Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
744/15.2T8OAZ-H.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: JOÃO DIOGO RODRIGUES
Descritores: INSOLVÊNCIA
CONTRATO-PROMESSA
DIREITO DE RETENÇÃO
CONSUMIDOR
Nº do Documento: RP20190115744/15.2T8OAZ-H.P1
Data do Acordão: 01/15/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Indicações Eventuais: 2ªSECÇÃO, (LIVRO DE REGISTOS N.º866, FLS.1-11)
Área Temática: .
Sumário: I - A solução adotada pelo Acórdão de Uniformizador de Jurisprudência n.º 4/2014, apenas se aplica aos contratos promessa em curso, à data da declaração de insolvência.
II - Como tal, nos contratos promessa que já estejam integralmente cumpridos, resolvidos ou que tenham entrado em fase do incumprimento definitivo, à data da declaração de insolvência, para ser reconhecido o direito de retenção ao promitente comprador não é exigível que o mesmo seja qualificado como consumidor.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo n.º 744/15.2T8OAZ-H.P1
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Sumário
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Acordam no Tribunal da Relação do Porto
I- Relatório
1- Declarada a insolvência da sociedade, B…, Ldª, foi pelo respetivo Administrador da Insolvência apresentada a relação de créditos reconhecidos e não reconhecidos, na qual, para além do mais, figura como credor, C…, com um crédito reconhecido no valor de 280.000,00€, mas sem qualquer privilégio ou garantia.
2- Inconformado com a sua posição de credor comum, impugnou o aludido credor a referida relação de créditos, alegando, no essencial, que é titular do direito de retenção sobre três frações autónomas prometidas vender pela insolvente à sociedade que lhe cedeu o aludido crédito, devendo por isso esse direito ser-lhe reconhecido.
3- O credor hipotecário, D…, S.A., Sucursal em Portugal, respondeu, invocando a ineptidão da impugnação e impugnou todos os factos constitutivos do direito de crédito, nomeadamente a celebração do contrato-promessa, seu conteúdo, cumprimento/incumprimento por parte da insolvente, assim como a celebração do invocado contrato de cessão de créditos.
Impugnou ainda o direito de retenção reclamado pelo credor.
4- Frustrada a conciliação das partes, o processo prosseguiu, depois de algumas vicissitudes que os autos documentam, para a audiência final, após a qual foi proferida sentença que julgou improcedente a impugnação de créditos apresentada pelo credor, C…, mantendo o reconhecimento do crédito pelo mesmo reclamado, no valor de 280.000,00€, como crédito comum.
5- Inconformado, reagiu este credor, terminando as suas alegações recursivas com as seguintes conclusões:
“1. O recorrente pretende ver reapreciada a douta decisão recorrida, seja no que se refere à matéria de facto, seja no que concerne à solução de direito, nos termos da qual o Tribunal a quo julgou improcedente a impugnação deduzida pelo recorrente, e manteve a qualificação do crédito reconhecido como comum.
2. Nos termos do disposto nos arts. 662.º e 640.º, ambos do C.P.C., o Tribunal da Relação pode, no caso vertente, alterar a decisão sobre a matéria de facto, uma vez que o recorrente a impugnou, o depoimento testemunhal produzido em audiência está gravado e constam dos autos todos os elementos e documentos com base nos quais foi proferida.
3. O recorrente esclarece que sustenta a sua pretensão quanto à modificação da factualidade dada por provada, no sentido das propostas alterações quanto aos pontos 11 e 13, quer na profusa documentação existente nos autos, quer no depoimento da depoente/testemunha E…, o qual está identificado na Ata de 12-01-2018 e gravado na aplicação h@bilus media studio existente no Tribunal, concretamente com início às 10h23m40s e termo às 10h39m54s.
4. E, em cumprimento do disposto no art. 640.º n.º 2 alínea a) do C.P.C., o recorrente explicita que são as seguintes as concretas passagens desse depoimento testemunhal que impõem que a matéria factual dado por provada deveria ser outra: da rotação 11:00 à rotação 12:10 e da rotação 13:00 à rotação 13:40.
5. Assim, deve alterar-se a redação do ponto 11, e inserir-se a expressão em falta, ou seja, eliminar-se a expressão “ … assumiu a posição contratual, como promitente comprador, …” e substitui-la pela expressão “ … foi nomeado promitente comprador pela sociedade F…, Ldª.”.
6. Deve alterar-se a redação dada ao ponto 13 dos factos provados por forma a consignar-se que “O impugnante mobilou e colocou cortinas nas frações, e apesar de ele e os seus filhos não viverem nelas, são vistos a entrar e a sair das frações, no Verão e nas festas.”.
7. A afirmação deita pelo impugnante no articulado inicial do incidente da sua “…intenção em arrendar os imóveis, em os colocar no mercado de arrendamento, dizendo até que os arrendou e que recebeu as rendas”, por ser controvertida, passou a integrar os temas de prova, tal como definido pela Mª Julgadora nas alíneas n) e o) do despacho de 25-10-2016.
8. Submetida a prova, designadamente testemunhal, tal factualidade não resulta sequer falada, e muito menos demonstrada, razão pela qual não pode, de seguida, ser recuperada e tida como provada por via da confissão, pelo que o ponto 13º dos factos provados deve ser eliminado dessa factualidade efectivamente não provada, e alterado no sentido acima proposto na conclusão 6.
9. O direito de retenção constitui um direito real de garantia e, quando versa sobre coisa imóvel, permite ao titular do direito, enquanto não entregar a coisa, executá-la, nos mesmos termos em que o pode fazer o credor hipotecário, e ser pago com preferência aos demais credores do devedor, pelo produto da coisa, prevalecendo mesmo sobre a hipoteca, ainda que anteriormente registada (cf. C.C., art.759º nºs 1 e 2).
10. O direito de retenção é uma garantia e não direito real de gozo, sendo o retentor, em regra, um mero detentor da coisa, por via da tradição da coisa obtida pelo promitente comprador, e não da transmissão do direito de propriedade; assim, a posse não é condição da retenção (neste sentido, cf. Ac.STJ de 27-04-2004, disponível em www.dgsi.pt e processo nº04A1032).
11. Para que exista, pois, o direito de retenção não é exigível que o titular assuma a posse jurídica da coisa, pratique os atos de posse antes praticados pelo promitente alienante, bastando-lhe uma detenção legítima da coisa obtida do promitente vendedor, detenção essa justificada com a celebração da promessa e na perspetiva da aquisição do direito.
12. Na situação da promessa de compra e venda, a tradição da coisa consiste apenas na transmissão, pela entrega, da posse ou da detenção da coisa objeto da promessa.
13. Como resulta com abundancia dos autos, designadamente do contrato celebrado inicial ou aditado, e do aditamento, a então proprietária dos imoveis – a insolvente G… – entregou ao recorrente as chaves das referidas e identificadas frações autónomas de que ela, G…, era proprietária e promitente vendedora e o recorrente promitente comprador, com os respetivos preços integralmente pagos, como os autos evidenciam.
14. Antes do início do processo de insolvência e consequentemente antes da sua declaração, o contrato em crise estava definitivamente resolvido, e o recorrente praticou, como os autos demonstram, atos de efetiva detenção material das respetivas frações prometidas vender, ou seja, realizando em todos eles obras e pagando de todos eles as quotas de condomínio.
15. A proprietária das frações, cujo preço de venda declarou recebido, o que o tribunal oficiosamente sindicou e concluiu ser verdade, dada a demora na celebração das escrituras e para evitar danos ao recorrente, entregou a este as chaves das frações, passando este a podê-las usar.
16. A tradição da coisa tanto pode ser material como simbólica, por ato que revele essa entrega, a cedência da sua disponibilidade, pelo que, no caso, a entrega das chaves das frações autónomas prometidas vender ao recorrente tem o significado de uma entrega simbólica das frações ao recorrente, passando por essa via a ter a sua detenção.
17. Concluindo como no douto Ac. STJ de 26-7-2016 acima citado, “O segmento uniformizador do AUJ n.º 4/2014 refere-se a situações em que o credor não obteve cumprimento do negócio por parte do administrador da insolvência, ficando de fora os contratos que já estivessem integralmente cumpridos, resolvidos ou entrado na fase do incumprimento definitivo, à data da declaração de insolvência”.
18. Concluindo como no mesmo douto aresto, no caso de o contrato-promessa de compra e venda de três frações autónomas, em que houve traditio, em causa nos autos, ter sido resolvido ou, de qualquer modo, entrado na fase de incumprimento definitivo, não se aplica o AUJ n.º 4/2014, devendo, aplicar-se, estritamente, os preceitos do Código Civil contidos nos arts. 755.º, n.º 1, al. f), e 442.º.
19. Concluindo uma vez mais como no citado e douto aresto, a aplicação do art. 755.º, n.º 1, al. f), do CC, não depende de o promitente-comprador ser ou não um consumidor e a circunstância de o legislador se referir à tutela dos consumidores no preâmbulo do diploma que consagrou o direito de retenção não é decisiva e não justifica uma interpretação restritiva, já que o legislador pode ter tomado a parte pelo todo e ter-se limitado a referir uma das situações socialmente mais relevantes.
20. Parafraseando uma vez mais o referido douto Ac. STJ de 26-7-2016, conclui-se que qualquer situação de detenção pelo promitente-comprador, mesmo que este não seja consumidor, pode, pela sua frequência e importância ao nível da consciência social, servir de fundamento para o direito de retenção.
21.Conclui-se, pois, que verificada a tradição das frações prometidas para o recorrente e, por estas razões, ele tem o direito de retenção para garantia do crédito que lhe foi reconhecido.
Foram, pois, violadas as indicadas normas no sentido acabado de expor”.
Termina pedindo que se conceda provimento ao presente recurso.
6 - Não consta que tivesse sido apresentada resposta.
7 - Recebido o recurso nesta instância e preparada a deliberação, importa tomá-la:
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II - Mérito do recurso
1- Definição do seu objeto
O objeto dos recursos, em regra e ressalvadas as questões de conhecimento oficioso, é delimitado pelas conclusões das alegações do recorrente (artigos 608º, nº 2, “in fine”, 635º, nº 4, e 639º, nº1, do Código de Processo Civil).
Assim, observando este critério no caso presente, o objeto do recurso em apreço reconduz-se às seguintes questões:
a) Em primeiro lugar, saber se deve haver lugar à modificação da matéria de facto, indicada pelo Apelante;
b) E, depois, decidir se o mesmo Apelante goza do direito de retenção de que se arroga titular.
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2- Fundamentação
A- Na sentença recorrida julgaram-se provados os seguintes factos:
1.º H…, credor, requereu a declaração de insolvência de B…, Ldª, no dia 16 de Fevereiro de 2015;
2.º Por sentença proferida no dia 23-03-2015, foi declarada a insolvência de, B… Ldª;
3.º Por documento escrito denominado de Contrato Promessa de Compra e Venda, assinado no dia 27 de Janeiro de 2011, constante de fls. 59 a 62, cujo conteúdo aqui se dá por reproduzido, I…, na qualidade de gerente e em representação da sociedade, J…, Ldª, enquanto primeiro outorgante e K…, na qualidade de gerente e em representação da sociedade, F…, Ldª, enquanto segunda outorgante, declararam respetivamente e de entre outras cláusulas, o seguinte:
“(…)
Pelo primeiro outorgante é dito:
Que a sua representada é a única e legítima proprietária de um prédio urbano (…) descrito na Conservatória do Registo Predial de Santa Maria da Feira sob o n.º 973 (…) inscrito na matriz sob o artigo 2679.º, das frações autónomas a seguir descriminadas:
a) Frações autónomas designadas pela letra “J” correspondente a uma habitação do tipo T3 e suas dependências, sita no primeiro andar, “O” correspondente a uma habitação do tipo T3 e suas dependências, sita no segundo andar, e “Q” correspondente a uma habitação tipo T3 e suas dependências, sita no segundo andar, todas do prédio em regime de propriedade horizontal sita na acima morada (…)
Que, pelo presente contrato e em nome da sua representada, promete vender à representada da segunda outorgante as acima identificadas frações autónomas, livres de ónus ou encargos e devolutas de pessoas e bens, pelos preços e demais condições do seguinte clausulado:
Primeiro: O preço global desta prometida venda é de 230.000,00€ (…)
Do preço convencionado (…) atribuem a quantia de €70.000,00 (…) à fração “J”, €80.000,00 (…) à fração “O” e €80.000,00 (…) à fração “Q” (…)
As frações prometidas estão ainda em construção, devendo ser acabadas de acordo com o caderno de encargos e acabamentos elaborado para o prédio e do conhecimento da promitente compradora. (…)
O preço acordado (…) será pago da seguinte forma:
a) (Dez mil euros) em dinheiro, quantia que é entregue ao primeiro outorgante nesta data, como sinal e princípio de pagamento do preço, que a promitente vendedora dá plena quitação;
b) Até ao final do mês de Agosto de 2013, como reforço de sinal e continuação de pagamento do preço global, a promitente compradora pagará à promitente vendedora a quantia de €30.000,00 (…) contra recibo de quitação;
c) Até ao final do mês de Setembro de 2013, como reforço do sinal e continuação de pagamento do preço global, a promitente compradora pagará à promitente vendedora a quantia de €60.000,00 (…) contra recibo de quitação;
d) Até ao final de Outubro de 2013, como reforço de sinal e continuação de pagamento do preço global, a promitente compradora pagará à promitente vendedora a quantia de €60.000,00 (…) contra recibo de quitação;
e) A restante quantia de €70.000,00 (…) será paga em simultâneo com a outorga da escritura definitiva de compra e venda (…)
A escritura notarial será celebrada até ao dia 31 de Dezembro de 2013, prazo este que é o prazo limite e que constitui condição essencial do contrato, pelo que incorre em incumprimento definitivo do contrato o contraente que a ela falte ou se recuse a assinar a escritura definitiva, ou, no caso da representada do primeiro outorgante, caso não marque a escritura e dela não avise a representada da segunda outorgante, como estabelecido neste contrato (...)
Disse a Segunda Outorgante:
Que, em nome da sua representada, promete comprar as acima identificadas frações autónomas, pelo preço e demais condições exaradas neste contrato e que, também em nome dela, se reserva a faculdade de designar outra (s) pessoa (s) para assumir a sua posição neste contrato promessa, quanto a todas ou individualmente quanto a cada uma das frações, como se com essa (s) pessoa (s) o contrato tenha disso celebrado (…)”
4.º Por documento denominado de “Aditamento a contrato promessa de compra e venda” assinado no dia 16 de Dezembro de 2013 e constante de fls. 63 a 65, cujo conteúdo aqui se dá por reproduzido, M…, na qualidade de gerente e em representação da sociedade, B…, Ldª, que também usou a firma J…, Ldª, enquanto primeiro outorgante e N…, na qualidade de gerente e em representação da sociedade F…, Ldª, enquanto segunda outorgante, declararam respetivamente e de entre outras cláusulas, o seguinte:
“(…) Pelos outorgantes é dito (…)
Que por razões que têm a ver com a sua reestruturação, a representada do primeiro outorgante tem interesse na alteração da data da escritura definitiva, pelo que acordam em dar nova redação ao clausulado do contrato promessa que vigora entre ambos, o qual passa a reger-se pelas seguintes cláusulas:
(…) a promitente vendedora promete vender à promitente compradora, F…, Ldª, que promete comprar, livre de ónus ou encargos, as frações autónomas designadas pela letra “J” correspondente a uma habitação do tipo T3 e suas dependências, sita no primeiro andar, “O” correspondente a uma habitação do tipo T3 e suas dependências, sita no segundo andar, e “Q” correspondente a uma habitação tipo T3 e suas dependências, sita no segundo andar, todas do prédio em regime de propriedade horizontal (…) descrito na Conservatória do Registo Predial de Santa Maria da Feira sob o n.º 973 (…)
O preço global desta prometida venda é de 230.000,00€ (…)
A título de sinal e princípio de pagamento do preço, a promitente compradora entregou à promitente vendedora a quantia de 160.000,00€ (…) que esta recebeu.
Terceira: A escritura notarial de compra e venda será assinada em dia, hora e local a designar pela representada do primeiro outorgante (…)
A escritura notarial será outorgada até ao dia 30 de Junho de 2014, prazo esse que é o prazo improrrogável, limite e absoluto, o que constitui condição essencial do contrato, pelo que incorre em incumprimento definitivo do contrato o contraente que a ela falte ou se recuse a assinar a escritura definitiva, ou, caso a promitente vendedora não marque a escritura definitiva (…)
5.º Por carta datada de 14 de Maio de 2014 e constante de fls. 66, a sociedade, F…, Ldª, comunicou à insolvente, B…, Ldª o seguinte:
“(…) Relativamente ao contrato promessa de compra e venda de 27-01-2011 celebrado com V. Exas. e seu aditamento, vimos confirmar que negociamos as frações objeto desse contrato com C…, pelo que e pela presente o nomeamos como promitente comprador e com quem devem formalizar essa aquisição, conforme a seguir se descrimina (…)
Fracções “J”, “O” e “Q” – C….
Anexamos a ratificação do contrato subscrita pelo acima nomeado (…)”.
6.º C…, assinou, com data de 14 de Maio de 2014, o documento constante de fls. 67 e denominado “Ratificação”;
7.º Por documento denominado de “Aditamento a contrato promessa de compra e venda” assinado no dia 12 de Junho de 2014 e constante de fls. 68 a 69, cujo conteúdo aqui se dá por reproduzido, M…, na qualidade de gerente e em representação da sociedade, B…, Ldª, que também usou a firma, J…, Ldª, enquanto promitente vendedora e C…, como promitente comprador, declararam e de entre outras cláusulas, o seguinte:
“(…) Pelos outorgantes é dito (…)
Que a representada do primeiro outorgante prometeu vender a F…, Lda. que prometeu comprar, as frações autónomas designadas pela letra “J” correspondente a uma habitação do tipo T3 e suas dependências, sita no primeiro andar, “O” correspondente a uma habitação do tipo T3 e suas dependências, sita no segundo andar, e “Q” correspondente a uma habitação tipo T3 e suas dependências, sita no segundo andar, todas do prédio em regime de propriedade horizontal (…) descrito na Conservatória do Registo Predial de Santa Maria da Feira sob o n.º 973 (…) que a citada L… nomeou o segundo outorgante para assumir a posição de promitente comprador nesse contrato e posterior aditamento, o que a representada do primeiro outorgante aceitou; que, por acordo dos outorgantes dão nova redação ao parágrafo único da cláusula terceira do aditamento de 16-12-201e e acrescem um parágrafo à cláusula quinta desse aditamento, com a seguinte redação (…)
A escritura notarial será outorgada até ao dia 31 de Dezembro de 2014, prazo que é improrrogável, limite e absoluto (…).
Parágrafo único da cláusula quinta: A representada do primeiro outorgante entrega nesta data ao segundo outorgante as chaves das frações autónomas “J”, “O” e “Q”, sem reserva e a título definitivo, transferindo a posse das frações para o promitente comprador, o qual se destina à sua habitação secundária a fração “J”, à habitação do seu filho C… a fração “O” e à habitação da sua filha O… a fração “Q”.
Disse ainda o segundo outorgante:
Que se reserva a faculdade de indicar os seus referidos filhos como compradores das frações “O” e “Q” para a escritura definitiva.
Pelo primeiro outorgante é ainda dito:
Que, para a sua representada, aceita a reserva acima exarada por parte do segundo outorgante (…)”
8.º Com data de 09 de Janeiro de 2015 e constante de fls. 70, o credor C… enviou à insolvente uma carta tendo por Assunto: Contrato Promessa de Compra e Venda de 27-01-2011 e seus aditamentos: frações J, O e Q, da qual consta o seguinte:
“Exmºs Senhores:
Serve a presente para resolver definitivamente o contrato promessa de compra e venda e seus aditamentos, mencionados em epígrafe, com efeitos imediatos, em virtude de V. Exas. persistirem na não marcação da escritura definitiva até à data improrrogável estabelecida, e não mostrarem qualquer intenção de a marcar (…)”;
9.º Por documento denominado de “Acordo” com data de 15 de Janeiro de 2015 e constante de fls. 57-58, que aqui se dá por reproduzido, M…, na qualidade de gerente e em representação da sociedade, B…, Ldª que também usou a firma, J…, Ldª, enquanto promitente vendedora e C…, como promitente- comprador, declararam e de entre outras cláusulas, o seguinte:
“(…)
Que, pelo presente acordo, regulam todos os efeitos e consequências da resolução do contrato promessa de compra e venda de 27-01-2011 e seus aditamentos referentes às frações autónomas designadas pela letra “J” (…) “O” (…) e pela letra “Q” (…)
Primeira: A primeira outorgante confessa que incumpriu definitivamente o contrato promessa e seus aditamentos acima identificados e que, de momento, não tem condições para celebrar a escritura definitiva;
Segunda: A primeira outorgante reconhece ao primeiro outorgante o direito de exigir o dobro do sinal pago, acrescido do montante da cláusula penal, tudo no montante de quinhentos e cinquenta mil euros;
Terceira: O Segundo outorgante reduz o montante estabelecido na cláusula segunda à quantia de quinhentos e dez mil euros, redução que fica sujeita à condição resolutiva de a primeira outorgante formalizar com o segundo outorgante uma promessa de compra e venda das frações acima identificadas através de contrato promessa com eficácia real e tradição das frações, nos termos do artigo 413º do Código Civil, mediante o preço total de duzentos e trinta mil euros, já pago, correndo os encargos por parte da primeira outorgante;
Quarta: A primeira outorgante obriga-se a pagar ao segundo outorgante a restante quantia, ou seja, duzentos e oitenta mil euros, que será regularizada da seguinte forma:
Um: Através de vinte e oito prestações mensais e sucessivas de dez mil euros cada, vencendo-se a primeira em quinze de Fevereiro de 2015 e as restantes em igual dia dos meses subsequentes (…)
Quinta: O segundo outorgante mantém a posse faz frações até integral cumprimento deste acordo. (…)”
10.º O Sr. AI na lista de créditos que apresentou, nos termos previstos pelo artigo 129º do CIRE, reconheceu ao credor um crédito no valor de €280.000,00 (duzentos e oitenta mil euros) como crédito comum.
11.º Na sequência da comunicação referida em 5º, o credor reclamante C… assumiu a posição contratual, como promitente comprador, da sociedade F…, Ldª.
12.º A insolvente entregou ao credor reclamante as chaves das três frações - J, O e Q, que delas passou a dispor como se de coisa sua se tratasse, à vista de toda a gente e sem oposição de terceiros, realizando obras;
13.º A promitente compradora e depois o impugnante colocaram as frações no mercado de arrendamento e têm feito deslocar ao local, mediadores imobiliários;
16.º A insolvente recebeu no dia da outorga do contrato promessa o valor de dez mil euros e posteriormente, em 30-08-2013, a quantia de trinta mil euros, em 12-09-2013, a quantia de sessenta mil euros e em 02-10-2013, a quantia de sessenta mil euros.
17.º O credor impugnante paga a taxa mensal de condomínio pelas frações J, O e P desde Julho de 2014;
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B- Na mesma sentença não se julgaram provados os factos seguintes:
- Que as frações tenham sido arrendadas e o credor tenha recebido rendas.
- Que os locatários consumam água, gás ou eletricidade.
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C- Da pretendida modificação da matéria de facto
Estão em causa os factos descritos nos pontos 11.º e 13.º do capítulo dos Factos Provados.
Refere-se no primeiro destes pontos que, na sequência da comunicação dirigida pela F…, Ldª, à insolvente, no dia 14/05/2014, “o credor reclamante C… assumiu a posição contratual, como promitente comprador”, daquela primeira sociedade.
O Apelante, todavia, não concorda com esta redação. E propõe que, em vez de se referir que ele assumiu a dita posição contratual, se mencione que foi nomeado promitente -comprador, como já antes fora convencionado.
E, tem razão. Efetivamente, no contrato promessa celebrado no dia 11/01/2011, estipulou-se que a sociedade, F…, Ldª, se comprometia a comprar as frações autónomas aí identificadas e ficava ainda com “a faculdade de designar outra (s) pessoa (s) para assumir a sua posição neste contrato promessa, quanto a todas ou individualmente quanto a cada uma das frações, como se com essa (s) pessoa (s) o contrato tenha disso celebrado (…)”.
E, depois, na comunicação já referenciada, efetuada no dia 14/05/2014, a sociedade, F…, Ldª, comunicou à insolvente que tinha negociado as frações objeto do aludido contrato promessa com o Apelante, pelo que por essa comunicação o nomeava como promitente comprador.
Assim, mais do que assumir para o futuro a posição contratual da F…, Ldª, o Apelante ocupou, com efeito retroativo, a posição dessa sociedade (artigo 455.º, n.º 1, do Código Civil). Por isso mesmo, a expressão que melhor reproduz essa ideia é a que é sugerida pelo Apelante e não a que consta do ponto de facto em análise.
Daí que se decida alterá-lo na sua redação, que passará a ser a seguinte:
Na sequência da comunicação referida em 5º o credor reclamante C… foi nomeado promitente comprador pela sociedade F…, Ldª”.
Avancemos, agora, para a análise do ponto 13.º:
Nele se afirma o seguinte:
“A promitente compradora e depois o impugnante colocaram as frações no mercado de arrendamento e têm feito deslocar ao local, mediadores imobiliários”.
O Apelante não concorda com esta redação. E pretende que fique exarado o seguinte texto, em substituição do primeiro: “O impugnante mobilou e colocou cortinas nas frações, e apesar de ele e os seus filhos não viverem nelas, são vistos e entrar e a sair das frações no Verão e nas festas”.
Como é fácil de observar, esta afirmação é totalmente diversa da original. Não só na sua literalidade, mas também no seu conteúdo. Por exemplo, na parte em que é suprimida qualquer referência à colocação das frações autónomas em causa no mercado de arrendamento, quer pela promitente compradora, quer pelo impugnante. E isso, sem que haja, por um lado, notícia da nova factualidade proposta ter sido oportunamente alegada pelo Apelante e, por outro, sem que se perceba muito bem o fundamento para este último se retratar da confissão que oportunamente fez no seu articulado impugnatório da relação de créditos, no qual expressamente refere “[a] promitente compradora e depois o impugnante colocaram as frações no mercado de arrendamento, a fim de as dar de arrendamento” (artigo 12.º).
Deste modo, não há qualquer fundamento juridicamente válido para alterar a redação do ponto ora em análise.
Até porque, em rigor, o Apelante, além de continuar a confessar que não destina tais imóveis à sua habitação ou dos seus filhos, como era sua intenção inicial, também não contesta que destine esses mesmos imóveis ao mercado de arrendamento, como se assevera na afirmação em causa.
Por conseguinte, perante tais fundamentos e os demais indicados na motivação de facto da sentença recorrida, cremos dever continuar inalterado o teor do ponto de facto em apreço. Daí que se indefira o requerido, nesta parte.
D- Passemos, agora, à análise da questão seguinte; ou seja, saber se ao Apelante assiste o direito de retenção
Na sentença recorrida entendeu-se que não; que o Apelante destinava as frações autónomas que se comprometeu a comprar à insolvente, ao mercado de arrendamento, e não à sua própria habitação e dos filhos, como estava contratualmente previsto, e, portanto, nesse enquadramento, não tem a qualidade de consumidor exigida pelo Acórdão de Uniformizador de Jurisprudência (AUJ) n.º 4/2014, proferido pelo Supremo Tribunal de Justiça no dia 13/04/2014 (DR I Série, 19/05/2014), para que lhe possa ser reconhecido o referido direito.
O Apelante, no entanto, contrapõe que a doutrina do citado AUJ n.º 4/2014, não é aqui aplicável, uma vez que o contrato promessa que teve por objeto a futura venda das aludidas frações, quando foi declarada a insolvência da promitente vendedora, há muito estava resolvido, por incumprimento definitivo da parte dela. Além disso, fora desse contexto, não exige a lei a qualidade de consumidor do promitente comprador para lhe reconhecer o direito de retenção. O que exige é a tradição da coisa, o que no caso ocorreu. Daí que pugne pela revogação daquela sentença.
Como acabamos de ver, está em causa, antes de mais, a aplicação ao caso presente da orientação plasmada no AUJ n.º 4/2014. De acordo com ela, “[n]o âmbito da graduação de créditos em insolvência o consumidor promitente-comprador em contrato, ainda que com eficácia meramente obrigacional com traditio, devidamente sinalizado, que não obteve o cumprimento do negócio por parte do administrador da insolvência, goza do direito de retenção nos termos do estatuído no artigo 755º nº 1 alínea f) do Código Civil”.
Foi esta doutrina fixada na sequência da polémica que se instalou sobre a questão de saber se nos contratos promessa ainda em curso e com eficácia meramente obrigacional, celebrados com um promitente vendedor declarado em estado de insolvência depois de ter havido tradição da coisa a que se refere o contrato prometido, goza o promitente comprador do direito de retenção, com vista ao pagamento dos créditos de que é titular, ou se, pelo contrário, só lhe assiste esse direito se for um consumidor. Isto, porque o regime insolvencial não o esclarece. Enuncia um princípio geral no artigo 102.º do CIRE[1], ao qual ficam subordinados os subsequentes (artigos 103.º a 118.º do CIRE)[2], e estipula o que deve ser feito especificamente em relação aos contratos promessa com eficácia real, nos quais tenha havido tradição da coisa a favor do promitente comprador (artigo 196.º do CIRE), mas não estabelece, expressamente, se este último goza do direito de retenção previsto no artigo 755.º, n.º 1, al. f), do Código Civil, quando o Administrador da Insolvência se recusa a cumprir tais contratos, se dotados de mera eficácia obrigacional.
Daí a necessidade da referida intervenção jurisprudencial uniformizadora.
Continuou, porém, a discutir-se o que acontece aos outros contratos promessa com iguais características, que já estejam integralmente cumpridos, resolvidos ou que tenham entrado em fase do incumprimento definitivo, à data da declaração de insolvência. Concretamente, se lhes é aplicável mencionada orientação jurisprudencial.
Depois de algumas divergências iniciais, a resposta, largamente maioritária na jurisprudência, passou a ser no sentido negativo; ou seja, no sentido da inaplicabilidade de tal orientação jurisprudencial a tais contratos. O que lhes é aplicável, assim, é o regime geral que decorre, designadamente, do preceituado nos artigos 442.º e 755.º, n.º 1, al. f), do Código Civil, não sendo, portanto, exigível, para o reconhecimento do direito de retenção ao promitente-comprador, que o mesmo seja consumidor.
E isso, por duas razões fundamentais:
Em primeiro lugar, porque o artigo 102.º do CIRE, “ainda que não contenha um princípio tão geral como a sua epígrafe sugere e a solução que consagra tenha que ser integrada e completada pelos artigos seguintes – mormente em matéria de contrato - promessa pelo artigo 106.º - o certo é que o regime aí estabelecido é fundamentalmente um regime para contratos em curso ou em fase de execução, em que não há ainda cumprimento total do contrato por qualquer uma das partes. É essa execução que é suspensa e é o cumprimento, que ainda seria exigível ao devedor insolvente que o administrador pode recusar – quer essa recusa seja uma resolução ou antes deva ser concebida como uma reconfiguração contratual”.
Por outro lado, “[a] aplicação do artigo 755.º n.º 1 alínea f) não depende de o promitente - comprador ser ou não um consumidor e a circunstância de o legislador se referir à tutela dos consumidores no preâmbulo do diploma que consagrou o direito de retenção não é decisiva e não justifica a interpretação restritiva proposta por um sector da doutrina: o legislador pode ter tomado a parte pelo todo e ter-se limitado a referir uma das situações socialmente mais relevantes. No entanto qualquer situação de detenção pelo promitente - comprador, mesmo que este não seja consumidor, pode, pela sua frequência e importância ao nível da consciência social, servir de fundamento para o direito de retenção. O legislador terá sido sensível à grande repercussão do contrato - promessa como um passo muito frequente no iter negocial que conduz à transmissão da propriedade – sendo que, de resto, o contrato - promessa pode estar associado a uma execução específica e em certos casos o promitente - comprador é mesmo um possuidor” [3].
De modo que nem é aplicável a tais contratos a doutrina plasmada no AUJ n.º 4/2014, nem o promitente comprador tem de estar identificado ou qualificado como consumidor[4].
Ora, o que verificamos no caso em apreço é que o incumprimento definitivo do contrato promessa em que o Apelante radica o seu direito de retenção foi não só a causa de resolução desse contrato por parte do mesmo, como foi confessada pela própria Insolvente, antes da insolvência desta última ter sido requerida ou declarada.
Efetivamente, o Apelante comunicou à insolvente que declarava definitivamente resolvido o contrato promessa que com a mesma mantinha, em 09/01/2015 (ponto 8.º). E, nessa sequência, ambos, ou seja, a Insolvente e o ora Apelante, por acordo celebrado no dia 15/01/2015, regularam os efeitos decorrentes do incumprimento definitivo desse mesmo contrato (ponto 9.º).
Assim, sabendo nós que a insolvência da promitente vendedora foi requerida no dia 16/02/2015 e declarada por sentença proferida no dia 23/03/2015 (pontos 1.º e 2.º), é manifesto que já então o Apelante gozava do direito de retenção que agora quer ver-lhe reconhecido. Isto, porque no dia 12/06/2014, a insolvente não só lhe entregou, a título definitivo, as chaves das frações autónomas cuja venda se tinha comprometido a fazer-lhe, como lhe conferiu expressamente a posse dessas frações (ponto 7.º).
É inegável, assim, que o Apelante goza desse direito de retenção, tal como previsto no artigo 775.º, al. f), do Código Civil.
De modo que o mesmo não pode deixar de lhe ser reconhecido, posto que esta norma, como já dissemos, não exige, para o seu preenchimento, que o promitente comprador seja consumidor, mas apenas “beneficiário da promessa de transmissão ou constituição de direito real” sobre a coisa cuja tradição obteve e que é objeto do contrato prometido, como sucede neste caso.
Daí que este recurso seja de julgar procedente, assim se revogando a sentença recorrida, com o reconhecimento de tal direito.
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III- DECISÃO
Pelas razões expostas, acorda-se em conceder provimento ao presente recurso e, consequentemente, revoga-se a sentença recorrida e reconhece-se ao Apelante o direito de retenção sobre as frações autónomas supra identificadas, que o mesmo se comprometeu a adquirir à Insolvente, devendo a graduação de créditos ser feita em conformidade.
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- As custas deste recurso serão suportadas pela massa insolvente - artigo 51.º, n.º 1, al a), do CIRE.
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Porto, dia 15 de Janeiro de 2019
João Diogo Rodrigues
Anabela Tenreiro
Lina Baptista
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[1] Luís Manuel Teles de Menezes Leitão, in Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, Anotado, 2013, 7ª edição, Almedina, pág. 133, refere que esta “norma restrita a contratos bilaterais não executados dificilmente pode ser elevada à categoria de princípio geral”. E reafirma esta mesma ideia in Direito da Insolvência, 2013, 5ª edição, pág.164.
No mesmo sentido se pronunciam Luís A. Carvalho Fernandes e João Labareda, Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, 2ª edição, Quid Juris, pág. 484.
[2] O artigo 119.º, embora faça parte do mesmo capítulo, refere-se apenas à natureza das normas dele constantes.
[3] Ac. STJ de 29/07/2016, Processo n.º 6193/13.0TBBRG-H.G1.S1, consultável em www.dgsi.pt.
No mesmo sentido, Gisela César, in Os Efeitos da Insolvência sobre o Contrato-Promessa em Curso, 2017, 2ª edição, pág. 81.
[4] Cfr. neste sentido, para além do Aresto já citado, também o Ac. STJ de 27/04/2017, Processo n.º 44/14.5T8VIS-B.C1.S1 e Ac. STJ DE 11/09/2018, Processo n.º 25261/11.6T2SNT-D.L1.S2, ambos consultáveis em www.dgsi.pt, bem como a doutrina neles citada.