Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
2727/13.8TBPVZ.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: MANUEL DOMINGOS FERNANDES
Descritores: PROCEDIMENTO CAUTELAR
INVERSÃO DO CONTENCIOSO
ARROLAMENTO
ENTREGA DOS BENS
INUTILIDADE
NULIDADE
Nº do Documento: RP201405192727/13.8TBPVZ.P1
Data do Acordão: 05/19/2014
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO.
Decisão: ANULADA.
Área Temática: .
Sumário: I- A inversão do contencioso prevista no artigo 369.º, nº 1º do CPCivil só é admissível se a tutela cautelar puder substituir a definitiva e, tendo em conta o elenco previsto no artigo 376.º, nº 4 do mesmo diploma legal, apenas se a providência cautelar requerida de carácter nominado ou inominado - não tiver um sentido manifestamente conservatório.
II- A inversão não é, deste modo, aplicável às restantes providências especificadas previstas no CPCivil, nomeadamente, ao Arresto, ao Arrolamento e ao Arbitramento de Reparação Provisória.
III- Se o tribunal declara haver inutilidade no decretamento de um procedimento cautelar de arrolamento, não se verifica a nulidade da decisão estatuída no artigo 615.º, nº 1 al. b) do CPCivil se, embora não esteja autonomizada, em relação à restante matéria, a base factual que a suporta, dela consta o fundamento que levou àquela inutilidade.
IV- Todavia, se o tribunal entendia que existia inutilidade do arrolamento a consequência seria a extinção da instância nos termos estatuídos no artigo 277.º, al. e) do CPCivil e não a improcedência da providência.
V- Acontece que, o facto de a requerida ter posto à disposição da requerente os bens objecto de arrolamento isso não torna inútil a providência requerida se esta não solicitou a sua entrega, e os bens se encontram em instalações cujo gozo, decorrente de relação arrendatícia, a requerente já não tem por terem sido entregues à requerida, sua proprietária, na sequência de transacção judicial em acção de despejo, mas que aquela alega ser nula.
VI- Para além disso, o tribunal não pode substituir o pedido de arrolamento pelo da remoção dos bens das instalações onde eles se encontram, quando a requerente pretende que os bens aí continuem, sendo apenas entregues ao depositário por ela indicado.
VII- A decisão assim proferida é nula nos termos consignados no artigo 615.º, nº 1 al. e) por ser diversa da solicitada.
Reclamações:
Decisão Texto Integral:
Processo nº 2727/13.8TBPVZ.P1-Apelação
Origem: Tribunal Judicial da Comarca de Póvoa do Varzim-1º Juízo Cível

Relator: Manuel Fernandes
1º Adjunto Des. Caimoto Jácome
2º Adjunto Des. Macedo Domingues

Sumário:
I- A inversão do contencioso prevista no artigo 369.º, nº 1º do CPCivil só é admissível se a tutela cautelar puder substituir a definitiva e, tendo em conta o elenco previsto no artigo 376.º, nº 4 do mesmo diploma legal, apenas se a providência cautelar requerida de carácter nominado ou inominado - não tiver um sentido manifestamente conservatório.
II- A inversão não é, deste modo, aplicável às restantes providências especificadas previstas no CPCivil, nomeadamente, ao Arresto, ao Arrolamento e ao Arbitramento de Reparação Provisória.
III- Se o tribunal declara haver inutilidade no decretamento de um procedimento cautelar de arrolamento, não se verifica a nulidade da decisão estatuída no artigo 615.º, nº 1 al. b) do CPCivil se, embora não esteja autonomizada, em relação à restante matéria, a base factual que a suporta, dela consta o fundamento que levou àquela inutilidade.
IV- Todavia, se o tribunal entendia que existia inutilidade do arrolamento a consequência seria a extinção da instância nos termos estatuídos no artigo 277.º, al. e) do CPCivil e não a improcedência da providência.
V- Acontece que, o facto de a requerida ter posto à disposição da requerente os bens objecto de arrolamento isso não torna inútil a providência requerida se esta não solicitou a sua entrega, e os bens se encontram em instalações cujo gozo, decorrente de relação arrendatícia, a requerente já não tem por terem sido entregues à requerida, sua proprietária, na sequência de transacção judicial em acção de despejo, mas que aquela alega ser nula.
VI- Para além disso, o tribunal não pode substituir o pedido de arrolamento pelo da remoção dos bens das instalações onde eles se encontram, quando a requerente pretende que os bens aí continuem, sendo apenas entregues ao depositário por ela indicado.
VII- A decisão assim proferida é nula nos termos consignados no artigo 615.º, nº 1 al. e) por ser diversa da solicitada.
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I - RELATÓRIO
Acordam no Tribunal da Relação do Porto:

B….., com sede na Rua …., …., …., Póvoa do Varzim, intentou o presente procedimento cautelar de arrolamento nos termos que constam de fols. 5 a 19 contra a Sociedade C…., S.A., com sede no …., Nº …, …., Porto, D….., a citar no Largo …, Nº …, …, Porto e E….., a citar no Largo …., Nº …, Massarelos, estes dois últimos por si e na qualidade de administradores da sociedade requerida, formulando os seguintes pedidos:
“a) – O Arrolamento de todas as coisas que se encontram na totalidade das instalações da B......., Lda que são propriedade da aqui Autora;
b) – Que a providência seja decretada sem contraditório prévio da Ré para salvaguardar a sua finalidade e eficácia, nos termos do preceituado no artigo 366.º, nº 1 do Código de Processo Civil;
c) – Dada a extensão, quantidade e qualidade dos bens a arrolar requer-se, também, que o arrolamento seja efectuado pela aposição de selos e posteriormente se passe à descrição e avaliação de todos os bens em causa nos termos do previsto no artigo 407.º do Código de Processo Civil;
d) – Requer-se ainda que seja nomeado fiel depositário o Senhor F….. nos termos do previsto no artº 408º do Código de Processo Civil, por haver manifesto inconveniente, pelos motivos, razões e fundamentos atrás alegados em que sejam os seus actuai s possuidores, a quem deve ser facultado o acesso permanente ao local;
e) – Decrete a nulidade da transacção celebrada e constante do documento n º 3 nos termos do preceituado no artigo 369.º do Código de Processo Civil, operando a inversão do contencioso e dispensando a requerente de propor a acção principal.
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O tribunal, em despacho fundamentado, fez actuar o princípio do contraditório tendo, então, os requeridos apresentado a oposição constante de fols. 77 a 94 onde concluem requerendo o seguinte:
a) seja declarada a ilegitimidade processual das pessoas singulares requeridas, nos termos do que se acha legalmente previsto no artigo 30.º do CPC, com as consequências estabelecidas nos artigos 278.º, n.º 1, alínea d) e 577.º, alínea e) do CPC;
b) Seja declarada improcedente a providência cautelar de arrolamento intentada, com todas as legais consequências, nomeadamente quanto aos pedidos em a), b), c) e d) do requerimento inicial da Requerente;
c) Seja declarado improcedente o pedido de declaração de nulidade da transacção celebrada no âmbito do Processo n.º 171/10.8TBPVZ desse douto Tribunal;
d) Seja concedido à Requerente prazo não superior a 10 dias para retirar todos os bens de que se arroga proprietária, constantes do Auto de apreensão (Doc. 1) das instalações da Requerida;
e) Que, caso a Requerente não retire tais bens no prazo concedido, seja condenada a pagar um valor, a título de renda por ocupação do espaço do armazém, não inferior a € 3.000,00 por cada mês, contados desde 01 de Janeiro de 2013 e até efectivo cumprimento da retirada;
f) Que, atento todo o condicionalismo acima exposto e o óbvio conhecimento que a Requerente sempre teve da tramitação dos diversos processos, seja exemplarmente condenada como litigante de má-fé, por ter dado origem ao presente Procedimento Cautelar.
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O processo seguiu os seus regulares termos tendo a Srª juiz, no dia designado para a inquirição das testemunhas, exarado em acta despacho do seguinte teor:
Considerando os pedidos formulados pela requerente e a posição assumida em sede de oposição pela requerida, verifica-se que o arrolamento requerido se tornou inútil na medida em que a requerida, tal como expressamente expressa em sede de oposição, manifestou a intenção e colocou à disposição da requerente os bens pretendidos arrolar, constantes do documento junto aos autos de fls. 111 a 117.
Face a tal circunstância e sendo este pedido o objecto da presente providência, verifica-se a desnecessidade de audição das testemunhas, as quais se dispensam desde já.
Assim, e atento o exposto e considerando ir de acordo a ambas as partes:
- Improcede o arrolamento requerido, pois a requerente poderá e deverá dentro do prazo de 15 dias, dirigir-se às instalações onde se encontram os bens cujo arrolamento requer, a fim de os remover. Para o efeito, deverá a requerente contactar previamente a requerida para efectuar a remoção de tais bens.
No mais, improcede o demais requerido sob a alínea e) da petição inicial, pois trata-se de uma questão a ser autonomamente decidida, não se verificando, deste modo, reunidos os pressupostos para a determinação da inversão do contencioso, ao abrigo do disposto no artigo 369º do C.P.C.
Custas pela Requerente.
Registe e notifique”.
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Não se conformando com o assim decidido veio a requerente interpor o presente recurso concluindo da seguinte forma:
1ª) – Ora do que se transcreve e da prova documental existente nos autos evidente se torna que a matéria de facto adquirida permite decidir definitivamente sobre a questão essencial da nulidade da transacção celebrada que contém norma convencional segundo a qual a requerente deixaria de ter interesse nos bens de sua propriedade.
2ª) – O que acontece é que o douto tribunal de 1ª instância não fixou, em momento algum, a matéria de facto alegada pelas partes não dando cumprimento ao preceituado no artigo 607º/4 do Código de Processo Civil pelo que o douto despacho está ferido, neste caso, de nulidade.
3ª) – Esta omissão está prevista no artigo 615º/1 alínea b) do Código de Processo Civil que estipula que é nula a sentença quando não especifique os fundamentos de facto que justificam a decisão.
4ª) – Por outro lado, prevê o artigo 609º/1 do Código de Processo Civil, que a sentença não pode condenar em objecto diverso do que se pedir , sendo certo que, no caso dos autos, o tribunal de 1ª instância proferiu um despacho sobre cujo conteúdo não foi pedido pela requerente.
5ª) – A requerida deduziu pretensão segundo a qual devia ser concedido à requerente prazo não superior a 10 dias para retirar todos os bens de que se arroga proprietária, constantes do Auto de Apreensão.
6ª) – Porém, este pedido que parece um pedido “quasi reconvencional” não tem cabimento, nem pode ser deduzido num procedimento cautelar por não ter cobertura legal, razão pela qual o tribunal de 1ª instância não podia ter decidido como decidiu.
7ª) – A sentença não pode condenar em objecto diverso do que se pedir.
8ª) – O tribunal de 1ª instância proferiu um despacho cujo conteúdo não foi pedido pela requerente.
9ª) – Pese embora a requerida tenha deduzido pretensão segundo a qual devia ser concedido à requerente prazo não superior a 10 dias para retirar todos os bens de que se arroga proprietária, constantes de Auto de Apreensão este pedido não tem cabimento, nem pode ser deduzido num procedimento cautelar por não ter cobertura legal, razão pela qual o tribunal de 1ª instância não podia ter decidido como decidiu.
10ª) – Estabelece o já citado artigo 615º/1 alínea e) do Código de Processo Civil que é nula a sentença quando o juiz condene em quantidade superior ou em objecto diverso do pedido.
11ª) – Tem, assim, de concluir pela nulidade da douta sentença recorrida por violação do previsto nos artigos 609º e 615º/1 alínea e) do Código de Processo Civil, na exacta medida que aos despachos e sentenças se aplicam as mesmas regras como resulta do preceituado nos artigos 152º, 153º e 154º todos do Código de Processo Civil.
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Devidamente notificados contra-alegaram os requeridos concluindo pelo não provimento do recurso.
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Após os vistos legais cumpre decidir.
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II- FUNDAMENTOS

O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente, não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso-cfr. artigos 635.º, nº 3, e 639.º, nºs 1 e 2, do C.P.Civil.
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No seguimento desta orientação são as seguintes as questões que importa decidir:
a)- saber se o tribunal podia, no âmbito do providência cautelar de arrolamento, decretar a inversão do contencioso;
b)- saber se a decisão recorrida é nula por falta de fundamentação de facto;
c)- saber se a mesma decisão é nula por ser diversa da solicitada.
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A)- FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

Os factos a ter em conta para a decisão do recurso são os constantes do relatório supra e que aqui se dão por reproduzidos.
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III. O DIREITO
Como se deixou referido a primeira questão que vem colocada no recurso consiste em:
a)- saber se o tribunal podia, no âmbito do providência cautelar de arrolamento, decretar a inversão do contencioso.
De facto, na sua primeira conclusão afirma a recorrente que, do que transcreveu e da prova documental existente nos autos evidente se tornava que a matéria de facto adquirida permitia decidir definitivamente sobre a questão essencial da nulidade da transacção celebrada que contém norma convencional segundo a qual a requerente deixaria de ter interesse nos bens de sua propriedade.
Ou seja, entende a recorrente que o tribunal podia ter decretado a inversão do contencioso.
Cremos, salvo o devido respeito, que existe aqui algum equívoco por parte da recorrente sobre esta figura processual que o novo Código de Processo Civil aprovado pela Lei 41/2013 de 26/06 introduziu.
Vejamos.
Com a reforma do Código de Processo Civil, possibilita a lei o requerimento de inversão do contencioso, deixando o procedimento cautelar de ser necessariamente instrumental e provisório, uma vez que se permite que se forme convicção sobre a existência do direito apta a resolver de modo definitivo o litígio, verificados os pressupostos legalmente previstos.
A solução da inversão do contencioso surge na sequência da observação de uma espécie de duplicação de acções, dado que a referida instrumentalidade e dependência da acção principal leva, muitas vezes, a que nela se repitam os fundamentos e os elementos já trazidos ao procedimento cautelar, correspondendo, frequentemente, à controvérsia antes apreciada com menor ou maior segurança naquele procedimento. Entende-se, pois, que nos casos em que no procedimento cautelar é produzida prova suficiente para que se forme convicção segura sobre a existência do direito, não haverá razões para que não se resolva a causa de modo definitivo.[1]
Nos termos do artigo 369.º, nº 1 do C.P.Civil, a inversão do contencioso pode ocorrer caso o juiz, na decisão que decrete a providência, entenda que a matéria adquirida no procedimento lhe permite formar convicção segura acerca da existência do direito acautelado e se a natureza da providência decretada for adequada a realizar a composição definitiva do litígio.
Da análise desta norma verifica-se que, para que o requerente seja dispensado do ónus de propor a acção principal, terão de estar verificados dois pressupostos cumulativos, a saber:
a)- que a matéria adquirida no procedimento permite ao juiz formar convicção segura acerca da existência do direito acautelado; e
b)- que a natureza da providência decretada seja adequada a realizar a composição definitiva do litígio.
Decorre do estatuído que é a lei que define quais as condições que devem estar verificadas para que seja decretada a inversão. Trata-se, por isso, de uma decisão vinculada do Tribunal, e não de uma decisão tomada no uso de um poder discricionário. O Tribunal não inverte o contencioso segundo um critério de oportunidade ou de conveniência, mas de acordo com aqueles critérios legais.[2]
- Convicção segura acerca da existência do direito
Para que se encontre preenchido este primeiro pressuposto não basta a prova sumária do direito acautelado. Assim, no âmbito do procedimento cautelar, o Juiz terá de fazer um juízo mais profundo, de molde a formar a convicção segura da existência do direito acautelado. A inversão pressupõe, por isso, uma prova stricto sensu do direito que se pretende tutelar.
Como refere Miguel Teixeira de Sousa[3], “o que conta é que o juiz forme a convicção segura do direito que a providência se destina a acautelar, não a convicção segura da procedência da providência decretada”.
Segundo o Conselheiro Lopes do Rego[4], “o juiz só decretará a inversão do contencioso quando o grau de convicção que tiver formado ultrapassar o plano do mero fumus bonus juris, face nomeadamente à amplitude e consistência da prova produzida e à evidência do direito invocado pelo requerente (...) e entender- ponderadas as razões invocadas pelas partes-que a composição de interesses alcançada a nível cautelar pode servir perfeitamente como solução definitiva para o litígio”.
- Adequação da natureza da providência decretada a realizar a composição definitiva do litígio
A providência decretada tem ainda de ser adequada a realizar a composição definitiva do litígio. Assim, a lei exige que a providência decretada se possa substituir à tutela definitiva que o requerente da providência poderia solicitar na acção principal se não tivesse sido decretada a inversão do contencioso.[5]
Justifica-se a imposição deste pressuposto, uma vez que, tendo sido decretada a inversão e não tendo o requerido proposto a acção principal, a tutela cautelar tornar-se-á definitiva.
No que respeita às providências especificadas é a própria lei que determina quais aquelas onde pode ser requerida a inversão. Segundo o disposto no nº 4 do artigo 376.º do CPCivil, “o regime de inversão do contencioso é aplicável, com as devidas adaptações, à restituição provisória da posse, à suspensão de deliberações sociais, aos alimentos provisórios, ao embargo de obra nova, bem como às demais providências previstas em legislação avulsa cuja natureza permita realizar a composição definitiva do litígio”.
A inversão do contencioso só é, assim, admissível se a tutela cautelar puder substituir a definitiva e, tendo em conta o elenco previsto no artigo 376.º, apenas se a providência cautelar requerida-de carácter nominado ou inominado-não tiver um sentido manifestamente conservatório.
São assim quatro as providências especificadas às quais se aplica o regime da inversão do contencioso:
- restituição provisória da posse;
- suspensão de deliberações sociais;
- alimentos provisórios; e
- embargo de obra nova.
A inversão não é, deste modo, aplicável às restantes providências especificadas previstas no CPCivil, nomeadamente, ao Arresto[6], ao Arrolamento e ao Arbitramento de Reparação Provisória.
Nestes casos, a tutela definitiva e a tutela cautelar cumprem uma função totalmente distinta e prosseguem objectivos completamente diferentes, não sendo admissível aplicar-lhes a inversão.[7]
Colhe-se, portanto, do exposto que a inversão do contencioso não é aplicável à presente providência cautelar de arrolamento, já que ele tem, como resulta do artigo 403.º, nº 1 do CPCivil, uma finalidade meramente conservatória, ou seja, a tutela cautelar cumpre uma função totalmente distinta daquela que será a tutela definitiva.
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A segunda questão que a recorrente coloca nas suas alegações consiste em:
b)- saber se a decisão recorrida é nula por falta de fundamentação de facto.
As causas de nulidade da sentença ou de qualquer decisão são as que vêm taxativamente enumeradas no nº 1 do artigo 615.º do C.P.Civil.
Nos termos daquele preceito, é nula a sentença quando: a) não contenha a assinatura do juiz; b) não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão; c) os fundamentos estejam em oposição com a decisão ou ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível; d) o juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento; e) condene em quantidade superior ou em objecto diverso do pedido.
Os vícios determinantes da nulidade da sentença correspondem a casos de irregularidades que afectam formalmente a sentença e provocam dúvidas sobre a sua autenticidade, como é a falta de assinatura do juiz, ou ininteligibilidade do discurso decisório por ausência total de explicação da razão por que decide de determinada maneira (falta de fundamentação), quer porque essa explicação conduz, logicamente, a resultado oposto do adoptado (contradição entre os fundamentos e a decisão), ou uso ilegítimo do poder jurisdicional em virtude de pretender conhecer questões de que não podia conhecer (excesso de pronúncia) ou não tratar de questões de que deveria conhecer (omissão de pronúncia). São, sempre, vícios que encerram um desvalor que excede o erro de julgamento e que, por isso, inutilizam o julgado na parte afectada.[8]
Evidentemente que uma coisa é falta de fundamentação da decisão da matéria de facto, outra coisa é nulidade da sentença quando não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão [al. b) do citado artigo 615.º nº 1 do C.P.Civil].
A nulidade da falta de fundamentação de facto e de direito está relacionada com o comando do artigo 607.º, nº 3 do C.P.Civil, que impõe ao juiz o dever de discriminar os factos que considera provados e de indicar, interpretar e aplicar as normas jurídicas correspondentes.
Como é entendimento pacífico da doutrina, só a falta absoluta de fundamentação, entendida como a total ausência de fundamentos de facto e de direito, gera a nulidade prevista na al. b) do nº 1 do citado artigo 615.º. A fundamentação deficiente, medíocre ou errada afecta o valor doutrinal da sentença, sujeita-a a ao risco de ser revogada ou alterada em recurso, mas não produz nulidade.[9]
Portanto, para que haja falta de fundamentação, como causa de nulidade da sentença, torna-se necessário que o juiz não concretize os factos que considera provados e os não coloque na base da decisão[10].
Ora, será deste vício que padece a decisão recorrida?
Analisando.
Dúvidas parecem não se levantar que a decisão recorrida não concretizou tout court e pela forma que no geral se vê nas decisões judiciais um acervo factual em que assentou a sua base decisória.
Todavia, a questão que se coloca é se tal era necessário face à decisão proferida.
E, pensamos, salvo melhor entendimento, que isso não se tornava necessário.
Efectivamente, a decisão proferida foi no sentido da inutilidade do arrolamento requerido, por se ter entendido que a requerida, tal como expressamente refere em sede de oposição, manifestou a intenção e colocou à disposição da requerente os bens pretendidos arrolar, constantes do documento junto aos autos de fls. 111 a 117.
Ora, com base em tal entendimento, a Srª juiz do processo julgou improcedente o arrolamento requerido, determinando que a requerente dentro do prazo de 15 dias, se dirija às instalações onde se encontram os bens cujo arrolamento requer, a fim de os remover e, quanto ao pedido de inversão do contencioso, julgou-o também improcedente por se tratar de uma questão a ser autonomamente decidida.
Sendo este o conteúdo decisório, evidentemente que o tribunal não tinha que proceder à concretização de uma base factual no sentido estrito da sua autonomização face à restante matéria. Todavia, essa não autonomização, não significa que a decisão proferida não tenha lá a base factual em que se estribou.
Tem-na, de facto, pois que, a aquela inutilidade do arrolamento deriva, segundo a decisão recorrida, da circunstância de, em sede de oposição, a requerida ter manifestado a intenção e ter colocado à disposição da requerente os bens pretendidos arrolar, ou seja, esta é base factual que sustenta a decisão, sendo que, quanto ao demais (inversão do contencioso) trata-se de uma mera apreciação jurídica não carecida de suporte factual.
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A terceira questão que a recorrente pretenda que este tribunal aprecie prende-se com:

b)- saber se a decisão é nula por ser diversa da solicitada.

Estatui o artigo 615.º, nº 1 al. e) do CPCivil que “É nula a sentença quando:
(…)
e) “O juiz condene em quantidade superior ou em objecto diverso do pedido”.
Esta nulidade vem, aliás, na sequência do estipulado no artigo 609.º, nº 1 do mesmo diploma legal que refere que a sentença não pode condenar em quantidade superior ou em objecto diverso do que se pedir”.
Ora, no caso concreto, a requerente formulou dois pedidos distintos:
a)- o Arrolamento de todas as coisas que se encontram na totalidade das instalações da B......., Lda que são propriedade da aqui Autora;
b) (…)
c) (…)
d) (…)
e)- a decretação da nulidade da transacção celebrada e constante do documento n º 3 nos termos do preceituado no artigo 369.º do Código de Processo Civil, operando a inversão do contencioso e dispensando a requerente de propor a acção principal.
Efectivamente, os restantes sob as alíneas b), c) e d) são apenas decorrências do pedido formulado em a).
Portanto, dúvidas não existem de que a recorrente solicitou ao tribunal, em primeira linha, o arrolamento dos bens que se encontrassem na totalidade das suas instalações.
Ora, como sabemos, o arrolamento (cfr. artigos 403.º e segs. do C.P.Civil) é uma medida cautelar de carácter conservatório destinada a assegurar a manutenção de bens litigiosos (ou o não extravio, ocultação ou dissipação), no período em que persistir a discussão da titularidade do direito no âmbito da acção principal.
Como referia Alberto dos Reis[11] “se uma pessoa tem ou pretende ter direito a determinados bens e mostra que certos factos ou circunstâncias fazem nascer o justo receio de que o detentor ou possuidor deles os extravie ou dissipe antes de estar judicialmente reconhecido, de forma definitiva, o seu direito aos mesmos bens, estamos perante ocorrências que justificam o uso (…) do arrolamento”.
Tal como ocorre com a generalidade das providências não especificadas, também o arrolamento dispensa a formulação de um juízo seguro quanto à titularidade do direito, bastando que o tribunal, com base em factos que considere provados, se convença da sua existência, de acordo com um critério de verosimilhança ("probabilidade séria", segundo o artigo 368.º, n.º 1 do CPCivil), sendo que, tratando-se de direitos de natureza potestativa, se exige adicionalmente a verificação da probabilidade de procedência da acção principal, nos termos do art.º 405.º, n.º 1 do CPCivil, solução justificada para evitar que o arrolamento seja posto ao serviço de pretensões manifestamente inviáveis, de pretensões claramente infundadas ou de pretensões que não apresentam probabilidade alguma de êxito.[12]
Acontece que, o tribunal entendeu, como acima já se referiu, que havia inutilidade do arrolamento por a requerida, em sede de oposição, ter colocado à disposição da requerente os bens pretendidos arrolar constantes do documento junto aos autos de fls. 111 a 117.
E, com base em tal comportamento, da requerida apelada, julgou improcedente, a providência e determinou que a requerente, dentro do prazo de 15 dias, se dirigisse às instalações onde se encontram os bens cujo arrolamento requer, a fim de os remover.
Sendo esta a decisão do tribunal recorrido, cremos, salvo melhor entendimento, que o tribunal não se conteve dentro do pedido formulado, tendo decretado pretensão diversa da formulada pela requerente e que se consubstanciava, como já se assinalou, no arrolamento dos bens.
Analisando.
O tribunal recorrido, como se referiu, entendeu que havia inutilidade do arrolamento.
Bom, mas se havia inutilidade da providência a consequência seria a extinção da instância nos termos estatuídos no artigo 277.º, al. e) do CPCivil.
Como diz o professor Alberto dos Reis[13] “A inutilidade superveniente da lide é a cessação da matéria da contenda”, ou seja, verifica-se a inutilidade da lide quando a pretensão do autor deixou de se poder manter, ou porque desapareceram os sujeitos ou o objecto do processo ou ela foi satisfeita fora do esquema da providência pretendida.[14]
Efectivamente, a relação processual tem como elementos os sujeitos-as partes ou os interessados-e o objecto-o pedido e a causa de pedir. Se, depois de iniciada a instância, um destes elementos deixar de existir, a relação processual fica “desprovida de um dos seus elementos vitais, sucumbe, porque se tornou impossível, ou porque já é inútil a decisão final sobre a demanda”.[15]
Portanto, se o tribunal entendia, como entendeu, que o facto de a requerida ter posto à disposição da requerente apelante os bens cujo arrolamento requereu, isso satisfazia a pretensão desta, então o que deveria ter feito era julgar extinta a instância com tal fundamento, por a lide do procedimento cautelar se ter, então, tornado inútil.
Todavia, o tribunal recorrido não enveredou por esse caminho, pois que, não só julgou improcedente a providência como determinou que a requerente procedesse à remoção dos bens no prazo de 15 dias das instalações onde os mesmos se encontram.
Ao assim decidir, o tribunal impôs uma conduta à requerente que não solicitou e decidiu de forma diversa da impetrada por aquela.
Na verdade, com aquela decisão, o tribunal substituiu o pedido de arrolamento pelo da remoção dos bens das instalações onde eles se encontram.
Todavia, em momento algum, a requerente pediu a remoção dos bens.
Na verdade, o pedido formulado é, como supra se referiu, o arrolamento dos bens que se encontrem nas suas instalações (dela requerente).
E, para estes efeitos, de nada releva que esse pedido tenha sido formulado pelos requeridos na oposição. Com efeito, o tribunal apenas decreta a providência solicitada pelo requerente provados que estejam os respectivos pressupostos, não podendo, como é evidente, decretar qualquer outra solicitada pelo requerido em sede de oposição.
É certo que, na oposição, o requerido tem de concentrar todos os fundamentos que julgue convenientes, desde as excepções dilatórias, às peremptórias, impugnação dos factos alegados, factos que conduzam a uma redução da medida etc., não pode é formular pedidos por não lhe ser licito deduzir reconvenção.
Dito isto, o tribunal, salvo o devido respeito, olvidou, por completo, os fundamentos em que a requerente estribou a providência cautelar requerida.
Efectivamente, não faria sentido que a requerente viesse pedir o arrolamento de bens que se encontravam nas suas instalações.
Acontece que, as instalações onde a requerente desenvolvia a sua actividade eram arrendadas, sendo a senhoria a requerida.
Ora, após a requerente ter sido declarada insolvente e aprovado o Plano de Insolvência que no respectivo processo havia sido apresentado, a requerida representada pelos seus administradores e o Administrador da Insolvência em representação da requerente, no âmbito do processo nº 171/10.8TBPVZ que corria termos no 1º Juízo de Competência Cível do Tribunal da Póvoa do Varzim, em 20/01/2012, celebraram a transacção, cuja cópia se encontra junta aos autos a fols. 55, em que as partes aceitavam por termo ao contrato de arrendamento com efeitos a partir daquela data, sendo o arrendado entregue à senhoria também naquela data, livre de pessoas e bens, com excepção dos que constavam da lista que havia sido fornecida pelo representante da Ré (aqui requerente) e que a Autora daquela acção (a aqui requerida) autorizava que os mesmos ficassem aí guardados até 31 de Dezembro de 2012.
Resulta, assim, do exposto que a requerente pediu o arrolamento dos bens que se encontram em instalações cujo gozo a requerente detinha decorrente de relação arrendatícia mas que perdeu, por as mesmas terem sido entregues, na sequência daquela transacção, à requerida.
Porém, como também alega na providência, a requerente apelante entende que a referida transacção é nula.
Decorre, assim, do que se deixa dito que, o que a requerente solicitou, foi o arrolamento dos bens que estão em instalações sobre as quais já não tem qualquer gozo, decorrente do seu arrendamento, por terem sido entregues à requerida nos termos referidos.
Significa, portanto, que a requerente não pediu a remoção dos bens dessas instalações, o que pediu foi o seu arrolamento, continuando aí os bens, agora entregues ao depositário por ela indicado e, isto por, evidentemente, entender que, face à invocada nulidade da transacção, continuava a ser a sua arrendatária, sendo este, como nos parece óbvio, o fundamento da acção principal a propor.
É preciso não esquecer que o arrolamento é também dependência da acção à qual interessa a especificação dos bens (artigo 403.º, nº 2 do CPCivil).
Destarte, cremos que, por um lado o facto de a requerida ter posto à disposição da requerente os bens objecto de arrolamento isso não torna inútil a providência e por outro o tribunal proferiu decisão fora do âmbito do pedido, verificando-se, deste modo a nulidade estatuída no artigo 615.º, nº 1 al. e) do CPCivil.
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Procedem deste modo, em parte, as conclusões formuladas pela requerente apelante havendo, assim, que declarar a nulidade da decisão recorrida nos termos sobreditos.
É claro que, a declaração de nulidade da decisão recorrida, não impedia que este tribunal conhecesse do objecto da apelação nos termos estatuídos no artigo 665.º, nº 1 do CPCivil.
Todavia, isso só é assim se o tribunal de recurso dispuser dos elementos necessários para o efeito o que, no caso, não se verifica, pois que, os factos fundamento da providência e da oposição estão carecidos de prova, nomeadamente testemunhal arrolada pelas partes, não podendo este tribunal substituir-se ao tribunal recorrido já que isso representava a supressão de um grau de jurisdição.
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Nesta conformidade, declarando-se nula a decisão recorrida deverá o tribunal recorrido, dar seguimento à tramitação processual subsequente dos autos com a produção de prova proposta pelas partes, restrita como se enunciou, ao pedido de arrolamento (como se deixou referido no âmbito desta providência não é aplicável a inversão do contencioso) decidindo depois, em conformidade com a factualidade que venha a resultar provada, a providência cautelar requerida.
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IV-DECISÃO
Pelos fundamentos acima expostos, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação em julgar a apelação interposta pela Ré parcialmente procedente por provada e, consequentemente anulando a decisão recorrida deverá o tribunal recorrido ordenar a tramitação processual subsequente dos autos com a produção de prova proposta pelas partes decidindo, depois, em conformidade com a factualidade que venha a resultar provada, a providência cautelar requerida.
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Custas da apelação pelos apelados (artigo 527.º nº 1 do C.P.Civil).
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Porto, 19 de Maio de 2014.
Dr. Manuel Domingos Alves Fernandes
Dr. Caimoto Jácome
Dr. Macedo Domingues
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[1] Cfr., entre outros, Carlos Lopes do Rego, in Os princípios orientadores da Reforma do Processo Civil, in julgar, nº 16, pág. 109.
[2] Cfr. Miguel Teixeira de Sousa, As Providências Cautelares e a Inversão do Contenciso in https://sites.google.com.
[3] Ora citada, pág. 11.
[4] Obra citada.
[5] Miguel Teixeira de Sousa, pág. 11.
[6] Sobre a providência cautelar de arresto, Paula Costa e Silva, “Cautela e certeza: breve apontamento acerca do proposto regime de inversão do contencioso na tutela cautelar” in Debate [sobre] a reforma da processo civil 2012 - Lisboa; Sindicato das Magistradas da Ministério Público, 2012-pp. 139-149, p. 141, defende, partindo do art. 16 do Regime Processual Civil Experimental que se “o requerente carrear para o processo todos os elementos que permitam ao juiz atingir um juízo de certeza acerca do direito de crédito que se alega perigar, e se, para além desse requisito, for viável que, numa qualquer fase do procedimento, ao pedido de arresto acresça o pedido de condenação do requerido/réu no cumprimento da obrigação, pergunta-se: porque não poderá o juiz proferir imediatamente decisão condenatória do réu no cumprimento, acrescida do decretamento do arresto?”.
[7] Miguel Teixeira de Sousa obra citada pág. 12
[8] Abílio Neto, CPC Anotado, 22ª ed., pág. 948.
[9] Neste sentido, ver Alberto dos Reis, CPC Anotado, V, 140 e Antunes Varela, Manual de Processo Civil, Coimba Editora, 1984, pág. 669.
[10] Cfr. Antunes Varela, obra citada pág. 670.
[11] In Código de Processo Civil Anotado, vol. II, reimpressão, Coimbra Editora, Coimbra, 1981, pag. 105.
[12] Cfr. Lebre de Freitas, e outros, ob. e vol. cit., pág. 35; Alberto dos Reis, ob. e vol. cit., pág. 113 e Abrantes Geraldes, Temas da Reforma do Processo Civil, IV Volume, 3ª edição, Almedina, 2006, págs. 275 e ss
[13] Cfr. Comentário ao Código de Processo Civil, Coimbra Editora, 1946, Vol. III, pág. 369.
[14] Cfr. José Lebre de Freitas, Código de Processo Civil Anotado, Coimbra Editora, 1999, Vol. I, pág. 512.
[15] Cfr. J. Rodrigues Bastos, Notas ao Código de Processo Civil, Vol. II, pág. 59.