Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
5071/16.5T8VNG.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: ALBERTO RUÇO
Descritores: EXTINÇÃO DA INSTÂNCIA
IMPOSSIBILIDADE SUPERVENIENTE
PROCESSO DE INSOLVÊNCIA
ENCERRAMENTO
BEM NÃO APREENDIDO PARA A MASSA INSOLVENTE
Nº do Documento: RP201702205071/16.5T8VNG.P1
Data do Acordão: 02/20/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: 5ª SECÇÃO
Indicações Eventuais: LIVRO DE REGISTOS N.º 644, FLS.114-121)
Área Temática: .
Sumário: I - A declaração de extinção da instância – al. e) do artigo 277.º, do Código de Processo Civil – em acção declarativa proposta pelo credor contra o devedor, destinada a obter o reconhecimento do crédito peticionado, com base no trânsito em julgado de sentença que declarou a insolvência do devedor – Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça n.º 1/2014 –, pressupõe a pendência do processo de insolvência, o que já não ocorre se a acção foi proposta após trânsito em julgado da decisão que encerrou o processo de insolvência – artigo 233.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas.
II – Se numa acção declarativa instaurada contra o insolvente é pedida a entrega de um imóvel que não foi apreendido para a massa insolvente, com fundamento no facto de ser um bem propriedade de terceiro, a existência do processo de insolvência não constitui obstáculo à instauração ou prosseguimento dessa acção.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Tribunal da Relação do Porto – 5.ª Secção.
Recurso de Apelação.
Processo n.º 5071/16.5T8VNG do Tribunal Judicial da Comarca do Porto
V. N. Gaia – Instância Local – Secção Cível – J2
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Juiz relator………….Alberto Augusto Vicente Ruço
1.º Juiz-adjunto……Joaquim Manuel de Almeida Correia Pinto
2.º Juiz-adjunto…….Ana Paula Pereira de Amorim
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Sumário:
I - A declaração de extinção da instância – al. e) do artigo 277.º, do Código de Processo Civil – em acção declarativa proposta pelo credor contra o devedor, destinada a obter o reconhecimento do crédito peticionado, com base no trânsito em julgado de sentença que declarou a insolvência do devedor – Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça n.º 1/2014 –, pressupõe a pendência do processo de insolvência, o que já não ocorre se a acção foi proposta após trânsito em julgado da decisão que encerrou o processo de insolvência – artigo 233.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas.
II – Se numa acção declarativa instaurada contra o insolvente é pedida a entrega de um imóvel que não foi apreendido para a massa insolvente, com fundamento no facto de ser um bem propriedade de terceiro, a existência do processo de insolvência não constitui obstáculo à instauração ou prosseguimento dessa acção.
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Recorrente………………….B…, S. A., com domicílio na Rua…, …, ….-… Porto.
Recorrida…………………...C…, com domicílio na Rua…, …, …, ….-… V. N. Gaia.
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I. Relatório
a) Os presentes autos respeitam a um procedimento cautelar instaurado ao abrigo do disposto no artigo 21.º do Decreto-Lei n.º 149/95, de 24 de Junho, através do qual a recorrente pretende obter a entrega de um imóvel que se encontra na posse da recorrida.
Alega que é proprietária da fracção autónoma designada pela letra «O» do prédio urbano sito na Rua…, n.º … e …, ..., da freguesia de …, concelho de Vila Nova de Gaia, inscrito na matriz predial urbana sob o artigo 7546 e descrito na 2.ª conservatória do Registo Predial de Vila Nova de Gaia sob o n.º 1036 e que no exercício da sua actividade celebrou com o requerida, em 18 de Abril de 2007, um Contrato de Locação Financeira Imobiliária tendo por objecto tal imóvel.
A requerente procedeu à resolução do referido contrato e pretende agora obter a entrega do bem.
Pediu, por isso, que se decretasse a providência, sem audição prévia da parte contrária, e consequentemente, se ordenasse a entrega do bem locado à requerente, com todas as suas benfeitorias e se proferisse já decisão definitiva sobre o caso.
A recorrida foi citada e contestou, tendo alegado, entre outros fundamentos, que tinha sido declarada insolvente e que o pedido não pode ser-lhe dirigido a si mesma, mas ao administrador da insolvência.
O tribunal solicitou prova da insolvência e a requerente veio juntar certidão do processo n.º 5069/12.2TBVNG, da qual consta que a sentença de insolvência foi proferida em 28 de Agosto de 2012; o auto de apreensão de bens e declaração de ter sido proferido despacho de encerramento do processo, o qual transitou em julgado em 12 de Outubro de 2012.
De seguida, no tribunal recorrido foi proferida a seguinte decisão:
«Por acórdão do Supremo Tribunal de Justiça n.º 1/2014 – no Proc. n.º 170/08.0TTALM.L1.S1 – publicado no Diário da República, 1.ª série – N.º 39 – 25 de Fevereiro de 2014 – Uniformizou-se jurisprudência no sentido de que «Transitada em julgado a sentença que declara a insolvência, fica impossibilitada de alcançar o seu efeito útil normal a acção declarativa proposta pelo credor contra o devedor, destinada a obter o reconhecimento do crédito peticionado, pelo que cumpre decretar a extinção da instância, por inutilidade superveniente da lide, nos termos da alínea e) do art. 287.º do C.P.C.».
Assim sendo e face do supra referido Acórdão Uniformizador de Jurisprudência, ao abrigo do previsto na alínea e) do artigo 277º, do Código de Processo Civil, declaro a impossibilidade superveniente da presente lide, com a consequente extinção da instância.
Custas pela requerida tendo em conta o teor do despacho de fls. 78….»
b) É desta decisão que recorre a requerente, tendo formulado estas conclusões:
«A. A Apelante não se conforma com a sentença que julgou extinta a instância, por impossibilidade superveniente da lide, nos termos do artigo 277.º, aliena e) do CPC, motivo pelo qual interpõe o presente recurso.
B. Em 14.06.2016, foi instaurado o procedimento cautelar de entrega judicial, contra a Apelada, nos termos do disposto no artigo 21º do Decreto-Lei n.º 149/95 de 24 de Junho, com vista à recuperação do bem imóvel, correspondente à fracção autónoma designada pela letra O, melhor descrita na 2.ª conservatória do Registo Predial de Vila Nova de Gaia sob o n.º 1036 e inscrita na matriz predial urbana sob o artigo 7546.
C. A Apelante pediu que o Tribunal a quo decretasse a providência, sem audição prévia da parte contrária, e consequentemente; ordenasse a entrega do bem locado, com todas as suas benfeitorias e antecipasse o juízo sobre a causa principal.
D. A audição prévia da Apelada não foi dispensada, tendo esta apresentado a sua Oposição ao procedimento cautelar, invocando excepções dilatórias, nomeadamente, a sua ilegitimidade por ter sido declarada insolvente e pugnando pela improcedência do referido procedimento cautelar.
E. As excepções dilatórias arguidas pelas Apelada foram objecto de resposta por parte da aqui Apelante.
F. Foi agendada a audiência de discussão e julgamento para o dia 08.08.2016, pelas 10.00 horas, a qual ficou sem efeito, por a Mma. Juiz a quo ter constatado que a Apelada não tinha junto aos autos qualquer documento comprovativo da invocada situação de insolvência.
G. Face à inércia da Apelada, a Apelante procedeu à junção do Anúncio de Declaração de Insolvência e o Edital de encerramento do processo por insuficiência de bens da massa insolvente.
H. Dos documentos que acompanharam a petição inicial constava a comunicação da Sra. Administradora da Insolvência, em que declarava expressamente a opção pelo não cumprimento do contrato de locação financeira, que o bem locado não seria apreendido para os autos de insolvência e que a sua entrega voluntária deveria ser efectuada pela Apelada insolvente.
I. As partes foram, agora, confrontadas com a sentença de extinção da instância, por impossibilidade superveniente da lide, nos termos do artigo 277.º, alínea e) do CPC.
J. O Tribunal a quo alicerçou a sua decisão no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça n.º 1/2014 – no Proc. n.º 170/08.0TTALM.L1.S1, publicado no Diário da República, 1.ª série — N.º 39, de 25 de Fevereiro de 2014, em que se uniformizou jurisprudência no sentido de que «Transitada em julgado a sentença que declara a insolvência, fica impossibilitada de alcançar o seu efeito útil normal a acção declarativa proposta pelo credor contra o devedor, destinada a obter o reconhecimento do crédito peticionado, pelo que cumpre decretar a extinção da instância, por inutilidade superveniente da lide, nos termos da alínea e) do art. 287.º do C.P.C.» (negrito e sublinhado nossos).
K. A sentença ora em crise é nula, nos termos da alínea d), primeira e segunda parte e alínea e), do nº 1 do artigo 615º do Código de Processo Civil, conforme infra demonstrará e viola dispositivos legais.
L. Nos termos do nº 2 do artigo 608º do Código de Processo Civil "o Juiz deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, exceptuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras…" (omissão de pronúncia).
M. O Tribunal a quo não apreciou as excepções invocadas pela Apelada, nem julgou pela procedência ou improcedência da providência cautelar, nem ordenou a entrega do bem locado, com todas as suas benfeitorias, à Requerente, nem antecipou o juízo sobre a causa principal.
N. A audiência de discussão e julgamento não foi reagendada, tendo sido vedada a possibilidade das partes demonstrarem e provarem os factos que alegaram, procedendo às diligências instrutória necessárias e à inquirição de testemunhas, a que se deveria seguir a sentença de decretamento da (im)procedência do procedimento cautelar.
O. É indubitável que a sentença ora em crise não se pronunciou sobre as questões submetidas a juízo e preteriu o normal andamento do processo.
P. A sentença é nula nos termos da alínea d), primeira parte, do n.º 1 do artigo 615.º do Código de Processo Civil, como também viola o disposto no artigo 21.º, n.ºs 4 e 7 do Decreto-Lei n.º 149/95 de 24 de Junho e nos artigos 367.º e 368.º do CPC ex vi artigo 21.º, n.º 8 do Decreto-Lei n.º 149/95 de 24 de Junho, impondo-se a sua revogação.
Q. Dispõe o artigo 615.º, n.º 1 al. alínea e) que a sentença é nula quando “o juiz condene (…) em objecto diverso do pedido”, sendo esta a sanção prevista pela violação do imposto no n.º1 do artigo 609.º do CPC, segundo o qual é dever do Tribunal não condenar em quantidade superior ou em objecto diverso do que se pedir (condenação ultra petitum).
R. O Tribunal a quo julgou pela extinção da instância fundamentando-se no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça (STJ) uniformizador de jurisprudência, de 25.02.2014, melhor identificado supra.
S. O referido Acórdão considerou que, declarada a insolvência, a “a acção declarativa proposta pelo credor contra o devedor, destinada a obter o reconhecimento do crédito peticionado”, deve ser extinta, por inutilidade superveniente da lide, nos termos da alínea e) do art. 277.º do C.P.C” (negrito e sublinhado nossos).
T. O Acórdão do STJ refere-se a acções declarativas destinadas a obter o reconhecimento do crédito.
U. Com a presente providência cautelar, não se pretende o reconhecimento do crédito resultante do incumprimento do contrato de locação financeira, mas, pede-se tão somente o decretamento da providência cautelar, com a consequente entrega do bem locado e posterior antecipação juízo sobre a causa principal.
V. A Apelada também não formulou qualquer pedido no sentido do reconhecimento ou não reconhecimento do crédito.
W. Com a presente providência cautelar visa-se a recuperação de um bem que é da propriedade da Apelante, e não a cobrança de créditos, sendo certo que a reclamação de créditos foi efectuada em processo próprio, ou seja, no processo de insolvência da Apelada.
X. Face à opção pelo não cumprimento do Contrato por parte da Sra. AI, procedeu a Apelante à sua resolução, sendo que era obrigação da Apelada restituir o bem locado, em bom estado de conservação.
Y. Não o tendo restituído dentro do prazo estipulado, interpôs a aqui Apelante o presente procedimento cautelar.
Z. A Apelada continua a usufruir ilegitimamente do bem locado, impedindo a Apelante, sua legítima proprietária, de dispor do mesmo, afectando-o aos fins que tiver por convenientes, nomeadamente, de locá-lo novamente a um Locatário distinto.
AA. No processo de insolvência, o que se visa é a recuperação de créditos, in casu, dos valores em dívida decorrentes do Contrato de Locação Financeira (e não a recuperação do bem locado).
BB. O Tribunal a quo decidiu pela extinção da instância, por impossibilidade superveniente da lide, fundamentando a sua decisão em questão que nenhuma das partes pediu no processo (o reconhecimento do crédito).
CC. A fundamentação da sentença mostra-se desenquadrada com o objecto do processo e com o pedido, uma vez que o que se pretende com o procedimento cautelar é a entrega do bem locado e não o reconhecimento de um crédito.
DD. Decidiu, assim, em objecto diverso do pedido (sendo o pedido a procedência da providência cautelar, consequente entrega do bem locado à Apelante e antecipação do juízo sobre a causa principal).
EE. É manifesta a nulidade da sentença, nos termos da alínea e) do nº1 do artigo 615.º do CPC, por o Tribunal a quo ter decidido de forma diversa do pedido e fundamentado a sentença em desconformidade com o objecto do processo e do pedido.
FF. O facto de a Apelada ter sido declarada insolvente em nada obsta à instauração e ao prosseguimento do procedimento cautelar.
GG. A extinção da instância por impossibilidade ou inutilidade superveniente da lide, sempre seria infundada e ilegal.
HH. O Acórdão do STJ esclarece que “…a inutilidade superveniente da lide verifica-se quando, em virtude de novos factos ocorridos na pendência do processo, a decisão a proferir já não possa ter qualquer efeito útil, ou porque não é possível dar satisfação à pretensão que o demandante quer fazer valer no processo, ou porque o escopo visado com a acção foi atingido por outro meio”.
II. No caso em apreço a decisão do decretamento da providência cautelar não só se mostra útil como essencial à recuperação do bem locado e à defesa do direito de propriedade que assiste à Apelante.
JJ. A satisfação da pretensão da Apelante é possível e o escopo visado com a acção não pode ser atingido por outro meio, que não o do procedimento cautelar, nos termos intentados e peticionados.
KK. Os efeitos processuais da declaração da insolvência nas acções estão previstos nos artigos 81.º e seguintes do Código de Insolvência e Recuperação de Empresas (CIRE), sendo mais relevante, para o caso, os artigos 88.º e 85.º do CIRE.
LL. Dispõe o artigo 88.º do Código de Insolvência e Recuperação de Empresas (CIRE) que: “A declaração de insolvência determina a suspensão de quaisquer diligências executivas ou providências requeridas pelos credores da insolvência que atinjam os bens integrantes da massa insolvente e obsta à instauração ou ao prosseguimento de qualquer acção executiva intentada pelos credores da insolvência; porém, se houver outros executados, a execução prossegue contra estes”.
MM. Mais estipula o artigo 85.º do CIRE que: “Declarada a insolvência, todas as acções em que se apreciem questões relativas a bens compreendidos na massa insolvente, intentadas contra o devedor, ou mesmo contra terceiros, mas cujo resultado possa influenciar o valor da massa, e todas as acções de natureza exclusivamente patrimonial intentadas pelo devedor são apensadas ao processo de insolvência, desde que a apensação seja requerida pelo administrador da insolvência, com fundamento na conveniência para os fins do processo”.
NN. Na base do artigo 88.º do CIRE está “o princípio da universalidade do procedimento contra o insolvente, quando se debatam interesses relativos à massa insolvente, princípio que se traduz em não se poder conhecer da responsabilidade patrimonial do insolvente fora do processo de falência” - cfr. Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul, 03568/09, de 17.12.2009.
OO. A suspensão prevista no artigo 88.º do CIRE só é aplicável relativamente a diligências executivas que atinjam os bens integrantes da massa insolvente e o artigo 85.º do CIRE só é aplicável quando estejam em causa bens integrantes da massa insolvente.
PP. O bem locado, objecto do procedimento cautelar, não foi apreendido para a massa insolvente, conforme prova documental produzida pela Apelante, na petição inicial.
QQ. Os artigos 85.º e 88.º do CIRE não podem ser aplicáveis à presente instância. RR. Nunca o bem locado poderia, sequer, integrar a Massa Insolvente da Apelada (cfr. 46.º, n.º 1 do CIRE).
SS. O processo de insolvência da Apelada foi encerrado por insuficiência de bens da Massa de Insolvente, nos termos do artigo 232.º, n.ºs 1 e 2 do CIRE, em 27.09.2012, conforme edital junto aos autos, ou seja, muito antes da entrada do procedimento cautelar que ocorreu em 14.06.2016.
TT. O procedimento cautelar é o meio processual mais adequado à restituição do referido bem locado, sendo este o único meio passível de satisfazer a pretensão da Apelante.
UU. Nada obsta à instauração, apreciação e prosseguimento da providência cautelar, podendo concluir-se que subsiste “relevante utilidade que justifique a prossecução da acção”. – Cfr. Acórdão do STJ supra citado.
VV. Face a tudo quanto supra exposto, impõe-se a revogação da sentença ora recorrida, por ser nula nos termos da alínea d), primeira parte e da alínea e), ambas do n.º 1 do artigo 615.º do Código de Processo Civil e, ainda por violar o disposto no artigo 21.º, n.ºs 4 e 7 do Decreto-Lei n.º 149/95 de 24 de Junho e nos artigos 367.º e 368.º do Código de Processo Civil ex vi artigo 21.º, n.º 8 do Decreto-Lei n.º 149/95 de 24 de Junho, devendo os autos prosseguir os seus normais trâmites.
Nestes termos e nos demais de Direito, deve o presente recurso ser julgado totalmente procedente, revogando-se a sentença ora recorrida, com as necessária consequência legais, assim fazendo, V. Exas. Senhores Desembargadores, o que é de inteira JUSTIÇA.»
c) A recorrida não contra-alegou.
II. Objecto do recurso
De acordo com a sequência lógica das matérias, cumpre começar pelas questões processuais, prosseguindo depois com as questões relativas à matéria de facto e por fim com as atinentes ao mérito da causa.
Tendo em consideração que o âmbito objectivo dos recursos é balizado pelas conclusões apresentadas pelos recorrentes (artigos 639.º, n.º 1, e 635.º, n.º 4, ambos do Código de Processo Civil), as questões que este recurso coloca são as seguintes [1]:
1 - Em primeiro lugar, as nulidades de sentença.
a) Nulidade da sentença por omissão de pronúncia, nos termos da alínea d), primeira parte, do n.º 1 do artigo 615.º do Código de Processo Civil, porquanto o tribunal a quo não se terá pronunciado sobre as excepções invocadas pela apelada, nem julgou procedente ou improcedente a providência cautelar, nem ordenou a entrega do bem locado, com todas as suas benfeitorias, à requerente, nem antecipou o juízo sobre a causa principal.
b) Nulidade da sentença, nos termos da alínea e) do n.º 1, do artigo 615.º, do Código de Processo Civil (condenação ultra petitum), porque o tribunal a quo julgou extinção da instância, por impossibilidade superveniente da lide, fundamentando-se no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça (STJ) uniformizador de jurisprudência, de 25.02.2014, mas nenhuma das partes pediu no processo (o reconhecimento do crédito), pelo que decidiu, assim, em objecto diverso do pedido (sendo o pedido a procedência da providência cautelar, consequente entrega do bem locado à Apelante e antecipação do juízo sobre a causa principal).
2 - Em segundo lugar, coloca-se a questão fundamental, relativa ao mérito do recurso, que consiste em saber se o facto da recorrida ter sido declarada insolvente obsta à instauração e ao prosseguimento do presente procedimento cautelar.
III. Fundamentação
a) Nulidades
Não ocorrem as nulidades arguidas.
a) Quanto à nulidade da sentença por omissão de pronúncia, nos termos da alínea d), primeira parte, do n.º 1 do artigo 615.º do Código de Processo Civil.
A recorrente argumenta que o tribunal a quo não se pronunciou sobre as excepções invocadas pela apelada, nem julgou procedente ou improcedente a providência cautelar, nem ordenou a entrega do bem locado, com todas as suas benfeitorias, à requerente, nem antecipou o juízo sobre a causa principal.
Verifica-se que efectivamente o tribunal não se pronunciou sobre estas questões, mas não tinha que o fazer tendo em conta a decisão que tomou.
Como o tribunal entendeu que instância não podia prosseguir, o conhecimento das questões referidas pela recorrente ficava prejudicado.
Ou seja, o tribunal não podia declarar extinta a instância e ao mesmo tempo conhecer das referidas questões, incluindo o mérito da causa.
Nem podia fazer o inverso, isto é, conhecer de tais questões e depois declarar extinta a instância.
A partir do momento em que o tribunal considerou existirem fundamentos para declara a extinção da instância, não podia conhecer de questões colocadas processualmente a jusante desta.
Não ocorre, por isso, a referida nulidade.
b) Relativamente à questão da nulidade da sentença, nos termos da alínea e) do n.º 1, do artigo 615.º, do Código de Processo Civil (condenação ultra petitum).
Também não existe esta nulidade.
A recorrente argumenta que nenhuma das partes pediu no processo o reconhecimento do crédito, pelo que o tribunal decidiu sobre objecto diverso do pedido, pois o pedido respeita a uma procedência da providência cautelar, consequente entrega do bem locado à recorrente e antecipação do juízo sobre a causa principal.
Verifica-se que o tribunal decidiu declarar extinta a instância com fundamento na existência de um processo em que a recorrida foi declarada insolvente.
A decisão consiste na extinção da instância.
A extinção da instância não depende do pedido de qualquer das partes, tratando-se da apreciação de uma questão que é do conhecimento oficioso do juiz.
Por ser assim, quando o tribunal declarou extinta a instância conheceu de objecto que lhe era lícito conhecer.
Improcede, por conseguinte, a nulidade invocada.
b) Matéria de facto
1 – No exercício da sua actividade, a recorrente celebrou com o recorrida, em 18 de Abril de 2007, um Contrato de Locação Financeira Imobiliária, com o n.º ……, tendo por objecto a Fracção autónoma designada pela letra O, correspondente ao 4.º andar frente, destinada a habitação, com entrada pelo n.º …, com tudo o que a compõe, do prédio urbano em regime de propriedade horizontal, sito na Rua …, n.º … e … e do …, .., da freguesia de …, concelho de Vila Nova de Gaia, inscrito na matriz predial urbana sob o artigo 7546 e descrito na 2.ª conservatória do Registo Predial de Vila Nova de Gaia sob o n.º 1036.
2 – A recorrida foi declarada insolvente no âmbito do processo n.º 5069/12.2TBVNG, por sentença transitada em julgado no dia 28 de Agosto de 2012, tendo sido proferido despacho de encerramento do processo que transitou em julgado em 12 de Outubro de 2012.
3 – A fracção autónoma cuja entrega é solicitada nestes autos pela recorrente não foi apreendida para a massa insolvente.
4 – A Sra. Administradora da Insolvência em representação da Massa Insolvente comunicou à recorrente que não cumpria o contrato de locação financeira n.º ……. e que não tendo sido apreendido o bem objecto do contrato a sua entrega voluntária deveria ser efectuada pela aqui recorrente.
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Estes factos resultam dos seguintes meios de prova:
Factos 1 – Cópia do contrato de contrato de locação financeira n.º ……, junto com a petição, fls. 8 a 26.
Factos 2 e 3 2 – Certidão de fls. 79 a 87.
Facto 4 - Doc. 6 da petição, a fls. 27 dos autos.
c) Apreciação da restante questão objecto do recurso.
Vejamos agora se o facto da recorrida ter sido declarada insolvente obsta à instauração e ao prosseguimento do presente procedimento cautelar.
A resposta é negativa pelas seguintes razões:
Em primeiro lugar, cumpre verificar qual é o fundamento ou razão de ser da declaração de extinção da instância em acções declarativas instauradas contra o insolvente destinadas a obter o reconhecimento do crédito.
Como resulta da fundamentação do Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça n.º 1/2014, para uniformização de jurisprudência, «Declarada a insolvência, todos os titulares de créditos de natureza patrimonial sobre o insolvente, cujo fundamento seja anterior à data dessa declaração, são considerados credores da insolvência;
- A partir daí, os direitos/créditos que a A. pretendeu exercitar com a instauração da acção declarativa só podem ser exercidos durante a pendência do processo de insolvência e em conformidade com os preceitos do CIRE – cujos momentos mais marcantes da respectiva disciplina deixámos dilucidados –, seja por via da reclamação deduzida no prazo fixado para o efeito na sentença declaratória da insolvência (…e, no caso, a A. não deixou de o fazer), seja pela sua inclusão na listagem/relação subsequentemente apresentada pelo administrador da insolvência, não subsistindo qualquer utilidade, efeito ou alcance (dos concretamente peticionados naquela acção), que justifiquem, enquanto fundado suporte do interesse processual, a prossecução da lide, assim tornada supervenientemente inútil».
Esta doutrina resulta do disposto no n.º 1, do artigo 1.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (aprovado pelo Decreto-Lei n.º 53/2004, de 18 de Março), onde se determina que «O processo de insolvência é um processo de execução universal que tem como finalidade a satisfação dos credores pela forma prevista num plano de insolvência, baseado, nomeadamente, na recuperação da empresa compreendida na massa insolvente, ou, quando tal não se afigure possível, na liquidação do património do devedor insolvente e a repartição do produto obtido pelos credores».
Como o processo de insolvência é uma execução universal, todos os créditos sobre o falido são invocados e discutidos neste processo perante o insolvente e todos os restantes credores, não o podendo ser em outro processo. De igual modo, todos os bens do insolvente são apreendidos para o processo de insolvência, com vista a dar pagamento aos credores através deles.
Daí que quaisquer pretensões patrimoniais sobre o insolvente não sejam possíveis fora do processo de insolvência.
Tratou-se de uma opção do legislador, que certamente considerou ser a mais adequada aos fins do processo de insolvência.
Para conseguir este objectivo, o legislador não pode permitir que durante a pendência do processo de insolvência um credor faça valer os seus direitos fora deste processo.
Porém, este regime pressupõe a pendência do processo de insolvência; se já não existir processo de insolvência, claro está que este escopo (execução universal) também não existe.
Em segundo lugar cumpre ter em consideração que quando o presente procedimento foi instaurado (15 de Junho de 2016) já o processo de insolvência n.º 5069/12.2TBVNG tinha terminado, por despacho de encerramento transitado em julgado em 12 de Outubro de 2012.
Ora, nos termos da al. b) do n.º 1, do artigo 233.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, encerrado o processo de insolvência, «Cessam todos os efeitos que resultam da declaração de insolvência, recuperando designadamente o devedor o direito de disposição dos seus bens e a livre gestão dos seus negócios, sem prejuízo dos efeitos da qualificação da insolvência como culposa e do disposto no artigo seguinte» e, nos termos da alínea c) seguinte, «Os credores da insolvência poderão exercer os seus direitos contra o devedor sem outras restrições que não as constantes do eventual plano de insolvência e plano de pagamentos e do n.º 1 do artigo 242.º, constituindo para o efeito título executivo a sentença homologatória do plano de pagamentos, bem como a sentença de verificação de créditos ou a decisão proferida em acção de verificação ulterior, em conjugação, se for o caso, com a sentença homologatória do plano de insolvência».
Por conseguinte, estando encerrado o processo de insolvência, não existe qualquer obstáculo processual à instauração de uma providência cautelar contra o respectivo insolvente.
Em terceiro lugar, verifica-se que o bem cuja entrega é pedida não foi apreendido para a massa insolvente da recorrida, por não ser um bem pertencente à insolvente.
Nestas condições, não tendo sido apreendido o bem para a massa, a existência de um processo de insolvência não produz quaisquer efeitos sobre a relação jurídica invocada envolvendo a recorrente e a recorrida, pois nem o bem pode ser liquidado para pagar aos credores da insolvente (na hipótese, que já não se verifica, do processo de insolência estar pendente), nem a recorrente está a fazer valer um direito de crédito sobre o património da massa insolvente.
A existência do processo de insolvência não constitui nestes caso obstáculo à instauração ou prosseguimento da acção, neste caso da presente providência cautelar.
Cumpre, pelo exposto, julgar procedente o recurso e revogar a decisão recorrida, prosseguindo o processo os seus termos.
IV. Decisão
Considerando o exposto, julga-se o recurso procedente e revoga-se a decisão recorrida, prosseguindo o processo os seus termos.
Custas pela parte vencida a final.
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Porto, 20 de Fevereiro de 2017
Alberto Ruço
Ana Paula Amorim
Manuel Domingos Fernandes
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[1] A sequência das questões pressupõe que cada uma delas, ao ser resolvida, não irá prejudicar o conhecimento das seguintes.