Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
1980/18.5T8VFR.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: JOAQUIM MOURA
Descritores: INVENTÁRIO
PROCURAÇÃO
RECLAMAÇÃO CONTRA A RELAÇÃO DE BENS
MEIOS COMUNS
Nº do Documento: RP201911041980/18.5T8VFR.P1
Data do Acordão: 11/04/2019
Votação: UNANIMIDADE COM 2 DEC VOT
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Indicações Eventuais: 5ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - Uma procuração consubstancia um negócio jurídico unilateral que se submete aos preceitos gerais, designadamente ao artigo 236.º do Código Civil que define, como regra básica de interpretação da declaração negocial, a de que o sentido decisivo dessa declaração é aquele que seria apreendido por um declaratário normal colocado na posição do declaratário real.
II - Um declaratário de normal discernimento interpretará a declaração exarada num instrumento público pelo qual a declarante constitui seu procurador pessoa a quem confere poderes de representação num processo de inventário, que identifica pelo número que lhe foi atribuído, com o sentido de que esses poderes compreendem tudo o que for necessário ao normal andamento do processo, mesmo que mencione, apenas, um dos inventariados.
III - Os interessados num processo de inventário podem reagir contra a decisão do notário, proferida em incidente de reclamação contra a relação de bens, que determinou a exclusão de créditos e de dívidas da herança, através da sua impugnação, que, nos termos previstos no artigo 76.º, n.º 2, do RJPI, deve ser feita no recurso que vier a ser interposto da decisão homologatória da partilha.
IV - Só se justifica remeter os interessados para os meios judiciais comuns quando, após a produção de prova, ou mesmo em momento anterior, é possível prever, com segurança, que a questão, de facto ou de direito, é de tal modo complexa que não poderá/deverá ser decidida no processo de inventário, por reclamar uma mais cuidada indagação.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo n.º 1980/18.5 T8VFR.P1
(Processo de inventário)
Comarca de Aveiro
Juízo Local Cível de S. M. da Feira (J3)
Acordam na 5.ª Secção do Tribunal da Relação do Porto
IRelatório
Mediante requerimento apresentado em 29.10.2015 por B… no Cartório Notarial da Notária C…, sedeado no município de Santa Maria da Feira, foi instaurado processo de inventário para partilha de bens da herança aberta por óbito de D…, falecido em 14.09.1987, no estado de casado com E…, no qual vem desempenhando as funções de cabeça de casal o interessado F…, devidamente identificado nos autos.
Tendo a viúva E… falecido em 27.07.2013, por despacho de 29.02.2016, foi admitida a cumulação de inventários.
A relação de bens apresentada pelo cabeça-de-casal foi objecto de reclamações (uma apresentada pelo interessado B… e outra pela interessada G…, ambas com fundamento na inexistência do direito de crédito relacionado como verba n.º 1 e contestando a existência, como passivo da herança, as relacionadas dívidas ao cabeça-de-casal) e a concluir o incidente foi proferido despacho (datado de 06.09.2017 e disponibilizado ao ilustre mandatário do cabeça de casal na mesma data) que, na parte que para aqui releva, é do seguinte teor:
«Apesar da prova produzida, não se logrou formar convicção quanto ao pagamento das benfeitorias efectuadas na casa dos inventariados, por parte do cabeça de casal. Se, por um lado, não foi colocada em causa pelas partes do presente incidente a realização das benfeitorias no prédio urbano relacionado, por outro, não resultou esclarecida a questão de quem suportou o encargo da realização de tais benfeitorias. Sendo seu o ónus da prova, não logrou o Cabeça de Casal convencer de que o encargo das benfeitorias tenha sido por si suportado.
Não entendemos que a presente questão seja complexa ao ponto de se entender necessária a remessa das partes para os meios comuns. Na verdade, as partes puderam nesta sede produzir todas as provas necessárias à decisão da causa.
Não vislumbramos que prova diferente da que já foi produzida seria passível de ser realizada de forma a alterar a convicção já formada, mesmo que se remetessem as partes para os meios comuns. Reconhecidas as benfeitorias, a única questão a apurar seria a do seu valor. Porém, esta questão só será relevante no caso de as partes não acordarem no valor do prédio relacionado na verba 15; esta questão só será objecto de deliberação na conferência preparatória, e não nesta sede.
Relativamente à verba 1, o Cabeça de Casal alega existirem ou terem existido contas bancárias em nome da inventariada, nomeadamente no Banco H…, S.A. e na I…, SA. No entanto, tal como já havia sido decidido por despacho de 28/10/2016, caberia ao Cabeça-de-casal o apuramento da existência das mesmas. Ora, veio o Cabeça de Casal, por requerimento datado de 14 de Julho de 2017, alegar que não logrou obter respostas aos pedidos de informação por si solicitados junto das entidades bancárias. Nestes termos, considera-se não haver qualquer outra conta a relacionar.
Relativamente à conta do Banco H…, S.A., que alega o Cabeça-de-casal ter sido titulada pela inventariada e pela interessada G…, conta esta que a mesma reconhece como tendo existido, no documento junto a 09/02/2017, foi a mesma encerrada em Setembro de 2009. Ora, considerando que a inventariada faleceu em Julho de 2013, inexistia a dita conta na data do óbito e por conseguinte, nos termos do artigo 2031.º do Código Civil, nada há a relacionar.
(…)
Notifique-se o cabeça-de-casal para em 5 dias apresentar relação de bens em conformidade com a decisão do incidente de reclamação à relação de bens proferida.
(…)»
Na sequência do decidido, o cabeça-de-casal apresentou nova relação de bens, já expurgada das verbas que motivaram aquelas reclamações.
Em 16.11.2017, realizou-se a conferência de interessados e foi proferido, em 17.01.2018, despacho determinativo da forma da partilha, seguindo-se a elaboração do mapa da partilha, homologado por sentença de 17.01.2019 da Sra. Juiz do Juízo Local Cível de S.M. da Feira.
Da sentença homologatória da partilha recorreu o cabeça-de-casal, rematando a sua alegação com as seguintes conclusões:
1) «A interessada J…, não se encontra nem encontrava legalmente representada para os atos a praticar e praticados nos autos.
2) E disso foi atempadamente tal omissão comunicada aos autos.
3) Consequentemente, era exigível e legalmente obrigatório que fosse sempre citada/notificada, de todos os despachos e decisões; para as diligências de prova, da junção de documentos; para as conferências preparatória e de interessados e tudo o demais inerente ao processo.
4) Foi assim violado o art 13º do RJPI e todos os demais que impõem a citação/notificação dos interessados que não estejam representados nos autos.
5) Ao assim não ter acontecido, todos os atos praticados sem que a mesma tenha sido citada/notificada, são nulos.
6) Nulidade que aqui expressamente se invoca para todos os legais efeitos.
7) O que ficou definitivamente decidido e aceite nos autos, foi apenas e tão só que foram efetuadas benfeitorias.
8) Mas nada ficou decidido sobre quem liquidou tais benfeitorias.
9) Sobre tal matéria, era exigível que a bem da justiça e clarificação dos factos fosse determinado a remessa, neste ponto, para os meios comuns.
10) Ao assim não agir, foram violados os artºs 16 do referido RGPI
11) Nos autos, existem documentos que pela sua complexidade, suportam fortes indícios de que uma das interessadas tem na sua posse valores em dinheiro que fazem parte do acervo hereditário,
12) Nomeadamente uma declaração escrita e assinada sobre o assunto de um dos interessados.
13) Se é aceitável que tal não tivesse chegado para formar a convicção da Ilustre Notária nos autos, sempre a esta, a bem do princípio da transparência, deveria ter remetido tal assunto para os meios comuns.
14) Com tal omissão, claramente resulta dos autos que um dos interessados é abusivamente detentor de valores da “DE CUJUS”, á custa dos demais interessados».
O interessado B… apresentou contra-alegações, concluindo pela improcedência do recurso e pedindo a condenação do recorrente como litigante de má fé.
O recurso foi admitido como apelação, com subida imediata, nos próprios autos e efeito meramente devolutivo.
Colhidos os vistos, cumpre apreciar e decidir.
Objecto do recurso
São as conclusões que o recorrente extrai da sua alegação, onde sintetiza os fundamentos do pedido, que recortam o thema decidendum (cfr. artigos 635.º, n.º 4, e 639.º, n.º 1, do Código de Processo Civil) e, portanto, definem o âmbito objectivo do recurso, assim se fixando os limites do horizonte cognitivo do tribunal de recurso. Isto, naturalmente, sem prejuízo da apreciação de outras questões de conhecimento oficioso (uma vez cumprido o disposto no artigo 3.º, n.º 3 do mesmo compêndio normativo).
O recorrente reage contra a sentença homologatória da partilha, não porque discorde da forma como esta foi efectuada, mas porque pretende fazer valer os seus pontos de vista quanto a duas questões que já anteriormente suscitou, a saber:
- a interessada I… não esteve, devidamente, representada no processo e não foi citada para os termos do inventário, pelo que foi cometida uma nulidade;
- a Sra. Notária devia ter remetido os interessados para os meios comuns quando decidiu as reclamações da relação de bens apresentada pelo cabeça-de-casal, em vez de determinar a exclusão da verba n.º 1 do activo (um direito de crédito no montante estimado de €30.000,00) e das duas verbas relacionadas como passivo da herança (duas dívidas ao cabeça-de-casal).
São essas duas questões que cumpre apreciar e decidir.
IIFundamentação
1. Fundamentos de facto
Os factos e incidências processuais relevantes para a decisão são os que se enunciam no precedente relatório e, ainda, o seguinte:
- a interessada J…, no dia 08.08.2017, constituiu seu procurador B…, ao qual conferiu poderes «para a representar no inventário instaurado por óbito da sua avó paterna E… e que corre termos no cartório notarial da Dra. C… sob o Processo n.º 5183/2015 e, assim, para receber quaisquer necessárias notificações, apresentar reclamação a relação de bens, assistir a conferência preparatória e a conferência de interessados, nelas podendo decidir toda e qualquer questão relevante para a partilha, concordar na partilha dos bens da herança, formação de lotes e respectivos valores…»;
- depois da conferência de interessados, mas antes do despacho determinativa da forma da partilha, o ora recorrente, em requerimento apresentado em 01.12.2017, veio suscitar as mesmas questões que levanta em sede de recurso e conclui dizendo que «devem tais questões serem resolvidas com a aplicação do n.º 3 do citado art.º (57.º da Lei 23/2013) antes de proferir despacho a determinar o modo da partilha»;
- sobre esse requerimento recaiu despacho da Sra. Notária, datado de 05.12.2017, que concluiu: «Assim, e contrariamente ao alegado pelo Cabeça de Casal, não existem questões prévias a serem resolvidas antes de ser proferido despacho determinativo da forma à partilha. Pelo que se indefere integralmente o requerimento apresentado pelo Cabeça de Casal»;
- reagiu o cabeça-de-casal contra esse despacho, dele interpondo recurso para o tribunal de Santa Maria da Feira, no qual suscita, exactamente, as mesmas questões;
- porém, a Sra. Notária, por despacho de 17.01.2018, considerou tal recurso inadmissível;
- desse despacho reclamou, em 05.02.2018, o recorrente para o Sr. Juiz do Tribunal de Santa Maria da Feira;
- remetido o processo ao tribunal de comarca para decidir a reclamação, foi esta indeferida, por extemporânea.
2. Fundamentos de direito
O recorrente insiste na tese de que a interessada J… não está, devidamente, representada no processo e não foi notificada para estar presente, entre outros actos, nas conferências preparatória e de interessados, como devia.
Essa omissão faria com que todos os actos praticados, para os quais esta interessada devia ter sido, e não foi, notificada, sejam nulos e vem arguir essa nulidade.
Estaríamos, então, perante uma nulidade processual que, é sabido, não sendo de conhecimento oficioso, tem de ser arguida, ficando o recurso reservado para o despacho que sobre ela (arguição) incidir.
Tem legitimidade para arguir a nulidade “o interessado na observância da formalidade ou na repetição ou eliminação do acto” (artigo 197.º, n.º 1, do CPC), o que não parece ser o caso do recorrente. Mas, mesmo que se lhe reconhecesse legitimidade para tanto, devia o cabeça-de-casal ter arguido a nulidade no primeiro acto em que estivesse presente (por si ou por mandatário) e ela fosse cometida (artigo 199.º, n.º 1, aplicável no processo de inventário ex vi do disposto no artigo 82.º do RJPI).
Ora, consta da acta da conferência preparatória realizada em 16.10.2017 que a interessada J… esteve representada pelo seu procurador, o também interessado B…. E o mesmo aconteceu na conferência de interessados realizada em 16.11.2017.
Se, na óptica do ora recorrente, essa representação não correspondia à verdade, devia ter arguido a nulidade no próprio acto.
Não o tendo feito, a irregularidade ficou sanada e a sua arguição em sede de recurso (e mesmo no requerimento apresentado em 01.12.2017) é, manifestamente, extemporânea.
Seja como for, ao contrário do que afirma o recorrente, a interessada J… está regularmente representada pelo seu procurador B….
A procuração é um acto unilateral que a lei define no artigo 262.º, n.º 1, do Código Civil: «acto pelo qual alguém atribui a outrem, voluntariamente, poderes representativos». Enquanto acto, é um negócio jurídico unilateral que surge perfeito com uma só declaração de vontade[1].
Enquanto negócio jurídico, submete-se aos preceitos gerais, designadamente ao artigo 236.º do Código Civil que estabelece esta regra básica de interpretação da declaração negocial: «o sentido decisivo da declaração negocial é aquele que seria apreendido por um declaratário normal, ou seja, medianamente instruído e diligente, colocado na posição do declaratário real, em face do comportamento do declarante»[2].
Ora, qualquer declaratário de normal discernimento e bom senso interpretará a declaração exarada no instrumento público (de que está uma reprodução a fls. 78v.º e 79) pela interessada J… como conferindo poderes a B… para a representar em todos os actos deste processo de inventário, a que, no cartório notarial, foi atribuído o n.º 5183/2015, inicialmente visando a partilha dos bens da herança aberta por óbito de D… e depois, por acumulação, também da viúva deste, E….
É, pois, manifestamente, improcedente o recurso, neste segmento.
*
O cabeça-de-casal, aqui recorrente, relacionou, como activo da herança, um direito de crédito, no valor estimado de €30.000,00, que corresponderia ao saldo de uma conta de depósitos de que seriam co-titulares a falecida E… e a interessada G… (verba n.º 1 da relação inicial, a fls. 28 e 29).
Por outro lado, do passivo da herança fariam parte duas verbas: a primeira, no montante de €15.000,00, seria uma dívida ao próprio cabeça-de-casal e corresponderia ao custo das benfeitorias realizadas no prédio urbano relacionado como verba n.º 15; a segunda, no montante de €32.000,00, seria uma dívida, ainda ao próprio cabeça-de-casal, por ter tomada conta da sua mãe E…, «exercendo as funções de aia, ama, cozinheira, enfermeira, chaufer, criada, empregada de limpeza, jardineira e tudo o demais inerente».
Foi por não aceitaram a existência, quer do crédito, quer das dívidas, que os interessados B… e G… reclamaram da relação de bens que aquele apresentou.
A Sra. Notária, já o referimos, decidiu o incidente por despacho de 06.09.2017 (na mesma data disponibilizado ao ilustre mandatário do cabeça-de-casal) e, considerando que não havia prova da existência, quer do crédito, quer das dívidas relacionados, decidiu a sua exclusão, mandando que o cabeça-de-casal apresentasse «relação de bens em conformidade com a decisão do incidente de reclamação».
Decorre do n.º 4 do artigo 3.º do RJPI[3] que é ao notário que compete dirigir todas as diligências do processo de inventário e decidir todas as questões, de facto e de direito, que nele se suscitem.
Ressalvam-se os casos em que, face à complexidade das questões de facto ou de direito (cuja solução tenha reflexos na partilha), os interessados são remetidos para os meios judiciais comuns.
A remessa dos interessados para os meios judiciais comuns tanto pode verificar-se a requerimento de qualquer interessado como oficiosamente, por iniciativa do notário, mas é sempre este a decidir, «para o que identifica as questões controvertidas, justificando fundamentadamente a sua complexidade» (art.º 16.º, n.º 1), importando assinalar que se consideram “definitivamente resolvidas as questões que, no inventário, sejam decididas no confronto do cabeça de casal ou dos demais interessados a que alude o artigo 4.º, desde que tenham sido regularmente admitidos a intervir no procedimento que precede a decisão, salvo se for expressamente ressalvado o direito às ações competentes» (art.º 17.º, n.º 1).
Se o notário indeferir o pedido de remessa das partes para os meios judiciais comuns cabe recurso dessa decisão para o tribunal competente (o tribunal de comarca com jurisdição na área da sede do cartório notarial onde o processo foi apresentado), a interpor no prazo de 15 dias a contar da notificação da decisão (artigo 16.º, n.º 4), assim se salvaguardando «a posição dos interessados que, tendo manifestado no processo de inventário a pretensão de se socorrerem de acção judicial para apreciação da questão suscitada, vejam o notário negar-lhe essa possibilidade, concedendo-lhes (o legislador) a faculdade de verem a sua pretensão (de lançarem mão da acção judicial) reapreciada pelo Tribunal»[4].
O cabeça-de-casal só no requerimento apresentado em 01.12.2017 (portanto, muito depois de a Sra. Notária ter decidido o incidente de reclamação da relação de bens) começou a defender que os interessados deviam ter sido remetidos para os meios judiciais comuns e terminou pedindo que “tais questões” fossem resolvidas com a aplicação do disposto no artigo 57.º, n.os 2 e 3.
O citado preceito dispõe sobre o despacho determinativo do modo como deve ser organizada a partilha e o seu n.º 2 manda que nele sejam resolvidas «todas as questões que ainda o não tenham sido e que seja necessário decidir para a organização do mapa da partilha», prevendo o seu n.º 3 a possibilidade de remessa dos interessados para os meios judiciais comuns se, pela sua natureza ou pela complexidade da matéria de facto e de direito, não seja conveniente decidi-las no processo de inventário.
Não era o caso, pois que, repisa-se, já tinha sido decidida a reclamação contra a relação de bens e a questão da pretensa irregularidade por não estar, devidamente, representada no processo a interessada J… não tinha nenhuma relevância para a organização do mapa da partilha.
Por isso, a conclusão da Sra. Notária de que “contrariamente ao alegado pelo Cabeça de Casal, não existem questões prévias a serem resolvidas antes de ser proferido despacho determinativo da forma à partilha” era inteiramente fundada.
Tal como foi correcto o despacho de 17.01.2018 que considerou não ser admissível o recurso interposto pelo cabeça-de-casal dessa decisão.
Mas, então, é caso para questionar: o cabeça-de-casal tem de se conformar com a decisão proferida no incidente da reclamação da relação de bens, não tem como reagir contra ela?
A existência de créditos ou dívidas da herança é, seguramente, uma das questões mais frequentemente suscitadas no processo de inventário e, também, é frequente serem os interessados remetidos para os meios judiciais comuns.
Sendo óbvio que as decisões proferidas sobre essas questões têm implicações na (re)composição do acervo hereditário, mal se compreenderia que os interessados não pudessem reagir contra uma decisão tomada nesse âmbito que lhes seja desfavorável.
O meio adequado de reacção é a sua impugnação que, nos termos previstos no artigo 76.º, n.º 2, deve ser feita no recurso que vier a ser interposto da decisão homologatória da partilha.
O cabeça-de-casal interpôs, efectivamente, recurso da decisão de partilha e, como já se aludiu, vem colocar à apreciação desta Relação a bondade do despacho sobre a reclamação, defendendo que se justificava remeter os interessados para os meios judiciais comuns.
Apreciando e decidindo.
Várias são os preceitos do RJPI que prevêem o poder-dever conferido ao notário de remeter os interessados (ou partes, como também são designados) para os meios judiciais comuns, fazendo depender essa decisão da complexidade das questões suscitadas, mas variando o grau de exigência para que se enverede por essa solução: ora se fala em “inconveniência” da decisão incidental no inventário, por implicar a redução das garantias das partes (artigos 17.º, n.º 2, e 36.º, n.º 1), ora se alude a questões que “não devam” ser decididas no processo de inventário (artigos 16.º, n.º 1, e 57.º, n.º 3).
Por outro lado, a complexidade tanto se refere, apenas, à matéria de facto (artigo 17.º, n.º 2), como à matéria de facto ou de direito (artigo 36.º, n.º 1) ou, ainda, à matéria de facto e de direito (artigos 16.º, n.º 1, e 57.º, n.º 3).
Temos para nós que a preocupação deve ser não transformar em regra aquilo que é excepção (remeter os interessados para os meio judiciais comuns sempre que no inventário surge um conflito de interesses).
É no processo de inventário que, em princípio, devem resolvidas todas as questões de facto e/ou de direito que relevam para a partilha.
A solução de remeter os interessados para os meios judiciais comuns pode ser a mais fácil e cómoda para quem tem de decidir, mas é, seguramente, a mais morosa e por isso afronta o princípio da celeridade processual.
No entanto, não pode ignorar-se que a decisão incidental, porque, necessariamente, baseada em prova sumária, simplificada e confinada, traduz-se numa redução das garantias das partes.
Por isso, quando, após produção de prova, ou mesmo em momento anterior, é possível prever, com segurança, que a questão, de facto ou de direito, é de tal modo complexa que não poderá/deverá ser decidida no processo de inventário, «impõe-se atender à necessidade de se proteger as garantias das partes, permitindo aos interessados que recorram aos meios “normais” de pleitear, não estando assim sujeitos aos constrangimentos e limitações probatórias do processo de inventário”[5].
No fundo, como expende J. A. Lopes Cardoso (“Partilhas Judiciais”, vol. I, Almedina, 2006, pág. 593), «tudo deve ser examinado e decidido à luz de um são critério, já para não consentir que no inventário se resolvam questões de alta indagação, já para não excluir as que, aí, podem e devem obter solução adequada».
A verdade é que, no caso concreto, os elementos disponíveis afastam a exigência de uma mais larga, variada e cuidada indagação para decidir as questões colocadas.
O que, na realidade, sucede é que, tendo sido proporcionada aos interessados e, em particular, ao cabeça-de-casal, amplas possibilidades de apresentarem e produzirem prova do que alegaram, o resultado é uma manifesta insuficiência, senão mesmo a inexistência, de provas. Isso é particularmente notório no que tange ao direito de crédito relacionado como activo da herança, pois está documentalmente provado que a conta bancária que, segundo o recorrente, teria um saldo positivo estimado em €30.000,00, foi encerrada em Setembro de 2009, ou seja, cerca de quatro anos antes do óbito da inventariada E….
Quanto às dívidas relacionadas como passivo da herança, importa salientar que o titular do correspondente direito de crédito seria o próprio cabeça-de-casal, que as relacionou, cabendo-lhe por isso fazer prova inequívoca dos factos constitutivos do direito invocado (artigo 342.º, n.º 1, do Código Civil).
No entanto, como o próprio recorrente reconhece, não logrou fazê-lo e, como bem argumenta a Sra. Notária na decisão do incidente, não se descortina que prova, diversa da já produzida, seria passível de se produzir para se alcançar uma conclusão probatória no sentido da existência dessas dívidas da herança.
Concluindo, também nesta parte, não merece provimento o recurso do cabeça-de-casal.
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O recorrido B… propugna a condenação do recorrente como litigante de má fé.
Se é certo que a conduta processual do cabeça de casal não tem primado pela correcção e moderação na utilização dos mecanismos processuais, essa conduta já foi apreciada no despacho de 04.07.2018, proferido pela Sra. Juiz do Juízo Local Cível de Santa Maria da Feira, que concluiu não estarem reunidos os pressupostos da litigância de má fé.
A interposição do recurso que ora se julga não é mais que o legítimo exercício de um direito.
III - Dispositivo
Pelas razões vindas de expor, acordam os juízes desta 5.ª Secção Judicial (3.ª Secção Cível) do Tribunal da Relação do Porto em julgar improcedente o recurso de apelação interposto F… e, em consequência, confirmar a decisão recorrida.
Custas do recurso a cargo do recorrente (artigo 527.º, n.os 1 e 2, do Cód. Processo Civil), sem prejuízo do apoio judiciário de que beneficia.
(Processado e revisto pelo primeiro signatário).
Porto, 04.11.2019
Joaquim Moura
Ana Paula Amorim
Manuel Domingos Fernandes
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[1] Distingue-se do mandato, que é um contrato, mas podem coexistir. O mandato judicial (também dito mandato forense) é «o contrato pelo qual um advogado (ou um advogado estagiário, ou um solicitador) se obriga a fazer a gestão jurídica dos interesses cuja defesa lhe é confiada, através da prática, em nome e por conta do mandante, de actos jurídicos próprios da sua profissão» (João Lopes Reis, in “Representação Forense e Arbitragem”, pág. 43) e é conferido através de procuração (forense).
[2] Pires de Lima e Antunes Varela, “Código Civil Anotado”, vol. I, Coimbra Editora, 4.º edição revista, pág. 223.
[3] São deste diploma legal os preceitos legais citados sem indicação da origem.
[4] Eduardo de Sousa Paiva, “O novo processo de inventário” in Revista Julgar, n.º 24, pág. 113).
[5] Maria João Gonçalves, “O novo regime do processo de inventário: contributo para definição das situações de remessa das partes para os meios comuns” na Revista JULGAR, n.º 24, pág. 150.