Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
0313418
Nº Convencional: JTRP00035470
Relator: MANUEL BRAZ
Descritores: CRIME DE IMPRENSA
DEVER DE INFORMAR
Nº do Documento: RP200402100313418
Data do Acordão: 03/10/2004
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC PENAL.
Decisão: ALTERADA A DECISÃO.
Área Temática: .
Sumário: I - A prova obtida através de meio enganoso (câmara oculta) é nula e não pode ser utilizada para perseguição criminal pelo eventual crime que visa provar.
II - Pode, todavia, ser utilizada pelo arguido no interesse da sua defesa.
III - O interesse público que há em noticiar casos de dopagem de atletas sobrepõe-se ao interesse lesado com a sua divulgação - a honra e a consideração do ofendido.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação do Porto:

No -º juízo criminal da comarca de....., em processo comum com intervenção do tribunal colectivo, foi proferido acórdão, onde se decidiu
- condenar os arguidos
- X..... e
- Y.….,
pela prática de um crime p.e p. pelos artºs 180º, nº 1, e 183º, nº 2, do CP, com referência aos artºs 41º, nº 2, e 42º, nº 1, alínea a), da Lei nº 58/90, de 7/9, na pena de 210 dias de multa a 5 € por dia;
- absolver os mesmos arguidos da acusação em relação a 4 crimes idênticos;
- absolver o arguido H..... da acusação relativamente a 5 crimes iguais;
- absolver os três referidos arguidos/demandados e K..... do pedido civil deduzido contra eles por B......

Desse acórdão interpuseram recurso o Mº Pº, o assistente B...... e os arguidos X..... e Y....., sustentando, em síntese, na sua motivação:

o primeiro:
- A conduta dos arguidos está justificada pelo exercício do direito de informar.
- Ou, se assim não se entender, pelo direito de necessidade.

o segundo:
- Da prisão preventiva a que foi sujeito resultaram para o recorrente danos não patrimoniais imputáveis aos demandados.
- Não resulta dos factos provados que o recorrente tenha contribuído para a produção dos danos não patrimoniais resultantes da ofensa à sua honra e consideração, não tendo, pois, aplicação o artº 570º, nº 1, do CC.

os terceiros:
- Devia ter-se dado como provado que
- o conteúdo do vídeo era verdadeiro;
- havia matéria suficiente para suspeitar que o assistente vendia substâncias estupefacientes no seu consultório;
- fazia isso por hábito;
- já administrara tais substâncias anteriormente, pelo menos no clube de futebol D......
- Houve erro notório na apreciação da prova.
- Verificam-se os pressupostos do artº 180º, nº 2, do CP.
- Em consequência, devem ser absolvidos.

Os recursos foram admitidos.
O assistente respondeu aos recursos do Mº Pº e dos arguidos, defendendo a sua improcedência.
Os arguidos recorrentes, respondendo aos recursos do assistente e do Mº Pº, remeteram para o recurso que interpuseram.
Nesta instância, o senhor procurador-geral adjunto pronunciou-se pela manutenção da decisão recorrida.
Foi cumprido o artº 417º, nº 2, do CPP.
Colhidos os vistos, procedeu-se à realização da audiência.

Transcrição de parte do acórdão recorrido:

Produzida a prova e discutida a causa, resultaram provados os factos seguintes:

O arguido X..... foi autor e editor do programa desportivo "Z....." que desde cerca de dois anos antes de 199.. foi transmitido pela estação de televisão K..... todas as sextas-feiras, a partir de cerca das 23.30 horas - 00.00 horas, o que também sucedeu no período compreendido entre 30 de Maio de 199.. e 27 de Junho de 199...
Designadamente nesse período, mas desde tempos anteriores, esse programa foi apresentado pelo 2° arguido, Y......
No dia 30 de Maio de 199.., Sexta-feira, cerca das 23.30 - 00.00 horas, iniciou-se no canal televisivo da referida K..... o programa "Z......".
A abrir o dito programa televisivo, aquele apresentador (2° arguido) dirigindo-se ao público em geral, disse o seguinte:
"A K..... descobriu um dos armazéns de doping, um gabinete médico, e o vendedor que é médico e dá autênticas lições sobre a manipulação de produtos estimulantes para melhoria do rendimento desportivo. Por 40 contos, o médico vendeu uma embalagem de Centramina, um estimulante perigoso, porque, segundo opiniões médicas, aumenta o rendimento hoje, mas pode matar amanhã".
Logo em seguida, no dito programa, iniciou-se uma reportagem de cerca de 15 minutos que começou por mostrar o exterior do prédio em que o assistente tinha instalada a sua clínica médica.
Exibindo-se depois a porta e a janela daquela clínica (no rés-do-chão do prédio) onde se encontravam impressos o nome da mesma ("Clínica....."), e o nome de três médicos, um dos quais o do assistente ("Dr. B.....").
Enquanto estas imagens iam passando no écran da televisão, um repórter da K..... ia dizendo:
"No futebol a droga está ao alcance de jogadores, técnicos ou dirigentes. A K..... encontrou um consultório onde o próprio médico vende produtos dopantes. O repórter da K..... disfarçado de dirigente foi pontual. Às 11.00 horas da manhã da passada Quarta-feira apresentou-se no consultório de B....., em...... O ex-médico do M....., N.... e D..... era o homem certo para os objectivos de uma equipa em riscos de descida de divisão".
Seguiu-se depois um filme, a preto e branco, exibindo-se o interior do consultório do assistente e o próprio assistente, bem como partes de um diálogo entre este e aquele falso dirigente desportivo, o tal repórter "pontual" da K...... A gravação destas imagens a preto e branco, assim como a gravação daquele pretenso diálogo foram efectuadas sem o conhecimento, sem o consentimento e contra a vontade do assistente .
Depois da exibição daquele filme "a preto e branco", e sempre no mesmo programa de 30/5/97, surgiu no écran televisivo o 2° arguido (Y.....) que disse: "Em questão está a Centramina que é o nome do medicamento que a K..... adquiriu no consultório do Dr. B..... e aconselhado a uma fictícia equipa de futebol à beira de dois jogos decisivos".
Sendo que, nesta altura, o 2° arguido exibiu uma caixa de Centramina e a respectiva bula (nunca os "blisters" com comprimidos), referindo que a mesma teria sido adquirida ao assistente, como - disse aquele arguido - se pode ver no filme.
Essas caixas de Centramina e bula permaneceram na mesa do 2° arguido durante todo o dito programa, sendo que, de quando em vez, o mesmo arguido as manuseava.
Sempre no âmbito do mesmo programa, teve lugar a seguir a exibição de uma reportagem em que se viu um repórter da K....., no interior de duas farmácias, questionando aí pela existência do referido produto - Centramina - e obtendo em ambas a mesma resposta: produto de venda proibida, composto por anfetaminas, e, por isso, inexistindo à venda nas farmácias.
No final desta reportagem, o mesmo 2° arguido (Y.....), referindo-se àquele produto - Centramina - comentou: "O produto vendido pelo médico B.....".
Seguiram-se depois algumas entrevistas a médicos que explicaram que a Centramina era composta por anfetaminas, produto altamente dopante, explicando os seus efeitos nocivos na saúde dos atletas e, concretamente, dos jogadores de futebol. Bem como extractos de entrevistas a dois responsáveis da ordem dos Médicos (um deles o próprio Bastonário) e a um membro do Governo. Sendo certo que todo o mencionado programa decorreu tendo como " pano de fundo " a exibida venda de produtos dopantes e estupefacientes pelo assistente, facto que ao longo de todo o programa foi sempre dado como certo, real e verídico, com base no atrás citado "filme a preto e branco".
Uma semana depois, em 6 de Junho de 1997, no mesmo programa "Os Z....." que se iniciou cerca das 23.30 - 00.00 horas, o referido 2° arguido (Y.....) começou por dizer:
"Neste dia o médico B..... foi detido e interrogado sobre o caso da venda de estimulantes denunciado pela K..... há oito dias".
Logo a seguir, no mesmo programa, foram novamente exibidas algumas imagens que compõem o dito filme a preto e branco, enquanto o referido 2° arguido (Y.....) comentava:
"Há uma semana a K..... mostrou um médico, que trabalhava em clubes, a vender produtos dopantes e a explicar como devem ser utilizados".
No mesmo programa de 6 de Junho de 1997, e a seguir a um intervalo, novamente o 2° arguido (Y.....) disse:
“O Procurador de..... mandou deter o médico B..... há oito dias mostrado pela K..... a vender uma caixa de anfetaminas a um suposto dirigente de clube. B..... esteve esta tarde a ser ouvido, durante 4 horas, entre as 18.00 e as 22.00 horas, tendo sido ainda feita uma busca ao consultório. E por decisão do juiz recolheu aos calabouços da Polícia Judiciária, acusado de crime de tráfico de estupefacientes.”
Seguiu-se uma reportagem com imagens do Tribunal Criminal de....., do próprio assistente, da fachada do edifício do seu consultório, e de partes do filme a preto e branco, enquanto o repórter da K..... ia dizendo:
“O saco que se vê nas imagens não foi encontrado, pelo que a juiz concluiu que a busca ficou aquém das expectativas”.
Fazendo-se, assim, referência a um saco que, no filme a preto e branco, é mostrado a ser manuseado pelo assistente. Ainda na mesma reportagem, o mesmo repórter da K..... continuou dizendo: "No entanto, foram encontradas algumas anfetaminas. No início da semana a judiciária apreendera nas instalações da K..... as anfetaminas vendidas pelo médico B...... Analisadas no Laboratório da Polícia Judiciária o resultado foi inequívoco: sulfato de anfetaminas, ou seja, estupefacientes constantes da Tabela II-A".
Depois desta reportagem, o mencionado 2° arguido aparece nas imagens dizendo: "A K..... quer entretanto esclarecer que os outros médicos que possuem consultório no Centro Médico da..... não estão de forma nenhuma envolvidos neste caso que apenas afecta directa e pessoalmente o médico filmado pela K....., isto é, o Dr. B...... A detenção e interrogatório do médico B..... ocorreu 8 dias depois da denúncia feita pela K..... com imagens reveladoras da venda de uma caixa de anfetaminas ao suposto dirigente de um clube em dificuldades e com necessidade de vencer os últimos jogos".
Seguiram-se uma série de entrevistas, sendo que numa delas, com o Professor L....., e porque este referiu ser necessário não retirar conclusões precipitadas daquele " filme a preto e branco ", o 2° arguido (Y.....) referiu que o Dr. B....., implicitamente, naquele filme diz que utilizou produtos dopantes nos jogadores de futebol do D......
Também todo este programa decorreu sempre, partindo da premissa que se tomou constantemente como indubitável e verdadeira de que o assistente vendeu, vende, administrou ou mandou administrar, produtos dopantes e estupefacientes.
Na semana seguinte, em 13 de Junho de 1997, cerca das 23.00 horas 00.00 horas, iniciou-se o mesmo programa "Os Z....." com a exibição de partes daquele filme a preto e branco.
E depois de uma entrevista relativa a situações que nada tinham a ver com a questão aqui em causa, o apresentador do programa (2° arguido - Y.....) disse: "A K..... apresentou nos Z..... um longo diálogo entre um suposto dirigente de um clube em dificuldades e um médico, o Dr. B...... Um diálogo que girou à volta do uso de substâncias estimulantes e que conduziu à venda pelo médico B....., e por 40 contos, de uma caixa de anfetaminas. É esse diálogo gravado com o recurso a uma câmara oculta que vamos ver na íntegra".
E seguiu-se, no mesmo programa de 13 de Junho de 199.., a exibição de todo o filme a preto e branco que tem vindo a ser referenciado, aparecendo no écran televisivo os dizeres "B..... - Médico" e "Câmara Oculta", tal como tinha sucedido nos anteriores programas acima referidos.
Sendo que no início dessa exibição, novamente o repórter da K..... fazendo referência ao consultório do assistente, disse: "...onde o médico Dr. B..... vende produtos dopantes".
Depois da exibição daquele filme foi exibida uma pequena parte de uma entrevista que o assistente, voluntariamente, concedeu à K....., no respectivo consultório, em que aquele referiu nunca ter vendido produtos dopantes nunca os ter administrado ou mandado administrar a qualquer atleta e não ter tido qualquer responsabilidade numa análise positiva de um controle anti-doping efectuado no clube de M.....
Esta entrevista foi exibida durante cerca de um minuto, apresentando-se "cortada" em várias partes.
De seguida, no mesmo programa "Os Z....." um dos convidados presentes no programa foi o treinador de futebol C......
Este treinador foi entrevistado pelo 2° arguido (Y.....) que àquele pediu, além do mais, um comentário sobre o filme a preto e branco acima mencionado.
À forma como aquele treinador tentou rebater o conteúdo daquele filme "a preto e branco" e demonstrar que as conclusões dele retiradas pela K..... eram falsas, o 2° arguido (Y.....) replicou, insistindo que era indubitável que o assistente havia referido naquele filme "a preto e branco" que havia dopado os jogadores do D....., que era indubitável que naquela película o assistente havia afirmado que adquiria produtos dopantes ao Dr. R....., que era indubitável que ali o assistente aparecia a vender produtos dopantes e estupefacientes, rebatendo os argumentos daquele entrevistado.
No mesmo programa, mas já em 27 de Junho de 1997, que se iniciou cerca das 23,30 - 00.00 horas, o 2° arguido, referindo-se à pessoa do assistente e ao respectivo consultório, afirmou que o mesmo assistente faz "comércio de produtos dopantes" e considerou ainda que tal facto se revelava de maior gravidade "por se passar no consultório de um médico ".
Logo de seguida, nesse programa, foram novamente exibidas partes do já mencionado "filme a preto e branco".
Depois de algumas entrevistas, exibiu-se ali novamente parte daquele filme, comentando o repórter da K..... o seguinte:
"B....., o médico apanhado nas malhas do doping vendeu Centramina, um produto proibido, a um falso dirigente desportivo ...".
Todos estes programas, obviamente, dirigiram-se ao público em geral.
E todos os factos supra citados, quer a exibição e o conteúdo do próprio "filme a preto e branco" quer os comentários que sobre ele e o assistente foram feitos, são altamente ofensivos da honra e consideração pessoal e profissional da pessoa do assistente, porque naqueles programas foram formulados os juízos e imputados ao assistente todos os factos que acima se deixaram descritos.
Os arguidos X..... e Y..... agiram voluntária, livre e conscientemente, sabendo que actuando como actuaram iriam ofender a pessoa do assistente na respectiva honra e consideração pessoal e profissional, como na realidade ofenderam, bem sabendo que o faziam através da televisão, e bem sabendo que tais condutas eram proibidas e punidas por lei, não se coibindo, no entanto, de assim actuarem.

Da discussão da causa, provou-se ainda que:

O filme a preto e branco acima referido foi exibido tendo sido introduzidas na emissão, de modo a aparecerem nos écrans dos telespectadores as expressões “Câmara Oculta” e ‘”B..... – médico”.
Este filme aparenta ter sido sujeito a cortes e mostra-se legendado, aparentemente na tentativa de superar as insuficiências do sistema sonoro.
Na cena do filme são visíveis duas personagens dentro de uma sala: um indivíduo, que se veio a apurar ser P....., que se apresenta disfarçado de dirigente desportivo; outra, o assistente, Dr. B....., bem como o consultório do assistente.
No decorrer do diálogo mantido entre ambas as personagens, a primeira, assume o papel de dirigente de um clube de futebol, solicita, em resumo, à segunda o aconselhamento sobre a administração e o fornecimento de substâncias proibidas – o denominado doping- destinadas a melhorar o comportamento dos atletas do seu clube; a segunda, presta esclarecimentos, relata casos acontecidos e, no final da peça exibida, acaba por, aparentemente, vender à primeira substâncias proibidas pelo preço de 40 contos, dando-se por reproduzido o teor desse mesmo filme.
O arguido H....., ao tempo dos factos, era director de Informação e de Programas da K...... Não soube que o filme a preto e branco fosse ser exibido na noite de 30/5/97, apenas tendo tomado conhecimento dos factos um dia ou dois depois. Jamais teve qualquer intervenção sobre o conteúdo de qualquer programa d’ Z....., estando a respectiva direcção atribuída exclusivamente ao arguido X...... Dada a natureza abrangente das suas funções directivas, bem como da representação pública da estação de televisão K....., o arguido H..... não interferia nem tinha tempo para apurar dos conteúdos de programas como Z....., estando isso delegado nos autores ou directores dos programas.
Foi o arguido X..... quem, depois de ver as imagens do filme a preto e branco, determinou a sua exibição. O pivot do programa, o 2º arguido Y....., também viu as imagens. Segundo a intenção de ambos, foi o assunto tratado e comentado no programa de 30/5/97 e nos programas seguintes aludidos supra pela forma descrita. Ambos actuaram na convicção de que o assistente B..... entregou Centramina contra o recebimento de 40.000$00, aos membros da equipa designados pela K..... para o contactarem e recolherem as imagens do filme a preto e branco.
O 2º arguido Y..... não interveio na operação de que resultou a recolha das imagens do filme a preto e branco e os textos e comentários que fez a propósito do mesmo foram da sua exclusiva autoria, seguindo porém uma intenção partilhada pelo arguido X.....: a de expor e tratar o assunto nos termos que o foram.
As questões relacionadas com o doping no desporto sempre foram do interesse dos arguidos sendo um tema pertinente para o programa em questão.
Os arguidos ou qualquer jornalista do programa jamais tiveram qualquer referência do assistente como pessoa que vendesse produtos dopantes ou estupefacientes, com excepção do resultado do filme a preto e branco.
O arguido X.....é jornalista da K....., aufere cerca de 2.000 euros por mês e vive sem pessoas a seu cargo.
O arguido Y..... é jornalista da W....., director da Ww.... e da revista “V.....”. Vive sem pessoas a seu cargo, auferindo um salário de 1500 euros por mês.
O arguido H..... não exerce actividade remunerada, tendo uma filha a seu cargo, que estuda.
Não se apurou que qualquer dos arguidos tenha antecedentes criminais.

Com relevância para a decisão do pedido cível, provou-se que:

O assistente licenciou-se em medicina no ano de 1977, pela Faculdade de Medicina da Universidade d...., com média de curso de 14 valores. A partir de então e até hoje vem exercendo a actividade de medicina. Entretanto, fez o mestrado em medicina desportiva.
Há vários anos que, no seu consultório particular, exerce a actividade de médico de clínica geral, tendo atingido já o topo da carreira (consultor de clínica geral).
Também há vários anos é médico convencionado de clínica geral, isto é, atende no respectivo consultório, e não nos Centros de Saúde, doentes do Serviço Nacional de Saúde, pelo que tem a seu cargo uma lista de cerca de 1.600 utentes, por cujo atendimento é responsável durante as horas de expediente.
Por outro lado, é igualmente médico do SAMS (serviço de saúde dos bancários), da ADSE (serviço de saúde dos funcionários públicos), e dos funcionários dos CTT (correios), além de que possui ainda diversos doentes, ditos privados, ou seja, que recorrem aos serviços médicos do assistente independentemente de se encontrarem ou não adstritos a um serviço de saúde. Por todas estas centenas de doentes sempre o assistente foi considerado um profissional competente e de inequívoca e exemplar postura ética, moral e humana. Por todos esses doentes sempre o assistente foi admirado, considerado e respeitado, quer pela competência profissional que desde sempre lhe reconheceram, quer pela dignidade, honradez, serenidade, sensatez e equilíbrio que sempre se habituaram a ver na sua forma de comunicar com os outros, de aconselhar, de estar na vida, em suma. na sua personalidade. Junto dos seus amigos e conhecidos, sempre o assistente foi considerado o bom conselheiro e o confidente, um homem sensato e equilibrado, um excelente e incansável profissional e, sobretudo, um homem de mente sã. No seu meio familiar, o assistente sempre foi encarado como o exemplo a seguir, pela sua elevada estatura moral e profissional. E ele próprio sempre se sentiu assim considerado por todos: doentes, amigos, conhecidos e familiares.
Desde logo, a transmissão do primeiro programa, em 30 de Maio de 1997, determinou a instauração imediata de um processo criminal contra a pessoa do assistente nos Serviços do Ministério Público deste Tribunal, imputando-se-lhe, além do mais, a prática de um crime de tráfico de estupefacientes. Em consequência, uma semana depois, concretamente em 06 de Junho de 1997, e no âmbito daquele processo criminal, foi ordenada e realizada busca ao consultório do assistente com vista a apreender produtos estupefacientes que ali eventualmente se encontrassem. O que foi feito, obviamente, sem prévio aviso; às diligências de busca, com todo o aparato que situações destas normalmente envolvem assistiram agentes policiais, funcionários judiciais, juiz, delegado do M°. Pº.
No mesmo dia (06.06.1997), o assistente foi detido por ordem do M°. P°. de Matosinhos, e, preso preventivamente, por despacho do JIC do...... O assistente manteve-se nessa situação de prisão preventiva, primeiro nos calabouços da Polícia Judiciária (na Rua de....., no....) e depois no Estabelecimento Prisional do..... (....), durante 53 dias consecutivos. Só então sendo libertado por Douto Acórdão do Tribunal da Relação do Porto. A prisão preventiva do assistente foi noticiada pela própria demandada K..... no referido programa de 06 de Junho de 1997, e depois pela generalidade dos órgãos de comunicação social. Em consequência da instauração daquele processo criminal, e sobretudo da prisão preventiva a que foi sujeito, os dois filhos menores do assistente e a sua mulher sofreram intensamente. A filha chorava muito, o filho ficou nervoso e apreensivo, a mulher esteve à beira de um esgotamento físico e psíquico, não conseguindo dormir, não se alimentando e chorando frequentemente. O que o assistente viveu com grande apreensão, preocupação, desgosto, tristeza e revolta.
Esta prisão a que foi sujeito causou na pessoa do assistente vergonha, desgosto, desalento, mágoa, angústia, revolta, tristeza, sentindo-se profundamente vexado e humilhado e, por isso, ofendido no que lhe era mais querido: a sua liberdade, a sua honra e a sua consideração pessoais e profissionais, sentimentos esses que ainda hoje vive e suporta e que dificilmente conseguirá esquecer.
A notícia da prisão do Dr. B....., tal como o conteúdo do filme a preto e branco e os comentários feitos sobre ele, chegaram facilmente ao conhecimento de muitos dos seus doentes, amigos, conhecidos, familiares e do público em geral e foi comentada por amigos, conhecidos e doentes do assistente; por desconhecidos, nos cafés, restaurantes e diversos locais públicos e pelos vários órgãos de comunicação social.
Como consequência directa das palavras e comentários proferidos naqueles programas televisivos e do filme “a preto e branco” aí exibido, o assistente viu deteriorarem-se as relações de estreita amizade que mantinha com o Dr. F....., seu sócio na Clínica Médica que possuía na....., o que culminou com a dissolução dessa sociedade. Além de que o assistente e aquele Dr. F....., antes de 30.05.1997, haviam já prometido comprar novas instalações onde pretendiam instalar aquela clínica médica. Devido aos referidos programas televisivos, o Dr. F..... recusou manter essa promessa. O assistente viu-se, assim, obrigado a comprar sozinho aquelas instalações, para o que teve de recorrer ao auxílio financeiro de familiares, suportando encargos económicos muito elevados e que, em sociedade, seriam reduzidos a metade. Sendo certo que o assistente não logrou substituir aquele colega.
Os arguidos tinham perfeito conhecimento que aquele programa desportivo era, ao tempo, um dos de maior audiência nacional.
O bom nome e reputação do assistente foram fortemente abalados.

Da contestação da demandada civil K....., provou-se que, com exclusão do filme a preto e branco e de outras entrevistas, emitidos nos programas dos dias 30/5, 6/6, 13/6 e 27/6, tudo o mais que ocorria no programa “Os Z.....” era emitido em directo.

Nada mais se provou, que seja relevante para a decisão a proferir. Designadamente não se provou, que os arguidos Y..... e H..... fossem autores ou produtores do programa “Z.....”. Não se provou que as partes do diálogo exibidas, por constantes do referido filme a preto-e-branco fossem apenas elementos de um “pretenso” diálogo, nem que a entrega de produtos pelo assistente tivesse sido apenas uma “pretensa” venda.
Não se provaram as conclusões segundo as quais foi falsa e criminosamente que se retirou a conclusão subjacente ao programa exibido em 27/5/97 de que o assistente havia vendido produtos dopantes e estupefacientes, nem que foi pretensa e falsamente que o saco de plástico referido no programa de 6/6/97 foi exibido como contendo produtos dopantes e estupefacientes.
Não se provou que na entrevista feita ao assistente B..... tivessem sido cortadas passagens “que eventualmente mais poderiam beneficiar a defesa pessoal do assistente.” Isso porque essas passagens omitidas não cumpriam o objectivo do programa: mostrar que era indubitável, real e verídico o facto de que o assistente vendeu e vende produtos dopantes e estupefacientes.
Não se provou que a entrevista com o treinador C..... tivesse ocorrido no programa de 20/6/97, mas ainda no mesmo programa de 13/6/97.
Não se provou que o arguido Y....., nesse mesmo programa, tivesse actuado por forma a evitar que o treinador C..... demonstrasse que as conclusões retiradas e enunciadas por si, nos vários programas, eram falsas, mas apenas que ele rebateu os argumentos usados por esse treinador para o efeito.
Não se provou que os arguidos tivessem pretendido directamente ofender o assistente na sua honra e consideração e por isso tivessem agido como agiram.

Do articulado do pedido cível, não se provou: que o assistente seja responsável exclusivo e durante 24 horas por dia, quanto aos doentes que atende no âmbito da convenção que mantém com o Centro Local de Saúde; que a busca feita ao consultório do Dr. B..... tivesse sido presenciada por doentes, colegas, funcionários e vizinhos seus; que a filha do assistente fosse apontada na escola por causa da prisão do seu pai; que o assistente não tenha logrado encontrar novo sócio uma vez que nenhum médico se mostrou disponível para com ele colaborar, em virtude dos factos exibidos nos ditos programas televisivos e que tenha de estar disponível para atender os doentes do Centro de Saúde 7 dias por semana e 24 h. por dia; que o Sams tenha suspendido a convenção com o assistente por causa dos factos que são objecto do processo.

Fundamentação:

Os arguidos X..... e Y..... dão mostras de pretenderem impugnar a decisão proferida sobre matéria de facto, impugnação essa admissível, visto não ter sido feita a declaração a que alude o artº 364º, nºs 1 e 2, do CPP e a prova ter sido documentada, mediante gravação.
Ao que se percebe, a sua discordância estará em não se ter dado como provado que
-o conteúdo do vídeo era verdadeiro;
-havia matéria suficiente para suspeitar que o assistente
vendia substâncias estupefacientes no seu consultório;
- fazia isso por hábito;
- já administrara tais substâncias anteriormente, pelo menos no clube de futebol D......
Mas, os recorrentes não especificam, por referência aos suportes técnicos, as provas que, em seu entender, impõem decisão diversa da recorrida, e tinham de fazê-lo, como manda o artº 412º, nºs 3, alínea b), e 4, daquele código. É certo que na página da motivação em que referem aqueles pontos de facto, em nota de rodapé, se faz alusão a determinadas declarações cuja localização nas gravações é feita. Porém, essas indicações não são feitas com referência aos ditos pontos de facto, pois a mencionada nota de rodapé tem o nº 33, e este número no texto da motivação refere-se, como se vê da página anterior a matéria que nada tem a ver com os pontos de facto em análise, a matéria que nem sequer é de facto. Na verdade, no texto da motivação, o nº 33 reporta-se à seguinte afirmação: “O doping no desporto é um flagelo que provoca dependências, danos e até morte, vicia os resultados desportivos e destrói a juventude que, através do desporto deveria encontrar saúde e não dano e morte” (página 17).
O incumprimento daquele ónus leva a que a Relação, não conhecendo as razões pelas quais o recorrente discorda da decisão recorrida neste ponto, não possa saber se elas são fundadas, só podendo sindicar aquela decisão no âmbito do artº 410º, nºs 2 e 3, e não amplamente. Não se coloca aqui a hipótese de convite ao recorrente para colmatar a falha, porque esta é da própria motivação. E não pode haver lugar a nova motivação, visto ser peremptório o prazo para recorrer.
Sobre esta matéria deve ver-se o acórdão do Tribunal Constitucional nº 259/2002, de 18/6/2002, publicado no DR – II série, de 13/12/2002, onde se escreveu que o que esse tribunal considerou, em várias decisões, constitucionalmente desconforme foi “a rejeição liminar de um recurso (portanto sem prévio convite ao aperfeiçoamento) quando as conclusões da motivação faltassem, fossem em grande número ou ocupando muitas páginas, nelas se cumprisse deficientemente certos ónus ou não se procedesse a certas especificações, mas não chegou a afirmar-se, por exemplo, o direito do arguido a apresentar uma segunda motivação de recurso, quando na primeira não tivesse indicado os fundamentos do recurso, ou a completar a primeira, caso nesta não tivesse indicado todos os seus possíveis fundamentos”. E o mesmo acórdão acaba por afirmar que a existência de um despacho de aperfeiçoamento quando o vício seja da própria motivação “equivaleria, no fundo, à concessão de novo prazo para recorrer, que não pode considerar-se compreendido no próprio direito ao recurso”.
Os recorrentes alegam haver erro notório na apreciação da prova em o tribunal recorrido não ter considerado provados factos que foram dados como tal no processo em que o assistente foi submetido a julgamento sob a acusação de tráfico de estupefacientes.
Mas, uma tal alegação nada tem que ver com o vício do erro notório na apreciação da prova, que, como se vê do artº 410º, nº 2, alínea c), é um vício de raciocínio, que tem de resultar com toda a evidência do texto da decisão recorrida e consiste em chegar, em matéria de facto, a uma conclusão que contende com as regras da experiência comum.
De qualquer modo, os factos dados como provados num processo penal não se impõem só por isso noutro. Só podem ser considerados provados num processo penal os factos que aí sejam objecto de prova. Em processo penal, o tribunal a quem cabe julgar determinado caso é quem decide sobre a prova dos factos que interessam a esse julgamento. Acresce que, no caso, os sujeitos processuais neste e do outro processo não coincidem: os arguidos não foram sujeitos processuais no processo em que o aqui assistente respondeu ou responde pelo crime de tráfico (segundo informa o Mº Pº no recurso que interpôs, não transitou ainda o acórdão proferido nesse processo).
Haveria ainda erro notório na apreciação da prova em o tribunal recorrido não ter dado credibilidade a declarações de testemunhas e arguidos.
Mas, também esta alegação é estranha ao vício do artº 410º, nº 2, alínea c), na medida em que, tendo este vício de ser evidenciado pelo texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum, como se disse, os recorrentes argumentam a partir de elementos alheios a essa decisão, como são as declarações prestadas por participantes processuais na audiência.
E a credibilidade das declarações das pessoas ouvidas na audiência de julgamento depende de aspectos que, como a postura de quem as profere, os gestos, o tom de voz, a convicção, os silêncios, as hesitações, etc., escapam ao controlo do tribunal de recurso, por lhe faltar a imediação da prova.
Não se verificando os defeitos apontados pelos recorrentes à decisão proferida sobre matéria de facto e não se vislumbrando outros vícios que sejam de conhecimento oficioso, tem-se essa decisão como definitivamente assente.

Passemos agora ao direito, começando pela parte penal.
O tribunal recorrido condenou os arguidos recorrentes pela prática de um crime de difamação do artº 180º, nº 1, com agravação do nº 2 do artº 183º, ambos do CP. O Mº Pº, em primeira linha, e os arguidos defendem a verificação da causa de exclusão da ilicitude prevista no nº 2 do artº 180º.
Vejamos.
Diz este artº180º:
1– Quem, dirigindo-se a terceiros, imputar a outra pessoa, mesmo sob a forma de suspeita, um facto, ou formular sobre ela um juízo, ofensivos da sua honra ou consideração, ou reproduzir uma tal imputação ou juízo, é punido com pena de prisão até 6 meses ou com pena de multa até 240 dias.
2– A conduta não é punível quando:
a) A imputação for feita para realizar interesses legítimos; e
b) O agente provar a verdade da mesma imputação ou tiver fundamento sério para, em boa fé, a reputar verdadeira.
3– ...
4– A boa fé referida na alínea b) do nº 2 exclui-se quando o agente não tiver cumprido o dever de informação, que as circunstâncias do caso impunham, sobre a verdade da imputação.
Na definição Na lição de Beleza dos Santos, “a honra é aquele mínimo de condições, especialmente de natureza moral, que são razoavelmente essenciais para que um indivíduo possa com legitimidade ter estima por si, pelo que é e pelo que vale”; e “a consideração aquele conjunto de requisitos que razoavelmente se deve julgar necessário a qualquer pessoa, de tal modo que a falta de algum desses requisitos possa expor essa pessoa à falta de consideração ou ao desprezo público”.
Sintetizando, diz este autor: “A honra refere-se ao apreço de cada um por si, à auto-avaliação no sentido de não ser um valor negativo, particularmente do ponto de vista moral. A consideração no juízo que forma ou pode formar o público no sentido de considerar alguém um bom elemento social, ou ao menos de o não julgar um valor negativo” ( RLJ, ano 92º, páginas 167 e 168 ).
No programa apresentado pelo arguido Y..... e do qual o arguido X..... foi autor, editor e primeiro responsável imputam-se ao assistente, Dr. B....., factos que constituem um crime de grande gravidade – tráfico de droga – gravidade aumentada pela qualidade de médico do assistente, visto ser a saúde das pessoas o bem protegido pelo referido crime. Ataca-se, assim, o carácter do assistente, a quem são atribuídos comportamentos indignos e vergonhosos, ferindo-se com isso em muito alto grau a sua honra e consideração.
Está, pois, preenchida a previsão do nº 1 do artº 180º. Deste modo, a condenação dos arguido só não será de manter se se configurar a específica causa de exclusão da ilicitude alegada pelos recorrentes ou qualquer outra causa de justificação do facto.
A Constituição consagra no artº 37º. nº 1, o direito de informar. É claro que o exercício deste direito tem limites, como resulta desde logo do nº 3 deste último preceito, onde se fala das “infracções cometidas no exercício destes direitos”.
Efectivamente, ao lado deste direito de informar, a Constituição reconhece, no artº 26º, o direito ao bom nome e reputação.
A solução dos conflitos entre estes dois direitos fundamentais das pessoas cabe ao direito criminal, nos termos do nº 3 desse artº 37º.
Como nota o Prof. Figueiredo Dias, em estudo publicado nos nºs 3697, 3698 e 3699 da RLJ, “(...) O direito de informar ligado à função pública da imprensa, como causa justificativa da ofensa (...), define-se, antes de mais, pelo seu conteúdo, mas também pelas condições concretas do seu exercício (...). Assim, em primeiro lugar, é indispensável à concreta justificação pelo exercício do direito de informação que a ofensa (...) cometida se revele como meio adequado e razoável (...) de cumprimento do fim que a imprensa, no exercício da sua função pública, pretende atingir no caso concreto (...). Em segundo lugar, parece ser de exigir que, no exercício da sua actividade, a imprensa tenha actuado com (...) a intenção (ao menos « imanente») de cumprir a sua função pública e, assim, exercer o seu direito-dever de informação; ou que ao menos não esteja em concreto excluído ter sido um tal cumprimento o motivo da sua actuação” (páginas 137 e 170).
No caso, o programa apresentado pelo arguido Y..... e da responsabilidade do arguido X..... tem como pano de fundo um filme a preto e branco feito no consultório do assistente, sem o seu consentimento e conhecimento e contra a sua vontade. Visiona-se nesse filme um diálogo entre o assistente e um jornalista da “K.....”, P....., que se fazia passar por dirigente desportivo. O último pede ao primeiro conselhos sobre a administração e fornecimento de substâncias proibidas destinadas a melhorar o comportamento dos atletas do seu pretenso clube – o chamado doping –, e o primeiro presta esclarecimentos, dá conselhos e relata casos de doping acontecidos, num dos quais admite ter tido participação, e, por fim, aparentemente, vende ao seu interlocutor, por 40.000$00, substâncias proibidas de efeito dopante.
E, se a prova representada por esse filme a preto e branco, por ter sido obtida através de meio enganoso – câmara oculta –, é nula, não podendo ser utilizada, nos termos do artº 126º, nºs 1 e 2, alínea a), do CPP, isso é apenas para o efeito de perseguição criminal pelo eventual crime que visa provar – o crime de tráfico de droga – porque a proibição constitui uma garantia de defesa, de acordo com o artº 32º, nº 8, da Constituição. A prova constituída pelo referido crime não é, pois, de utilização proibida no interesse da defesa dos arguidos deste processo, ou seja, na averiguação de uma causa de exclusão da ilicitude.
Tinham, assim, os arguidos fundamento sério para, em boa fé, reputar como verdadeiro que o assistente vendeu ao P....., por 40.000$00, na convicção de que estava a lidar com um dirigente de um clube de futebol, uma substância dopante proibida, concretamente, anfetaminas. As palavras e os gestos que o filme a preto e branco mostra deixam poucas dúvidas da existência dessa transacção.
É certo que no dito programa televisivo se afirmou não só que o assistente fez essa venda, mas também que “vendeu, vende, administrou ou mandou administrar produtos dopantes e estupefacientes”, ou seja, foi-lhe atribuída a prática reiterada de venda desses produtos, bem como a acção de ter já administrado ou mandado administrar substâncias dessa natureza. Mas, também nesta parte os arguidos tinham fundamento sério para, em boa fé, reputar como verdadeiras as imputações. Quanto à alegada ministração de produtos dopantes, ela foi admitida no filme a preto e branco pelo assistente, que aí dá “lições” sobre o modo como proceder, exibindo ainda bastos conhecimentos acerca de como estas coisas se passam no interior dos clubes de futebol. A afirmação de que o assistente vendia nos seu consultório produtos dopantes ou estupefacientes tinha a suportá-la não só a desenvoltura por ele evidenciada no filme a propósito destes produtos, explicando o local de onde eram trazidos e por quem, bem como elucidando sobre o preço de venda, mas também, e sobretudo, o facto de o assistente ter disponível para venda o produto que, ao que tudo indica, vendeu ao P....., logo no primeiro contacto. Este facto constitui uma indicação muito forte de que a venda que o filme mostra não foi caso único.
E, perante a força desses sinais, não se impunha que os arguidos fizessem quaisquer diligências no sentido de confirmá-los. Nem se vê quais poderiam ser essas diligências.
A dar força ao raciocínio que se vem desenvolvendo há ainda a circunstância de uma semana depois da emissão do programa em que pela primeira vez foi abordado o tema em discussão, ter sido determinada a detenção e a prisão preventiva do assistente, com base na indiciação da prática de um crime de tráfico de droga, referenciado aos factos que lhe foram imputados no mesmo programa, sendo que, como é de lei, a prisão preventiva de alguém indiciado por um crime só é decretada se, além do mais, os indícios de que praticou esse crime forem fortes.
Por outro lado, a venda de produtos estupefacientes ou dopantes e a sua administração a atletas são factos que muito interessam à comunidade. Trata-se desde logo de um crime muito grave, principalmente quando praticado por quem, devido à sua profissão, tem acesso privilegiado aos produtos proibidos e a especial obrigação de não os vender nem administrar. Além disso, é a verdade desportiva e a saúde dos atletas que estão em causa.
Era, pois, de grande interesse público noticiar estes factos. E o interesse da sua divulgação sobrepunha-se ao interesse necessariamente lesado com essa divulgação – a honra e consideração do assistente.
É certo que os factos foram publicitados, repetidamente, em quatro emissões do programa. Mas, a gravidade dos mesmos factos e o seu relevo em termos sociais justificavam que se voltasse ao assunto mais que uma vez. Até porque após a primeira emissão, o caso teve desenvolvimentos, tendo o visado com as imputações – o assistente – sido detido e preso preventivamente. Foi até este facto o motivo forte da segunda emissão.
E, se nisso houve aproveitamento jornalístico, usando-se até à exaustão o tema, nada há aí de ilegítimo, dada a importância dos factos. Num primeiro momento, a emissão como que representou a denúncia pública de um crime – crime gravíssimo, dos mais graves do nosso ordenamento jurídico –, pois foi a primeira emissão do programa sobre estes factos que levou ao desencadear do processo criminal contra o assistente pelo crime de tráfico de estupefacientes. Num segundo momento, com a prisão preventiva do aqui assistente, os arguidos como que sentiram que lhes foi dada razão pelo tribunal quanto às imputações que haviam feito àquele, não sendo de exigir-lhes que deixassem de explorar o assunto. Como diz Costa Andrade, “estará penalmente justificado o jornalista que, numa situação objectiva de prossecução de interesses legítimos e conhecedor da sua verificação, publica a notícia com o único propósito de bater a concorrência e fazer subir a tiragem do seu jornal ou a audiência da sua estação de televisão” (Liberdade de Imprensa e Inviolabilidade Pessoal, Coimbra Editora, 1996, páginas 386-387).
É ainda certo que no programa se usaram termos exagerados, ao falar-se de “armazém de doping”. Mas, a palavra “armazém”, claramente desajustada e exagerada, perde relevo, na medida em que logo de seguida se explica que esse “armazém” não é mais que o consultório do assistente.
E não se diga que a actuação dos arguidos prejudicou a perseguição criminal do ora assistente pela prática do eventual crime de tráfico, desde logo porque isso não se provou. E, ainda que prejudicasse, isso não interferiria com a legitimidade da actuação dos arguidos, na medida em que o jornalista no exercício da sua actividade visa fins diversos dos da investigação criminal. Aliás, não se vê como é que a actuação dos arguidos podia prejudicar a perseguição criminal do assistente, se foi essa actuação que despoletou a instauração do processo criminal contra este.
E, se houve comportamento censurável na recolha das provas representadas pelo filme a preto e branco que vem sendo referido, isso não inquina a divulgação dos factos de que assim se terá tomado conhecimento. Com efeito, uma coisa é a recolha das provas sobre factos e outra a divulgação destes. Até porque não está provado que os arguidos tenham tido qualquer participação na recolha das provas nas circunstâncias referidas. O que se sabe é que tiveram acesso a essas provas e actuaram a partir delas.
Não tem fundamento dizer que houve provocação ao crime, na medida em que o assistente, quando foi contactado pelo P....., segundo o que mostra o filme, já tinha em seu poder o produto que terá vendido a este, sendo que a mera detenção ilícita de produto estupefaciente é uma das condutas típicas do crime de tráfico. Se houve crime, este não foi praticado com a venda do produto ao P....., mas com a sua detenção por parte do assistente, detenção essa necessariamente anterior à venda, e não se provou que o P..... provocou essa detenção.
Conclui-se, assim, que os arguidos agiram na prossecução de interesses legítimos e tinham fundamento sério para, em boa fé, reputar como verdadeiras as imputações feitas ao assistente.
Verifica-se, pois, a causa de exclusão da ilicitude prevista no artº 180º, nº 2, do CP, do que resulta deverem os arguidos ser absolvidos da acusação.

Não havendo facto ilícito, falta desde logo um dos pressupostos para condenação em indemnização civil com base no artº 483º, nº 1, do Código Civil, sendo que não há no caso responsabilidade objectiva.
Não há, pois, fundamento para condenação em indemnização civil.

Decisão:

Em face do exposto, acordam os juízes desta Relação em
- conceder provimento aos recursos do Mº Pº e dos arguidos Y..... e X....., absolvendo-os em consequência da acusação, com a revogação nessa parte do acórdão recorrido;
- negar provimento ao recurso do assistente, confirmando nessa parte o mesmo acórdão.
Na parte penal, o assistente pagará 2 UCs de taxa de justiça, por ter decaído no recurso dos arguidos, ao qual deduziu oposição, sendo que a taxa de justiça devida na 1ª instância pelo assistente, por terem sido absolvidos todos os arguidos, passa a ser de 5 UCs.
Na parte cível, as custas são da responsabilidade do demandante.

Porto, 10 de Março de 2004
Manuel Joaquim Braz
Luís Dias André da Silva
Fernando Manuel Monterroso Gomes
José Manuel Baião Papão