Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
6249/21.5T8VNG.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: TERESA SÁ LOPES
Descritores: REGISTO DE TRABALHO SUPLEMENTAR
INVERSÃO DO ÓNUS DA PROVA
PRINCÍPIO DO CONTRADITÓRIO
Nº do Documento: RP202309186249/21.5T8VNG.P1
Data do Acordão: 09/18/2023
Votação: MAIORIA COM 1 VOT VENC
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: RECURSO IMPROCEDENTE; CONFIRMADA A SENTENÇA
Indicações Eventuais: 4ª SECÇÃO (SOCIAL)
Área Temática: .
Sumário: I-- «O empregador deve ter um registo de trabalho suplementar em que, antes do início da prestação de trabalho suplementar e logo após o seu termo, são anotadas as horas em que cada uma das situações ocorre.», (artigo 231º, nº 1 do CT);
“II- A inversão do ónus da prova, no termos do art. 344º nº 2, do Código Civil e art. 417°, n° 2 do Código de Processo Civil, apresenta-se como uma sanção civil à violação do princípio da cooperação das partes para a descoberta da verdade material, consagrado no nº 1 do citado art. 417°, quando essa falta de colaboração vai ao ponto de tornar impossível ou particularmente difícil a produção de prova ao sujeito processual onerado com o ónus da prova nos termos gerais e seja culposa, no sentido de que a parte recusante podia e devia agir de outro modo.
III- Os princípios da boa fé e da cooperação determinam que as partes processuais adoptem uma conduta colaborante com o Tribunal no sentido da descoberta da verdade.
IV- O princípio do contraditório não pode ser interpretado como uma garantia de defesa ilimitada, mas como defesa pautada pelos princípios da lealdade e da colaboração na participação da decisão judicial.
V – À impossibilidade da prova, por actuação culposa da parte não colaborante para com o onerado, deve ser equiparado, em termos de sanção do art. 344º, nº 2, do Código Civil, um comportamento omissivo total ou parcialmente inviabilizador da prova, desde que, dessa falta de colaboração resulte, comprovadamente, fragilidade probatória causada pelo recusante.”
VI- Existe fundamento para concluir que a Entidade empregadora recusou a colaboração devida para o apuramento da verdade (artigo 417º do CPC), se por sua responsabilidade não juntou documentos – registos dos tempos de trabalho - que nos termos da lei devia possuir, existindo fundamento para a inversão das regras do ónus da prova (artigo 344º do CC), tendo sido notificada para juntar tais registos justificando a não junção de sua parte com o facto de a empresa responsável com o respetivo software apenas os guardar pelo período de cinco meses.
VII- Para efeitos do disposto no artigo 417º, nº2 do Código de Processo Civil, importa que as partes sejam advertidas previamente da eventualidade da inversão do ónus da prova, de forma a poderem gerir o esforço probatório que lhe é exigível e a evitar uma decisão-surpresa.
VIII – Tendo a Ré tomado posição expressa sobre a inversão do ónus da prova, requerida pelo Autor - concluindo que deve considerar-se que a Ré cumpriu com o que lhe foi determinado, nada havendo mais que juntar, não ocorrendo qualquer inversão do ónus da prova por falta dos requisitos exigidos pelo nº 2 do artigo 342º do Código Civil-, para efeitos de aplicação do disposto no nº2 do artigo 344º do Código Civil, não é exigível que a Ré seja formalmente advertida pelo Tribunal no sentido da possibilidade de inversão do ónus da prova.

(sumário inclui parte do sumário do Acórdão do STJ, referenciado no texto)
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo nº 6249/21.5T8VNG.P1
Origem: Tribunal Judicial da Comarca do Porto - Juízo do Trabalho de Vila Nova de Gaia - Juiz 3
Relatora: Teresa Sá Lopes
1ºAdjunto: Desembargador António Luís Carvalhão
2ª Adjunta: Desembargadora Paula Leal de Carvalho

1. Relatório (aproveitando o relatório efetuado na sentença recorrida):
AA intentou a presente ação de processo comum, emergente de contrato de trabalho, contra A..., Unipessoal, Ld.ª, pedindo que se condene a R. a pagar-lhe a quantia global de € 21 102,95, acrescida de juros de mora, à taxa legal, até efetivo e integral pagamento.
Alegou, para tanto, em suma, que a R. não o remunerou corretamente em termos de trabalho noturno, de trabalho suplementar, de trabalho prestado em dias de descanso semanal obrigatório ou complementar, nem quanto ao subsídio de alimentação, tudo de acordo com o Instrumento de Regulamentação Coletiva de Trabalho aplicável.
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Realizada a audiência de partes e frustrada a tentativa de conciliação, foi designada data para realização da audiência final, tendo a Ré sido notificada para contestar.
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A Ré contestou a ação, pugnando pela sua absolvição dos pedidos formulados.
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Foi proferido despacho saneador.
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Foi realizada a audiência final.

Foi posteriormente proferida sentença com o seguinte dispositivo que se transcreve:
“Pelo exposto, julgo a presente ação totalmente procedente, por provada, e, em consequência, condeno a R., A..., Unipessoal, Ld.ª, a pagar ao A., AA:
a) a quantia de € 1489,71 (mil quatrocentos e oitenta e nove euros e setenta e um cêntimos) a título de trabalho noturno prestado;
b) a quantia de € 1145,40 (mil cento e quarenta e cinco euros e quarenta cêntimos) a título de média do trabalho noturno prestado, a incidir sobre a retribuição de férias, o subsídio de férias e o subsídio de Natal;
c) a quantia de € 2170,33 (dois mil cento e setenta euros e trinta e três cêntimos) a título de trabalho suplementar prestado;
d )a quantia de € 8462,88 (oito mil quatrocentos e sessenta e dois euros e oitenta e oito cêntimos) a título de trabalho prestado em dias de descanso semanal obrigatório ou complementar;
e) a quantia de € 2718 (dois mil setecentos e dezoito euros) a título de descanso compensatório não gozado;
f) a quantia de € 888,36 (oitocentos e oitenta e oito euros e trinta e seis cêntimos) a título de subsídio de alimentação;
g) a quantia de € 966,48 (novecentos e sessenta e seis euros e quarenta e oito cêntimos) a título de trabalho prestado em dias feriado;
h) juros de mora, à taxa legal, contados desde o vencimento de cada uma daquelas prestações, até efetivo e integral pagamento.
Condeno o A. e a R. no pagamento das custas da ação, na proporção do respetivo decaimento.
Registe e notifique.”

Notificada a Ré veio interpor o presente recurso, o qual finalizou com as seguintes conclusões:
“(i) A Recorrente não pode, de todo, concordar que tenham sido dados por provados os factos constantes dos pontos n), r), s), t) e u) da matéria de facto;
(ii) Por um lado, nenhuma prova foi produzida pelo Autor que o permitisse;
(iii) Por outro lado, a aqui Recorrente foi confrontada com a inversão do ónus da prova, apenas em sede de sentença, sem que existisse fundamento legal que o justificasse;
(iv) Está em causa nos autos - sendo contra o entendimento que foi consagrado na sentença proferida que a aqui apelante se insurge - aferir se, no caso concreto, em que estava invocada a prestação de trabalho noturno, trabalho suplementar, trabalho prestado em dias de descanso semanal obrigatório ou complementar, em dias feriados, e descanso compensatório não gozado, por parte do autor, o tribunal podia, sem mais, sem qualquer advertência, ter na sentença recorrida optado por inverter as regras do ónus da prova.
(v) A R., no cumprimento do seu princípio de colaboração, tudo esclareceu ao Tribunal no que concerne aos registos para que foi notificada para juntar, sendo que a inversão do ónus da prova, ao abrigo do estipulado no artigo 344.º, n.º 2 do Código Civil, apenas acontece quando “… a parte contrária tiver culposamente tornado impossível a prova ao onerado (…)”,
(vi) Nada disso sucede nos autos, pois que se a A. alega que trabalhou para além do seu horário, e em determinados dias e horas, poderia produzir prova testemunhal para tanto comprovar, ou também fazer essa prova por declarações e depoimento de parte, o que manifestamente não fez.
(vii) Não tendo o A. esgotado os meios de prova ao seu dispor, enquadramento, afigura-se à Ré que jamais impediu ou tornou impossível ao A. a prova do por si alegado, pelo que errou o Tribunal ao determinar a inversão do ónus da prova.
(viii) Além disso, o CT previu expressamente as consequências da violação de registo, fazendo-o apenas nos termos previstos no n.º 5 do artigo 231.º do CT e não já em termos de inversão do ónus da prova.
(ix) Pelo que, tendo o Tribunal dúvidas no ocorrido, implicaria que essa dúvida fosse decidida contra a parte a quem o facto aproveita, pelo que a pretensão do A. sempre teria que naufragar, não se podendo bastar com a junção aos autos de umas meras escalas feitas por si e nada mais, sem, como dissemos já nos autos, qualquer sinal de aprovação ou aceitação por parte da R., que não os assinou, estando, como tal, sujeitos à viciação que os trabalhadores queiram fazer de tais documentos.
(x) Donde, e sem mais, a inexistência de prova suficiente para a demonstração dos factos alegados pelo A., a inexistência de fundamento legal para alterar as regras do ónus da prova e inverter o seu ónus, imporia que fossem julgados não provados os factos aludidos em n), r), s), t) e u), e, consequentemente, obrigaria a que fosse julgada totalmente improcedente por não provada a presente ação.
(xi) Como é, aliás, de inteira justiça, pois, como dissemos já nos autos, é inadmissível que um trabalhador que durante toda a vigência do seu contrato de trabalho nunca nada reclamou à R., nunca peticionando quaisquer valores que entendesse estarem em divida, possa vir agora reclamar, sem mais, um valor de mais de vinte mil euros, bastando-lhe para tanto fabricar uns documentos, que, por si só, foram suficientes para que o tribunal desse por provada toda a sua construída tese.
Requer, pois, seja atendida a pretensão da aqui Recorrente, no sentido de ser absolvida do pedido contra si formulado, assim se fazendo, como sempre, JUSTIÇA!”

Contra-alegou o Autor, finalizando com as seguintes conclusões:
“1. As presentes contra-alegações vêm na sequência do recurso apresentado pela R. A..., Unipessoal, Lda., que foi condenada no pedido do A.
2. O Douto Tribunal a quo julgou procedente a ação do Trabalhador por considerar, além do mais, “nos termos previstos no art.º 344.º n.º 2 do C. Civil, que a R. tornou culposamente impossível a prova ao onerado com a mesma, o que justifica a inversão do respetivo ónus”.
3. É neste ponto que a Recorrente se demonstra insatisfeita e discordante com o Tribunal, referindo que “a questão recursiva apenas terá relevância se a matéria de facto for alterada”. E fá-lo em virtude de ter sido invertido o ónus da prova que em situações normais caberia ao Trabalhador.
4. A Recorrente refere nas alegações que essa é a questão central, insurgindo-se contra a decisão do Tribunal a quo, uma vez que este, na sua visão, “sem mais, sem qualquer advertência, ter na sentença recorrida optado por inverter as regras do ónus da prova”.
5. Com a interposição da petição inicial, o A. indicou a celebração, duração do contrato de trabalho, a prestação de trabalho no período correspondente ao pedido formulado, bem como as retribuições e quantias que lhe foram pagas a fim de se proceder ao correto apuramento do que lhe é devido, juntado as escalas que possuía e que lhe foram dadas pela R., bem como registos de tempos de trabalho que durante parte da relação laboral enviava, por ordem e instruções da R. para um e-mail, tendo-o deixado de fazer também por instruções da R., conforme doc. 5 junto a fls.
6. O Autor requer na p.i. que a R. seja notificada para juntar, além do mais, “os registos diários dos tempos de trabalho do A., desde o início da relação laboral com a R. até ao fim desta; os registos do trabalho suplementar prestado pelo A.; o “mapa do horário de trabalho”.
7. O requerimento apresentado desde o início pelo Autor estriba-se no artigo 429 n.º 1 do CPC, que estabelece que quando se pretenda fazer uso de documento em poder da parte contrária, o interessado requer que ela seja notificada para apresentar o documento dentro do prazo que for designado.
8. O douto Tribunal, no despacho saneador, notificou a R. para juntar os documentos aludidos na “parte final da petição inicial”, ou seja, registos dos tempos de trabalho, registos de trabalho suplementar e mapas do horário de trabalho.
9. A R. não cumpriu aquele ditame.
10.Juntou 131 páginas de documentos (através do requerimento junto ao Citius com a ref. Eletrónica n.º 30504302), sendo que nas primeiras juntou os recibos do A.
11. Juntou ainda escalas que não correspondem aos horários praticados pelos vigilantes.
12. Juntou registos de tempos de trabalho que não têm qualquer marca distintiva do Autor ou de Colegas, sendo da exclusiva autoria da Recorrente.
13. Estes documentos foram impugnados pelo Autor (através do requerimento junto ao Citius com a ref. Eletrónica n.º 30545292).
14. Nesse mesmo requerimento, o Autor reitera que “requereu a junção dos registos dos tempos de trabalho, registos esses da responsabilidade do empregador manter, conforme o estabelecido no artigo202 n.º 1,sendo sua obrigação manter aquele registo durante 5 (cinco) anos – artigo 202 n.º 4”, concluindo que se a R. não apresentar os documentos pedidos, deveria ser invertido o ónus da prova, conforme o previsto no artigo 344 n.º 2 do Código Civil.
15. A R. sabia da possibilidade da inversão do ónus da prova, nem que seja pelo facto de o mesmo ter sido requerido pelo A.
16. A R. respondeu a esse requerimento do A., conforme requerimento apresentado a fls., com a referência 30664978.
17. Após a produção de prova, o Douto Tribunal reabriu a audiência de discussão e julgamento e notificou a R. para “juntar aos autos os registos informáticos diários, referentes ao Autor, das horas de entrada e de saída que tenham a ver com as chamadas telefónicas que são feitas no início e no termo de cada turno, ou então, não existindo tais registos, dizer o que tiver por conveniente nessa matéria” – vd. Ata do dia 26.05.2022, a fls.
18. A Recorrente respondeu a dizer que não possuía tais ficheiros, uma vez que a empresa responsável pelo seu armazenamento apenas os guardava por cinco meses.
19.Estabelece o art.º 342.º do Código Civil que: 1. Àquele que invocar um direito cabe fazer a prova dos factos constitutivos do direito alegado. 2. A prova dos factos impeditivos, modificativos ou extintivos do direito invocado compete àquele contra quem a invocação é feita.3. Em caso de dúvida, os factos devem ser considerados como constitutivos do direito.
20.A propósito do referido preceito legal (onde constam as regras de distribuição do ónus da prova), referem Antunes Varela, Miguel Bezerra e Sampaio da Nora, in “Manual de Processo Civil” 2.º Edição, Coimbra Editora, pág. 452-453, que “a interpretação e aplicação do critério geral ali constante, não pode separar-se da forma como se encontram estruturadas, no plano do direito substantivo as normas aplicáveis à resolução da lide. As leis substantivas ao preverem e regularem em temos gerais e abstratos as diversas ocorrências da vida real, começam por tratar das situações que constituem a regra, focando apenas os elementos que normalmente as integram. Num outro plano, separadamente, cuidam das anomalias que podem ocorrer, nos termos amplos que mais convenham ao seu criterioso enquadramento sistemático. E se houver exceções a essas anomalias, adotar-se-á procedimento equivalente no tratamento jurídico delas. (…). Cada uma das partes terá assim o ónus de alegar e provar os factos correspondentes à previsão da norma que aproveita à sua pretensão ou à sua exceção. Cada uma das partes tem de provar os factos que constituem os pressupostos da norma que lhe é favorável”.
21.Preside à qualificação dos factos como constitutivos, impeditivos, modificativos e extintivos, o critério da normalidade, pois não costumam existir obstáculos à constituição de direitos e os já constituídos não costumam sofre mutações, para além de que é mais fácil provar a existência de algo do que a sua inexistência. De outra banda, numa perspetiva funcional, os factos constitutivos são suscetíveis de produzir, de acordo com a norma aplicável, o efeito jurídico que a parte pretende obter, enquanto os factos impeditivos implicam a ineficácia daqueles.
22.Importa ainda assinalar que subjacentes à distribuição do ónus da prova, se encontram os interesses das partes, as dificuldades de prova de cada uma delas e o seu acesso aos meios de prova. Por ser assim, arrogando-se o autor com direito a créditos salariais, incumbe ao mesmo alegar e provar os factos constitutivos do seu direito (n.º 1 do art.º 342.º do Código Civil).
23.Isto é, a celebração, vigência ou duração do contrato de trabalho, a prestação de trabalho no período correspondente ao pedido formulado, bem como as retribuições e quantias que lhe foram pagas a fim de se proceder ao correto apuramento do que lhe é devido.
24.Demonstrando-se a vigência do contrato de trabalho (facto jurídico genético dos direitos e obrigações para as partes), e que o trabalhador realizou a prestação a que se vinculou, importa concluir que nasceu na sua esfera jurídica o direito à contraprestação, traduzida para o empregador na obrigação de pagamento da retribuição (artigos 11.º e 258.º do Código do Trabalho). Constituindo facto extintivo dos direitos invocados pelo trabalhador o cumprimento dessa obrigação por parte do empregador, por força do art.º 762.º e segs. do Código Civil. O pagamento constitui, pois, o facto extintivo do direito do credor, traduzindo-se o mesmo numa exceção de perentória a invocar pelo devedor, a quem incumbe o respetivo ónus probatório”.
25.No que se refere ao direito à retribuição decorrente da prestação de trabalho suplementar deverá o trabalhador invocar o seu “horário de trabalho”, os dias, as horas de início e do termo do período normal de trabalho diário, os respetivos intervalos, as horas de trabalho prestado fora dos horários de trabalho estabelecidos.
26.Importa salientar, de outra banda, que por força do princípio da cooperação que vigora no processo civil, nos termos do artigo 417 do Código de Processo Civil, todas as pessoas, sejam ou não partes na causa, devem prestar a sua colaboração para a descoberta da verdade, respondendo ao que lhe for perguntado, submetendo-se às inspeções necessárias, facultando o que for requisitado e praticando os atos que forem determinados. Determinando o n.º 2 do referido preceito que “Aqueles que recusem a colaboração devida são condenados em multa, sem prejuízo dos meios coercitivos que forem possíveis; se o recusante for parte, o tribunal aprecia livremente o valor da recusa para efeitos probatórios, sem prejuízo da inversão do ónus da prova decorrente do preceituado no n.º 2 do artigo 344.º do Código Civil”.
27.Dispõe o art.º 344.º n.º 2 do Código Civil, que há também inversão do ónus da prova, quando a parte contrária tiver culposamente tornado impossível a prova ao onerado, sem prejuízo das sanções que a lei de processo mande especialmente aplicar à desobediência ou às falsas declarações.
28.Como resulta da análise do referido artigo 417, o legislador sanciona gradativamente a violação do dever de colaboração que impende sobre qualquer pessoa, e em particular a parte que recuse a sua colaboração com o tribunal, a pontos de prever a inversão do ónus da prova - efeito mais grave da violação do referido dever. Nesses casos, “se outra prova não existir ou existindo for insuficiente, dá-se a inversão do ónus da prova que passa a ficar a cargo da parte não cooperante” – J. Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, “Código de Processo Civil Anotado”, 2.º Volume, 4.ª Edição, Almedina, pág. 223. Antunes Varela, “Ob. Cit.”, pág. 467, esclarece os termos em que se dá essa permuta de posições entre o inicialmente onerado em termos probatórios e o subsequente, não cooperante. O demandado destruiu o documento, tornando desse modo impossível ao autor a prova do facto alegado. “Quer como sanção contra a atitude de contraparte, quer como efeito de uma presunção da experiência, a lei (artigo 344 n.º 2), não vai desde logo ao ponto de considerar o facto como irremovivelmente provado, mas inverte quanto a ele o ónus da prova. Será o demandado quem arca, a partir da destruição culposa do documento, com o ónus de provar a inexistência da irregularidade formal invocada pelo Autor” (no exemplo dado pelo referido Professor).
29.No presente caso, como já se aflorou, ao contrário do que sustenta a R., o Autor alegou na sua petição inicial os factos constitutivos do seu direito relativamente aos créditos que reclama referentes a trabalho suplementar, trabalho prestado em dias feriados, trabalho noturno e por descanso compensatório (não concedido), juntou à petição documentos designados de escalas e registos onde constam várias indicações manuscritas do Autor bem como cópias de recibos de vencimento.
30.Requereu, conforme já se disse, a junção dos documentos que a R. estava legalmente obrigada a possuir.
31.Colendos Juízes Desembargadores, resumindo, a R. tinha e tem obrigação de possuir os registos informáticos ou os registos de tempos de trabalho assinados pelos próprios trabalhadores, sendo que se for verdade o facto de estes apenas serem mantidos durante cinco meses, não se percebe como poderia, por exemplo, a Autoridade para as Condições do Trabalho controlar os horários e tempos de trabalho realizados pelos trabalhadores da R.
32.A finalidade dos registos é permitir um atual, real, verdadeiro, correto e eficaz controlo e fiscalização por parte da ACT e de outras autoridades do tempo de trabalho efetivamente prestado por todos os trabalhadores que no local laboram e da sua conformidade/desconformidade, quer com o horário e período normal de trabalho concretamente estabelecido, quer com as normas jurídicas aplicáveis, possibilitando ainda o conhecimento e orientação dos próprios trabalhadores que aí prestam serviço e da entidade beneficiária do mesmo. Esses registos são da responsabilidade do empregador manter, conforme o estabelecido no artigo 202 n.º 1, sendo sua obrigação manter aquele registo durante 5 (cinco) anos – artigo 202 n.º 4.
33.Salvo o devido respeito, a atuação da R. (ou seja, a requisição de trabalho suplementar que não paga) compensa. Basta atentarmos nos valores das contraordenações por inexistência de registos.
34.Assim sendo, tendo em conta que os registos, além de obrigatórios, são elementos importantíssimos para demonstrar cabalmente os horários efetivamente cumpridos pelos trabalhadores, esteve bem o Douto Tribunal ao inverter o ónus da prova, conforme fez na sentença colocada em crise pela R.
35.Por fim, alega a Recorrente que “a inversão do ónus da prova exige que a prova de determinada factualidade se tenha tornado impossível de fazer, por ação ou, neste caso, omissão culposa da parte contrária. Nada disso sucede nos autos, pois que se a A. alega que trabalhou para além do seu horário, e em determinados dias e horas, pelo que poderia produzir prova testemunhal para tanto comprovar, ou também fazer essa prova por declarações e depoimento de parte, o que manifestamente não fez. Pelo que, neste enquadramento, afigura-se à Ré que jamais impediu ou tornou impossível ao A. a prova do por si alegado, pelo que errou o Tribunal ao determinar a inversão do ónus da prova. Se fosse esse o entendimento, não existindo registos, essa inversão seria automática, o que não pode ser, tanto mais que a lei claramente se refere a um comportamento doloso e a uma prova impossível”.
36.Exmos. Juízes Desembargadores, também aqui, salvo respeito por mais douta opinião, não tem razão a Recorrente.
37.De facto, além do A. ter prestado declarações de parte onde explica de forma clara os horários que cumpria e os dias em que trabalhava, temos também de ter em atenção as especiais características da atividade de vigilância privada.
38.É comum o vigilante estar sozinho a prestar o serviço de vigilância, não tendo o acompanhamento de qualquer Colega. 39.Assim sendo, é impossível da sua parte apresentar testemunhas que possam certificar o horário de entrada e saída do vigilante e, nesta medida, a prova do trabalho suplementar através do recurso a testemunhas torna-se muito difícil de conseguir. Por este facto, o Autor requereu – e reiterou por várias vezes o requerimento –, a junção dos registos de tempos de trabalho, ditame que a R. não cumpriu e através do qual tornou de muito difícil (na verdade impossível) a prova que teria de ser feita pelo Autor.
40.A R., como se disse, não deu cumprimento ao preceituado no citado artigo 202 do Código do Trabalho nem tão pouco ao determinado pelo tribunal.
41.Os documentos que a R. juntou aos autos nada permitem aferir do trabalho efetivamente prestado pelo Autor e pelos colegas. Dele apenas consta a indicação das horas de entrada e de saída (abstratas) do Autor. Sempre às mesmas precisas horas, de acordo com os turnos.
42.A este propósito, importa não olvidar que a R. é uma sociedade por quotas, cuja atividade é a segurança privada, para a qual trabalharão inúmeros trabalhadores com a categoria de vigilantes, distribuídos pelos diversos locais onde é imperioso assegurar esse tipo de serviço (em muitos casos permanentemente), a implicar significativo número de operacionais com a inerente carga organizativa e gestionária em termos de recursos humanos. Com os inerentes custos. Sendo essa a sua realidade, é óbvio que não pode a mesma deixar de possuir o registo (elementos documentais concretos) sobre o tempo de trabalho efetivamente prestado por cada um dos seus vigilantes, pois só assim a mesma pode processar os salários devidos e exercer, entre outros, o seu poder disciplinar.
43.Imagine-se por exemplo que a R. pretendia despedir um trabalhador, alegando justa causa, por faltas injustificadas ao longo de um ano. Como iria provar sem os documentos necessários, mormente os registos de tempos de trabalho?!?
44.Considerando, pois, o tipo de trabalho desenvolvido pelo Autor (serviço de vigilância, em regime de turnos, alguns deles noturnos), o local onde o mesmo era desempenhado e os pressupostos probatórios acima referidos – a não junção pela R. da documentação supra referida, em violação do que a lei lhe impõe e do que lhe foi ordenado, traduz-se num comportamento (ilícito e culposo), que impossibilita ao A. de provar as concretas horas e períodos em que realizou trabalho nos moldes por si invocados. Com efeito, não se vê de que meios de prova neste caso poderia o mesmo dispor (para além dos que apresentou e que já foi feita referência) que lhe permitam provar, com o rigor e a minúcia temporais exigíveis nestas situações, o trabalho (suplementar, noturno e em feriados) que prestou à R. ao longo dos anos.
45.Anota-se, que quando a lei se refere à impossibilidade da prova, não se está a referir a impossibilidade absoluta, devendo aquela ser aferida em concreto, em face das circunstâncias do caso – a este título, veja-se o decidido pelo Supremo Tribunal de Justiça, no Acórdão n.º 1410/17, publicado em 10.09.2019, disponível em www.dgsi.pt, que diz, além do mais, que à “impossibilidade da prova, por atuação culposa da parte não colaborante para com o onerado, deve ser equiparado, em termos de sanção do artigo 344 n.º 2, do Código Civil, um comportamento omissivo total ou parcialmente inviabilizador da prova, desde que, dessa falta de colaboração resulte, comprovadamente, fragilidade probatória causada pelo recusante”. Também neste sentido, veja-se o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, no processo n.º 1825/19.9T8SNT.L1-4, disponível em www.dgsi.pt.
Pelo exposto e nos demais termos de direito aplicáveis, deve ser julgado totalmente improcedente o Recurso, mantendo-se a decisão recorrida assim se fazendo a COSTUMADA JUSTIÇA!”

O recurso foi admitido como “(…) de apelação, a subir imediatamente, nos próprios autos e com efeito devolutivo (art.ºs 79.º-A n.º 1, 80.º n.º 1, 83.º n.º 1 e 83.º-A n.º 1, todos do C. P. Trabalho, e art.ºs 629.º e 631.º, estes do C. P. Civil).”

No parecer do Exmº. Procurador Geral-Adjunto lê-se:
“(…)
2. Conclui a Ré que: (i) A Recorrente não pode, de todo, concordar que tenham sido dados por provados os factos constantes dos pontos n), r), s), t) e u) da matéria de facto;
Porém, a Recorrente, salvo melhor opinião, identificando os concretos pontos de facto que considera mal julgados, não indica os concretos meios probatórios que impunham decisão diversa da recorrida e a decisão que no seu entender deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas, como a tudo se refere o art.º 640º do CPC, sob pena de rejeição do recurso.
3. Entende, a Recorrente/Ré, e essa é a principal questão neste caso, que não deveria ter sido determinada a inversão do ónus da prova nos termos do art.º 344º, 2, do CC, pois que, cabendo tal ónus ao Autor/Recorrido, passou tal ónus a ser da Recorrente/Ré.
Porém, o empregador está obrigado a manter o registo de tempos de trabalho por 5 anos – art.º 202º, 4, CT – e a manter pelo mesmo prazo o registo de trabalho suplementar – art.º 231º, 8 do CT.
Como refere o Prof. Pedro Romano Martinez, (em anotação ao art.º 202º, do CT, in Código do Trabalho anotado, 13ª edição, Almedina, Coimbra, pg. 509/510), referindo-se a registo previsto no art.º 202º, do Cód. Trabalho, “o registo previsto no preceito em anotação tem óbvios aproveitamentos, como o de permitir controlar o respeito pelos regimes legal e contratual da adaptabilidade (artigos 204º, 205º, 211º e 224º), cumprir os limites legais do trabalho noturno e suplementar (artigos 223º e 228º, respetivamente) e, de um modo geral, apurar da conformidade da organização da atividade da empresa com a disciplina do tempo de trabalho.
O incumprimento culposo do dever de o criar ou de o conservar inverte o ónus da prova dos factos que possam ser demonstrados através do registo, se com aquele incumprimento o trabalhador, primitivo onerado com aquela prova, ficar impossibilitado de a fazer (artigo 344º, 2, do CC).”
Neste caso, salvo melhor opinião, tem a Ré culpa de, apesar de ter existido este registo de tempos de trabalho, não cuidar de o conservar, pelo prazo legal de cinco anos.
E, como parece obvio, não consegue o Autor/recorrido fazer prova, nomeadamente com testemunhas, como refere a Ré, pois que, como é sabido, o trabalhador, mais das vezes, está só, e cada trabalhador tem o seu horário, não cuidando nem tendo obrigação de saber o horário de trabalho dos demais trabalhadores.
Parece, pois, que tanto basta para que seja dado cumprimento ao disposto no art.º 344º, 2, do CC, como aconteceu.
E, não fazendo, a Recorrente/Ré prova da inexistência do direito ou prova do pagamento, deverá ser condenada no pagamento das quantias pedidas.
Assim sendo, cremos que não merece censura a douta sentença em recurso, que deve, salvo melhor opinião, ser confirmada.
*
4. Nestes termos, ressalvando sempre diferente e melhor opinião, emite-se parecer nesse sentido, devendo improceder o recurso.”

Foram os autos a vistos.

Objecto do recurso:
- Impugnação da matéria de facto: aferir se, como conclui a Apelante, no caso concreto, em que estava invocada a prestação de trabalho noturno, trabalho suplementar, trabalho prestado em dias de descanso semanal obrigatório ou complementar, em dias feriados, e descanso compensatório não gozado, por parte do Autor, o Tribunal podia ter na sentença recorrida optado por inverter as regras do ónus da prova.

2. Fundamentação:
2.1. Fundamentação de facto:
Foi esta a decisão de facto:
“Os factos provados:
Atenta a prova produzida e com relevo para a decisão da causa, considero provada a seguinte factualidade:

a) O A. está filiado no Sindicato dos Trabalhadores dos Serviços de Portaria, Vigilância, limpeza, Domésticos e Profissões Similares e Atividades Diversas (STAD), onde lhe foi atribuído o número de sócio ...;
b) Às relações de trabalho discutidas nos presentes autos a R. aplicava e aplica as condições estabelecidas no C.C.T. publicado no B.T.E. n.º 6, de 15.02.2008, que foi substituído pelo C.C.T. publicado no B.T.E. n.º 17, de 08.05.2011, celebrado entre a Associação de Empresas de Segurança (AES) e a Associação Nacional das Empresas de Segurança (AESSIRF) por um lado, e o STAD por outro, cujo âmbito subjetivo foi estendido pela P.E. 131/2012, de 7 de maio, e que foi substituída pelo C.C.T. publicado no B.T.E. n.º 38, de 15.10.2017, cujo âmbito de aplicação foi também estendido mediante Portaria publicada no B.T.E. n.º 44, de 29.11.2017. Este último C.C.T. foi parcialmente revisto, tendo tal revisão sido publicada no B.T.E. n.º 49, de 29.12.2018, e com Portaria de Extensão publicada no B.T.E. n.º 34, de 15.09.2019. Por fim, foi alterado novamente com texto consolidado, tendo essa revisão sido publicada no B.T.E. n.º 22, de 15.06.2020, e com Portaria de Extensão n.º 185/2020, de 6 de agosto;
c) O A. tem a categoria profissional de vigilante e a R. dedica-se à atividade de prestação de serviços de segurança privada;
d) A R. pagava ao A. a retribuição mensal de 661,32€ (salário/hora – 3,82€), ao qual acrescia um subsídio de alimentação de 6,00€ por cada dia efetivo de trabalho. Em julho de 2019 viu a sua retribuição subir para 729,11€ (v/hora = 4,21 €) e um novo aumento, em janeiro de 2020, para 765,57€ (v/hora = 4,42€). O subsídio de alimentação passou a ser de 6,06€/dia. Em julho de 2020 o A. passou a auferir 796,19€ (v/hora = 4,59€);
e) O A. foi admitido pela R. em 14 de setembro de 2018; f) O A. foi colocado, inicialmente, no Hotel ...;
g) Desde outubro de 2020 passou a trabalho no cliente B... (Estaleiro/Central de Betonagem), em frente à C..., em Matosinhos;
h) O A. obrigou-se perante a R. a cumprir um horário de 173,33 horas mensais;
i) No local de trabalho supra referido, o A. desempenhava as seguintes funções: abertura e fecho das instalações; controlo das luzes e alarmes; controle de chaveiro; controle da entrada e saída de pessoas e bens; receção de encomendas; elaboração de relatórios diários;
j) O A. deixou de prestar trabalho para a R. em 1 de março de 2021, em virtude da alegada transmissão de posto de trabalho, previsto na cláusula 14.ª do C.C.T.;
l) O A. enviava por e-mail os registos de tempos de trabalho para a R.;
m) E fê-lo durante a sua relação laboral, sendo que a R., no dia 24 de fevereiro de 2020, deu instruções, através de uma comunicação interna, aos seus trabalhadores para dar entrada ao serviço através de um número de telemóvel, deixando de enviar e-mails com as horas de trabalho
n) o A. trabalhou nos seguintes dias e horários:

Convicção:
A título prévio, cumpre referir que a R., com a sua contestação, não juntou qualquer documento, exceção feita ao comprovativo da autoliquidação da taxa de justiça devida.
Posteriormente e na sequência do deferimento do a propósito requerido pelo A., aquela mesma R. veio a juntar os documentos de fls. 75 a 140 dos presentes autos, com vista a, entre o mais, comprovar que o aqui trabalhador não prestou, no período compreendido entre setembro de 2018 e fevereiro de 2021, tudo inclusive, trabalho nos dias e horários que alega. Ora, da análise dos documentos juntos a fls. 80 v.º a 84, 101 a 112 v.º, 119 a 130 v.º e 137 v.º a 139, resulta que estes constituem apenas horários de trabalho abstratos pré-definidos, os quais, à semelhança do que sucede com os de fls. 33 a 34 v.º e conforme evidenciaram as testemunhas BB e CC, estão sujeitos a alterações (v.g., resultantes de férias, faltas, acidentes de trabalho, solicitações dos clientes). Como tal, não podemos considerar que o A. os tenha cumprido cegamente.
Tendo o A. juntado com a petição inicial escalas de serviço por si elaboradas, as quais foram impugnadas pela ora entidade empregadora, o tribunal convidou esta a, em prazo, juntar ao processo os comprovativos dos registos dos tempos de trabalho do aqui A. no período que mediou entre setembro de 2018 e fevereiro de 2020, já que, quanto aos meses de março de 2020 até fevereiro de 2021, a R. juntou os registos escritos de fls. 131 a 135 v.º e de fls. 139 v.º a 140. Em resposta entrada em Juízo no passado dia 6 de junho de 2022 veio a R. alegar que não possui tais registos no seu sistema informático, sendo que a empresa responsável pelo respetivo software apenas os guarda pelo período de cinco meses, pelo que também não os possui.
Àquele propósito, diremos que, tendo a R. impugnado os registos dos tempos de trabalho da autoria do A. e que este juntou aos autos, deveria, no cumprimento do seu dever de colaboração e por ter sido para tal expressamente intimada pelo tribunal, ter juntado o registo dos tempos de trabalho do A. no hiato temporal de setembro de 2018 a fevereiro de 2020, o que não fez, apesar de estar obrigada a preservar tais registos durante cinco anos, conforme impõe o art.º 202.º n.ºs 1, 2 e 4 do C. do Trabalho.
Sendo a R. uma empresa que se dedica à atividade de segurança privada, tendo inúmeros trabalhadores nos seus quadros, não há justificação para não possuir os registos dos tempos de trabalho efetivamente cumpridos pelo A. naquele período temporal, pois só assim, no caso em presença, se poderá aquilatar da bondade dos pagamentos que foi efetuando ao trabalhador. Sendo certo que a este não é razoavelmente de exigir a comprovação, por recurso à prova testemunhal – já que em termos documentais o A. juntou aquilo que possuía, não sendo a mais obrigado –, dos concretos dias e horários efetivamente praticados em cerca de um ano e meio de serviço.
Face ao exposto, o tribunal considera, nos termos previstos no art.º 344.º n.º 2 do C. Civil, que a R. tornou culposamente impossível a prova ao onerado com a mesma, o que justifica a inversão do respetivo ónus. Sendo assim, e uma vez que a aqui parte processual passiva não comprovou que o A. não realizou, no período compreendido entre setembro de 2018 e fevereiro de 2020, tudo inclusive, o trabalho nos moldes por si alegados, este deve ser dado, como foi, por provado.
Questão diferente prende-se com o trabalho prestado pelo aqui trabalhador de março de 2020 até fevereiro de 2021. Neste concernente, relembremos que a R. juntou a fls. 131 a 135 v.º e a fls. 139 v.º a 140 os registos dos tempos de trabalho do A. naquele período temporal. Do cotejo entre os registos apresentados pelo A. e relativos àquele mesmo hiato e os ora referidos, resulta que existe uma quase total contradição, quer quanto aos exatos dias trabalhados, quer quanto aos concretos horários de trabalho cumpridos pelo A. Não obstante, o tribunal considerou como credíveis os de fls. 131 a 135 v.º e 139 v.º a 140. E tal, porquanto as testemunhas BB e CC aludiram, com conhecimento de causa, à circunstância de tais registos passarem pelo crivo de duas pessoas, quais sejam, pelo centralista que verte naqueles documentos os dados que extrai dos registos das chamadas telefónicas efetuadas pelos vigilantes (no início e no fim da respetiva jornada de trabalho), e pelo supervisor, que valida, ou não, os dados vertidos por aquele centralista. Temos, assim, um duplo grau de controle, pelo que dificilmente se considera que os registos dos tempos de trabalho de fls. 131 a 135 v.º e 139 v.º a 140 ostentem falhas. Neste concernente, cumpre realçar que não é pelo facto de tais registos não se encontrarem assinados pelo trabalhador que os mesmos deixam de ser fiáveis. É que tal assinatura não é sequer imposta por lei. A que acresce que os registos de fls. 35 a 58 v.º não se encontram validados por ninguém afeto à R.
A R. admitiu a veracidade da matéria de facto feita constar das precedentes alíneas b), c), e) a g) e i) e j).
No que concerne à filiação do A. no STAD, atendeu-se ao teor do documento junto aos autos a fls. 23.
Relativamente aos valores que a R. foi pagando ao A. a título de retribuição-base e de subsídio de alimentação, bem como de trabalho suplementar (este por referência ao mês de fevereiro de 2021), consideraram-se os recibos de retribuição cujas cópias constam de fls. 75 a 80, 84 v.º a 100 v.º, 113 a 118 v.º, 136 e 137, os quais não foram postos em causa por nenhuma outra prova produzida.
O horário a que o A. se obrigou a cumprir perante a R. consta do contrato de trabalho de fls. 25 a 28, datado de 14 de setembro de 2018.
Por seu turno, o documento de fls. 32 e os documentos de fls. 35 a 58 v.º alicerçaram, respetivamente, a matéria de facto feita constar das alíneas m) e l).
O número de horas de trabalho noturno pago pela R. ao A. nos anos de 2019 a 2021 retirou-se da análise dos aludidos recibos de retribuição de fls. 75 a 80, 84 v.º a 100 v.º, 113 a 118 v.º, 136 e 137.
Da comparação entre os registos elaborados pelo A. e que constam de fls. 35 a 58 v.º com os da lavra da R. e que se encontram a fls. 131 a 135 v.º e 139 v.º a 140, retira-se que existe coincidência entre os mesmos quanto às datas e horários dados como assente na alínea p).
No que respeita à facticidade tida por não provada e sem prejuízo do que já se deixou ínsito, sobre a mesma não foi produzida qualquer prova que a tenha permitido sustentar.”

2.1.1. Impugnação da matéria de facto:
De harmonia com o disposto no artigo 662º, nº1 do Código de Processo Civil (ex vi do artigo 1º, nº 2, al. a) do Código de Processo do Trabalho), o Tribunal da Relação deve alterar a decisão da 1ª instância sobre a matéria de facto, “se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa”.
Os poderes da Relação sobre o julgamento da matéria de facto foram reforçados na atual redação do Código de Processo Civil.
Abrantes Geraldes, (in “Recursos no Novo Código de Processo Civil”, Almedina, 2014, 2ª edição, pág. 230) refere que, “… a modificação da decisão da matéria de facto constitui um dever da Relação a ser exercido sempre que a reapreciação dos meios de prova (sujeitos à livre apreciação do tribunal) determine um resultado diverso daquele que foi declarado na 1.ª instância”. Apesar de (obra citada, pág. 245), “… a reapreciação da matéria de facto no âmbito dos poderes conferidos pelo art. 662º não poder confundir-se com um novo julgamento, pressupondo que o recorrente fundamente de forma concludente as razões por que discorda da decisão recorrida, aponte com precisão os elementos ou meios de prova que implicam decisão diversa da produzida e indique a resposta alternativa que pretende obter” (sublinhado nosso).
Na reapreciação da força probatória das declarações de parte, dos depoimentos das testemunhas e dos documentos, importa ter presente o princípio da livre apreciação, como resulta do disposto nos artigos 607º, nº5 e 466º, nº3, ambos do Código de Processo Civil e 396º e 366º.
Dito de outro modo, cabe à Relação, enquanto tribunal de 2ª instância, reapreciar, não apenas se a convicção expressa pelo tribunal de 1ª instância tem suporte razoável naquilo que a gravação da prova e os restantes elementos constantes dos autos revelam, mas, também, avaliar e valorar, de acordo com o princípio da livre convicção, toda a prova produzida nos autos em termos de formar a sua própria convicção relativamente aos concretos pontos da matéria de facto objeto de impugnação, modificando a decisão de facto se, relativamente aos mesmos, tiver formado uma convicção segura da existência de erro de julgamento da matéria de facto.
Preceitua ainda o artigo 640º, nºs 1 e 2 do Código de Processo Civil:
«1-Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:
a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;
b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida.
c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.
2 - No caso previsto na alínea b) do número anterior, observa-se o seguinte:
a) Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes;».
Como se lê no Acórdão do STJ de 01.10.2015, in www.dgsi.pt, “Quer isto dizer que recai sobre a parte Recorrente um triplo ónus:
Primo: circunscrever ou delimitar o âmbito do recurso, indicando claramente os segmentos da decisão que considera viciados por erro de julgamento;
Secundo: fundamentar, em termos concludentes, as razões da sua discordância, concretizando e apreciando criticamente os meios probatórios constantes dos autos ou da gravação que, no seu entender, impliquem uma decisão diversa;
Tertio: enunciar qual a decisão que, em seu entender, deve ter lugar relativamente às questões de facto impugnadas.
Ónus tripartido que encontra nos princípios estruturantes da cooperação, da lealdade e boa fé processuais a sua ratio e que visa garantir, em última análise, a seriedade do próprio recurso instaurado, arredando eventuais manobras dilatórias de protelamento do trânsito em julgado da decisão. (…)”.
Servindo-nos também do texto do acórdão desta secção de 22.10.2018, proferido no processo 246/16.OT8VLG.P1, (Relatora Desembargadora Rita Romeira, no qual foi 1ª adjunta a aqui relatora):
«Verifica-se, assim, que o cumprimento do ónus de impugnação da decisão de facto, não se satisfaz com a mera indicação genérica da prova que na perspetiva do recorrente justificará uma decisão diversa daquela a que chegou o Tribunal “a quo”, impõe-lhe a concretização quer dos pontos da matéria de facto sobre os quais recai a sua discordância como a especificação das provas produzidas que, por as considerar como incorretamente apreciadas, imporiam decisão diversa, quanto a cada um dos factos que impugna sendo que, quando se funde em provas gravadas se torna, também, necessário que indique com exatidão as passagens da gravação em que se baseia, sem prejuízo da possibilidade de, por sua iniciativa, proceder à respetiva transcrição.
Além disso, nas palavras, (…) de (Abrantes Geraldes in “Recursos no Novo Código de Processo Civil”, Almedina, 2014, 2ª edição, págs. 132 e 133), “O recorrente deixará expressa a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas, como corolário da motivação apresentada, tendo em conta a apreciação crítica dos meios de prova produzidos, exigência nova que vem na linha do reforço do ónus de alegação, por forma a obviar à interposição de recursos de pendor genérico ou inconsequente, também sob pena de rejeição total ou parcial da impugnação da decisão da matéria de facto;”.
Sobre este assunto, no (Ac.STJ de 27.10.2016) pode ler-se: “…Como resulta claro do art. 640º nº 1 do CPC, a omissão de cumprimento dos ónus processuais aí referidos implica a rejeição da impugnação da matéria de facto.”…(…).».
Ainda a este propósito, lê-se no Acórdão desta secção de 15.04.2013 (Relatora Paula Leal de Carvalho, in www.dgsi.pt, também citado no acórdão de 22.10.2018), “Na impugnação da matéria de facto o Recorrente deverá, pois, identificar, com clareza e precisão, os concretos pontos da decisão da matéria de facto de que discorda, o que deverá fazer por reporte à concreta matéria de facto que consta dos articulados (em caso de inexistência de base instrutória, como é a situação dos autos).
E deverá também relacionar ou conectar cada facto, individualizadamente, com o concreto meio de prova que, em seu entender, sustentaria diferente decisão, designadamente, caso a discordância se fundamente em depoimentos que hajam sido gravados, identificando as testemunhas por referência a cada um dos factos que impugna (para além “de indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda, sem prejuízo da possibilidade de, por sua iniciativa, proceder à respetiva transcrição.”».
Ainda com fundamentação da mesma Desembargadora Paula Leal de Carvalho (aqui 2ª Adjunta):
“Pretendendo-se a reapreciação da decisão da matéria de facto, tem o Recorrente que dar cumprimento aos requisitos exigidos pelo art. 640º do CPC/2013, em cujos nºs 1 e 2 se dispõe que:
Sendo o objeto do recurso, como é, delimitado pela conclusões, a parte que pretenda impugnar a decisão da matéria de facto deverá indicar quais os concretos pontos da decisão da matéria de facto de que discorda. E tal indicação deve ter lugar nas conclusões do recurso, por estas consubstanciarem a delimitação do objeto do recurso no que tange à matéria de facto; ou seja, delimitando as conclusões o que se pretende com o recurso, deverá o Recorrente nelas indicar o ou os concretos factos de cuja decisão discorda. Diga-se que tal indicação deve ser feita por referência aos concretos factos que constam da decisão da matéria de facto e/ou dos articulados e não por referência a meros “temas” das questões de facto sobre as quais o Recorrente discorde.
E, nos termos do citado art. 640º, nº 1, al. c), o Recorrente deverá também indicar o sentido das respostas que pretende.
[Cfr. Acórdão do STJ de 07.07.2016, Processo 220/13.8TTBCL.G1.S1, in www.dgsi.pt, nos termos de cujo sumário consta que “I - Para que a Relação conheça da impugnação da matéria de facto é imperioso que o recorrente, nas conclusões da sua alegação, indique os concretos pontos de facto incorretamente julgados, bem como a decisão a proferir sobre aqueles concretos pontos de facto, conforme impõe o artigo 640º, nº 1, alíneas a) e c) do CPC.”.].
Por outro lado, na indicação dos meios probatórios [sejam eles documentais ou pessoais] que sustentariam diferente decisão [art. 640º, nº 1, al. b)], deverão eles ser identificados e indicados por referência aos concretos pontos da factualidade impugnada [ou a um conjunto de factos que estejam interligados e em que os meios de prova sejam os mesmos] de modo a que se entenda a que concretos pontos dessa factualidade se reportam os meios probatórios com base nos quais a impugnação é sustentada, mormente nos casos em que se pretende a alteração de diversa matéria de facto. Só assim será possível ao tribunal ad quem perceber e saber quais são os concretos meios de prova que, segundo o Recorrente, levariam a que determinado facto devesse ter resposta diferente da que foi dada.
[Cfr. Acórdão do STJ de 20.12.2017, Proc. 299/13.2TTVRL.G1.S2, e de 19.12.2018, Proc. 271/14.5TTMTS.P1.S1, ambos in www.dgsi.pt, constando do sumário deste último o seguinte: “I - A alínea b), do nº 1, do art. 640º do CPC, ao exigir que o recorrente especifique “[o]s concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida”, impõe que esta concretização seja feita relativamente a cada um daqueles factos e com indicação dos respetivos meios de prova, documental e/ou testemunhal e das passagens de cada um dos depoimentos. II - Não cumpre aquele ónus o apelante que, nas alegações e nas conclusões, agrega a matéria de facto impugnada em blocos ou temas e indica os meios de prova relativamente a cada um desses blocos, mas omitindo-os relativamente a cada um dos concretos factos cuja decisão impugna.
Assim também os Acórdãos do STJ de 21.09.2022, Proc. 1996/18.1T8LRA.C1.S1, constando do respetivo sumário: “I- A impugnação da matéria de facto “em bloco” viola o disposto no artigo 640.º do CPC, mormente quando não está em causa um pequeno número de factos ligados entre si e um número reduzido de meios de prova (por exemplo, o mesmo depoimento), mas um amplíssimo conjunto de factos (ou, melhor, dois amplos blocos de factos) e numerosos meios de prova” e de 12.10.2022. Proc. 14565/18.7T8PRT.P1.S1, constando do respetivo sumário: “I – Para poder validamente impugnar a matéria de facto, o Recorrente tem de cumprir os ónus imposto pelo art.º 640º do CPC. II – Em princípio, a impugnação da matéria de facto não pode ser feita por blocos de factos, antes tem de ser feita discriminadamente, por concreto ponto de facto. III - E não pode ser feita por remissão genérica para determinados meios de prova, sem demonstrar a sua relevância quanto a determinado facto concreto.”, ambos in www.dgsi.pt].]
Quanto à fundamentação dessa impugnação, mormente quanto aos meios probatórios em que assenta a impugnação, entendemos que poderá ela ter lugar em sede de alegações.”, (realce e sublinhado nossos).
No respetivo parecer, o Exmo. Procurador Geral Adjunto começa por apontar que “a Recorrente, salvo melhor opinião, identificando os concretos pontos de facto que considera mal julgados, não indica os concretos meios probatórios que impunham decisão diversa da recorrida e a decisão que no seu entender deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas, como a tudo se refere o art.º 640º do CPC, sob pena de rejeição do recurso.”
Vejamos antes de mais se foram cumpridos pela Apelante os ónus a que se encontra sujeita, desde logo em sede de conclusões:
Em sede de impugnação da matéria de facto, começa a 1ª Ré/Apelante por concluir que não pode concordar que tenham sido dados por provados os factos constantes dos pontos n), r), s), t) e u) da matéria de facto.
Além do mais, termina concluindo que a inexistência de prova suficiente para a demonstração dos factos alegados pelo Autor, a inexistência de fundamento legal para alterar as regras do ónus da prova e inverter o seu ónus, imporia que fossem julgados não provados os factos aludidos em n), r), s), t) e u).
Não acolhemos o reparo assinalado no segmento do parecer transcrito a propósito da impugnação da matéria de facto.
A Apelante deu cumprimento aos ónus a esse respeito exigidos já que indica a matéria que em seu entender foi indevidamente dada como provada – a dos pontos n), r), s), t) e u) da matéria de facto –, concluindo ainda a esse respeito que nenhuma prova foi produzida pelo Autor que o permitisse.
Ou seja, pretende a Apelante uma decisão diversa da proferida a respeito da indicada factualidade.
Afere-se assim quanto aos concretos pontos de facto que a Apelante considera incorretamente julgados a decisão que, no seu entender, deve ser proferida a esse respeito – que os mesmos não resultem provados –, por inexistentes os meios de prova a tal respeito.
Conclui a Apelante, ainda, que só foi confrontada com a inversão do ónus da prova, apenas em sede de sentença.
Conclui, por seu turno, em suma, o Autor/Apelado, a este respeito:
- A Ré foi notificada para juntar os documentos aludidos na “parte final da petição inicial”, ou seja, registos dos tempos de trabalho, registos de trabalho suplementar e mapas do horário de trabalho.
- A Ré não cumpriu aquele ditame: juntou os recibos do Autor, escalas que não correspondem aos horários praticados pelos vigilantes, registos de tempos de trabalho que não têm qualquer marca distintiva do Autor ou de Colegas, sendo da exclusiva autoria da Recorrente, documentos que foram impugnados pelo Autor.
- Nesse mesmo requerimento, o Autor reitera que “requereu a junção dos registos dos tempos de trabalho, registos esses da responsabilidade do empregador manter, conforme o estabelecido no artigo 202 n.º 1, sendo sua obrigação manter aquele registo durante 5 (cinco) anos – artigo 202 n.º 4”, concluindo que se a R. não apresentar os documentos pedidos, deveria ser invertido o ónus da prova, conforme o previsto no artigo 344 nº 2 do Código Civil.
- Após a produção de prova, o Tribunal reabriu a audiência de discussão e julgamento e notificou a R. para “juntar aos autos os registos informáticos diários, referentes ao Autor, das horas de entrada e de saída que tenham a ver com as chamadas telefónicas que são feitas no início e no termo de cada turno, ou então, não existindo tais registos, dizer o que tiver por conveniente nessa matéria”.
Adiantamos que não tem razão a Apelante quanto a tal fundamento.
É certo que relativamente ao período temporal em causa (infra explicado) competia ao Autor/Recorrido provar o trabalho prestado fora do seu horário, nos termos do artigo 342º, nº1 do Código Civil, por qualquer meio probatório.
Porém, sob a epígrafe «Registo de trabalho suplementar», prevê o artigo 231º, nº 1 do Código do Trabalho que «O empregador deve ter um registo de trabalho suplementar em que, antes do início da prestação de trabalho suplementar e logo após o seu termo, são anotadas as horas em que cada uma das situações ocorre.»
Ora, o Autor requereu o recurso pelo tribunal à inversão do ónus da prova, prevista no artigo 344º, nº2 do Código Civil onde se dispõe que «Há também inversão do ónus da prova, quando a parte contrária tiver culposamente tornado impossível a prova ao onerado, sem prejuízo das sanções que a lei de processo mande especialmente aplicar à desobediência ou às falsas declarações.»
Em nota, em ordem a ficar claro o que se passou no processo:
Como se retira da “convicção”, o julgador apenas aplicou a regra da inversão do ónus da prova, resultante do artigo 344º, nº 2 do Código Civil, em relação ao trabalho prestado pelo Autor no período entre setembro de 2018 e fevereiro de 2020, já que em relação ao período subsequente (de março de 2020 a fevereiro de 2021) considerou que, em face dos documentos juntos pela Ré (fls. 131ss), os factos alegados pelo Autor ficavam não provados (ponto 1) dos factos não provados).
Está, então, em causa o período em que o registo que a Ré fazia tinha por base emails enviados pelo trabalhador a comunicar o “tempo de trabalho” -leia-se horas de entrada e saída em cada dia de trabalho-, já que só no final de fevereiro de 2020 foi determinado passasse a ser via telemóvel (pontos l) e m) dos factos provados).
Sendo assim, tendo também presentes os esclarecimentos prestados pela testemunha DD em 26/05/2022 (cuja gravação se ouviu), uma vez que o registo informático de telefonemas apenas passou a ter lugar em 2020, não estamos tanto a apreciar a informação da empresa “D...” no sentido de que apenas armazena informação sobre o registo de chamadas por 5 meses, estando em causa sim a não junção pela Ré de documentos, na sequência da notificação que lhe foi feita (na sequência do despacho de 02/11/2021), relativos ao “registo diário dos tempos de trabalho”, por exemplo como os que juntou a fls. 131ss (fls. 113 ss do requerimento de 14/11/2021) para o referido período iniciado em março de 2020, que se traduz no registo manual das horas de entrada e saída, com assinaturas do “centralista” e do “supervisor” (a testemunha DD, nas referidas declarações esclareceu como eram elaboradas).
A Ré quando, em 14/11/2021, procedeu à junção de documentos, além dos referidos (de fls. 131ss), juntou, em relação ao período de setembro de 2018 a fevereiro de 2020, essencialmente “horários de trabalho”.
De seguida, em 17/11/2021, o Autor tomou posição concluindo que [a] Ré juntou documentos que não são os registos assinados pelo trabalhador, que está legalmente obrigada a possuir, pelo que o Autor reitera o requerimento que apresentou no início do processo, sob pena da inversão do ónus da prova, previsto no artigo 344º, nº 2 do Código Civil.
Por requerimento de 29/11/2021 a Ré tomou posição sobre a requerida inversão do ónus da prova, concluindo que deve considerar-se que a Ré cumpriu com o que lhe foi determinado, nada havendo mais que juntar, não ocorrendo qualquer inversão do ónus da prova por falta dos requisitos exigidos pelo nº 2 do artigo 342º do Código Civil.
Acolhemos aqui as conclusões do Autor/Apelado, em suma que a Ré sabia da possibilidade da inversão do ónus da prova, nem que seja pelo facto de o mesmo ter sido requerido pelo Autor e se ter pronunciado a esse respeito.
Tal basta para que a Ré que esteve e está assistida juridicamente pelo seu mandatário, se considere informada da possibilidade de o tribunal considerar invertido o ónus da prova - no momento oportuno, ou seja, em sentença -, assim se afastando a invocada ‘surpresa’.
Mais a mais, como se salientou, tendo havido pronúncia expressa pela Ré a esse respeito.
Na “convicção” sobre a decisão da matéria de facto, centrando-nos agora, como supra se deixou expresso, no período de setembro de 2018 a fevereiro de 2020, o julgador considerou que os documentos juntos pela Ré em 14/11/2021 (até fls. 130) constituem apenas horários de trabalho abstratos pré-definidos, os quais, à semelhança do que sucede com os de fls. 33 a 34 v e conforme evidenciaram as testemunhas BB e CC, estão sujeitos a alterações (v.g., resultantes de férias, faltas, acidentes de trabalho, solicitações dos clientes), concluindo que, como tal, não podemos considerar que o Autor os tenha cumprido cegamente.
Concordamos com esta apreciação, mas importa saber se estamos perante situação de inversão do ónus da prova.
Concluiu, em suma, a Apelante a este respeito:
- No cumprimento do princípio de colaboração, esclareceu o Tribunal no que concerne aos registos de que foi notificada para juntar.
- A inversão do ónus da prova, ao abrigo do artigo 344º, nº 2 do Código Civil, apenas acontece quando “… a parte contrária tiver culposamente tornado impossível a prova ao onerado (…)”.
- Se o Autor alega que trabalhou para além do seu horário, em determinados dias e horas, poderia produzir prova testemunhal para tanto comprovar, ou também fazer essa prova por declarações e depoimento de parte, o que manifestamente não fez.
- Não tendo o Autor esgotado os meios de prova ao seu dispor, afigura-se que jamais impediu ou tornou impossível a prova do alegado.
- O CT previu expressamente as consequências da violação de registo, fazendo-o apenas nos termos previstos no nº 5 do artigo 231º do CT - «A violação do disposto nos números anteriores confere ao trabalhador, por cada dia em que tenha prestado actividade fora do horário de trabalho, o direito a retribuição correspondente a duas horas de trabalho suplementar»- e não já em termos de inversão do ónus da prova.
- Tendo o Tribunal dúvidas no ocorrido, implicaria que essa dúvida fosse decidida contra a parte a quem o facto aproveita, pelo que a pretensão do Autor sempre teria que naufragar, não se podendo bastar com a junção aos autos de umas meras escalas feitas por si, sem qualquer sinal de aprovação ou aceitação por parte da Ré, que não os assinou.
- É inadmissível que um trabalhador que durante toda a vigência do seu contrato de trabalho nunca nada reclamou à R., nunca peticionando quaisquer valores que entendesse estarem em divida, possa vir agora reclamar, sem mais, um valor de mais de vinte mil euros, bastando-lhe para tanto fabricar uns documentos, que, por si só, foram suficientes para que o tribunal desse por provada toda a sua construída tese.
Concluiu por seu turno, em suma, a este respeito o Autor/Apelado que esteve bem o Tribunal ao inverter o ónus da prova:
- Alegou na petição inicial os factos constitutivos do seu direito relativamente aos créditos que reclama referentes a trabalho suplementar, trabalho prestado em dias feriados, trabalho noturno e por descanso compensatório (não concedido), juntou à petição documentos designados de escalas e registos onde constam várias indicações manuscritas do Autor, bem como cópias de recibos de vencimento.
- A Ré tinha e tem obrigação de possuir os registos informáticos ou os registos de tempos de trabalho assinados pelos próprios trabalhadores - artigo 202º nº1, sendo sua obrigação manter aquele registo durante 5 anos – artigo 202º nº 4.
- Além de ter prestado declarações de parte onde explica de forma clara os horários que cumpria e os dias em que trabalhava, a prova do trabalho suplementar através do recurso a testemunhas torna-se muito difícil de conseguir, considerando o tipo de trabalho desenvolvido.
– A não junção pela Ré da documentação referida, em violação do que a lei lhe impõe e do que lhe foi ordenado, traduz-se num comportamento (ilícito e culposo), que impossibilita ao Autor de provar as concretas horas e períodos em que realizou trabalho nos moldes por si invocados.
- Quando a lei se refere à impossibilidade da prova, não se está a referir a impossibilidade absoluta, devendo aquela ser aferida em concreto, em face das circunstâncias do caso.
Foi também neste sentido o parecer do Exmo. Procurador Geral Adjunto referindo, nomeadamente que “o empregador está obrigado a manter o registo de tempos de trabalho por 5 anos – art.º 202º, 4, CT – e a manter pelo mesmo prazo o registo de trabalho suplementar – art.º 231º, 8 do CT.
(…)
O incumprimento culposo do dever de o criar ou de o conservar inverte o ónus da prova dos factos que possam ser demonstrados através do registo, se com aquele incumprimento o trabalhador, primitivo onerado com aquela prova, ficar impossibilitado de a fazer (artigo 344º, 2, do CC).”
Neste caso, salvo melhor opinião, tem a Ré culpa de, apesar de ter existido este registo de tempos de trabalho, não cuidar de o conservar, pelo prazo legal de cinco anos.
E, como parece obvio, não consegue o Autor/recorrido fazer prova, nomeadamente com testemunhas, como refere a Ré, pois que, como é sabido, o trabalhador, mais das vezes, está só, e cada trabalhador tem o seu horário, não cuidando nem tendo obrigação de saber o horário de trabalho dos demais trabalhadores.”
Ou seja, tendo presente o nº 2 do artigo 344º do Código Civil, importa saber se a Ré culposamente tornou impossível a prova da prestação de trabalho suplementar, no período de setembro de 2018 a fevereiro de 2020, por parte do Autor (que tinha o ónus de o provar).
Ora, aquilo que sucedeu é que o tribunal a quo não considerou os documentos que a Ré juntou, considerando-os, como se disse, apenas horários de trabalho abstratos pré-definidos, juízo que não merece qualquer censura.
Sendo assim, subsistiram os documentos juntos pelo Autor com a petição inicial (que podemos apelidar de grelhas mensais por si preenchidas, indicando as horas de entrada e saída em cada dia), e que a Ré na contestação impugnou dizendo o seguinte:
«14.º
E certamente não será com os documentos que juntou aos autos que essa prova pode ser feita, não revestindo os mesmos idoneidade que permita fazer prova do alegado pelo Autor na sua petição inicial.
15.º
Veja-se que, desde logo, tais documentos não têm origem na entidade empregadora. São meras folhas preenchidas pelo próprio Autor, sem qualquer sinal de aprovação ou aceitação por parte da Ré, que não os assinou, estando, como tal, sujeitos à viciação que os trabalhadores queiram fazer de tais documentos.
16.º
Aliás, e segundo chegou ao conhecimento da Ré, não é a primeira vez que o Autor recorre a este tipo de estratégia quando vê cessar o contato de trabalho, exigindo a quem o contratou pagamentos indevidos.
17.º
Seja como for, sempre se dirá, os “mapas de trabalho” que junta (doc. 6 – 2018 e 2020) correspondem a um plano anual meramente indicativo e que depois é mensalmente ajustado, conforme as necessidades dos clientes e eventuais baixas dos trabalhadores, conforme, aliás, aconteceu com o próprio A. que esteve mais que uma vez em baixa médica.
18.º
Ou seja, tais mapas não encerram em si mesmo um número de horas de trabalho efetivamente prestado. Acresce que, o mapa junto como sendo referente ao ano de 2019 não tem o logotipo da empresa, desconhecendo-se assim, sequer, se corresponde à realidade.
19.º
Por outro lado, o controlo das horas de trabalho efetivamente prestadas pelos trabalhadores da empresa era feito pelo centralista da mesma, em conformidade com as comunicações feitas pelos trabalhadores.
20.º
Ou seja, os mesmos comunicavam o início e o fim da sua prestação à central e o funcionário encarregue da mesma fazia o controlo interno, concentrando a informação num documento que emitia, de horas de trabalho, por cada trabalhador da empresa.
21.º
Os trabalhadores eram depois pagos em conformidade com tais documentos, em face da conjugação que necessariamente existia entre o mapa de horário de trabalho entregue mensalmente a cada trabalhador e a folha do número de horas que o centralista registava.
22.º
Toda essa documentação era depois entregue ao supervisor e posteriormente enviada para os recursos humanos para processamento de salários.
23.º
Ora, tal controlo foi feito, precisamente, para evitar viciações existentes nos registos de horas feitos pelos trabalhadores.
24.º
E tanto assim era que, basta ver, após fevereiro de 2020, os registos do trabalhador aqui Autor em nada correspondem com os registos do centralista, e o processamento dos salários sempre foi feito de acordo com estes últimos sem que o trabalhador, em algum momento, tivesse sequer indagado junto da sua empregadora para a razão da reclamada disparidade.
25.º
Ou seja, os registos em causa foram “fabricados” pelo trabalhador para a presente ação, e em nada correspondem à realidade, pois que, também até fevereiro de 2020, os pagamentos foram processados de acordo com os mapas de horário de trabalho, sem que o Autor contra os mesmos reclamasse dizendo estarem em contradição com os seus registos.»
Como escreve Luís Filipe Pires de Sousa, in “Direito Probatório Material – Comentado”, Almedina, 2020, pág. 42, dos princípios de boa fé e da cooperação (artºs 7º e 8º do Código de Processo Civil) deriva o dever de as partes conservarem os meios de prova, de forma que a parte deve ser sancionada se, por negligência, violar tal dever.
E acrescenta que não há que excluir a impossibilidade da prova pela singela razão da persistência, ao dispor da parte, de outros meios probatórios auxiliares ou subsidiários. Isso porquanto, apesar do facto em causa poder ser eventualmente provável por outros meios probatórios, há que ponderar se o meio probatório preterido assume especial relevância e fiabilidade na formação da convicção do julgador, ao contrário do entendimento que domina na jurisprudência (e cita este autor vária jurisprudência – págs, 43/45).
Independentemente dessa jurisprudência, não temos dúvidas que in casu a junção dos registos dos tempos de trabalho realizados (que não se confundem com horários de trabalho) seria o meio seguro de poder ser demonstrada a prestação de trabalho suplementar alegada pelo Autor, ou seja, a sua não junção impossibilitou a prova dos tempos de trabalho efetivamente prestados pela forma segura, e por decorrência da prestação de trabalho suplementar (fosse para concluir ter sido prestado o alegado pelo Autor, fosse para afastar essa alegação, como sucedeu, de resto, em relação ao perídio temporal após março de 2020).
Como conclui o Autor/Apelado, quando a lei se refere à impossibilidade da prova, não se está a referir a impossibilidade absoluta, devendo aquela ser aferida em concreto, em face das circunstâncias do caso.
Com arrimo no Acórdão do STJ de 10.09.2019, (in www.dgsi.pt, referenciado no Parecer do Exmo. Procurador Geral Adjunto), transcrevemos parte do respetivo sumário:
“(…)
II- A inversão do ónus da prova, no termos do art. 344º nº 2, do Código Civil e art. 417°, n° 2 do Código de Processo Civil, apresenta-se como uma sanção civil à violação do princípio da cooperação das partes para a descoberta da verdade material, consagrado no nº 1 do citado art. 417°, quando essa falta de colaboração vai ao ponto de tornar impossível ou particularmente difícil a produção de prova ao sujeito processual onerado com o ónus da prova nos termos gerais e seja culposa, no sentido de que a parte recusante podia e devia agir de outro modo.
III- Os princípios da boa fé e da cooperação determinam que as partes processuais adoptem uma conduta colaborante com o Tribunal no sentido da descoberta da verdade.
IV- O princípio do contraditório não pode ser interpretado como uma garantia de defesa ilimitada, mas como defesa pautada pelos princípios da lealdade e da colaboração na participação da decisão judicial.
V – À impossibilidade da prova, por atuação culposa da parte não colaborante para com o onerado, deve ser equiparado, em termos de sanção do art. 344º, nº 2, do Código Civil, um comportamento omissivo total ou parcialmente inviabilizador da prova, desde que, dessa falta de colaboração resulte, comprovadamente, fragilidade probatória causada pelo recusante.
(…)”
E, talvez por isso, o legislador impõe à Ré o dever de guardar esses registos por 5 anos (cfr. artigo 202º do Código do Trabalho).
Sendo assim, havendo esse dever, temos, então, uma recusa da Ré na junção dos registos para que foi notificada, sem que apresentasse uma explicação cabal para o não cumprimento do dever que o legislador lhe impõe, donde ser comportamento culposo.
Dito de outro modo:
A Ré foi notificada para juntar os registos dos tempos de trabalho realizados, tendo respondido que não possuía tais ficheiros, uma vez que a empresa responsável pelo seu armazenamento apenas os guardava por cinco meses.
Não temos que esta seja, sem mais, uma justificação bastante para o facto de os registos serem eliminados.
Perante tal justificação, ainda que inexistindo fundamento para a considerar inverídica, podemos concluir que a Ré recusou a colaboração devida para o apuramento da verdade, imposta para pelo artigo 417º do Código de Processo Civil e é responsável pela não junção de documentos que deveria possuir, inviabilizando ao Autor a prova do trabalho suplementar prestado.
E com este enquadramento chegamos ao momento de resolver a questão de saber se estamos perante caso de inversão de ónus da prova (artigo 417º, nº 2 do Código de Processo Civil).
Aqui temos que ter presente que existe jurisprudência a defender que para efeitos de aplicação do disposto no nº 2 do artigo 417º do Código de Processo Civil, se impõe a notificação expressa da parte no sentido da possibilidade da inversão do ónus da prova (cfr. acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 20/03/2020, proferido no processo nº 1654/18.7T8GRD.C1, Relatora Desembargadora Paula Maria Roberto, in www.dgsi.pt, ainda que com contornos diferentes já que como se lê no respetivo sumário, “(…) Se, finda a produção de prova, o tribunal nada ordenou e o trabalhador nada mais requereu ou arguiu perante o tribunal recorrido no sentido do cumprimento do disposto no n.º 2 do artigo 417.º do CPC” (sublinhado nosso)).
Aquilo que está aqui subjacente é, como está dito de forma clara no acórdão do STJ de 24/05/2018, proferido no processo nº 318/05.6TVPRT.P1.S1, in www.dgsi.pt, que partes sejam advertidas previamente da eventualidade daquela inversão do ónus da prova, de forma a poderem gerir o esforço probatório que lhe é exigível e a evitar uma decisão-surpresa, como decorre do disposto no artigo 3º, nº 3, do Código de Processo Civil.
Ora, no caso que nos ocupa, embora o tribunal não fizesse notificação para junção de documentos com essa advertência expressa, o certo é que a partir do momento em que o Autor requereu a inversão do ónus da prova, a questão passou a estar pendente de decisão, por parte do tribunal a quo, a tomar em princípio em sentença (como refere também o citado aresto do STJ), o que a Ré sabia, tanto que exerceu o contraditório sobre o requerimento do Autor, apresentando o requerimento de 29/11/2021.
Assim, fica afastado que se fale em decisão surpresa, ou decisão sobre a qual não tenham as partes tido possibilidade de se pronunciar, o que nos permite dizer que na situação específica dos autos, em face daquilo que acima se expôs, se verificam os requisitos para inversão do ónus da prova, não merecendo censura a sentença nesta parte.
Em síntese:
Não desconhecendo a existência de jurisprudência que para efeitos de aplicação do disposto no nº2 do artigo 344º do Código Civil, como referem, os Autores António Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe de Sousa, in ‘Código de Processo Civil Anotado’, vol. I, 3ª edição, pág. 530 e seguinte, exige a notificação da parte com a advertência, no sentido da possibilidade de inversão do ónus da prova, não entendemos ser decisivo neste caso, em que a Ré, notificada do referido requerimento do Autor, onde este requereu o recurso pelo tribunal à inversão do ónus da prova, tendo aquela se pronunciado a esse respeito, não tenha sido, para o efeito, formalmente advertida pelo Tribunal.
De resto, perante aquela que foi a justificação apresentada pela Ré, esta sempre se tem de considerar uma discussão abstracta, em virtude de, para o que temos como relevante, aquela, notificada para juntar os registos dos tempos de trabalho realizados, ter respondido que não possuía tais ficheiros, uma vez que a empresa responsável pelo seu armazenamento apenas os guardava por cinco meses.
Ou seja, mesmo que a Ré tivesse sido notificada especificamente com tal cominação, a mesma jamais haveria de vir juntar os registos. Repete-se que ela própria anunciou que não os tinha.
Logo, também em nosso entender há fundamento para a inversão das regras do ónus da prova, nos termos previstos no nº2 do artigo 344º do Código Civil.
Assim sendo é pela inversão do ónus da prova, nos termos do artigo 344º, nº 2, do Código Civil que devem ser julgados provados os factos relativos ao trabalho suplementar pelo Autor alegado na petição inicial.
Temos como certa a motivação da decisão de facto, proferida a este respeito, nenhum reparo merecendo o segmento em realce que novamente se transcreve e acompanha: “(…)a R., com a sua contestação, não juntou qualquer documento, exceção feita ao comprovativo da autoliquidação da taxa de justiça devida.
Posteriormente e na sequência do deferimento do a propósito requerido pelo A., aquela mesma R. veio a juntar os documentos de fls. 75 a 140 dos presentes autos, com vista a, entre o mais, comprovar que o aqui trabalhador não prestou, no período compreendido entre setembro de 2018 e fevereiro de 2021, tudo inclusive, trabalho nos dias e horários que alega. Ora, da análise dos documentos juntos a fls. 80 v.º a 84, 101 a 112 v.º, 119 a 130 v.º e 137 v.º a 139, resulta que estes constituem apenas horários de trabalho abstratos pré-definidos, os quais, à semelhança do que sucede com os de fls. 33 a 34 v.º e conforme evidenciaram as testemunhas BB e CC, estão sujeitos a alterações (v.g., resultantes de férias, faltas, acidentes de trabalho, solicitações dos clientes). Como tal, não podemos considerar que o A. os tenha cumprido cegamente.
Tendo o A. juntado com a petição inicial escalas de serviço por si elaboradas, as quais foram impugnadas pela ora entidade empregadora, o tribunal convidou esta a, em prazo, juntar ao processo os comprovativos dos registos dos tempos de trabalho do aqui A. no período que mediou entre setembro de 2018 e fevereiro de 2020, já que, quanto aos meses de março de 2020 até fevereiro de 2021, a R. juntou os registos escritos de fls. 131 a 135 v.º e de fls. 139 v.º a 140. Em resposta entrada em Juízo no passado dia 6 de junho de 2022 veio a R. alegar que não possui tais registos no seu sistema informático, sendo que a empresa responsável pelo respetivo software apenas os guarda pelo período de cinco meses, pelo que também não os possui.
Àquele propósito, diremos que, tendo a R. impugnado os registos dos tempos de trabalho da autoria do A. e que este juntou aos autos, deveria, no cumprimento do seu dever de colaboração e por ter sido para tal expressamente intimada pelo tribunal, ter juntado o registo dos tempos de trabalho do A. no hiato temporal de setembro de 2018 a fevereiro de 2020, o que não fez, apesar de estar obrigada a preservar tais registos durante cinco anos, conforme impõe o art.º 202.º n.ºs 1, 2 e 4 do C. do Trabalho.
Sendo a R. uma empresa que se dedica à atividade de segurança privada, tendo inúmeros trabalhadores nos seus quadros, não há justificação para não possuir os registos dos tempos de trabalho efetivamente cumpridos pelo A. naquele período temporal, pois só assim, no caso em presença, se poderá aquilatar da bondade dos pagamentos que foi efetuando ao trabalhador. Sendo certo que a este não é razoavelmente de exigir a comprovação, por recurso à prova testemunhal – já que em termos documentais o A. juntou aquilo que possuía, não sendo a mais obrigado –, dos concretos dias e horários efetivamente praticados em cerca de um ano e meio de serviço.
Face ao exposto, o tribunal considera, nos termos previstos no art.º 344.º n.º 2 do C. Civil, que a R. tornou culposamente impossível a prova ao onerado com a mesma, o que justifica a inversão do respetivo ónus. Sendo assim, e uma vez que a aqui parte processual passiva não comprovou que o A. não realizou, no período compreendido entre setembro de 2018 e fevereiro de 2020, tudo inclusive, o trabalho nos moldes por si alegados, este deve ser dado, como foi, por provado.
(…)”.
Num último segmento, concluiu da Apelante no sentido de que o Código do Trabalho previu expressamente as consequências da violação de registo, fazendo-o apenas nos termos previstos no n.º 5 do artigo 231º do mesmo Código e não já em termos de inversão do ónus da prova.
Também nesta parte sem razão.
Sob a epígrafe «Registo de trabalho suplementar» dispõe o artigo 231º do Código do Trabalho:
«1 - O empregador deve ter um registo de trabalho suplementar em que, antes do início da prestação de trabalho suplementar e logo após o seu termo, são anotadas as horas em que cada uma das situações ocorre.
2 - O trabalhador deve visar o registo a que se refere o número anterior, quando não seja por si efetuado, imediatamente a seguir à prestação de trabalho suplementar.
3 - O trabalhador que realize trabalho suplementar no exterior da empresa deve visar o registo, imediatamente após o seu regresso à empresa ou mediante envio do mesmo devidamente visado, devendo em qualquer caso a empresa dispor do registo visado no prazo de 15 dias a contar da prestação.
4 - Do registo devem constar a indicação expressa do fundamento da prestação de trabalho suplementar e os períodos de descanso compensatório gozados pelo trabalhador, além de outros elementos indicados no respetivo modelo, aprovado por portaria do ministro responsável pela área laboral.
5 - A violação do disposto nos números anteriores confere ao trabalhador, por cada dia em que tenha prestado atividade fora do horário de trabalho, o direito a retribuição correspondente a duas horas de trabalho suplementar.
6 - O registo de trabalho suplementar é efetuado em suporte documental adequado, nomeadamente impressos adaptados ao sistema de controlo de assiduidade existente na empresa, que permita a sua consulta e impressão imediatas, devendo estar permanentemente atualizado, sem emendas ou rasuras não ressalvadas.
7 - O empregador deve comunicar, nos termos previstos em portaria do ministro responsável pela área laboral, ao serviço com competência inspetiva do ministério responsável pela área laboral a relação nominal dos trabalhadores que prestaram trabalho suplementar durante o ano civil anterior, com discriminação do número de horas prestadas ao abrigo dos n.os 1 ou 2 do artigo 227.º, visada pela comissão de trabalhadores ou, na sua falta, em caso de trabalhador filiado, pelo respetivo sindicato.
8 - O empregador deve manter durante cinco anos relação nominal dos trabalhadores que efetuaram trabalho suplementar, com discriminação do número de horas prestadas ao abrigo dos n.os 1 e 2 do artigo 228.º e indicação dos dias de gozo dos correspondentes descansos compensatórios.
9 - Constitui contraordenação grave a violação do disposto nos n.os 1, 2, 4 ou 7 e constitui contraordenação leve a violação do disposto no n.º 8.»
As consequências previstas no nº5 do artigo 231º do Código do Trabalho, relativas à violação do dever de registo do trabalho suplementar por parte do empregador - retribuição acrescida nos moldes aí previstos – não exclui a possibilidade de inversão do ónus de prova quanto à verificação/ocorrência desse trabalho suplementar.
Improcede nesta parte a pretensão da Apelante.

2.2. Fundamentação de direito:
Tendo a Apelante feito depender a alteração da decisão de facto a justificação para a revogação da sentença, com a respetiva absolvição do pedido, atento o que ficou decidido em sede de impugnação da decisão de facto, mostra-se prejudicado o conhecimento do assim pretendido.
Improcede na sua totalidade a Apelação.

3. Decisão:
Pelo exposto, acordam os juízes da Secção Social do Tribunal da Relação do Porto em julgar improcedente a apelação.
Custas da apelação pela Apelante.

Porto, 18 de Setembro de 2023.
Teresa Sá Lopes
António Luís Carvalhão
Paula Leal de Carvalho [vencida conforme voto que segue:
Voto vencida, pelos fundamentos a seguir referidos.
Dos autos decorre que:
- O A., com a p.i., requereu a notificação da Ré para juntar aos autos, para além do mais, “a. os registos diários dos tempos de trabalho do A., desde o início da relação laboral com a R. até ao fim desta, para prova designadamente dos factos dos artigos: 16, 26, 27, 30, 40 e 45, no caso de impugnar os ora juntos;”
- Do alegado pela Ré na contestação - arts. 19 a 23 – resulta que existiam, relativamente ao período de 2018 a fevereiro de 2020, registos dos tempos de trabalho diários que eram remetidos pelo A. à Ré;
- Aquando do despacho saneador (02.11.2021) o Mmº Juiz determinou a notificação da Ré para “juntar aos autos os documentos a que se alude na parte final da petição inicial” (entre os quais, pois, os mencionados registos dos tempos de trabalho por este assinados), porém sem qualquer referência aos arts. 417º, nº 2, e/ou 431º, nº 2, do CPC, designadamente quanto à possibilidade de aplicação da cominação de inversão do ónus da prova;
- Na sequência da notificação de tal despacho, a Ré, aos 14.11.2021, juntou recibos de vencimento e mapas de horário de trabalho (turnos e escalas), mas não os registos dos tempos de trabalho, mapas aqueles que, na verdade, não refletem os tempos de trabalho efetivos;
- Notificado, o A. veio (requerimento de 17.11.2021) pronunciar-se sobre os documentos juntos pela Ré, referindo não se tratarem dos registos assinados por si, e requerer a inversão do ónus da prova quanto ao trabalho suplementar, trabalho noturno e trabalho em dias feriados;
- A Ré, notificada, veio, aos 29.11.2021, pronunciar-se sobre a requerida inversão do ónus da prova alegando, para além do mais, que "6º Cumpriu com o que lhe foi determinado, pois que juntou aos autos os registos de tempos de trabalho de que dispõe, e que em julgamento demonstrará ser os que vigoravam na empresa Ré, como, de resto, bem sabe o autor. 7.º Como alegado em contestação, o controlo das horas de trabalho efetivamente prestadas pelos trabalhadores da empresa era feito pelo centralista da mesma, em conformidade com as comunicações feitas pelos trabalhadores, tendo os registos de tempos de trabalho sido juntos pela Ré. 8.º Donde, deve considerar-se que a Ré cumpriu com o que lhe foi determinado, nada havendo mais que juntar, não ocorrendo qualquer inversão do ónus da prova por falta dos requisitos exigidos pelo n.º 2 do artigo 342.º do CC.";
- Por despacho de 21.12.2021, referiu o Mmº Juiz que "face à posição assumida pela R. quanto ao registo dos tempos de trabalho, nada mais temos, por ora, a determinar quanto a tal questão";
- Conforme ata da sessão da audiência de julgamento de 26.05.2022, o Mmº Juiz proferiu despacho a determinar a notificação da Ré para “juntar aos autos os registos informáticos diários, referentes ao Autor, das horas de entrada e de saída que tenham a ver com as chamadas telefónicas que são feitas no início e no termo de cada turno, ou então, não existindo tais registos, dizer o que tiver por conveniente nessa matéria”,
- Na sequência de tal notificação, a Ré, aos 06.06.2022, veio referir, em síntese, que contratou com empresa terceira (“D...”) um sistema informático que procedia a esse registo diário das chamadas telefónicas feitas no início e no termo de cada turno, a qual informou não ser possível a disponibilização desses registos uma vez que, de acordo com tal empresa, “a capacidade de armazenamento no software “Segurança Ativa” é de 5 meses”;
- Foi, então, proferida sentença que, com os fundamentos nela referidos, considerou, nos termos do art. 344º, nº 2, do Cód. Civil, invertido o ónus da prova relativo à prestação do trabalho cujo pagamento é peticionado.

Concorda-se com o acórdão na parte em que se diz que o que, agora, está em causa é o período de 2018 a fevereiro de 2020, sendo pois irrelevante o período posterior ao mesmo e ao qual se reporta a notificação da Ré, determinada na audiência de julgamento de 26.05.2022, para junção dos registos informáticos diários relativos às chamadas telefónicas aí mencionadas (que se reportam a período posterior a esse), sendo pois irrelevante a justificação invocada pela Ré para a não junção desses registos telefónicos (salientando-se todavia que, também em relação a essa notificação, não foi feita qualquer advertência relativamente à possibilidade de aplicação da cominação prevista nos arts. 417º, nº 2, e/ou 431º, nº 2, do CPC).
O que releva é, pois, o período de 2018 a fevereiro de 2020, em que o procedimento não era aquele, antes passando pelo registo pelo A., e seu envio à Ré, dos períodos de trabalho diário.
É certo que a Ré, na sequência da notificação do despacho de 02.11.2021 (despacho saneador), esta a única que para o efeito teve lugar, não juntou os registos diários dos tempos de trabalho solicitados pelo A. e que, em resposta ao requerimento deste de 17.11.2021, se pronunciou sobre a questão da inversão do ónus da prova (no requerimento de 29.11.2021).
Fê-lo, todavia, sem prévia advertência, por parte da 1ª instância, de que lhe poderia ser aplicada tal "sanção" (inversão do ónus da prova). E, sendo embora certo, também, que o momento oportuno para o Tribunal decidir da aplicação ou não da cominação (inversão do ónus da prova) prevista nos arts. 417º, nº 2, e 431º, nº 2, do CPC, é na sentença, a questão não é, todavia, essa, mas sim a da aplicação de tal cominação, na sentença, sem prévia advertência da possibilidade dessa aplicação (a apreciar, naturalmente, no momento oportuno, que é na sentença).
Ora, tendo em conta os efeitos, de natureza cominatória/sancionatória, e, bem assim, o disposto nos art. 3º, nº 3, e 7º, nº 1, do CPC, afigura-se-nos que deve a parte, previamente, ser devidamente alertada para tal possibilidade e, isto, não propriamente para responder, mas para ficar devidamente ciente das consequências que o Tribunal poderá vir a retirar do não cumprimento do determinado.
E, neste sentido, cfr. Acórdão da Relação de Coimbra de 20.03.2020, in www.dgsi.pt e em que estava, também, em causa situação em que o ali trabalhador havia requerido a inversão do ónus da prova, requerimento que “não foi alvo de qualquer despacho autónomo” como se diz em tal Acórdão:
“Resulta dos autos que, por despacho de fls. 721, foi ordenada a notificação da empregadora para, em 10 dias, juntar aos autos, ou justificar a impossibilidade de cumprimento, o registo de tempos de trabalho do trabalhador, como requerido, sem mais.
A empregadora não procedeu à ordenada junção que justificou por requerimento junto a fls. 724 a 725.
O trabalhador veio requerer a inversão do ónus da prova, requerimento que não foi alvo de qualquer despacho autónomo.
(…)
Acresce que, finda a produção de prova, o tribunal nada ordenou e o trabalhador nada mais requereu ou arguiu perante o tribunal recorrido no sentido do cumprimento do disposto no n.º 2 do artigo 417.º do CPC e, por isso mesmo, na sentença não se impunha o conhecimento de tal questão[3], pese embora o anteriormente requerido pelo trabalhador pois, como já referimos, a Ré não foi notificada com a expressa advertência da possibilidade de inversão do ónus da prova. (…)”. E se, neste processo, a aí ré não se pronunciou sobre o requerimento do aí autor para aplicação de tal cominação, se considerou que seria necessária a prévia advertência de aplicação da cominação, no caso dos presentes autos, até por maioria de razão (em que a Ré juntou determinados documentos e, depois, se pronunciou sobre a mesma), mais se justificaria essa prévia advertência.
No mesmo sentido, também, os Acórdãos do STJ de 12.04.2018, Proc. 744/12.4TVPRT.P1.S1, e de 24.05.2018, Proc. 318/05.6TVPRT.P1.S1, naquele citados, in www.dgsi.pt, referindo-se no primeiro dos mencionados arestos que “Desde logo que, tendo em conta as consequências decisivas da inversão do ónus da prova para a decisão do tribunal que aprecia as provas produzidas e impendendo sobre o juiz, nos termos do art. 7º, n.º 1 do CPC, o dever de cooperação com as partes, concorrendo para se obter, com brevidade e eficácia, a justa composição do litígio, temos por certo que, no caso dos autos, o Tribunal de 1ª Instância devia atuar de forma preventiva de molde a dar a conhecer à ré quais seriam as consequências processuais da sua recusa em fornecer aos peritos os elementos documentais que estes reputavam como necessários para que pudessem responder às questões que constituíam objeto da perícia. (…)” [sendo que, no caso subjacente a este aresto, a 1ª instância, após uma primeira notificação, sem tal advertência, proferiu segundo despacho a determinar então a junção dos documentos em falta “sob pena de (…) de eventualmente se inverter o ónus da prova, por aplicação do disposto nos artigos 417.º, n.º 2 do CP. Civil e 344º, n.º 2 do C. Civil”].
E, no ponto XII do sumário do segundo dos referidos arestos do STJ que “XII. De qualquer modo, deverão as partes ser advertidas previamente da eventualidade daquela inversão do ónus da prova, de forma a poderem gerir o esforço probatório que lhe é exigível e a evitar uma decisão-surpresa, como decorre do disposto no art.º 3.º, n.º 3, do CPC”
No caso, é certo que a Ré se pronunciou sobre tal cominação, mas fê-lo respondendo à pretensão manifestada pelo A. no sentido da sua aplicação, mas sem que a 1ª instância, após, se tivesse pronunciado quanto à possibilidade de aplicação dessa cominação/sanção que, na sentença, veio a aplicar sem essa prévia advertência.
Por outro lado, e tendo em conta a falta dessa advertência, bem como a resposta da Ré de 29.11.2021 (referindo ter dado cumprimento ao solicitado) mas, resultando também quer da contestação (arts. 19 a 23), quer dessa mesma "resposta", que os registos de tempos de trabalho que lhe eram remetidos pelo A. existiam, afigura-se-nos que deveria a Ré, então, ter voltado a ser notificada para os juntar e com a advertência do disposto nos arts. 417º, nº 2, e 431º, nº 2, do CPC, meio de prova esse que, e em conjunto com os demais, se poderia mostrar relevante ou, não sendo juntos, ser então devidamente apreciado o incumprimento e sua eventual justificação, com as consequências a, daí, retirar mas, como referido, já depois de a Ré ter sido devidamente alertada para essa possibilidade.
Entendemos, assim, que, previamente à aplicação da cominação da inversão do ónus da prova, deveria a Ré ter sido expressamente notificada no sentido da possibilidade da sua aplicação.
A omissão de tal notificação previamente à decisão de aplicar essa cominação consubstancia nulidade processual por omissão da prática de ato que deveria ter sido praticado com influência no exame e decisão da causa (art. 195º, nº 1, do CPC), mas que, porque coberta por decisão judicial, no caso a sentença, é impugnável por via de recurso a interpor desta.
No caso, e pese embora a Ré não a configure expressamente como tal, alega contudo que “foi confrontada com a inversão do ónus da prova, apenas em sede de sentença”, o que, entendemos, consubstancia invocação suficiente de tal nulidade, sendo que o juiz, no tocante à indagação, interpretação e aplicação do direito, não está sujeito ao alegado pelas partes (art. 5º, nº 3, do CPC).
Assim sendo, entendemos que seria de anular a sentença recorrida e determinar à 1ª instância a reabertura do julgamento, a notificação da Ré para os efeitos em questão – junção aos autos dos registos diários do tempo de trabalho que o A. enviava à Ré no período de 2018 a fevereiro de 2020 com expressa advertência das cominações previstas nos arts. 417º, nº 2, e 431º, nº 2, do CPC - e a pratica dos atos, designadamente probatórios, subsequentes que se pudessem mostrar necessários, e prolação de nova sentença.
De todo o modo, mesmo que se entendesse não se tratar de nulidade processual ou de não haver a mesma sido invocada, sempre se chegaria à mesma solução.
Com efeito, e pelo referido, a sentença – em que se aplicou a inversão do ónus da prova – não se poderia manter por não verificação de pressuposto prévio (a referida notificação nos moldes apontados) necessário à aplicação dessa cominação. Mas também não seria, sem mais, de proceder à absolvição da Ré do pedido, antes havendo que anular a sentença e determinar a reabertura do julgamento com vista à notificação da Ré, com a cominação dos citados preceitos, para junção relativamente ao período de 2018 a fevereiro de 2020 dos registos dos tempos de trabalho diários que lhe eram remetidos pelo A. e a que a mesma alude nos arts. 19 a 23 da contestação, diligência probatória esta que se poderá mostrar relevante, designadamente em confronto com os meios de prova produzidos ou, se necessário em função dessa junção, a produzir, seguindo-se o mais acima referido.]