto seu dissolvido casal e o próprio de cada um dos pais à execução coerciva dessa decisão judicial e à afectação do mesmo ao pagamento do capital, juros moratórios e demais encargos da execução instaurada, quando o seu pai bem sabia que essa quantia não tinha integrado na verdade o património comum do então seu casal, que ficou prejudicado na justa medida em que ambos os então cônjuges foram solidariamente condenados ao pagamento daquela quantia de €195.000,00, juros moratórios e demais encargos;
11ª. E resultando ainda da matéria daqueles itens a alegação de que as recorrentes, como filhas dos 2º e 3ª recorridos e suas presuntivas herdeiras legitimárias, têm todo o interesse e legitimidade em que a invocada simulação seja desvendada e declarada nula, bem como, com o mesmo fundamento, seja revista a douta sentença proferida, uma vez que da manutenção da decisão revidenda resulta um considerável e inquestionável prejuízo patrimonial, que é efectivamente indevido e que se repercute no património de cada um dos seus progenitores e de si próprias, recorrentes, enquanto presuntivas herdeiras legitimárias de seus pais.
12ª. Ficou, pois, claramente invocado no articulado inicial o intuito do prejuízo patrimonial decorrente do acto que as recorrentes alegaram ter sido simulado e praticado pelo seu pai em conluio com os demais participantes aí mencionados e ficou alegado o prejuízo para o património comum dos seus pais e para si próprias como suas herdeiras legitimárias, daí resultando claro o interesse e a legitimidade das recorrentes na invocação da simulação e da consequente defesa da sua legítima.
13ª. Quanto ao segundo argumento do despacho recorrido, de que a alegada simulação não envolveu todas as partes intervenientes no processo, pois que a mãe não agiu simuladamente, pelo que não se verifica verdadeira simulação processual já que o litígio discutido pela R. era real e não simulado, tal não pode ser de modo algum impeditivo do direito das aqui recorrentes virem invocar a simulação e de defenderem a expectativa juridicamente tutelada à sua legítima no património próprio e comum de ambos os seus pais.
14ª. O facto de as recorrentes alegarem que sua mãe desconheceria a simulação do acto que elas pretendem atacar não implica a necessária consequência jurídica de que o litígio era real e não simulado. Na verdade, alegam as recorrentes ter sido a acção contestada em conjunto e num só articulado pelos seus pais, alegando ainda que sua mãe desconheceria os actos negociais praticados pelo seu pai, pelo que desconheceria a simulação agora pretendida desvendar.
15ª. A realidade é que a contestação conjunta de seus pais constitui e resulta no encobrimento e ocultação do negócio realmente ocorrido, fazendo prevalecer apenas os factos constitutivos do negócio simulado, pelo que se verifica, pela sua posição processual conjunta, uma verdadeira e efectiva simulação processual, que permite que as recorrentes invoquem a simulação processual como o fizeram.
16ª. A alegação no despacho recorrido de que as aqui recorrentes juntam aos autos documento que, em seu entender, comprova que a quantia que foi entregue ao marido pela autora do processo principal foi utilizada em proveito próprio deste, para benefício de uma sociedade que este constituíra e que tal documento, juntamente com os demais aí juntos, se centram na questão da finalidade do mútuo e da utilização da quantia mutuada e não afastam o fundamento da decisão revidenda, de que a dívida fora contraída pelo réu dos autos principais com o consentimento da então sua mulher, pelo que não existe fundamento para a revisão da sentença com base na al. c) do artº 696º do C. P. Civil, é errada e desconforme com a matéria de facto por si alegada no recurso de revisão interposto,
17ª. Da qual resulta claramente que a dívida do aí alegado mútuo não foi na verdade constituída pelo casal dos pais das recorrentes, pois que a quantia alegadamente mutuada apenas foi depositada na conta bancária comum do casal e dela saiu logo no dia seguinte, o que se demonstra pelos documentos juntos, pelo que, desconhecendo a mãe das recorrentes tais factos, a própria conclusão do seu consentimento foi extraída e resultou do plano gizado e composto pelos factos simulados, já que, desconhecendo na verdade a realidade dos factos efectivamente ocorridos, nunca poderia a sua mãe consentir no que não conhecia, como resulta claramente do alegado nos artºs 43º a 54º do articulado das recorrentes que foi indeferido.
18ª. Para além de errada e desconforme com a matéria alegada, tal conclusão vertida no despacho recorrido é precoce e proferida num juízo antecipatório inaceitável, ao afirmar que os documentos juntos pelas requerentes não são suficientes para modificar a decisão em sentido mais favorável à parte vencida, pois que a mesma apenas seria legítimo extrair-se após a produção da prova dos factos que as recorrentes invocaram como causa de pedir complexa do recurso de revisão.
19ª. Face ao exposto, a decisão recorrida fez uma errada interpretação e violou o disposto no artº 242º, nº 2 do Código Civil, bem como nos artºs 631º, nº 3 e al. c) conjugada com a al. g) do artº 696º, estes do Cód. Proc. Civil, impondo-se a sua revogação.
Terminam as requerentes peticionando que seja dado provimento ao presente recurso, em consequência do que deveria ser revogada a decisão recorrida e substituída por outra que determine o recebimento do requerimento inicial do recurso de revisão e o prosseguimento dos seus ulteriores termos legais até final.
Houve contra-alegações nas quais se pugna pela confirmação da sentença do tribunal “a quo”.
*
II – Questões a Apreciar
A questão a decidir prende-se com a apreciação dos fundamentos esgrimidos pelo Tribunal de primeira instância que determinaram a improcedência liminar do recurso de revisão deduzido. Em causa, pois, conhecer da legitimidade das requerentes e dos fundamentos invocados para o recurso de revisão plasmados no artigo 696.º do Código do Processo Civil (CPC).

III – Fundamentação de direito
Criado pelo Código do Processo Civil de 1939, o recurso extraordinário de revisão previsto hoje no art. 696º visa a alteração de uma decisão já transitada em julgado em situações limite, taxativamente reguladas pela lei, nas quais se entende dever assegurar o primado da verdade material sobre a segurança e certeza jurídicas.
Diz a lei, no que ao caso interessa, que uma decisão transitada em julgado só pode ser objeto de revisão quando
“c) Se apresente documento de que a parte não tivesse conhecimento, ou de que não tivesse podido fazer uso, no processo em que foi proferida a decisão a rever e que, por si só, seja suficiente para modificar a decisão em sentido mais favorável à parte vencida;
g) O litígio assente sobre ato simulado das partes e o tribunal não tenha feito uso do poder que lhe confere o artigo 612.º, por se não ter apercebido da fraude.”
No caso da alínea c), entendeu o tribunal “a quo” que os documentos ora juntos pelas requerentes não seriam suficientes para modificar a decisão em sentido mais favorável à parte vencida.
No que concerne à alínea g) relativa à existência de acto simulado das partes decidiu a primeira instância que tal fundamento não seria admissível por um duplo motivo: por um lado, por as requerentes não terem legitimidade para a sua interposição nos termos do art. 631º, nº3, do C. P. Civil na medida em que não foram prejudicadas com a sentença e, por outro, porque a alegada simulação não envolveu todas as partes, pois a mãe destas não teria agido simuladamente.
Vejamos se estes argumentos procedem, contrapondo-os à impugnação protagonizada pelas recorrentes, já reproduzida nas conclusões das doutas alegações.
No que concerne à alínea c), o(s) documento(s) atendível(is) como fundamento da revisão da decisão transitada em julgado nos termos estabelecidos na al. c) do art. 771.º do CPC (696º NCPC), terão de preencher, cumulativamente, os requisitos da novidade e o requisito da suficiência.
Assim, o recurso de revisão não pode ser utilizado nomeadamente para reabrir uma discussão dos factos já determinados na decisão transitada em julgado; daí que se exija o requisito da novidade destes documentos em relação aos meios de prova que foram considerados no processo. Do mesmo modo, o documento tem que assumir contornos que legitimem a conclusão segundo a qual a sua junção será suficiente; donde, esse documento não deverá ser tido em conta se o respectivo teor não infirma, por si só, os fundamentos da decisão a rever, subsistindo, perante eles, ainda assim, o motivo em que se sustentou o juízo decisório (neste sentido, por todos e entre vários outros, citando Acórdão do STJ de 17.9.2009, o Acórdão desta Relação de 2 de Dezembro de 2014, disponível em dgsi.pt, processo 536/2002.C1-A).
Os documentos ora juntos pretendem demonstrar que a quantia que entrou no património do casal, os pais das autoras, terá saído logo no dia seguinte para benefício de uma sociedade que hoje tem como único sócio o ora 2º demandado, pai das demandantes.
Deste modo, encontrar-se-ia indiciado que a quantia em apreço nos autos não teria integrado, na verdade, o património comum do casal e que a mulher dela não teria retirado qualquer proveito.
Contrapõe doutamente o tribunal “a quo” que a comunicabilidade da dívida à ré, mãe das demandantes, teria sido apurada pelo tribunal, não por aplicação do disposto no art.1691º, nº1, alíneas c) e d) do Código Civil – relativa ao proveito comum do casal – mas, sim, da alínea a) concernente ao consentimento da cônjuge mulher. E assim é, de facto (leia-se neste sentido o Acórdão da Relação do Porto que confirmou a sentença proferida pela primeira instância, no qual se alerta, justamente, para tal circunstância – cf. fls. 107 dos autos).
Os documentos juntos nada permitem inferir quanto ao consentimento, ou não, da F… relativamente à situação descrita; como bem admitem as próprias recorrentes nas suas alegações o apuramento, ou não, desse consentimento “apenas seria legítimo extrair-se após a produção da prova dos factos que as recorrentes invocaram como causa de pedir complexa do recurso de revisão”.
Simplesmente, como ficou dito, não é esta a previsão normativa da alínea c) do art. 696.º do CPC que exige que os documentos fossem suficientes, de “per si”, para extrair essa conclusão de ausência de consentimento.
Ora, como parecem implicitamente as próprias recorrentes reconhecer, essa asserção imporia reabrir a discussão e apurar novamente dos factos e das provas analisados no processo já transitado em julgado justamente o que a lei quis vedar ao impor este requisito relativo à admissibilidade do recurso de revisão.
Comungamos, portanto, do entendimento do tribunal apelado segundo o qual os documentos apresentados não são suficientes para modificar a decisão em sentido mais favorável à parte vencida.
Resta a apreciação da alínea g) do art. 696.º quanto à demonstração de que estaremos perante um litígio assente sobre acto simulado das partes.
Segundo o tribunal de primeira instância, na própria versão das recorrentes, a alegada simulação não terá existido pelas partes na medida em que a mãe destas, ora demandada, não agiu simuladamente. Por sua vez, contrapõem as apelantes que, por ter sido a acção contestada em conjunto e num só articulado pelos seus pais, se verifica, por força dessa posição processual conjunta, uma verdadeira e efectiva simulação processual.
Nas palavras de Lebre de Freitas (C. Proc. Civil Anotado, Vol. II, 2ª Ed. p. 695 e 696) “Tem lugar a simulação processual quando as partes, de comum acordo, criam a aparência dum litígio inexistente para obter uma sentença cujo efeito apenas querem relativamente a terceiros, mas não entre si. Tem lugar a fraude processual quando as partes, de comum acordo, criam a aparência dum litígio para obter uma sentença cujo efeito pretendem, mas que lesa um direito de terceiro ou viola uma lei imperativa predisposta no interesse geral”.
No caso concreto, teríamos uma eventual fraude processual: a sociedade por quotas, primeira demandada, ter-se-ia conluiado com o demandado G… para alegar um mútuo inexistente em ordem a obter uma sentença que apurasse uma dívida igualmente inexistente do património comum do casal, G… e F….
De todo modo, citando o mesmo Lebre de Freitas, “a simulação do litígio, comum a ambas as figuras, passa quase sempre, mediante prévio acordo das partes, entre si conluiadas, pela alegação pelo A., não contraditada ou ficticiamente contraditada pelo R., duma versão fáctica não correspondente à realidade”.
Ora, a nosso ver, processualmente foi justamente essa a arquitectura processual que se verificou nos articulados.
Uma versão alegadamente simulada construída a partir de factos falsos alegados no petitório pela sociedade autora e uma contestação também ela falsa e artificialmente construída pelo réu G…o de modo a conseguir um resultado danoso para o património do casal. É certo que a F… não terá participado dessa simulação que desconhecia; mas igualmente nada fez para dela se desmarcar; deste modo, em termos processuais, a simulação, salvo melhor opinião, subsiste incólume na justa medida em que a única contestação junta aos autos, subscrita também pela F…, colaborou activamente nessa “verdade forjada” e não se demarcou dessa versão dos factos, por exemplo por via da apresentação de uma contestação autónoma ou, no mínimo, pela não subscrição da versão alegadamente forjada dos factos.
Parece-nos, portanto, em rigor, que se verificou - em termos de mera alegação conducente ao prosseguimento do presente recurso de revisão - por acção directa de todos os envolvidos, um litígio totalmente assente sobre acto simulado das partes.
Reforce-se que a lei põe o acento tónico na litígio em si mesmo e não no comportamento das partes, individualmente consideradas.
Ou seja, o litígio vertido nos articulados – petição, contestação – teria assentado exclusivamente numa fraude processual; uma das partes desconheceria essa aventada simulação mas, ao subscrever uma contestação conjunta com o então marido, acabou por colaborar activamente no erigir desse falso litígio. A contestação dela foi conjunta à do marido e é, objectivamente, pelo teor desta que teremos de qualificar o litígio; assim sendo, concluímos que foi “o litígio assente sobre acto simulado das partes”.
Tem, pois, fundamento bastante o recurso de revisão deduzido.
Apuremos, finalmente, da questão da legitimidade das autoras para a dedução do presente recurso de revisão quando estruturada na referida alínea g).
Recorde-se que o artigo 631º, nº3 estatui expressamente que o recurso previsto nesta alínea “pode ser interposto por qualquer terceiro que tenha sido prejudicado com a sentença”.
O tribunal entendeu pela ilegitimidade das filhas dos réus na medida em que estaria em causa o património dos pais, ambos vivos, e não o seu. Assim, “tratando-se de herdeiras legitimárias, a legitimidade dos herdeiros para agir quanto ao acto simulado em vida do simulador apenas existe quando o acto foi praticado com o intuito de o prejudicar. Estes factos não foram alegados, nem se admitem, no contexto da alegação das requerentes – art. 242º, nº2, do C. Civil.”
Ripostaram as recorrentes tendo dito que alegaram nos seus artºs 8º, 45º, 46º, 47º, 48º, 57º, 58º, 68º, 82º, 83º, 95º, 99º e 100º factos bastantes para concluir pela sua legitimidade para o pleito.
Em termos históricos, os herdeiros legitimários foram tidos como fazendo parte desta noção de “terceiro” já no CPC de 1939. Assim, nesse regime do CPC de 1939, em que o conceito de terceiro com legitimidade para efeito de recurso extraordinário de oposição de terceiro era mais restrito até do que o regime actual, Alberto dos Reis, no seu CPC Anotado, vol. VI, pág. 425 e 426, já explicava que o recurso em causa “foi instituído para tutela dos terceiros sujeitos à eficácia reflexa do caso julgado, para os terceiros prejudicados, não nos seus direitos mas nos seus interesses patrimoniais, pela declaração contida na sentença.” E a seguir acrescentava sintomaticamente: “Os exemplos característicos são os dos credores e dos herdeiros legitimários.” (sublinhado nosso)
Ora, os interesses patrimoniais das recorrentes foram alegadamente prejudicados conforme estas alegam designadamente nos artigos 99º e 100º ao referirem a repercussão dos actos processuais simulados e sentença deles decorrente no património “de si próprias”.
Em síntese final, entendemos, salvo o devido respeito por posição contrária, dever permitir-se o recebimento do requerimento inicial do recurso de revisão por estarem preenchidos os requisitos do art. 696.º, al.g) do CPC, e apenas os desta alínea, sendo as autoras partes legítimas.
Questão bem diversa, naturalmente, será a da efectiva sustentabilidade substancial dos pressupostos fácticos e de direito em que assenta o dito requerimento e que apenas o desenrolar do recurso permitirá aferir definitivamente.
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Cumpre agora sumariar o presente acórdão (art. 663.º, nº7 do Código do Processo Civil):
I) Criado pelo Código do Processo Civil de 1939, o recurso extraordinário de revisão, hoje previsto no art. 696º, visa a alteração de uma decisão já transitada em julgado apenas em situações limite, taxativamente previstas na lei.
II) Designadamente uma decisão transitada em julgado pode ser objeto de revisão quando “se apresente documento de que a parte não tivesse conhecimento, ou de que não tivesse podido fazer uso, no processo em que foi proferida a decisão a rever e que, por si só, seja suficiente para modificar a decisão em sentido mais favorável à parte vencida.”
III) Os documentos atendíveis como fundamento da revisão da decisão transitada em julgado nos termos estabelecidos na al. c) do art. 696º terão de preencher, cumulativamente, os requisitos da novidade e da suficiência; este último exige que esses documentos, o seu teor, infirmem, de “per si”, os fundamentos da decisão a rever.
IV) Nos casos em que as partes, de comum acordo, criam a aparência dum litígio para obter uma sentença cujo efeito pretendem, mas que lesa um direito de terceiro ou viola uma lei imperativa predisposta no interesse geral, a simulação assume a dimensão de uma fraude processual.
V) A alínea g) do art. 696.º permite a revisão de uma sentença transitada em julgado quando se alegue estarmos perante um litígio assente sobre acto simulado das partes.
VI) Sintomaticamente a lei coloca o acento tónico no litígio e não no comportamento das partes. Deste modo, para apurar da verificação liminar deste requisito, importa apurar se foi alegado que o litígio vertido nos articulados – petição, contestação – teria sido assente exclusivamente numa fraude, ou simulação, processual.
VII) Deste modo, ainda que uma das partes desconheça essa eventual simulação mas tenha subscrito uma contestação, conjuntamente com o então marido, a qual corporize esse acto simulado, teremos de concluir que o litígio foi falsamente erigido, estando, assim, “assente sobre acto simulado das partes”.
VIII) O recurso de revisão assente na verificação da alínea g) do art. 696.º do CPC apenas “pode ser interposto por qualquer terceiro que tenha sido prejudicado com a sentença”.
IX) Fazem parte deste conceito de “terceiro” os herdeiros legitimários, conforme entendimento já consagrado pela doutrina no Código do Processo Civil de 1939 para o então denominado recurso extraordinário de oposição de terceiro de teor mais restrito que o regime actual.

V – Decisão
Nestes termos, decide-se julgar procedente o recurso deduzido, revogando-se a decisão proferida, devendo receber-se o requerimento inicial do presente recurso de revisão.
Custas pela parte vencida, a fixar a final.

Porto, 13 de Setembro de 2016
José Igreja Matos
Rui Moreira
Fernando Samões