Acórdão do Tribunal da Relação do Porto | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | JTRP00038821 | ||
Relator: | FONSECA RAMOS | ||
Descritores: | AUTO-ESTRADA BRISA ACIDENTE DE VIAÇÃO RESPONSABILIDADE CONTRATUAL RESPONSABILIDADE EXTRA CONTRATUAL ÓNUS DA PROVA | ||
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Nº do Documento: | RP200602130650359 | ||
Data do Acordão: | 02/13/2006 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
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Meio Processual: | APELAÇÃO. | ||
Decisão: | CONFIRMADA A SENTENÇA. | ||
Área Temática: | . | ||
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Sumário: | A relação jurídica que se estabelece entre a Brisa, como concessionária de auto-estradas, e os seus utentes que pagam portagem é de configurar como responsabilidade extracontratual, competindo ao lesado a prova da culpa da concessionária na eclosão de acidente de viação, no caso, motivado pela intrusão de um javali na auto-estrada. | ||
Reclamações: | |||
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Decisão Texto Integral: | Acordam no Tribunal da Relação do Porto “B.........., Ldª”, intentou, em 19.4.2004, pelo Tribunal Judicial da Comarca de .......... – .º Juízo Cível – acção declarativa de condenação, com processo sumário, contra: “Brisa - Auto-Estradas de Portugal, S.A”. Pedindo a condenação da Ré a pagar-lhe a quantia de € 6.097,75 (seis mil e noventa e sete euros e setenta e cinco cêntimos), acrescida de juros à taxa legal já vencidos e vincendos a contar da citação e até efectivo pagamento. Alegou a Autora, para tal e em síntese, que exerce a actividade de comercialização de jóias, relógios e colares e que, no exercício dessa actividade, faz-se representar pelo sócio-gerente C......... . No dia 7 de Maio de 2001, pelas 23,10 horas, este conduzia um veículo automóvel ligeiro de passageiros pertencente à Autora, que ao circular ao quilómetro 33,500 da auto-estrada A4, embateu num javali que atravessou a faixa de rodagem, da berma para o separador central. Em consequência do embate o veículo sofreu danos, esteve impossibilitado de circular, pelo que a Autora teve de alugar um veículo para substituição daquele, tendo o gerente da Autora perdido três dias de trabalho. Alegou, ainda, que o javali entrou por um buraco existente na vedação em rede a cerca de cem metros do local do embate. Na audiência de julgamento, a Autora procedeu à alteração parcial da matéria de facto articulada, alegando que quando referiu na petição inicial a existência de um buraco na rede de protecção, pretendia referir que existia uma abertura com uma armação em madeira com portão que se encontrava aberto. Citada, a Ré contestou, a fls. 19, impugnando a factualidade alegada e requerendo a intervenção acessória provocada da “Companhia de Seguros X.........., S.A.”, concluindo, a final, pela improcedência da acção. Para tal, alegou a Ré que, no dia em que ocorreu o alegado embate, efectuou patrulhamento à zona do embate, no decurso do qual não foi detectado qualquer animal na via, ou deficiência na vedação, e que a Brigada de Trânsito da Guarda Nacional Republicana também efectuou patrulhamentos no local. Notificada da contestação, a Autora não respondeu. Por despacho proferido a fls. 72, admitiu-se o chamamento da “Companhia de Seguros X.........., S.A.” Citada, a interveniente Companhia de Seguros X.........., S.A., contestou a fls. 82, aderindo parcialmente à contestação da Ré, invocando a existência de uma franquia no contrato de seguro celebrado com a sua segurada e concluindo a final pela improcedência da acção. Foi elaborado despacho saneador tabelar a fls. 90. Procedeu-se à selecção da matéria de facto assente e à elaboração da base instrutória, que não foram objecto de reclamação. Realizou-se a audiência de discussão e julgamento, no decurso da qual foi requerida a alteração da redacção de alguns artigos da base instrutória, tendo-se determinado a alteração da redacção do artigo 8°, da base instrutória e a eliminação do art. 9°, e tendo-se respondido à matéria de facto da base instrutória, conforme resulta de fls. 206 e segs., não tendo havido qualquer reclamação. *** A final foi proferida sentença que julgou a acção totalmente improcedente e absolveu a Ré do pedido. *** Inconformada recorreu a Autora que alegando, formulou as seguintes conclusões: 1. Como, e bem, o Sr. Juiz conclui na sentença recorrida, em face da factualidade apurada e demais elementos dos autos competia à apelada “provar que não teve culpa na ocorrência do embate em causa nestes autos” 2. A apelada não logrou provar, por qualquer forma, que não teve culpa na ocorrência, bem pelo contrário, 3. Dos factos dados como provados resulta claramente que a apelada teve culpa na verificação do sinistro; 4. Resultou provado que “... entre 100 a 500 m do quilómetro 33.500 da Auto-estrada A4, existia na rede da vedação uma abertura com uma cancela em madeira, a qual no dia 8 de Maio de 2001, se encontrava aberta; resp. art., 8° da BI”. 5. Tendo o Sr. Juiz dado também como provado que “a vedação da Auto-estrada A4 ao quilómetro 33,500 e suas imediações estava intacta em ambos os sentidos”, sem ressalvar o facto da cancela aberta, há manifesta contradição nas respostas dadas ao art. 8° da B.I. e ao art. 21° da B.I. da base instrutória, impondo-se a alteração da resposta dada ao art. 21° da B.l. de molde a forma a confirmar as respostas. 6. As “alternadas” patrulhas efectuadas na Auto-estrada A4 designadamente na zona do quilómetro 33,500 não desresponsabilizam, por qualquer forma, a apelada, pelo contrário, demonstra a clara omissão dos seus deveres, pois como as testemunhas da própria apelada afirmaram, tais patrulhas consistiam em passar de carro na auto-estrada, donde não era possível ver as vedações nas condições apuradas nos autos. 7. A apelada estava obrigada a manter sempre firmemente fechada a cancela referida na resposta ao art. 8° da B.I., como as próprias testemunhas afirmaram. 8. Ao não cumprir tal obrigação, cometeu um facto ilícito, que determinou a entrada do javali, porque os javalis não voam e o sinistro com os consequentes danos, estando claramente demonstrado o facto ilícito, o dano e o nexo de causalidade entre o facto e o dano. 9. Acresce que, como o Sr. Juiz defende na parte final da douta sentença “... a simples presença de um animal na auto-estrada fez presumir a culpa do encarregado da vigilância da coisa”, como a Ré não ilidiu tal presunção, impõe-se a sua condenação nos termos peticionados. 10. A sentença recorrida violou entre outras as seguintes disposições legais, artigos 483°, 486°, 487°, 493°, 562°, 762°, 798° e contrariou a jurisprudência designadamente os Acórdãos do STJ de 12.11.1996 (BMJ, 461-411) de 25/03/2004 (em www.dgsi.pt), da RC de 85.2001 (CJ XXVI-3,9), da RP de 16.09.2004, processo 0434088 (em www.dgsi.pt), Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, (Miranda Gusmão), de 2000.02.17, Revista n.°1092/1999, 7ª Secção, Primeiro de Janeiro, Suplemento, Justiça e Cidadania de 2000.04.27, pág.15 e Sentença do 3° Juízo de Competência especializada Cível da Comarca de Santo Tirso (Vicente Russo), de 1996.05.02, Colectânea de Jurisprudência 1996, II, pág.303. Nestes termos, deve ser dado provimento ao presente recurso e revogar-se o despacho recorrido, assim se fazendo como sempre a mais elevada Justiça. A Ré contra-alegou, pugnando pela confirmação da sentença. *** Colhidos os vistos legais cumpre decidir, tendo em conta a seguinte matéria de facto: Dos Factos Assentes: A) No dia 7 de Maio de 2001, cerca das 23,10 horas, C.......... conduzia o veículo automóvel ligeiro de passageiros, propriedade da Autora, com a matrícula ..-..-JL, pela Auto-estrada A4, no sentido ..........-.........., no concelho de ..........; B) Auto-estrada esta onde existem duas vias no mesmo sentido, tendo cada via o total de cerca de 7,40 metros de largura; C) A Auto-estrada A4 ..........-.......... está concessionada à R. Brisa - Auto- Estradas de Portugal, S.A.; D) A Ré Brisa-Auto-Estradas de Portugal, S.A., transferiu a responsabilidade civil pelos danos causados a terceiros, na sua integridade física ou no seu património, na qualidade de concessionária da exploração, conservação e manutenção da Auto-Estrada A4, até ao montante de € 748.200,00 (setecentos e quarenta e oito mil e duzentos euros), para a interveniente Companhia de Seguros X.........., S.A., através de contrato de seguro titulado pela apólice n° 87/......, válido em 7 de Maio de 2001, conforme documento de fls. 41 e segs., cujo teor se dá aqui por reproduzido; E) No contrato de seguro referido em D) vigora uma franquia de € 748,20 (setecentos e quarenta e oito euros e vinte cêntimos) por sinistro, a cargo da segurada; Da Base Instrutória: F) A Autora tem por objecto a comercialização de jóias, relógios e colares; (Resposta ao art. 1º Base Instrutória). G) O ..-..-JL seguia a cerca de 80 (oitenta) quilómetros por hora; (Resp. art. 2º B.I.) H) Pela faixa de rodagem da direita e a não mais de 0,5 metros da berma direita; (Resp. art. 3º B.I.) I) E quando se aproximava do quilómetro 33,500 um javali atravessou a faixa de rodagem, no sentido da berma para o separador central; (Resp. art. 4º B.I.) J) Tendo o ..-..-JL embatido com o lado direito da frente no javali; (Resp. art. 5º B.I.) L) O ..-..-JL seguiu a marcha até à portagem de .........., o que ocorreu após uma paragem de alguns minutos ao quilómetro 33,500; (Resp. art. 6º B.I.) M) E desde o quilómetro 33,500 até à portagem de .......... não existia nenhuma patrulha da Ré Brisa Auto - Estradas de Portugal, S.A., ou da Brigada de Trânsito da Guarda Nacional Republicana; (Resp. art. 7º B.I.) N) A uma distância não concretamente apurada, mas entre 100 a 500 metros do quilómetro 33,500 da Auto-estrada A4, existia na rede de vedação uma abertura com uma cancela em madeira, a qual, no dia 8 de Maio de 2001, se encontrava aberta; (Resp. art. 8º B.I.) O) Era do conhecimento da Ré a existência, na rede de vedação de uma abertura com cancela em madeira; (Resp. art. 10º B.I.) P) Em consequência do embate, o ..-..-JL ficou com a parte frontal do lado direito “parcialmente destruída”; (Resp. art. 12º B.I.) Q) Tendo a Autora procedido à substituição do pára-brisas, faróis do lado direito, farolins, frente direita e parte lateral direita, capot, e contratado os trabalhos de chapeiro e mecânica; (Resp. art. 13° B.I.) R) Cujo custo ascendeu a € 1.834,93 (mil e oitocentos e trinta e quatro euros e noventa e três cêntimos); (Resp. art. 14º B.I.) S) O ..-..-JL esteve impossibilitado de circular durante um número de dias não concretamente apurado, enquanto esteve a ser reparado; (Resp. art. 15º B.I.) T) O ..-..-JL era utilizado diariamente pelo C.......... na actividade de vendedor de ..........; (Resp. art. 16º B.I.) U) E a Autora alugou um automóvel, com o que despendeu € 1.012,82 (mil e doze euros e oitenta e dois cêntimos); (Resp. art. 17º B.I.) V) Por causa do embate o ..-..-JL sofreu uma desvalorização em montante não concretamente apurado; (Resp. art. 20º B.I.) X) A vedação da Auto-estrada A4, ao quilómetro 33,500 e suas imediações estava intacta, em ambos os sentidos; (Resp. art. 21º B.I.) Z) No dia 7 de Maio de 2001, a Ré efectuou patrulhas na Auto-estrada A4, designadamente, na zona do quilómetro 33,500; (Resp. art. 22º B.I.) A’) Bem como a Brigada de Trânsito da Guarda Nacional Republicana; (Resp. art. 23º B.I.) B’) E os funcionários da Ré, não detectaram a presença de qualquer animal ou “deficiência” da vedação; (Resp. art. 24º B.I.) C’) Nem foi comunicada à Ré qualquer deficiência na vedação ou a presença de qualquer animal na Auto-estrada, com explicação de que após o embate, a Autora comunicou aos funcionários da Ré Brisa a presença de um javali na Auto-estrada - (Resp. art. 25º B.I.). Fundamentação: Sendo pelo teor das conclusões das alegações do recorrente que, em regra, se delimita o objecto do recurso – afora as questões de conhecimento oficioso – importa saber: - se existe contradição entre as respostas aos quesitos 8º e 21º (itens N) e X) dos factos provados na sentença recorrida); - se a Ré, enquanto concessionária da auto-estrada onde ocorreu o acidente de viação que causou danos à Autora, é civilmente responsável pelo seu ressarcimento. Antes e apenas com o fito de dissipar dúvidas, cumpre esclarecer que, pese embora o facto de a apelante, nas suas alegações, ter transcrito parte de depoimentos de testemunhas – a audiência de discussão e julgamento foi gravada – e ter posto em causa a congruência das referidas respostas aos quesitos, não é caso de apreciar a matéria de facto, nos termos do art. 690º-A do Código de Processo Civil. Sobre o recorrente da matéria de facto impende o ónus a que alude o nº1, daquele normativo – indicar quais os concretos meios probatórios, constantes da gravação que impunham decisão diversa sobre os pontos da matéria de facto, que considera deverem ser reapreciados, por referência ao assinalado na acta nos termos do nº2 do art. 522º-C. O incumprimento desse ónus tem como sanção a rejeição do recurso. No caso em apreço a apelante nem sequer, nas conclusões das alegações, alude a qualquer erro na apreciação dos depoimentos prestados em audiência – o que exprimiria, cumpridos os requisitos legais aludidos, a sua pretensão de ver reapreciados tais depoimentos. Realidade diferente é a alegação de que são contraditórias as respostas aos quesitos que identificou. Havendo contradição entre as respostas é porque contêm factos que, numa perspectiva lógica, se antagonizam, se contrariam, não podendo coexistir, para “explicar” uma certa realidade factual. Desde já cumpre dizer que a acusada contradição entre as respostas ao aos quesitos 8º e 21º não existe. Senão vejamos: Um veículo da autora, como se provou, sofreu um acidente, no dia 7 de Maio de 2001, pelas 23h10, quando circulava pela A4 no sentido ..........-.........., na zona do concelho de .......... . O acidente, que apenas causou danos na viatura, deveu-se ao facto de, imprevistamente, atravessar na via um javali. Ora a Autora alegou vários factos tendentes a demonstrar que o javali teria entrado por um buraco existente na rede de vedação de uma cancela, o que se devia a negligência da Ré. Na resposta ao quesito 8º deu-se como provado que “…existia na rede da vedação uma abertura com cancela em madeira que no dia 8 de Maio de 2001 se encontrava aberta”. Na resposta ao quesito 21º deu-se como provado que “a vedação da Auto-estrada 4 ao quilómetro 33,5000 e suas imediações estava intacta em ambos os sentidos”. Desde logo, há que realçar que o acidente ocorreu no dia 7/5 e no dia 8, ou seja, no dia seguinte, “uma abertura com cancela em madeira se encontrava aberta” perto do local onde a colisão ocorrera. O facto de ter sido no dia seguinte ao do acidente que se notou a existência dessa abertura na cancela em madeira existente na vedação e que as fotografias de fls. 196 e 197, juntas em audiência demonstram, não significa que no dia do acidente a cancela estivesse aberta e que tivesse sido por ali que o javali passou e alcançou a auto-estrada. Não existe, assim, ao nível dos factos, contradição entras respostas; ademais, tendo o acidente ocorrido na noite do dia 7 verifica-se que as fotografias foram tiradas com dia, provavelmente, no dia 8. Abordando a questão de fundo. A problemática da acção e do recurso tem sido objecto de frequente debate jurisprudencial e doutrinal em Portugal, no que concerne ao enquadramento da responsabilidade das concessionárias das redes de auto-estradas, em acidentes que têm a sua similitude com o dos autos, muito embora sejam mais frequentes casos de intrusão de animais de menos porte, como canídeos, gatos e texugos… ao que consta javali a deambular numa auto-estrada portuguesa, cremos ser inédito. A sentença recorrida considerou que a responsabilidade civil da concessionária é de natureza extracontratual e absolveu a Ré do pedido, por ter considerado que, em tal tipo de responsabilidade, compete ao lesado a prova da culpa do autor da lesão – nos termos do art. 483º, nº1, do Código Civil – tendo ainda considerado que a obrigação que sobre a Ré impende, de vedar em toda a sua extensão a auto-estrada de que é e concessionária e que é aplicável a regra do art. 493º, nº1, do Código Civil – preceito relativo a actividades perigosas e ao dever de vigilância do responsável com elas envolvido. E, considerando que aquele preceito estabelece uma inversão do ónus de prova quanto ao requisito culpa, competindo, por isso, à Brisa provar que agiu sem culpa, acabou por concluir que a Ré demonstrou que o acidente não ocorreu por culpa sua, com fundamento nos factos considerados provados em X), Z), A´, B´, e C´ da sentença. Perfilhou-se, assim, a tese da responsabilidade e extracontratual com a aplicação da norma do art. 493º do Código Civil. Já a apelante considera que o regime jurídico aplicável é o da responsabilidade contratual e, no caso, a Ré não ilidiu a presunção de culpa que sobre si impendia, nos termos do art. 799º, nº1, do Código Civil, razão pela qual deve ser condenada a indemnizar. O tema tem sido objecto de análise, como dissemos, sendo dos mais divulgados dois Estudos do Professor Sinde Monteiro; o primeiro, in RLJ 131, em comentário ao Ac. do STJ, de 12.11.1996 de cuja solução divergiu, considerando que a regras da responsabilidade civil extracontratual não dão solução cabal ao problema, sustentando existir entre a concessionária e o utente uma relação jurídica com eficácia protectora de terceiros, existindo ou não pagamento de portagem, considerando o reputado Professor, que é também aplicável a regra do art. 493º, nº1, do Código Civil – RLJ Ano 132, págs. 95/96. Na RLJ, Ano 133, págs. 27 e seguintes, o referido Professor voltou ao tema, agora comentando o Ac. do STJ, de 17.2.2000 e uma sentença do Tribunal de Santo Tirso, defendendo a existência de um contrato a favor de terceiro, mesmo não havendo lugar ao pagamento de portagem, continuando a defender a aplicabilidade do normativo do art. 493º, nº1, do Código Civil – RLJ, Ano 133, pág.66. O Ex.mo Conselheiro Dr. Cardona Ferreira na obra “Acidentes de Viação em Auto-Estradas - Casos de Responsabilidade Civil Contratual?” – Coimbra Editora – Maio de 2004 – defende, nove conclusões do seu Estudo – págs. 88 e 89 – que sintetizamos, transcrevendo algumas: “No contexto da actual normatividade dos contratos de concessão de auto-estradas, com ou sem pagamento de portagem pelos cidadãos utentes, a situação destes contratos, assumidamente no interesse e a favor dos utentes, apresentam-se como contratos a favor de terceiros inicialmente indeterminados. A individualização do terceiro concreto realiza-se, pela via da expressa ou tácita, conforme se concretiza através do pagamento de portagem que, chamando-se taxa, é preço do uso da auto-estrada com segurança, comodidade e velocidade legal, ou através da entrada na auto-estrada se não houver portagem […]. […] Assim, acontecendo um acidente atribuível a qualquer anormalidade da zona estradal, por cuja vigilância a concessionária é responsável, esta sê-lo-á perante o lesado (terceiro concreto, utente), isto é, perante quem sofra danos decorrentes desse acidente, contratualmente … E, portanto, a concessionária tem ónus de prova de que agiu diligência exigível e de que a ocorrência nada tem a ver com eventual culpa da concessionária. Claro que todo o regime legal da responsabilidade civil contratual é, aqui, aplicável...”. (sublinhámos). Posteriormente à edição do Estudo de Cardona Ferreira, o Professor Menezes Cordeiro publicou a obra “Igualdade Rodoviária e Acidentes de Viação nas Auto-Estradas - Estudo de Direito Civil Português” – Almedina - Setembro de 2004. Propondo-se uma abordagem metodológica em ordem a saber se ao regime de concessão de auto-estrada são configuráveis – [cfr. pág. 45]: - um contrato inominado entre a Brisa e os utentes; - uma responsabilidade por coisas à guarda (493º, nº1, do Código Civil); - uma eficácia protectora de terceiros; - um contrato a favor de terceiros. Depois de considerar ser inaplicável o regime do contrato inominado, ponderando que as portagens, onde as há, são taxas e não preço pela utilização da via, afirma – pág. 47: “O grande óbice da teoria contratual reside na sua total inadequação ao Direito positivo. Defronta a igualdade rodoviária e apresenta-se como não-isenta: vê tudo pelo prisma do utente ou de alguns utentes, esquecendo que qualquer contrato tem duas partes”. Quanto à aplicabilidade do art. 493º, nº1, do Código Civil, defendida pelo Professor Sinde Monteiro, considera o preceito de “aplicação muito limitada”. Quanto ao contrato a favor de terceiro, depois de afirmar que tal regime surge defendido pelo Conselheiro Cardona Ferreira (na obra a que aludimos) considera: “Com o devido respeito, o regime do contrato a favor de terceiro parece-nos francamente inaplicável. Um contrato a favor de terceiro visa atribuir uma prestação a quem não seja parte. No contrato de concessão, não encontramos tal ideia. Aparecem deveres de diversa ordem, mas sempre em moldes genéricos. A Brisa deve manter o piso em boas condições, deve vedar as auto-estradas e deve realizar patrulhas, por exemplo, haja ou não “terceiros” em trânsito. É certo que a concessão visa beneficiar terceiros: condutores, passageiros, donos de mercadorias e empresas de transportes; mas visa, também, beneficiar os utentes das estradas nacionais, que ficarão descongestionadas e os moradores das nossas cidades e vilas, que ficarão livres do tráfego de longo curso […]. No contrato a favor de terceiro, este adquire o direito à prestação independentemente da aceitação […]. As opções da declaração expressa de aceitação, pelo pagamento da portagem e da declaração tácita, pela penetração na auto-estrada, sempre salvo o devido respeito, são ficciosas. O contrato a favor de terceiro persegue a ideia, tida como vantajosa, da presunção de culpa contra a Brisa. Mas ela limita a protecção: havendo acidente imputável à Brisa, quem é protegido? Aparentemente, apenas o condutor […]. O princípio da igualdade rodoviária parece-nos, por fim, incompatível com soluções contratuais…”. Depois de analisar, criticamente, e de concluir pela inaplicabilidade das soluções jurídicas apreciadas, o Estudo propõe A Solução Justa – págs. 51 a 53. Assim, em resumo, defende-se que a Brisa deve ser responsabilizada sempre que se mostre. - não cumpriu os deveres que sobre ela impendiam; - daí resultando danos para as pessoas que tais deveres visavam tutelar. Damos por assente que a lei não contempla qualquer hipótese de imputação objectiva. Tão-pouco se configura, aqui, um contrato de garantia, pelo qual a Brisa assumisse os riscos que possam tolher um automobilista […]. Agora: se se demonstrar que, com violação da Base XXII/5,1 a), a vedação não existia e que, com probabilidade razoável (cf. artigo 563 °, do Código Civil), por aí entrou um canídeo, tendo daí decorrido um acidente, sem que o condutor o pudesse evitar, já haverá responsabilidade. O ónus da prova compete ao lesado, podendo ser enfrentado com razoabilidade […]”. Depois de se aludir ao DL. 294/97, de 24.10, que aprovou as bases da concessão à Brisa e afirmar que essas bases “visam a tutela dos utentes, são normas de protecção”, para os efeitos do art. 483º, nº1, “disposição legal destinada a proteger interesses alheios...”, afirma que a responsabilidade é aquiliana cabendo ao interessado fazer prova dos seus elementos constitutivos”. “O interessado terá de fazer prova: - que a Brisa não cumpriu algum ou alguns dos seus deveres (a própria ocorrência (res ipsa loquitur): por exemplo: um buraco duradouro no asfalto; noutros, será mais difícil, mas não impossível: por exemplo: buraco na vedação; - que, em consequência provável desse incumprimento, houve danos (causalidade); - que, no seu, conjunto, há circunstâncias que permitam um juízo de censura (culpa). Perante isso, além de questionar a prova feita, poderá a Brisa: - demonstrar, da sua parte, alguma causa de justificação ou de escusa: por exemplo: uma multiplicação inesperada de acidentes que a impediram de intervir ou um caso fortuito ou de força maior; - exibir a culpa concorrente do lesado: por exemplo: perante um cão, guinou para cima de outro carro, quando a boa condução exigiria mesmo o atropelamento do animal, como melhor forma de controlar o veículo e não pôr pessoas em perigo; - demonstrar concurso de causas: por exemplo, o cão surge perto de uma área de serviço frequentada por caçadores; aí, mesmo a não haver vedação, ficaria uma dúvida razoável sobre a proveniência do animal, absolvendo-se a Brisa. Insistimos em que estes princípios são, em geral, os concretizados pelos nossos Tribunais superiores, ainda que sob linguagens diversas.” (destaque e sublinhados nossos). Perfilha, assim, o reputado civilista, a tese de que se trata de responsabilidade extracontratual, ficando o ónus da prova da culpa a cargo do lesado – art. 483º, nº1, do Código Civil – inexistindo, pois, qualquer presunção de culpa, como sucederia no contexto da responsabilidade contratual – art. 799º, nº1, do Código Civil. À data dos factos dos autos, o contrato de concessão constava do Anexo ao DL 294/97, de 24/10, cuja Base XLIX, nº1º, determina serem da responsabilidade da concessionária todas as indemnizações que, nos termos da lei, sejam devidas a terceiros em consequência de qualquer actividade decorrente da concessão. Relevam mais as seguintes normas: Base XXII - 5 - As auto-estradas deverão ainda ser dotadas com as seguintes obras acessórias: a) - Vedação em toda a sua extensão, devendo ser as passagens superiores em que o tráfego de peões seja exclusivo ou importante também vedadas lateralmente em toda a extensão. Base XXXIII - 1 - A concessionária deverá manter as auto-estradas que constituem o objecto da concessão em bom estado de conservação e perfeitas condições de utilização, realizando, nas devidas oportunidades, todos os trabalhos necessários para que as mesmas satisfaçam cabal e permanentemente o fim a que se destinam, em obediência a padrões de qualidade que melhor atendam os direitos do utente. Base XXXVI - 2 - A concessionária será obrigada, salvo caso de força maior devidamente verificado, a assegurar permanentemente, em boas condições de segurança e comodidade, a circulação nas auto-estradas, quer tenham sido por si construídas, quer lhe tenham sido entregues para conservação e exploração, sujeitas ou não ao regime de portagem. Base XLVII - 1 - A concessionária fica isenta de responsabilidade por falta, deficiência ou atraso na execução do contrato quando se verifique caso de força maior devidamente comprovado. 2 - Para os efeitos indicados no número anterior, consideram-se casos de força maior unicamente os que resultam de acontecimentos imprevistos e irresistíveis cujos efeitos se produzem independentemente da vontade ou das circunstâncias pessoais da concessionária, nomeadamente actos de guerra ou subversão, epidemias, radiações atómicas, fogo, raio, graves inundações, ciclones, tremores de terra e outros cataclismos naturais que directamente afectem os trabalhos da concessão. No Acórdão do STJ, de 14.10.2004, in www.dgsi.pt – Proc.04B2885 – de que foi Relator o Ex.mo Conselheiro Oliveira Barros – que perfilhou a tese da responsabilidade aquiliana [Também consideraram tal tese os Acórdãos do STJ, de 30.4.2002 – Proc. 02A635 – Relator Reis Figueira; de 12.11.1996; de 20.5.2003 – Relator Ponce de Leão – Proc. 03A1296. No sentido de que se trata de responsabilidade contratual o Acórdão, também do STJ, de 22.6.2004 – Relator Afonso Correia – Proc. 0411299. Todos acessíveis in www.dgsi.pt Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça], pode ler-se a certo trecho: “Estranhos ao contrato de concessão, os utentes da via não podem exigir da Brisa o cumprimento das obrigações assumidas naquele contrato, nomeadamente a obrigação de – “assegurar permanentemente, em boas condições de segurança e comodidade, a circulação nas auto-estradas”, conforme Base XXXVI, nº2, do Anexo ao DL 294/97. Deste preceito resulta para a entidade concessionária uma obrigação legal de manutenção das auto-estradas em bom estado de conservação, de segurança e comodidade de circulação, para cujo cumprimento se estabelece um conjunto de regras de construção, de reparação e de vigilância. Em caso de inobservância das mesmas só, no entanto, o Estado pode exigir o seu cumprimento e aplicar as sanções pecuniárias previstas no Anexo aludido, não se estipulando nele qualquer responsabilidade da concessionária perante terceiros utentes dessas vias. Em relação a estes, está-se, na expressão do nº 1 do art. 483º, perante uma – disposição legal destinada a proteger interesses alheios – e, assim, no âmbito da responsabilidade civil extracontratual. Tem-se também entendido que a presunção instituída no art.493º, nº1º, se reporta apenas a danos causados pelo imóvel e não no imóvel”. No Acórdão do STJ, de 12.11.1996 – Proc. 96A373 – de que foi Relator Cardona Ferreira, concluiu-se: “1. Não evidenciada situação de responsabilidade objectiva ou de inversão de ónus da prova, o lesado tem ónus de prova de factos que permitam imputar o evento, a título de culpa, ao alegado lesante. 2. Não se pode confundir o evento com a imputação do mesmo. 3. O aparecimento de um cão numa auto-estrada, à luz da lei portuguesa, só por si, sem o mínimo indício fáctico da razão desse aparecimento, não permite assacar responsabilidade à “Brisa”, mormente quando nada nos diz que a “Brisa” não cumpriu o que lhe competia, designadamente quanto a vedações e vigilância exigíveis”. Perfilhamos a tese, que nos parece maioritária na Jurisprudência do STJ, de que a relação jurídica existente entre os utentes das auto-estradas concessionadas à Brisa é de configurar como responsabilidade extracontratual. No quadro da responsabilidade civil extracontratual, a factualidade integrante do direito à indemnização traduz-se, de acordo com o disposto no art. 483º do Código Civil, na verificação dos seguintes pressupostos: a) existência de um facto voluntário; b) sua ilicitude; c) culpa; d) existência de dano e de um nexo causal entre o facto e o dano – cfr. Mário Júlio de Almeida e Costa, “Direito das Obrigações”, 8ª edição, pág. 501, e Luís Manuel Teles de Menezes Leitão, “Direito das Obrigações”, Vol. I, 2ª edição, pág. 271. Importa, então, indagar, à luz dos factos provados, se a Autora fez a prova dos pressupostos de que depende a obrigação de indemnizar que, em caso de violação do direito da Autora, impenderia sobre a Ré. O insólito aparecimento do javali, de noite, na auto-estrada, poderá ser da responsabilidade da Ré se se provar que tal facto aconteceu por culpa sua, no caso por omissão de dever de vigilância da auto-estrada, não só da via em si mesma, como também das vedações que parece ser o que está em causa. Como se sabe – “As simples omissões dão lugar à obrigação de reparar os danos, quando, independentemente dos outros requisitos legais, havia, por força da lei ou do negócio jurídico, o dever de praticar o acto omitido”. – art. 486º do Código Civil. Seguindo a lição de Menezes Cordeiro, obra citada, cumpre ao lesado a prova de que a Brisa não cumpriu algum dos seus deveres que visam a protecção dos utentes – “normas de protecção” – art. 483º, nº1, do Código Civil – que houve danos em função de tal omissão (causalidade) e que os factos demonstram ter agido com culpa. “A culpa exprime um juízo de reprobabilidade pessoal da conduta do agente: o lesante, em face das circunstâncias específicas do caso, devia e podia ter agido de outro modo. É um juízo que assenta no nexo existente entre o facto e a vontade do autor. Pode revestir duas formas distintas: o dolo — também denominada algumas vezes má fé — e a negligência ou mera culpa — culpa em sentido restrito” – Antunes Varela, “Das Obrigações”, 6ª edição, I, 536. Ora, competindo à Brisa o dever de patrulhar a auto-estrada não se pode considerar que, se um automobilista durante a sua viagem não visiona a existência de patrulhamento, que o dever de vigilância se acha violado, como a Autora insinua. Tal dever pode ser exercido de variadas formas. Provou-se que, no dia seguinte ao do acidente, a uma distância não concretamente apurada, mas entre 100 a 500 metros do quilómetro 33,500 da Auto-estrada A4 – local onde apareceu o javali – existia na rede de vedação uma abertura com uma cancela em madeira que se encontrava aberta. Este facto se tivesse ocorrido no dia do acidente poderia revelar negligência da Ré, quanto à manutenção das vedações da auto-estrada, pois, segundo as regras da experiência comum, plausível seria que por aí tivesse passado o javali – como se vê das fotografias (que não foram tiradas no dia do acidente) existe uma cancela da vedação, em madeira, aberta. Mas pelo facto de estar aberta no dia seguinte poder-se-á concluir que, aquando do acidente, que fora por ali que passara o javali? Quando foi aberta a cancela? Foi por ela que o animal alcançou a auto-estrada? Perguntas que ficam sem resposta e que, não estando em causa a presunção de culpa do devedor, “in casu”, a Ré, não podemos considerar, na ausência de prova, que deve ser responsabilizada. O facto de se ter provado que era do conhecimento da Ré a existência, na rede da vedação, de uma abertura com cancela em madeira – resposta ao quesito 10º – é insuficiente para a responsabilizar, porquanto não se provou que tal conhecimento fosse anterior ao acidente, nem tão pouco, se foi por ali que o javali transpôs a vedação; por outro lado, a resposta ao quesito, não primando pela clareza (pode até significar um facto óbvio – que as vedações têm aberturas que são as cancelas como demonstram as fotografias), já que na cancela inexiste qualquer abertura, ou seja, a rede da cancela que as fotografias mostram aberta não contém qualquer buraco. Uma coisa é o buraco na rede, seja ela da cancela ou não, outra coisa é a existência de uma cancela (com rede) mas aberta, escancarada. Aliás, a rectificação pretendida pela Autora, respeitante à reformulação do quesito 8º, parece revelar que se pretendia aludir a abertura na rede da vedação, e que essa abertura era uma cancela que se encontrava aberta. Ora, a existência das cancelas é imprescindível para a função de limpeza e acesso, sendo evidente que devem estar fechadas não permitindo a passagem. Tendo-se provado que a vedação da Auto-estrada A4, ao quilómetro 33,500 e suas imediações, estava intacta, em ambos os sentidos; que no dia 7 de Maio de 2001, a Ré efectuou patrulhas na Auto-estrada A4, designadamente, na zona do quilómetro 33,500; bem como a Brigada de Trânsito da Guarda Nacional Republicana e os funcionários da Ré, não detectaram a presença de qualquer animal ou “deficiência” da vedação; nem foi comunicada à Ré qualquer deficiência na vedação, ou a presença de qualquer animal na Auto-estrada, temos de concluir que a Ré não é passível de censura pelo evento danoso. Assim, não tendo sido feita a prova de um dos requisitos da obrigação de indemnizar, no âmbito da responsabilidade extracontratual – actuação culposa, a título de negligência, que é o que está em causa – não pode a Ré ser condenada nos termos peticionados pelo apelante. Decisão: Nestes termos, acorda-se em negar provimento ao recurso, confirmando-se a sentença recorrida. Custas pela Autora/apelante. Porto, 13 de Fevereiro de 2006 António José Pinto da Fonseca Ramos José da Cunha Barbosa José Augusto Fernandes do Vale |