Acórdão do Tribunal da Relação do Porto | |||
Processo: |
| ||
Nº Convencional: | JTRP000 | ||
Relator: | NETO DE MOURA | ||
Descritores: | DIREITO DE QUEIXA DENÚNCIA LEGITIMIDADE DO MINISTÉRIO PÚBLICO EXTENSÃO DO DIREITO DE QUEIXA CONSTITUIÇÃO DE ASSISTENTE | ||
![]() | ![]() | ||
Nº do Documento: | RP20131016150/10.5PBCBR.P1 | ||
Data do Acordão: | 10/16/2013 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
![]() | ![]() | ||
Meio Processual: | REC PENAL | ||
Decisão: | PROVIDO | ||
Indicações Eventuais: | 1ª SECÇÃO | ||
Área Temática: | . | ||
![]() | ![]() | ||
Sumário: | I - Não obstante o seu conteúdo contender com o próprio direito substantivo, na medida em que a sua teleologia e as intenções político-criminais que lhe presidem têm ainda a ver com condições de efectivação da punição, a queixa, em si mesma, é exterior ao facto punível, aos seus pressupostos materiais, sendo unanimemente entendida como pressuposto ou condição de procedibilidade. II – Nos crimes de natureza semi-pública e/ou de natureza particular, o tempestivo exercício do direito de queixa pelo respectivo titular constitui uma verdadeira condição de legitimação do Ministério para promover o processo, instaurando o inquérito e assim iniciando a investigação relativa aos factos que lhe foram transmitidos, sem prejuízo dos casos excepcionais legalmente previstos. III – No procedimento por crimes que têm essa natureza, o conteúdo da queixa define o objecto da investigação, que só poderá ser ampliado com novos factos, cujo procedimento criminal também dependa de queixa, se entre estes e os iniciais se verificar conexão ou identidade substantiva, o mesmo é dizer, desde que, neste caso, se mantenha no âmbito da situação denunciada e de protecção do mesmo bem jurídico. IV - A queixa pode considerar-se uma forma de denúncia, da qual, no entanto, se distingue porque enquanto esta é uma mera declaração de ciência (simples transmissão do facto com eventual relevância criminal a quem tem legitimidade para promover o processo penal), a queixa exige, também, uma manifestação de vontade (por parte do respectivo titular, normalmente o ofendido) especificamente dirigida a que o agente seja perseguido criminalmente. V – Essa manifestação de vontade tem que dar a perceber a intenção inequívoca do titular de que tenha lugar procedimento criminal por certo facto, podendo considerar-se como tal o pedido de intervenção no processo como assistente por parte do titular do direito de queixa formulado em momento imediatamente subsequente à verificação do facto. | ||
Reclamações: | |||
![]() | ![]() | ||
Decisão Texto Integral: | Processo n.º 150/10.5 PBCBR.P1 1.º Juízo do Tribunal de Instrução Criminal do Porto Relator: Neto de Moura Acordam, em conferência, na 1.ª Secção (Criminal) do Tribunal da Relação do Porto I – Relatório No âmbito do processo comum que, sob o n.º 150/10.5 PBCBR., correu termos pelo DIAP do Porto, o Ministério Público deduziu acusação contra B… por factos susceptíveis de integrar a prática de um crime de ofensa à integridade física simples previsto e punível pelo art.º 143.º, n.º 1, do Código Penal, mas determinou o arquivamento dos autos relativamente a factos hipoteticamente subsumíveis à previsão incriminadora do artigo 153.º, n.º 1, do mesmo diploma legal. C…, admitido a intervir nos autos como assistente, não se conformou com esse despacho de arquivamento e veio requerer a abertura de instrução, com os fundamentos que expôs no requerimento de fls. 285 e segs. Realizados os actos instrutórios julgados necessários e pertinentes, após o obrigatório debate instrutório, foi proferida decisão instrutória de não pronúncia (fls. 430) relativamente àqueles factos. Ainda inconformado, o assistente interpôs recurso dessa decisão para este Tribunal da Relação, com os fundamentos explanados na respectiva motivação, que condensou nas seguintes conclusões (em transcrição integral): 1. “O conteúdo de fls. 58 constitui um aditamento à queixa-crime inicialmente apresentada nos presentes autos e, por isso, deve considerar-se ter existido uma manifestação de vontade suficientemente inequívoca de ver o recorrido perseguido criminalmente pelos factos aí denunciados. 2. O aditamento de fls. 58 cumpre todos os requisitos previstos nos artigos 243° e 246° do CPP para o MP, obrigatoriamente, promover o processo criminal e, agora, o Mmo. Juiz de instrução criminal pronunciar o arguido, ora recorrido, pelos factos constantes do RAI objeto dos presentes autos que consubstanciam a prática de um crime de ameaça, p.p. pelo artigo 153° do CPP; 3. Levando até em consideração que os atos instrutórios praticados nos vertentes autos de instrução, mormente as declarações das testemunhas E… e F…, com redução a auto a fls. — dos autos determinam a existência de indícios suficientes da prática do referido crime de natureza semipública, pelo que, reforça-se, devia o Mmo. Juiz “a quo” ter proferido o competente e legalmente admissível despacho de pronúncia. 4. Mesmo que assim se não entendesse, o MP, em sede de inquérito, não cumpriu o disposto no Provimento n° 7/2009, de 27/4, e com tal omissão prejudicou claramente a posição processual do ora recorrente, o que sempre constituiria um vício gerador de nulidade absoluta, por força do disposto na alínea b) do artigo 119° do CPP ou, pelo menos, de nulidade relativa por imposição da alínea d) do n° 2 do artigo 120° do CPP. Pretende, pois, que o despacho em crise seja revogado e substituído por outro que pronuncie o arguido pelo crime de ameaça. * Na primeira instância, o Ministério Público apresentou extensa e mui douta resposta à motivação do recurso, que sintetizou nas seguintes conclusões (transcrição integral):Sobre a queixa 1. Nos crimes de natureza semipública, a queixa por parte do titular do direito respetivo, constitui conditio sine qua non da legitimidade do Ministério Público para promover o processo penal — art. 49. n.º 1, do CPP (hoc sensu, o Ac. da RP de 27.06.2007). 2. A queixa, na lição dos Profs. Figueiredo Dias e Germano Marques da Silva (Curso de Processo Penal, III, 2.ª ed., págs. 55 a 59) é o requerimento, feito segundo a forma e no prazo prescritos, através do qual o titular do respectivo direito (em regra, o ofendido) exprime a sua vontade de que se verifique o procedimento penal por um crime cometido contra ele ou contra pessoa com ele relacionada. (na jurisprudência, Acs. da RP de 28.10.2009 e de 21.03.2012 (proc. n.º 803/09.0TDPRT); da RC de 15.03.2006 (proc. n.º 4349/05). 3. Conquanto a queixa não esteja sujeita a forma, é exigível que nela conste uma qualquer referência, simples que seja, de expressão de vontade de agir processualmente - Acs. da RE de 20.11.2012 — proc. n.º 1.831/10.9TAPTM; de 18.09.2012 — proc. n.º 1445/10.3PBFAR; de 24.06.2010 — proc. n.º 321/08.4GCFAR; Acs. do STJ, de 30/10/2002 - proc. 1862/O2-3“, em SASTJ, n.º 64, 90 - e de 06.11.2002 — in Sumários dos Acs. do STJ n.º 65, 58. 4. Não integra o conceito de queixa, como “pressuposto de legitimação para a instauração do procedimento criminal, relativamente a certo tipo de crimes (semi-públicos e particulares... e destina-se a dar início ao processo de averiguação criminal” - Ac. da RP de 27.06.2007 - um aditamento aos autos, no qual apenas consta que determinado sujeito em relação ao qual terão sido praticados factos eventualmente passíveis de integrar o crime de ameaça, solicita a autoridade policial “que se identifique o arguido”. 5. Desta forma, não vale nem equivale a queixa, o aditamento constante de fls. 58 dos autos, onde o ofendido não manifesta a vontade de procedimento criminal relativamente aos factos em relação aos quais apenas solicita à autoridade policial que identifique o arguido. 6. Dependendo o crime p. p. pelo art. 153.º n.º 1 do C. Penal de queixa — n.º 3 da mesma norma — o Ministério Público carecia de legitimidade para, em relação a tal ilícito, promover o processo penal — art. 49.º n.º 1, do CPP. * Sobre a nulidade insanável taxada no art. 119.º, b), do CPP 7. Só os vícios dos actos processuais podem ser nulidades ou irregularidades, conforme dispõe art. 118. n.º 1 e 2.º, do Código de Processo Penal. 8. As nulidades absolutas, insanáveis ou de conhecimento oficioso são as que estão previstas no artigo 119. do Código de Processo Penal, e fora dele, em normas que especialmente as prevejam - art. 119.º, in fine. As nulidades são típicas - Acs. da RE de 01.07.2008 (proc. n.º 1548/08.1) e de 20.01.2009 (proc. n.º 3003/08.1) - e estão sujeitas ao princípio da legalidade, no sentido de que para o ato padecer de nulidade é necessário que a lei processual o diga expressamente — Ac. da RG de 13.09.2010 (proc. n.º 431/10.08GAFL). 9. A nulidade insanável da falta de promoção do processo pelo MP nos termos do art. 48.º, prevista na al. b) do art. 119.º, ambos do CPP, deve ser conhecida oficiosamente e declarada em qualquer fase do procedimento (enquanto este se mantiver, ou seja, até ao trânsito em julgado da decisão final, enquanto sobre ela não se formar caso julgado). 10. Todavia, o dever de promoção do processo penal pelo MP tem de respeitar a natureza semipública ou particular dos crimes (arts. 49.º e 50.º, do CPP), o que equivale que o predito princípio está subordinado ao da legalidade, na dupla aceção de que implica exigência de uma lei que preveja os diversos actos processuais, as diversas formas de processo, a tramitação essencial do processo penal. Trata-se duma exigência de legalidade, no sentido mais elementar do termo. Por outro lado, impulso processual não é completamente livre ou livre ou arbitrário. Encontra-se antes vinculado, nomeadamente, a lei. Neste sentido o processo tem de ser promovido obrigatoriamente. Todavia, quando a natureza dos crimes é semi-pública ou particular identifica-se um momento de oportunidade quanto ao início do procedimento, em função de uma valoração que não depende de decisões da entidade pública que tem o processo a seu cargo. Nestas situações, a decisão sobre o início do processo fica a cargo do ofendido, isto é, caberá ao ofendido do crime decidir se apresenta ou não queixa para dar início ao procedimento criminal. E, a partir do momento em que o ofendido apresenta a queixa a investigação será feita em obediência ao princípio da legalidade. 11. Para Souto de Moura (Inexistência e Nulidades Absolutas em Processo Penal, CEJ, Textos, 1990-91, p. 12 e Inquérito e Instrução, Jornadas de Direito Processual Penal, p. 118), «A abertura da fase de inquérito é obrigatória em processo comum por força do n.º 2 do art. 262.º, constituindo nulidade insanável a falta de inquérito nos casos em que a lei determinar a sua obrigatoriedade) e integra a nulidade da alínea d) do artigo 119.º d) do Código de Processo Penal a completa falta de inquérito em processo comum. Igualmente, para Maia Gonçalves — CPP, ant., p. 1996, p. 250 e CPP, ant., 1999, p. 310 - constitui nulidade insanável (art. 119.º, al. d)) a total falta de inquérito, rectius, a omissão da prática de quaisquer actos de inquérito 12. Assim, porque não foi exercida queixa pelo ora recorrente em relação aos factos passíveis de subsunção à previsão e punição do art. 153.º n.º 1, do C. Penal, tal eximia o MP, em face dos princípios da oficialidade e da legalidade, de qualquer dever de promover o procedimento. Mais, sem aquele pressuposto de procedibilidade, o procedimento é legalmente inadmissível, por falta da referida condição de procedibilidade, pelo que não podia o MP, sob pena de violação dos princípios relativos a promoção do processo, dirigir a investigação em relação ao mencionado crime. 13. Logo, não está concretizada a nulidade prevista na al. b) do art. 119.º do CPP, que apenas pode resultar de violação ou inobservância das disposições da lei do processo e só ocorre quando tal for expressamente cominado na lei — art. 118.º, n.º 1/CPP. * Sobre a nulidade prevista na al. d) do n.º 2, do art. 120.º do CPP 14. Para que o juiz conheça das nulidades sanáveis (e das irregularidades), elas têm de ser arguidas — arts. 120.º e 123.º, respectivamente, do CPP - pelo interessado, que é o titular do direito protegido pela norma violada, isto é, elas têm de ser suscitadas ao juiz — p. ex., o Ac. da RP de 4-05-2011 (proc. n.9 934/10.4TASTS-EB.P) -. 15. A conjeturada nulidade depende de arguição (não é de conhecimento oficioso) - art. 120.º n.º 1 e 2 do CPP — pelo interessado, in casu, pelo arguido, no interesse de quem foi estabelecida a norma jurídica violada (ou pelo Ministério Público, em virtude do seu estatuto de defensor da legalidade (art. 219.º n.º 1 da CRP e 1.º da Lei n.º 60/98, de 27 de Agosto) — João Conde Correia, in Contributo Para A Análise Das Nulidades Processuais Penais, B. F. D., STVDIA IVRUDICA, n.º 44, p. 172. 16. As nulidades dependentes de arguição estão sujeitas (pela lei estabelece) a um regime ou terminus de prazo peremptório para a sua arguição, para que o tribunal delas possa conhecer: terão que ser arguidas pelos interessados na anulação, nos termos do art. 120.º e 121.º; se o não forem, verificar-se-á a sanação, ficando o acto válido. 17. No caso, a nulidade deveria ter sido invocada até ao encerramento do debate instrutório - art. 120.º n.º 3, al. c), do CPP. Não o tendo sido, considera-se sanada, em virtude da tolerância da ordem jurídica que, apesar da persistência formal do vício, tutela as consequências da actividade desenvolvida: o acto viciado torna-se inatacável e os seus efeitos ficam consolidados independentemente da conduta daquele. 18. Acresce que, para haver recurso de um acto decisório judicial —art. 97.º n.º 1, als a) e b) e n.º 2, do CPP- é necessário que o recurso tenha um objecto, ou seja, que haja uma decisão dele passível, in casu e sempre uma decisão proferida, quer o recurso seja sobre a questão sobre que incidiu a decisão recorrida, quer a própria decisão recorrida - entre outros, o Ac. do STJ de 25.01.2006 — proc. n.º 3468/05 — 3.ª e o Ac. da RE de 17.03.2009 — proc. n.º 2828/08-1. 19. Podendo definir-se o interesse em agir, em termos de processo penal, como «o interesse processual, a necessidade deste meio de impugnação para defender um seu direito»- Ac. do STJ de 7.12.1999 (proc. n.º 1081/99, Acs. STJ, VII, 3, p. 229 -, na necessidade de usar o processo, de instaurar ou fazer prosseguir a acção, quando se encontra numa situação de carência que necessita da intervenção dos tribunais — Ac. do STJ de 16.05.2002 (proc. n.º 1672/02-5 — na necessidade de apelo aos tribunais — Ac. do STJ de 18.10.2000 (proc. n.º 2116/00-3 — ou, como salientou o Ac. do STJ de 3.10.2002 (proc. n.º 1532/02-5) “A necessidade deste requisito, interesse em agir, é imposta pela consideração de que o tempo e a actividade dos tribunais só devem ser tomadas quando os direitos careçam efectivamente de tutela, para defesa da própria utilidade dessa actividade, e de que é injusto que, sem mais, possa solicitar tutela jurisdicional”; “No domínio do processo penal, a legitimidade para recorrer é uma posição de alguém dentro das categorias previstas no art. 401.º, n.º 1, do CPP (em regra um sujeito processual) que, confrontado com uma decisão judicial, lhe permite impugnar tal decisão por via de recurso" - Ac. STJ de 29 de Junho de 2005, Proc. 2041105-3, Rel. Silva Flor -. 20. Por conseguinte, parece-nos que o recorrente não tem nem legitimidade para recorrer nem interesse em agir, já que recorre de algo que não existe, de uma decisão que não foi proferida, que não atendeu nem denegou a sua pretensão, pelo que não há, pura e simplesmente, decisão que tenha apreciado a pretensão do sujeito/assistente, face ao que a questão da substituição da decisão recorrida por outra não pode colocar-se: não há, por conseguinte, interesse em agir. Logo, não tendo sido prejudicado por decisão nenhuma, ou seja, uma decisão judicial (passível de recurso), não tem legitimidade para recorrer - art. 401.º n.º 1, al. b), do CPP — nem carecendo de tutela jurisdicional, não tem qualquer interesse em agir — art. 401.º, n.º 2, do mesmo diploma legal. 21. Termos em que, quer por a nulidade relativa, a projectada na al. d) do n.º 2 do art. 120.º, do CPP, estar sanada por não ter sido tempestivamente suscitada, quer porque não existiu decisão sobre a questão, não se perfectibiliza objecto/decisão passível de recurso, pelo que o tribunal ad quem deve rejeitar este segmento recursivo, nos termos das disposições conjugadas dos art. 414.º, n.º 2, — falta do pressuposto processual interesse em agir, que é uma das condições necessárias para recorrer — e 420.º, n.º 1, al. b) — ambos do CPP- Ac. da RP de 08.02.2012 (proc. 1947/11.4JAPRT). * Sobre a nota final Ou Sobre a inadmissibilidade legal da instrução 22. O despacho que admitiu a instrução não faz caso julgado, nem sequer formal — Acs. da RP de 14.01.2004 - proc. n.º 0212932 - de 13.04.2005 - proc. n.º 0314302 — de 20.10.2010 - proc. n.º 739/07.0GDVFR - e de 14.12.2011 - proc. n.º 471/09.TAVRL-. 23. Conjugando a doutrina dos citados Acs. do STJ de 13-01-2011, de 12-03-2009 e de 11.12.2012, mormente com a doutrina dos Ac. da RP de 01.03.2006, a que aderimos integralmente, e do Ac. STJ de 12-03-20009 “No conceito de «inadmissibilidade legal da instrução», haverá, assim, que incluir, além dos fundamentos específicos de inadmissão da instrução qua tale, os fundamentos genéricos de inadmissão de actos processuais em geral”, cremos que a instrução requerida pelo assistente deveria ter sido rejeitada, por inadmissibilidade legal, nos termos do art. 287.º n.º 3, do CPP. 24. Com efeito, a falta de uma condição de procedibilidade, a queixa, relativamente ao crime de ameaça, que a exige — n.º 3 do art. 153.º do C. Penal - sendo patente, logo inculcaria a impossibilidade de produção de despacho de pronúncia, já que, vendo-se o MP impossibilitado de exercer a ação penal, por ilegitimidade adveniente da falta de queixa do ofendido, o assistente não podia suprir essa ilegitimidade e deduzir uma acusação alternativa, consubstanciada no requerimento de abertura de instrução. 25. Na verdade, se “A legitimidade do assistente para formular acusação particular por crimes de natureza particular afere-se pelo conteúdo da queixa apresentada, não tendo o assistente legitimidade para deduzir acusação por factos não vertidos na queixa, ainda que resultem do desenvolvimento do inquérito"- Ac. da RP de 10.11.2010 (proc. n.º 787/03.9GBMTS) — parece-nos que o assistente não tem legitimidade para requerer a abertura de instrução, deduzindo acusação, por factos relativamente aos quais não exerceu, em tempo, a respetiva queixa, de tal dependendo o procedimento — n.º 3 do art. 153.° do C. Penal — pelo que se nos afigura que na decisão instrutória esta instrução requerida pelo assistente/recorrente deveria ter sido rejeitada, nos termos do art. 287.º n.º 3, do CPP. * Em todo o caso, a decisão recorrida, a de não pronúncia do arguido pela prática do crime p. p. no art. 153.º n.º 1, do C. Penal, mostra-se perfeitamente harmonizada com as normas dos art. 113.º n.º 1, 153.°, n.º 1 e 3, ambos do C. Penal; 48.º e 49.º, 118.º n.º 1 e 2, 119.º, al. b), 120.º, n.º 2, al. d) e n.º 3 al. c), 121.°, 262.° n.º 1 e 277.º n.º 1 e 2, todos do CPP, pelo que entendemos que deve confirmar-se o referido despacho de não pronúncia e negar-se provimento ao recurso interposto pelo assistente C…. * Também o arguido apresentou resposta à motivação do recurso, mas apenas para acompanhar e fazer sua a resposta do Ministério Público.* Admitido o recurso, e já nesta instância, na intervenção a que alude o n.º 1 do art.º 416.º do Cód. Proc. Penal, o Ex.mo Procurador-Geral Adjunto emitiu douto parecer em que se pronuncia pela sua rejeição, por manifesta improcedência.* Foi cumprido o disposto no artigo 417.º, n.º 2, do Cód. Proc. Penal, tendo o recorrente apresentado resposta em que reafirma os seus pontos de vista sobre as questões suscitadas no recurso.* Efectuado exame preliminar e colhidos os vistos, vieram os autos à conferência, cumprindo apreciar e decidir. * II - FundamentaçãoSabendo-se que são as conclusões pelo recorrente extraídas da motivação do recurso que, sintetizando as razões do pedido, recortam o thema decidendum (cfr. artigo 412.º, n.º 1, do Cód. Proc. Penal e, entre outros, o acórdão do STJ de 27.05.2010, disponível em www.dgsi.pt/jstj) e, portanto, delimitam o objecto do recurso, assim se fixando os limites do horizonte cognitivo do tribunal de recurso, está evidenciada a importância desse ónus a cargo do recorrente. Como se verifica pela transcrição efectuada, o recorrente pretende que, decorrendo dos autos “a existência de indícios suficientes da prática do referido crime de natureza semipública (…) devia o Mmo. Juiz «a quo» ter proferido o competente e legalmente admissível despacho de pronúncia” (conclusão 3.ª) e, não o tendo feito, que “o despacho em crise seja revogado e substituído por outro que pronuncie o arguido pelo crime de ameaça”. No entanto, os recursos destinam-se a corrigir erros de julgamento, seja em matéria de facto, seja em matéria de direito, ou em ambas. Não podem ter por objecto a apreciação e decisão de questões novas, mas tão só de questões específicas e delimitadas que tenham já sido objecto de decisão anterior pelo tribunal a quo. Ora, o tribunal a quo não decidiu a questão de fundo, não se pronunciou sobre o mérito do requerimento de abertura de instrução (RAI). Recorde-se que o recorrente alegava que havia indícios bastantes de que, nas circunstâncias de tempo, modo e lugar narradas no ponto 1.º do que designou por “instrução/acusação” (pág. 3 do RAI de fls. 285 e segs.), o arguido B… dirigiu-lhe a seguinte afirmação “…queres levar mais nos cornos”, com o que quis causar-lhe “fundado receio de que um mal futuro lhe sucederia, nomeadamente a sua integridade física”. A decisão instrutória proferida (na parte que para aqui interessa) é do seguinte teor: “Apreciemos e desde já o RAI apresentado pelo Assistente C…: Como se infere do mesmo, o requerente sustenta a sua pretensão (acusação/pronúncia) na factualidade contida nos arts, da alínea b) de fls. 287/288. Acontece que, no caso, a apreciação a fazer, não é apurar se o arguido terá ou não praticado os factos que ali lhe são imputados e/ou, se os mesmos são susceptíveis de consubstanciarem o crime de ameaça, mas sim, tal como já ficou explanado no douto despacho de arquivamento, reiterado agora, em conclusões pelo Sr. Procurador, apreciar e, como questão prévia, saber se o Assistente, exerceu atempadamente o seu direito de queixa. Compulsados os autos, constata-se que nem no auto de denúncia de fls. 2 e ss., nem no aditamento constante de fls. 58, o denunciante participou tais factos, nem pediu a instauração do respectivo procedimento criminal. Ora atendendo à natureza do crime, o procedimento criminal, depende de queixa (nº2 do art. 153º, do C. Penal). Como já referimos, tal não aconteceu. Nos termos do disposto no nº 1 do art. 115º, do C. Penal “o direito de queixa extingue-se no prazo de seis meses a contar da data em que o titular tiver tido conhecimento do facto e dos seus autores (…)”. Os factos terão ocorrido em 23/01/2010, na mesma data, o participante deles terá tido também conhecimento, logo, o respectivo direito de queixa, no caso, extinguiu-se em 23/07/2010. Ora, mesmo que se pudesse entender que com a formulação do RAI agora apresentado, poderia ficar colmatada tal falta, atendendo à data da sua apresentação (2/05/2012), há muito que respectivo direito de queixa, se encontrava extinto. A inexistência de apresentação de queixa, quando obrigatória, implica a falta de uma condição de punibilidade, com a consequente, impossibilidade do prosseguimento do respectivo procedimento criminal contra o arguido. Nesta conformidade, ao abrigo do preceituado no art. 308º, do CPP, decide-se não pronunciar o B… e, consequentemente, nesta parte, determinar o arquivamento dos autos”. Como se constata, a Sra. Juíza de instrução começou por delimitar o âmbito da sua apreciação: não iria conhecer da questão de mérito suscitada pelo requerimento de abertura de instrução – se existiam indícios bastantes da prática, pelo arguido B…, daqueles factos e se eles consubstanciavam o crime de ameaça previsto e punível pelo artigo 153.º, n.º 1, do Código Penal (e, portanto, se havia fundamento para levar o arguido a julgamento por esses factos) – mas antes se o assistente exerceu atempadamente o seu direito de queixa, uma vez que de um crime semi-público se trata. Embora as normas relativas ao direito de queixa tenham natureza processual material, é indiscutível que a queixa, em si mesma, é exterior ao facto punível, aos seus pressupostos materiais. Sendo “um pressuposto positivo da punição” (Paulo Pinto de Albuquerque, “Comentário do Código Penal”, 2.ª edição actualizada, 365) cujo conteúdo contende com o próprio direito substantivo, na medida em que a sua teleologia e as intenções político-criminais que lhe presidem têm ainda a ver com condições de efectivação da punição (e por isso o seu regime está previsto, essencialmente, na lei penal substantiva, concretamente, nos artigos 113.º a 116.º do Código Penal), a queixa é, unanimemente entendida como pressuposto ou condição de procedibilidade[1], ou, como também se diz, condição objectiva do exercício da perseguibilidade penal. A punição dos crimes de natureza semi-pública e/ou de natureza particular reclama, desde logo, uma queixa, sendo o exercício do direito pelo respectivo titular pressuposto da admissibilidade do exercício da acção penal, verdadeira condição de legitimação do Ministério para promover o processo, instaurando o inquérito e assim iniciando a investigação relativa aos factos que lhe foram transmitidos[2]. Tendo concluído que o assistente não apresentou, atempadamente, a necessária queixa pelo crime de ameaça, a conclusão deveria ser a de que o Ministério Público carecia de legitimidade para, relativamente a tal ilícito, exercer a acção penal e, portanto, o respectivo procedimento criminal não poderia prosseguir e devia ter sido rejeitado o RAI, por inadmissibilidade legal da instrução. Por conseguinte, não devia ter sido proferida decisão de não pronúncia que, como decorre, com meridiana clareza, do disposto no n.º 1 do artigo 308.º do Cód. Proc. Penal, só se impõe quando não tiverem sido recolhidos indícios suficientes de se terem verificado os pressupostos de que depende a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança. Mas a incorrecção técnica da solução encontrada para a questão da suposta falta de apresentação de queixa pelo respectivo titular é, para o caso, um aspecto de somenos importância. O que importa agora realçar é que, na realidade, não houve, na primeira instância, uma decisão de mérito e por isso o tribunal de recurso não pode pronunciar-se sobre a bondade, ou não, de uma decisão (e, eventualmente, substituí-la por outra) que não existe. É sobre a decisão da questão prévia que o tribunal de recurso pode (e deve) pronunciar-se, confirmando-a, revogando-a ou alterando-a. Assim, são as seguintes as questões a decidir: - se o ofendido (assistente) exerceu, oportunamente, o seu direito de queixa relativamente aos factos que, eventualmente, configuram um crime de ameaça; - se foi cometida uma nulidade absoluta (artigo 119.º, al. b), do Cód. Proc. Penal) ou, quando menos, uma nulidade relativa (artigo 120.º, n.º 2, al. d), do mesmo diploma legal), por não ter sido cumprido o Provimento n.º 7/2009, de 27 de Abril; * O processo penal inicia-se e desenvolve-se mediante impulsos provocados pelos participantes processuais.Começa com a aquisição da notícia do crime pelo Ministério Público, quer directamente ou por comunicação dos órgãos de polícia criminal (que é a situação mais frequente), quer através de denúncia de uma qualquer entidade pública ou de um particular (art.º 241.º do Cód. Proc. Penal). Com a notícia do crime (ou melhor, do facto susceptível de consubstanciar um ou mais crimes), inicia-se a fase de investigação do processo, designada de inquérito, de que o Ministério Público é o dominus, e que irá terminar com um despacho, ou de arquivamento, ou de acusação[3] (art.º 276.º, n.º 1, do Cód. Proc. Penal). Sendo deduzida acusação, a ela pode aderir o ofendido constituído assistente ou aquelas outras pessoas a quem a lei reconhece legitimidade para intervirem como assistentes. Atribui-se, pois, a uma entidade pública, a um órgão do Estado, a competência para investigar a notitia criminis e para, apurando-se que efectivamente foi praticado um crime, submeter o facto criminoso a julgamento (cfr. artigos 219.º da Constituição e 262.º do Cód. Proc. Penal). Consagra-se, assim, o princípio da oficialidade, que comporta desvios ou excepções: além de outras situações que aqui não interessa considerar, estando em causa crimes semi-públicos ou particulares, a promoção do processo pelo Ministério Público depende, desde logo, do exercício do direito de queixa pelo respectivo titular. Sendo o bem jurídico “a expressão de um interesse, da pessoa ou da comunidade, na manutenção ou integridade de um certo estado, objecto ou bem em si mesmo socialmente relevante e por isso juridicamente reconhecido como valioso” (J. Figueiredo Dias, “Direito Penal, Parte Geral”, Tomo I, 2004, p. 109-110), é intuitivo que, embora todos sejam concretizações dos valores constitucionais, há bens jurídicos protegidos pelo direito penal que são mais valiosos que outros e que a violação de uns e outros configura a prática de crimes cujo gravidade varia, justamente, em função da natureza e importância do bem jurídico-penal atingido. A gravidade do crime é um dos factores que está na base da distinção entre crimes públicos (em que o Ministério Público desencadeia, oficiosamente, o procedimento criminal), semi-públicos (a legitimidade do Ministério Público para o exercício da acção penal depende de uma queixa do ofendido ou de alguém que, legitimamente, o substitua) e particulares (o exercício da acção penal pelo Ministério Público depende de queixa e de acusação particular). Como se referiu, a queixa, nos crimes semi-públicos e nos crimes particulares, e, também, a acusação particular nos segundos, apesar de terem assento no Código Penal, são pressupostos processuais ou condições de procedibilidade, sem as quais o Ministério Público carece de legitimidade para promover o procedimento criminal (cfr. artigos 48.º, 49.º e 50.º do Cód. Proc. Penal). O recorrente sustenta que exerceu (e tempestivamente) o seu direito de queixa e, para tanto, agarra-se à designação que lhe deu o agente de autoridade que a recebeu e que a formalizou: aditamento. Vale a pena conhecer o teor do tal “aditamento” (elaborado no dia 03.02.2010): “Em aditamento ao NPP e NUIPC em epígrafe (refere-se ao NUIPC 150/10.5 PBCBR originado pela denúncia apresentada pelo aqui recorrente em 23.01.2010, na 1.ª Esquadra de Coimbra da PSP), relacionado com um Auto de Denúncia por roubo e agressões, comunico a V.ª Ex.ª que, pelas 16H30 do dia 03.02.2010, compareceu nesta Subunidade Policial o denunciante C… (devidamente identificado no Auto de Denúncia) a comunicar que momentos antes, no estabelecimento denominado D…, sito na Rua … – Porto, viu o B…, o qual segundo afirmou logo lhe dirigiu a seguinte expressão: «ó filho da puta queres levar mais nos cornos». Em face do sucedido o denunciante deslocou-se de imediato na companhia do seu pai, a esta Subunidade Policial, com o intuito de solicitar a identificação do aludido autor das agressões e injúrias. O suspeito foi identificado, em virtude de se ter deslocado pelos seus próprios meios a esta Esquadra”. (Segue-se a identificação completa do “suspeito”, o aqui arguido B…) Reconhecendo a necessidade de queixa para desencadear o procedimento criminal por este facto, o recorrente entende que esse pressuposto está verificado, argumentando assim: «Nos termos da parte final do n.º 1 do artigo 246º do CPP «A denúncia (…) não está sujeita a formalidades especiais», embora em abono da verdade, o recorrente também não ignora o entendimento perfilhado por parte da doutrina acerca desta temática, especialmente aquela que pugna que a denúncia deve manifestar “a intenção inequívoca do titular do direito de queixa de que tenha lugar procedimento criminal por certo facto” (Prof. Jorge Figueiredo Dias) Não se olvida que de facto consta a fls. 58 que a presença do assistente na esquadra (também) se destinava a proceder à identificação do autor das agressões e das injúrias (o ora recorrido) mas o que o tribunal “a quo” não relevou (e, com o devido respeito, mal) é que fls 58 constitui um aditamento à queixa apresentada em Coimbra». Depois de citar a definição do termo “aditamento” que consta do “Dicionário de Sinónimos” da Porto Editora e do “Dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea” da Academia de Ciências de Lisboa, o recorrente remata assim: «É convicção do assistente que consubstanciando fls. 58 um aditamento à queixa inicial, é forçoso concluir que a primeira manifestação de vontade para perseguir criminalmente o arguido, também se estende/amplia em relação aos factos perpetrados em 3/2/2010 (e não em 23/1/2010 como, seguramente por lapso, o tribunal “a quo” refere no despacho em crise. Neste circunspecto, com caracter meramente exemplificativo, atente-se, com as necessárias adaptações no sumário do Aresto do Tribunal da Relação do Porto quando decidiu: “Se o queixoso apresenta queixa por crime de ofensa à integridade física e, durante o inquérito, se referenciaram factos susceptíveis de integrar um crime de injúria contra o queixoso deve entender-se que houve queixa relativamente a este crime se, tendo o Ministério Público notificado o queixoso para, nos termos dos artigos 68 n.º 2, e 246 n. 4 do Código de Processo Penal de 1998, o queixoso veio nesse prazo requerer a sua constituição como assistente (Ac. TRP de 13/10/2004, disponível em www.dgsi.pt – nossos grifos». A verdade é que a “denúncia” apresentada em 03.02.2010, na “Esquadra …” da PSP, é designada como “aditamento”, apenas, porque o OPC que a recebeu assim entendeu fazê-lo (e a tal não terá sido alheio o facto de o denunciante ter declarado que ali se deslocou “com o intuito de solicitar a identificação do aludido autor das agressões e injúrias”) e o acórdão citado pelo recorrente em abono da sua tese tem muito pouco de comum ou de similitude com este caso. Teria razão o recorrente se se verificasse conexão e identidade substantiva entre as duas situações denunciadas. É esse o sentido do acórdão da Relação de Coimbra, de 19.12.2006 (Relator: Des. Brízida Martins) quando nele se afirma que “nos crimes semi-públicos e particulares, o objecto do inquérito limita-se ao estrito âmbito da queixa apresentada pelo ofendido, queixa que não pode estender-se a qualquer outro crime que não tenha relação de identidade factual com o crime participado”. Claro é, ainda, o sentido do acórdão da mesma Relação, de 19.01.2011 (Des. Orlando Gonçalves) ao afirmar que “o facto descrito na queixa, numa perspectiva naturalístico-normativa, pode ser restringido ou ampliado durante a investigação, desde que neste último caso se mantenha no âmbito da situação denunciada e de protecção do mesmo bem jurídico”. Ainda com interesse, a opinião de Paulo Pinto de Albuquerque (Ob. Cit., 150) que, sobre este específico aspecto expende que “caso os factos que constam da queixa se revelem como infundados, apurando-se no inquérito outros factos criminosos também dependentes de queixa, mas substancialmente distintos dos que constam da queixa, o processo deve ser arquivado. Só a dedução de uma nova queixa, se ainda estiver em tempo, pode justificar o prosseguimento do processo criminal”. Ora, neste caso, não existe a exigida identidade substancial, ou seja, o facto naturalístico do dia 03.02.2010 é substancialmente distinto do facto descrito na denúncia do dia 23.01.2010 e, portanto, aquele não é algo que, para efeitos de procedimento criminal, acresça, que se possa aditar a este. São distintos episódios da vida em sociedade com eventual relevância penal em que o único ponto comum são os intervenientes. Por conseguinte, não é por aqui que, eventualmente, poderemos chegar à conclusão do que o recorrente exerceu o seu direito de queixa relativamente ao facto ocorrido no dia 03.02.2010. Dissemos logo no início que uma das formas de aquisição da notícia do crime pelo Ministério Público é através de denúncia de uma qualquer entidade pública ou de um particular (art.º 241.º do Cód. Proc. Penal). A queixa não se confunde com a denúncia, mas é (pode considerar-se) uma forma de denúncia. Distingue-se da denúncia porque enquanto esta é uma mera declaração de ciência, a queixa exige, também, uma manifestação de vontade de que o agente seja perseguido criminalmente. Na queixa, não tem que ser identificada a incriminação a que se subsumem os factos[4], mas não basta a simples descrição fáctica, a mera transmissão do facto com (eventual) relevância criminal a quem tem legitimidade para promover o processo penal: o Ministério Público (cfr. Ac. TRC, de 15.03.2006, Proc. n.º 4349/05; Des. Ribeiro Martins), sendo imperioso que, de alguma forma, o titular do direito (normalmente, o ofendido) manifeste, claramente, o propósito, a vontade de que contra o autor do facto (que não tem que ser logo identificado) seja instaurado e prossiga procedimento criminal. Apesar do que alega o recorrente, é inegável que no designado “aditamento” não existe qualquer manifestação de vontade, implícita que seja, de que contra o arguido B… seja iniciado procedimento criminal, quer pelo crime de injúria, quer pelo eventual crime de ameaça, como evidencia o digno Magistrado do Ministério Público na sua resposta, em que trata este tema desenvolvidamente e com grande proficiência e por isso nos abstemos de mais considerações sobre este ponto. Mas, com isto, a questão não fica resolvida. Importa saber como há-de manifestar-se essa vontade de que seja instaurado procedimento criminal contra o autor do(s) facto(s) susceptível(is) de configurar(em) crime(s) de natureza semi-pública ou particular, designadamente se essa declaração de vontade há-de ser feita a par da declaração de ciência/comunicação do facto. Geralmente, o que fica a constar do auto que formaliza a queixa é a informação de que “o queixoso declarou desejar procedimento criminal” contra o denunciado, mas todos aceitam que não há fórmulas sacramentais. No acórdão do STJ de 29.01.2007 (Proc. n.º 4458/06-3.ª), acessível em www.dgsi.pt, considerou-se indispensável que “…dos seus termos ou dos que se lhe seguirem (sublinhado nosso) se conclua, de modo inequívoco, a manifestação de vontade de perseguir criminalmente os autores de um facto ilícito”[5]. No AUJ de 18.04.2012 (DR, I, n.º 98, de 21.05.2013), o STJ pronunciou-se em termos idênticos: “Já no que se refere à forma da queixa, o Código Penal é omisso, devendo entender-se que ela pode ser feita por toda e qualquer forma que dê a perceber a intenção inequívoca do titular de que tenha lugar procedimento criminal por certo facto”. Também no AUJ de 27.04.2011 se frisa que “a noção de queixa tem conteúdo e natureza processual específicos; não constitui, como a denúncia, a simples transmissão do facto com relevância criminal, isto é, não constitui processualmente queixa uma simples declaração de ciência feita acerca de um facto. A queixa exige que se manifeste nessa declaração uma vontade específica de perseguição criminal pelo facto, e distingue-se nos seus elementos da denúncia, pois na queixa além da declaração de ciência na transmissão da ocorrência de um facto, exige-se ainda «uma manifestação de vontade de que seja instaurado um processo para procedimento criminal contra o agente» (cf., GERMANO MARQUES DA SILVA, “Curso de Processo Penal” 2.ª ed., Editorial Verbo, Tomo III, págs. 55 a 59)”. Esta jurisprudência acolhe os ensinamentos da doutrina nacional, em especial do Professor Figueiredo Dias que, depois definir a queixa como “o requerimento, feito segundo a forma e no prazo prescritos, através do qual o titular do respectivo direito (em regra, o ofendido) exprime a sua vontade de que se verifique procedimento criminal por um crime cometido contra ele ou contra pessoa com ele relacionada”, em face da omissão, quer no Código Penal, quer no Código de Processo Penal, de qualquer indicação sobre a forma como deve ser feita, considera que deve “dar a perceber a intenção inequívoca do titular de que tenha lugar procedimento criminal por certo facto”, sendo indispensável “que o queixoso revele indubitavelmente a sua vontade de que tenha lugar procedimento criminal contra os agentes (eventuais) pelo substracto fáctico que descreve ou menciona” (“Direito Penal Português – Parte Geral - As Consequências Jurídicas do Crime”, Editorial Notícias, 1993, pág. 665 e segs.). Ora, vem-se entendendo que o pedido de intervenção no processo como assistente satisfaz essa exigência de manifestação inequívoca, por parte do titular do direito de queixa, de que seja instaurado e prossiga procedimento criminal contra o(s) agentes[6] do(s) facto(s) ilícit0(s) e não vislumbramos razões válidas para dissentir dessa orientação. No caso em apreço, verifica-se que, no próprio dia (03.02.2010) em que se terá verificado o facto que, supostamente, configura a prática, pelo arguido, de um crime de ameaça, o denunciante C… pediu a sua intervenção no processo como assistente (cfr. requerimento a fls.11). Podendo tratar-se de mera coincidência temporal, nada permite afirmar que esse pedido não visava (também) o procedimento criminal pelo crime de ameaça. Por isso concluímos que, relativamente a esse eventual ilícito penal, foi exercido, pelo respectivo titular, o direito de queixa, pelo que a decisão recorrida não pode manter-se, impondo-se a apreciação de mérito, concretamente, se existem indícios suficientes da prática dos factos denunciados e, portanto, se o arguido deve ser levado a julgamento, também, por esses factos. Cabe aqui fazer notar que, mesmo que se conclua pela suficiência da indiciação, não se impõe, necessariamente, uma decisão de pronúncia. Isto porque, consistindo a ameaça no anúncio de um mal futuro (portanto, o mal, objecto da ameaça, não pode ser iminente), haverá que ponderar se o facto de o arguido se ter dirigido ao assistente C… e lhe ter dito “…queres levar mais nos cornos” anuncia um mal futuro (ou se é antes um mal iminente, que está prestes a concretizar-se) e, logo, se preenche o tipo objectivo do crime de ameaça. Fica, assim, prejudicada a apreciação da questão da arguida nulidade, por insuficiência do inquérito. III – Decisão Em face do exposto, acordam os juízes desta 1.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto em conceder provimento ao presente recurso e, em consequência, revogar o despacho recorrido, que deverá ser substituído por outro que, dando por verificado o pressuposto de procedibilidade que é o exercício, pelo respectivo titular, do direito de queixa (e, por conseguinte, reconhecendo a legitimidade do Ministério Público para exercer a acção penal), aprecie e decida se há razões, de facto e de direito, para pronunciar o arguido B… pelo crime de ameaça previsto e punível pelo artigo 153.º, n.º 1, do Código Penal. Sem tributação. (Processado e revisto pelo primeiro signatário, que rubrica as restantes folhas). Porto, 16-10-2013 Neto de Moura Vítor Morgado _______________ [1] Cremos que foi isso que se pretendeu dizer na decisão recorrida, e não que se trata de uma “condição de punibilidade”. [2] No entanto, excepcionalmente, pode o Ministério Público iniciar o procedimento criminal sem haver queixa (como sucede quando o interesse do ofendido o aconselhar e o direito de queixa não puder ser exercido porque a sua titularidade caberia, apenas, ao agente do crime. Por outro lado, a falta de queixa não impede a prática de actos urgentes de investigação necessários para assegurar a prova. [3] Estes são os desfechos, digamos assim, mais comuns, mas pode o MP optar pela suspensão provisória do processo, nos termos do art.º 281.º do Cód. Proc. Penal. [4] Como se sublinha no acórdão da Relação de Guimarães, de 24.01.2005 (Relator: Des. Francisco Marcolino), disponível em www.dgsi.pt, o que importa para o exercício do direito de queixa (e, portanto, para que o Ministério Público exerça a acção penal) é, em caso de crime semi-público, “o facto susceptível de integrar um crime, sendo este naturalístico, e não judicial” ou, como se refere no acórdão da mesma Relação, de 16.11.2009 (Proc. n.º 2646/06.4 TAGMR. G1), “essencial é que ele (denunciante) identifique o «episódio» a que se refere, de forma a que, no futuro, não haja dúvidas sobre aquilo de que se queixou”. [5] Exactamente no mesmo sentido, os acórdãos da Relação de Coimbra, de 06.03.2013 (Des. Calvário Antunes) e da Relação de Lisboa, de 19.12.2006; Des. Simões de Carvalho (I- Embora a queixa não seja nenhum negócio jurídico formal, para o qual a lei imponha uma fórmula sacramental, certo é que não se pode, no entanto, concordar com a asserção de que, em lado algum, a lei exige que, para além da transmissão do facto, o ofendido tenha que manifestar, de forma inequívoca, a vontade de que se exerça a acção penal, o que decorre, desde logo, da correcta interpretação do próprio texto do Art.º 49º, n.º 1 do C.P.Penal; II – Daí que, em face da ordem jurídica portuguesa, o direito de queixa assuma, sem margem para qualquer dúvida, o carácter de um verdadeiro pressuposto processual, pelo que a intenção clara do seu exercício se torna absolutamente necessária para conferir ao Mº Pº legitimidade para a acção penal) e de 23.04.2013 (Des. Artur Vargues). [6] Assim, Paulo Pinto de Albuquerque, “Comentário do Código de Processo Penal”, 2.ª edição actualizada, UCE, 144). Na jurisprudência, além do citado acórdão do STJ, de 29.01.2007, cfr. o acórdão desta Relação, de 27.10.2010 (Des. Lígia Figueiredo). A este propósito, na sua resposta, o Ministério Público afirma que uma das constantes que se pode surpreender na jurisprudência é “a necessidade sentida pelos tribunais de recorrer ao decurso posterior do processo” (nomeadamente aos actos de constituição de assistente e de dedução de pedido de indemnização civil) “para justificar um acto de expressão de vontade inequívoca que deveria preexistir e ser auto-suficiente na sua formulação” e diz mesmo que a construção da figura da “queixa implícita” ou “presumida” “pode configurar-se como um atentado à teoria da divisão de poderes, operando-se por via interpretativa de uma expressão de vontade não claramente expressa, uma alteração da natureza do crime”, no que não o acompanhamos. |